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29/07/2014 16:10 by admin-omega
Sábado, onze e quarenta da manhã. Depois de mais de uma hora na linha de tiro, me preparo para disparar a última
de sessenta flechas. O alvo - um pedaço de papelão com um buraco de dez por trinta centímetros, pouco menor que
uma placa de carro - está a quinze metros. Eu já havia acertado 50 dos primeiros 59 tiros. Sobre a última flecha nada
pesa senão a responsabilidade de terminar o exame com um acerto. Repito para mim mesmo, como um mantra:
“faça um tiro perfeito… faça um tiro perfeito…”
Não é a primeira vez que escrevo sobre um exame de faixa - no final de 2012, escrevi sobre a experiência de passar
no exame para arqueiro bronze. A dinâmica do teste é simples: trinta tiros num alvo horizontal e trinta tiros num alvo
vertical, sempre a quinze metros. Para passar, é preciso acertar no mínimo 25 tiros em cada alvo, pra quem usa
flechas de madeira, ou 27 tiros pra quem usa flechas de carbono. A diferença é o tamanho do alvo: 80 x 30 cm para
bronze, 20 x 50 cm para a prata e 10 x 30 cm para o ouro. Os tiros são divididos em 10 rodadas, ou ends, de 3 tiros.
Costumo dizer que o exame de nível bronze é um teste essencialmente de concentração, o nível prata é uma medida
da concentração e da qualidade da técnica do arqueiro. Agora posso dizer que o nível ouro é uma medida da
concentração, da técnica e também da atitude do arqueiro. Nos últimos meses procurei inspiração no kyudo, a arte do
arco tradicional japonês que, como todos os “Dos”, é uma forma de meditação em movimento. (É uma
pena que minha experiência do kyudo ainda esteja limitada somente à leitura de livros sobre o assunto, já que ao que
parece ninguém pratica essa arte em Curitiba.)
O exame começou pelo alvo horizontal, em que eu costumo ter mais dificuldade. No aquecimento, três flechas para
fora na primeira rodada, duas flechas para fora na segunda. Tento ficar tranquilo: o aquecimento serve para relaxar e
ajustar as referências de visada.
Começamos a primeira rodada. São sete ou oito arqueiros na linha (realmente não sei dizer, estava tão focado no
exercício que não prestei muita atenção no que acontecia à minha volta). Enquanto as primeiras flechas acertam o
alvo, eu ainda estou ajustando a posição dos meus pés na linha. Lentamente, deliberadamente, tiro uma flecha da
aljava, levanto o arco e a encaixo na corda. Apoio o arco sobre meu pé esquerdo e olho para o alvo - ou melhor, olho
para um ponto minúsculo, um buraco no anteparo uns quinze centímetros acima de onde quero que a flecha acerte.
Encaixo a mão na corda e começo a tensionar o corpo enquanto faço uma última respiracão profunda. Dou o
comando para mim mesmo: “cabeça vazia, execute”. Levanto o arco acima da cabeça, traciono a corda,
procuro a ancoragem, ajusto a mira, e deixo a mão deslizar da corda. A primeira flecha acerta o centro do alvo. As
outras duas flechas da primeira rodada seguem a primeira.
Tento manter a concentração enquanto começo a segunda rodada. Dois acertos e uma flecha para fora. Nas
próximas três rodadas acerto todas as flechas, errando mais uma na quinta rodada. Chego na oitava rodada podendo
perder ainda três flechas, e começo a fazer contas: “posso errar uma flecha por rodada que ainda passo no
horizontal”.
Preparo o primeiro tiro, meio tenso, pensando em não errar. O resultado não poderia ser outro: o tiro sai curto e a
flecha crava no anteparo abaixo do alvo. O segundo tiro também. E o terceiro sai alto e fica acima do alvo. A situação
que estava confortável acaba de ficar dramática: gastei todos os meus cinco erros e ainda tenho que dar seis tiros.
Volto para a linha de tiro e procuro esquecer que tenho que acertar seis tiros seguidos. Me lembro que devo fazer
apenas um tiro por vez, que não adianta ficar pensando no que aconteceu nem no que ainda precisa ser feito. Afinal,
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“o passado é história, o futuro é mistério, o agora é uma dádiva e por isso se chama presente” [Oogway Kung Fu Panda]. O primeiro tiro da série acerta corta o papelão na parte de baixo do alvo, o segundo corta na parte
de cima, o terceiro fica no centro e à esquerda do alvo. Mas são três acertos e é o que eu preciso para ficar no jogo e
me tranquilizar.
