MÚSICA/MUSIQUE Milita, a voz de Angola Revelamos ao leitor o percurso artístico desta autora, compositora e intérprete angolana que procura reafirmar a sua música em França e nos fala da actualidade musical angolana; declarações da cantora confiadas a “Latitudes”. ou natural de Luanda, mas meu pai era fazendeiro e possuía uma roça na zona do Ambrizete, em Beça Monteiro, e em pequenina íamos para a fazenda e toda essa área nos marcou. Fiz o 7° ano liceal e a admissão e depois estudei muitas línguas; falo sete idiomas, começou por nos dizer Milita, voz pura de Angola. cantando de Cabinda ao Cunene Dizia-se que Portugal ia do Minho ao Cunene e até a Timor... Corri Angola toda, fui a todos os cantinhos que se possam imaginar. Lá onde a guerra estava mais acesa a Cruz Vermelha levava um grupo de artistas de que fazia parte, acompanhados pelo conjunto Os Gansos da Casa Pia. Actuávamos em pleno mato, por vezes, mesmo em cima dos Unimogs no interior da guerra. Havia uma trégua para a música. Mal partíamos, os tiros recomeçavam. Transportavam-nos nos Nordatlas e duas ou três senhoras da Cruz Vermelha viajavam connosco. Fui escolhida por ser na época das artistas de maior popularidade, prossegue Milita. Em Angola era uma estrela. Já tinha percorrido Angola em serões para trabalhadores e noutros espectáculos. Os militares disputavam as minhas fotos, aos milhares, todos as queriam levar. Outras vezes deixavam bilhetinhos nos bancos com os seus gostos. Nessa altura recebia mais de cem cartas por dia. Eu assumo isso porque eram as minhas convicções da época. Tal como os angolanos que combateram ao lado dos portugueses. A época era assim. Também não tinha boa imagem da luta armada por falta de informação. O facto de ter cantado para a Cruz Vermelha não quer dizer que aceitasse tudo o que Portugal fazia. E era a favor da independência de Angola. Fiquei feliz quando Angola conquistou a independência e hoje fico infeliz com as coisas más que se fazem... Tudo o que digo ou faço é enquanto artista e cidadã, mais ou menos esclarecida e sensível, pelo que não posso fechar os olhos. Nos anos 60, durante a guerra, cantava para as Forças Armadas, nos quartéis, nas prisões e nos hospitais. Tinha a cultura da época e a minha pátria era a portuguesa. Latitudes — Nessa altura não era solicitada pelos opositores ao regime colonial? quisemos saber. Milita — Não, porque eles estavam na clandestinidade, havia a Pide S Latitudes — Quando entrou no meio artístico? perguntámos a seguir. Milita — Comecei aos três anos, em Luanda, na Liga Nacional Angolana com o grupo Folclórico de Angola de Tito de Assumpção. A música é a tónica da minha vida; na minha família há tias que tocavam piano. Uma foi presidente da Liga Feminina em Portugal. E o meu pai, Marcolino Bragança, foi um dos fundadores do Sport Lisboa e Benfica, juntamente com Félix Bermudes e Cosme Damião. Era natural de S. Tomé, mas estudou em Lisboa. Minha mãe é angolana, filha de um algarvio e de uma angolana de Golungo Alto (Malanje). Tinha jeito para cantar e aos três anos decorava canções com letras pesadas ouvidas na rádio. Quando fui para o grupo cantava e dançava. Aí ficou o bichinho; só ouvia música. Os meus pais entretanto retiraram-me para me meter a estudar. À volta dos 12 anos voltei a cantar na Emissora Nacional de Angola, no programa Gente Nova de Manuel Moreno, uma espécie de escola. Foi aí que a minha voz começou a ser educada, sobretudo nos tons agudos. LATITUDES n° 5 - avril/mai 99 que os reprimia. Tudo o que se passava era no Exterior, na Argélia ...nos clubes não se fazia política. Eu ia cantar aos clubes populares angolanos, ao Marítimo da Ilha, ao Atlético, que eram frequentados por gente de todos os grupos. Cantava no Chá das Seis. Na minha família houve quem fosse preso pela Pide, mas não existia uma actividade dos nacionalistas que fosse aberta. Não podiam. Nós, artistas, desde que nos convidassem tínhamos de ir, porque se negássemos, podiam tirar daí conotações políticas. Naquela época eu via os soldados portugueses como defensores da população, porque as notícias que recebíamos eram assustadoras. passagem pelo Brasil e ida para Lisboa gravar Entretanto casei, deixei de cantar e fomos para o Brasil, confianos Milita. E mais tarde, cerca de 1986, voltei ao canto, o que me exigiu uma grande preparação. Frequentei aulas de canto no Brasil e testei a minha capacidade, para poder dedicar-me seriamente à música. Já não era a mesma coisa de quando era garota. Agora tratava-se de traçar uma carreira internacional. Tenho de ser excelente naquilo que faço... Comecei a actuar no Rio e em São Paulo e participei no filme Eternamente Pagú de Norma Benguel, uma actriz que passou para o outro lado da câmara, e cantei no seu filme. Depois deste teste, querendo voltar às minhas origens, em 1991 fui para Portugal à procura de músicos angolanos de modo a encontrar um estilo próprio. Em 94 gravámos o disco “Eu Sou Angolana”*. Em Lisboa encontrei bom apoio por parte dos músicos e foi graças a isso que pude gravar. Fiz alguns espectáculos e fui à Televisão mas não fiquei em Lisboa muito tempo, devido ao apoio da editora ser 81 Milita fraco. Então fui para Bruxelas, pelo facto de ser a capital da União Europeia, onde imaginei haver muita