Dados do autor: Nome: Renato David Simões Nunes Grupo B – 2º lugar Outras Viagens, pela sensibilidade Estimado Mestre, Tenho o Louvre à distância da mão, mas o porteiro exige-me que aguarde mais alguns momentos. Bem pode chover, nevar ou levantar-se o maior dos vendavais que eu daqui não arredo pé! Afinal, o senhor Professor ensinou-se a nunca desistir, lembra-se? [Quando desistimos// É que perdemos//Os nossos meninos]. O senhor Professor ensinou-me…E poucas frases precisarão de umas reticências tão prolongadas! Aliás, talvez seja por isso que, passados todos estes anos, a imagem do nosso primeiro encontro permaneça ainda uma brasa incandescente a iluminar-me por dentro, caminhando delicadamente comigo na madrugada como se fosse a minha própria sombra. Uma imperturbável presença a recordar-me que na altura em que tudo se agigantava monstruosamente em meu redor apareceu o seu sorriso monalisiano a atravessar-me, em tom de desafio. Ali mesmo, naquele temido final de Verão, dentro das quatro paredes onde fui aprendendo a desenhar-me. [Todos temos//Uma Escola na mente//Nada do que somos//Lhe é indiferente]. Depois desse abraço por dentro, foram anos a remar contra a maré do próprio destino. A paralisia cerebral, sei-o hoje, nasceu dentro de mim, mais ou menos no momento em que toquei a luz do mundo. Os especialistas chamam-lhe síndromes espásticas e dizem que resultou de uma complicação perinatal. Sabe, senhor Professor, é curioso ver como o Homem inventa tantas palavras complicadas para ensaiar justificar a catástrofe que um simples grão de areia pode causar no miraculoso relógio suíço que é a vida… A verdade, porém, é que ao longo dos anos nenhum especialista, nem mesmo Deus, ninguém conseguiu dizer-me para onde fugiu o oxigénio que depois me faltou. Só a mãe nunca me deixou! Naqueles dias em que todos se afastavam e o oxigénio parecia voltar a abandonar-me irremediavelmente era a mãe que vinha de mansinho, beijarme com aquela frase: ”Meu anjo, eu vou estar sempre aqui, junto a ti”. E eu podia pressenti-la, mãe, quase lavada em lágrimas, talvez de eterno luto pelo menino que tanto sonhou e eu nunca consegui ser; talvez magoada pela alcunha de “mãe frigorífico” que as vizinhas murmuravam quando a cadeira de rodas serpenteava por entre os passeios inevitavelmente esburacados ou entupidos de carros. No meio, eu ingloriamente a tentar gritar, não me leve lá para fora, não me leve, o mundo depois dos nossos muros é tão grande!” Eles têm razão, não vale a pena vestir essa armadura, não vale mesmo. E depois, já em casa, a avó Maria à minha volta, com o louro e o alecrim a arderem, vestindo aquele jeito de bruxa que persegue os maus espíritos. Tantos olhares malévolos a sangrarem-me por dentro como se fossem facas; todos, mãe, a injuria-la maldosamente pela deficiência da cria que acreditavam durar pouco. E efetivamente, perscrutando este corpo desengonçado, parecia lógico que o tempo se encarregasse de confirmar por dentro o que era visível por fora. Ainda assim, dia após dia o destino seguia indiferente à lógica dos Homens e eu continuava a respirar; crescia por dentro à volta de um favo podre da colmeia, sem quase me sentir por fora. É um pouco como aquelas crianças em que o coração medra tanto, tanto, que acaba por provocar a morte do hospedeiro. No meu caso, era a mente, e não o coração, que crescia mais do que o corpo. Uma noz a expandir-se numa cas(c)a anã. E o grande dentro do pequeno, para tornar tudo ainda mais disforme, ainda mais deficiente, como fui ouvindo. Primeiro sem compreender. Depois já a doer, a sério. E tantas vezes desejei que aquela maldita lesão tivesse sido um pouco mais ao lado. Se o cérebro tivesse mesmo paralisado… Mas não estava. Elua após lua lutei contra mim próprio para saber que mal teria feito para nunca conseguir correr atrás dos passarinhos que dão som às estações do ano ou escalar a pulso uma cerejeira; para nunca poder esfarrapar os calções enquanto batia de frente no muro da vizinha da esquina com a minha primeira bicicleta de três rodas ou apertar o botão das calças que outros me enfiam; para nuca atirar um peão e ficar a vê-lo esburacar a carpete da sala de jantar até a mãe vir ralhar graciosamente, para nunca cortar as terríveis amarras desta prisão…Olhe, não sei se o senhor Professor algum dia se imaginou dentro do seu próprio sonho, a observá-lo como se lhe fosse estranho. Sonha, sabe que está a dormir, mas nada consegue fazer para acordar. Agora, em vez do sonho imagine um pesadelo e saberá o que eu senti durante anos: a alma presa à asfixiante trela do corpo. E talvez Descartes estivesse certo: res cogitans, res extensa. Eis senão quando, como num daqueles contos extraordinários, o meu Mestre apareceu e pediu-me que utilizasse as pestanas para contar histórias despidas de palavras: abrir e fechar duas vezes, sim; abrir e fechar três vezes, não. Foi, aliás, entre a enxurrada de estratégias que trazia para estimular-me que chegou o 25 de Abril da minha vida! O braço direito enfaixado numa tábua, com um rato de computador fixo à frente e um programa informático que permitia mover o cursor no ecrã do computador com um ligeiro gesticular da cabeça. E no tempo das portas fechadas eu olhava em frente, mexia o raio da cachimónia quase morta e com um só clique no rato via o mundo inteiro a desfilar-me pela janela dos sentidos, famintos de abraços. Abraços que chegaram dentro da minha carta de condução! É verdade que esta vetusta cadeira de rodas nunca me abandonou, mas eu inventei outros caminhos que me ajudaram a dizer quem era, até mesmo quando descrevia ou pintava as personagens que me pediam para imaginar! Olhe, por exemplo, este ponteiro de cabeça que me ofereceu e com o qual debico o teclado, letra após letra, prolonga de tal modo o que sou que se me pedissem para desenhar a minha mão ela só poderia ter esta forma de capacete com uma vara pontiaguda. Este ponteiro é o meu pé esquerdo daquele menino, Christy Brown, que ia pintando os quadros. Sabe, senhor Professor, quando vemos as letras, uma a uma, a tropeçarem dolorosamente de cima para baixo, até ficarem estampadas mesmo à nossa frente, atribuímos-lhe outro sentido [Estas palavras são//Os meus calos da Mão]. Mas… Meu eterno Mestre! A porta do Louvre ainda não abriu e com a passagem das horas eu perdi-me em tantas palavras desnecessárias. Tantas divagações apenas para tentar dizer-lhe que por muitas voltas que eu dê é a Si que eu sempre regresso. Afinal, quando fazemos as malas é que nos lembramos daqueles que um dia nos deram asas para viajar. As asas que a própria vida tantas vezes nos roubou. A minha casa, sei-o hoje, não é esta cadeira, nem a ilha em que nasci; a minha casa posso eu construí-la onde e quando quiser…Afinal, eu não sei se todos podem chegar, mas qualquer Homem pode partir, até mesmo eu. [Ah! A mensagem de “página em manutenção” já desapareceu. Agora, que mais uma porta se abriu, posso finalmente entrar! Bem-haja; por nunca ter desistido. – ELES NÃO TÊM, NUNCA TIVERAM, NUNCA TERÃO RAZÃO. – Do seu sempre menino, apenas ESPECIAL. Ab imo corde]. Pseudónimo: FA