Começa a última rodada do alvo horizontal. Faltam três flechas, preciso de três acertos e estou tremendo, o coração
disparado. Mas já estive nessa situação, sei que não vai adiantar ficar parado na linha esperando os batimentos
cardíacos se regularizarem. É o momento da concentração absoluta. O primeiro tiro, ainda tenso, acerta o centro do
alvo. O segundo segue o primeiro. Só falta uma flecha, um tiro que precisa ser perfeito. Verifico a posição dos meus
pés, preparo a flecha e procuro o ponto de foco no alvo. Executo os passos do tiro quase em câmera lenta, puxo,
ancoro, verifico a mira e a flecha sai quase que por vontade própria. Tiro perfeito no centro do alvo. Quase caio no
chão com a descarga de adrenalina mas ainda não posso relaxar: ainda falta a segunda metade da prova.
Tento relaxar um pouco no aquecimento do alvo vertical. Checo o ponto de visada - escolho um buraco de flecha na
parte superior direita do alvo. Foco toda minha atenção nesse ponto e o resto do alvo se torna um vulto.
A primeira rodada vai bem, com três acertos. Na segunda rodada, um instante de hesitação me faz errar a largada e
jogar uma flecha para a direita e abaixo do alvo - sintoma clássico de uma largada falsa. Me lembro que o
comprometimento é essencial - o tiro só deve parar se tiver algo errado. Erro mais uma flecha na quinta ou sexta
rodada (depois me disseram que, na hora do tiro, um macaco de pelúcia em algum lugar da loja assoviou, mas eu juro
que não me lembro de nada disso, o tiro foi ruim mesmo).
Chego na última rodada da série com apenas quatro erros. Tento não pensar que ainda posso errar um tiro - foi
assim que perdi três flechas seguidas na horizontal. Começo a repetir o mantra: “faça um tiro perfeito”. A
concentração é recompensada com um tiro perfeito no centro do alvo, seguido por mais um.
Chega a hora do último tiro. De certa maneira, o último tiro é o mais ingrato de qualquer torneio: queira ou não, é o
que você faz no último tiro que fica na lembrança, independente do que aconteceu no resto do dia.
Eu sei que já passei - tenho os 25 acertos que preciso, posso jogar a flecha fora. Mas é hora de esquecer tudop isso e
fazer o último tiro como se fosse o primeiro, ou melhor, como se fosse o único. “Uma flecha, uma vida” é
o ideal do kyudo.
Todo mundo já terminou de atirar. Silêncio absoluto no estande. Checo a posição dos pés, checo a rotação do
quadril, encaixo a flecha. Levanto o arco e começo a tracionar a corda mas sinto que algo está errado. Desarmo e e
abaixo o arco, a decisão mais difícil de se tomar numa linha de tiro. Não olho para trás, não vejo os outros arqueiros.
Cabeça vazia, execute.
Tiro perfeito no centro do alvo. O silêncio do estande se transforma em aplausos, mal acredito que consegui passar no
exame, ou melhor, que me tornei o primeiro arqueiro brasileiro a passar nesse exame. Mas passar no exame não é o
objetivo em si - o objetivo sempre foi, para mim, atingir o nível técnico e a atitude mental para passar no exame. Como
escreve o Herrigel,
“The inward work, however, consists in his turning the man he is, and the self he feels himself and perpetually
finds himself to be, into the raw material of a training and shaping whose end is mastery. In it, the artist and the human
being meet in something higher. For mastery proves its validity as a form of life only when it dwells in the boundless
Truth and, sustained by it, becomes the art of the origin. The Master no longer seeks, but finds. As an artist he is the
hieratic man; as a man, the artist, into whose heart, in all his doing and not−doing, working and waiting, being
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and not−being, the Buddha gazes. The man, the art, the work - it is all one. The art of the inner work, which
unlike the outer does not forsake the artist, which he does not ‘do’ and can only ‘be’,
springs from depths of which the day knows nothing.” [E Herrigel]
Logo na primeira tentativa de fazer o exame percebi que não é querendo acertar o alvo que se acerta. Não basta ter
muita vontade, não basta treinar a pontaria, pois não é este o objeto do jogo. O ponto onde a flecha acerta é tão
somente o resultado do que o arqueiro faz na linha de tiro. Intencionalidade sem intenção - acertar o centro do alvo
sem se preocupar em acertar, mas se preocupar em atirar perfeitamente - é uma frase que, para nós ocidentais, não
parece fazer muito sentido, mas foi a melhor maneira que eu achei para descrever o processo.
Mas o mérito não é só meu: é da Simone (que me aturou por meses falando sobre o zen e o kyudo e a
intencionalidade sem intenção), é do Eduardo e do Raul, meus técnicos e treinadores, da Mel Yamada, da Juliane, do
Emerson, Daniel e todo mundo que me incentiva a melhorar no arco e flecha.
O desafio está lançado. Ontem eu mostrei que é possível, apesar de muito difícil. A questão agora é saber quem vai
ser o próximo arqueiro ou arqueira ouro!
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