actividade. E, ao fim de pouco tempo, vim para Paris onde espero que as coisas aconteçam; era o alvo. Latitudes — Com quem realizou este disco? perguntámos. Milita — Há pessoas que escrevem para mim, porque tenho prestígio. Tenho à minha volta outros que tocam comigo e participo nos discos deles. Acabo de gravar com Eleutério Sanches, um cantor angolano que trabalha em Portugal. Nesse disco interpreto duas canções e faço um dueto com o Eleutério. Toda a música é dele, pois é um grande autor-compositor e até pintor. No meu disco, “Eu Sou Angolana”, há duas canções de que sou a autora-compositora, prossegue Milita. Mas para obter maior diversidade gosto de interpretar canções de outros autores, evitando a monotonia. Bonga, grande nome da música angolana, e amigo, compôs aí para mim. O Zéka, músico angolano instalado em Portugal, é dotado de tal talento que parece ser o melhor a compor para mim. Tudo o que faz, carregado de emotividade, me traz sucesso no palco. Júlio Silva foi o produtor do disco e quem apostou em mim. Ele compôs e fez todos os arranjos. É dos melhores músicos instalados em Lisboa; a sua banda toca frequentemente no Ritz. Nos espectáculos que faço em Portugal é essa banda que me acompanha. De Euclides Pereira canto aí uma composição em quimbundo: “Monami” (Meu filho dorme), sobre uma das mais belas melodias da música popular angolana. O Fontinhas (Euclides Fontes Pereira) era do 82 grupo N’gola Ritmos, que foi um dos primeiros conjuntos angolanos. Toda a música urbana angolana tem aí a sua origem. Ele continua a viver em Angola. Meu irmão, Marcolino Meireles intervém no disco com a composição “Eu sou angolana”. Marcolino é muito conhecido em Angola enquanto compositor de música infantil, e foi vários anos campeão de Angola em xadrez. E também um dos fundadores da Confederação de Futebol em Luanda, que o Eusébio foi inaugurar. Em 1989, participei em Luanda no primeiro festival de música angolana, o Fenacult, indo expressamente do Brasil para actuar. Os N’gola Ritmos também participaram nele. um novo disco O novo está na fase terminal, continua Milita; as músicas estão gravadas, mas falta a decisão de produção. Quero imprimir-lhe uma sonoridade mais universal sem a descaracterizar. Ele foi gravado em Portugal, mas a música africana que se faz em Portugal visa apenas o mercado lusófono. Os produtores investem muito pouco nela. A minha intenção é de aqui dar um tratamento mais evoluído a essas canções enriquecendo-as. É isso que falta. Vai intitular-se: “Mulata de Angola”, tirado duma canção de Eleutério Sanches. Quero que se intitule assim para chamar a atenção para a mulher de Angola. Tal como no Brasil, em Angola também há mulheres belíssimas. A mistura é muito corrente em Angola e tão antiga como a chegada dos portugueses, embora haja pessoas que a não aceitam. É certo que pelo menos um grupo político não gosta nem de mulatos nem de brancos. Angola é dos negros, dizem. Mas ao nível do povo, ou até do partido no poder, não se fala nessas coisas. Angola é um país multi-racial, sempre foi assim. Angola orgulhase disso. Eu gostaria que o meu disco pudesse tornar as pessoas melhores. Os autores das letras são o Zéka, eu, Rocha Perazzo, brasileiro, e é possível que entre uma música do Filipe Mukenga. Gostaria que houvesse aqui mais apoio para a nossa música. Enquanto vier só um músico, é como uma andorinha que não faz Primavera... Latitudes — Que influências musicais tem a sua música? interrogámos. Milita — A minha música tem influência brasileira; também sempre gostei dos Rhythme and Blues americanos, da Soul music; e da música clássica. Há o fundo comum angolano da semba (que deu lugar ao samba do Brasil). Portanto é uma mistura de tudo isso. Os grupos angolanos de que gosto mais? Em Luanda há os Kiezos, os Merengues, as Gingas, os irmãos Kafalas, continua Milita. Gosto de grupos de rap como o N’sex & Love. Em Lisboa também há muito bons músicos angolanos: o Eduardo Paim, o Bonga, o Teta Lando,o Waldemar Bastos, que foi convidado a gravar com o David Byrne e gravou no Brasil com Xico Buarque. Estes são os grupos do top, os mais internacionais. Aqui em Paris, além do Bonga, que actua para as comunidades lusófonas, e é um tradicionalista por opção, há outros bons músicos angolanos dispersos, que não têm onde se mostrar enquanto tal, como o Inspecta L (rapista), Sam Angwana, Matadidi, Tabonta, Lulendo, Joana Sambo. projecto de Associação Constatando as dificuldades dos artistas angolanos fora do país, cheguei à conclusão que era necessário fazer uma associação regrupando-os. A ideia já tinha surgido em Lisboa. Aqui em Paris, contactei com diversos músicos e decidimos fundar a Associação dos Artistas Angolanos Residentes em França. Contamos juntar artistas de todas as artes. Já deram o seu aval : Gilberto Tabonta, Sam Angwana, Matadidi, Joana Sambo, Lulendo, cantores; Frank Ludange, pintor; a poetisa D. Lala e o manequim Sébastien . Estamos actualmente a discutir os estatutos e a programar o primeiro espectáculo para reunir fundos. Os seus objectivos gerais são criar apoio às artes e condições para se afirmar aqui a cultura de Angola, bem como lançar acções de solidariedade D.L. * Edição da Movieplay Portuguesa, Lisboa. LATITUDES n° 5 - avril/mai 99