235 Revendo Ciências Básicas O objetivo desta subseção é apresentar revisões concisas sobre temas relacionados com as ciências básicas, ou seja, procurar rever as bases da prática médica. A justificativa para a inclusão de tópicos dessa natureza relaciona-se com os significativos progressos dessas ciências nas últimas décadas e à necessidade absoluta de atualização por parte da equipe de saúde, para o benefício dos pacientes. Magda M. S. Carneiro-Sampaio Editora Associada da einstein Medicina genômica e prática clínica Carlos Alberto Moreira-Filho1, Oswaldo Keith Okamoto2 1 2 Doutor em Genética Médica. Diretor Superintendente do Instituto de Ensino e Pesquisa Albert Einstein - São Paulo (SP). Professor do Departamento de Imunologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (SP). Doutor em Bioquímica e Biologia Molecular. Coordenador do Centro de Pesquisa Experimental do Instituto de Ensino e Pesquisa Albert Einstein de São Paulo (SP). O termo “medicina genômica” já aparece com regularidade nas principais revistas médicas do mundo. A genômica é um ramo da genética que estuda a natureza física e o funcionamento do material genético contido no conjunto de cromossomos de cada espécie(1). Avanços nas tecnologias de seqüenciamento e análise computacional do DNA permitiram determinar a posição cromossômica e a seqüência de bases dos genes de diversas espécies, incluindo a humana. Esse conhecimento, chamado genômica estrutural, facilitou enormemente a detecção de mutações nos genes humanos, as quais são as causas primárias de diversas doenças. Mais recentemente, tornou-se possível analisar como os genes se expressam, ou são silenciados, nos diferentes tecidos, ou num tumor e no tecido normal adjacente. Esse é o campo da genômica funcional. O próximo passo, que já está sendo dado, é a proteômica: entender como as proteínas, codificadas pelos genes, são geradas, modificadas e interagem no ambiente intracelular. Mas qual o real impacto que a ciência genômica terá na prática clínica? As aplicações da genômica em medicina Uma das primeiras utilizações práticas dos avanços em genômica foi o desenvolvimento de testes para detecção de mutações gênicas que conferem alta suscetibilidade a determinadas doenças. Um bom exemplo são as mutações nos genes BRCA1 e BRCA2, que determinam as variantes hereditárias dos cânceres de mama e ovário(2). Portadoras dessas mutações têm risco de 60-85% de desenvolver carcinoma mamário, e de 20-65% de desenvolver câncer de ovário, até os 70 anos de idade. Mutações em BRCA2 também aumentam o risco de câncer de mama em homens. O teste genético (disponível no Depto de Oncologia do HIAE) permite: 1) diagnóstico dos casos hereditários e aconselhamento genético dos familiares do paciente; 2) oferta de alternativas profiláticas (cirurgia ou quimioprevenção) aos portadores de mutação. Outras aplicações importantes advêm da identificação de genes que codificam proteínas ativas em diversos processos metabólicos, permitindo que novas drogas sejam desenvolvidas com base na clonagem desses genes e da produção da proteína em larga escala. Nessa busca tem papel relevante a genômica funcional, com os chamados “chips de DNA”, que mensuram simultaneamente o nível de expressão de milhares de genes num único ensaio. Isso permite, por exemplo, identificar o funcionamento diferencial dos genes em resposta a uma droga ou no processo de transformação neoplásica(3). Essa tecnologia é complementada pela farmacogenômica, onde se catalogam diferenças genéticas entre os indivíduos que condicionam diferentes padrões de resposta aos medicamentos. Aplicações nesta linha dependem de investimentos em pesquisa, como o Projeto Genoma Clínico do Câncer, que visa desenvolver novas formas de diagnóstico e tratamento do câncer a partir do estudo de genes expressos. O IEP Albert Einstein é uma das Instituições participantes desse projeto financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp) e pelo Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer, centrado no estudo molecular de quatro tipos de manifestação do câncer: as doenças linfoproliferativas, tumores gastrointestinais, tumores neurológicos e de cabeça e pescoço. O Centro de Pesquisa Experimental do IEP Albert Einstein é responsável pela coordenação dos estudos de genômica funcional, com o objetivo de analisar a expressão gênica em células neoplásicas para identificar genes que sejam relevantes ao diagnóstico, prognóstico, definição de subtipos, predição de resposta às diferentes abordagens terapêuticas ou que possam representar alvo para desenvolvimento de novas drogas. einstein. 2004; 2(3):235 236 O dilema dos SNPs Um problema ainda em vias de solução é justamente o significado das pequenas diferenças entre os genomas de cada ser humano, conhecidas como polimorfismos. O genoma dos indivíduos não aparentados difere em cerca de 0,1% na seqüência de DNA. A maior parte dessas diferenças consiste na substituição de uma única base num trecho do DNA, o que se conhece como SNP (do inglês Single Nucleotide Polymorphism). São conhecidos cerca de seis milhões de SNPs humanos, mas a associação dessas diferenças com suscetibilidade ou proteção a doenças, ou diferenças de resposta a medicamentos, ainda depende de maiores e melhores estudos familiais e populacionais(4). Em contrapartida, alguns SNPs aparecem associados a diferentes patologias, como os do gene APOE, envolvidos em doenças cardiovasculares e neurodegenerativas. Futuramente, a tendência é que este tipo de análise molecular, baseada na expressão de genes marcadores ou em polimorfismos, venha a ser incorporada nos procedimentos rotineiros para a escolha de alternativas terapêuticas mais adequadas a cada caso, aumentando assim a eficácia dos tratamentos em doenças complexas variadas. einstein. 2004; 2(3):236 Não apenas genes Esse era o alerta da revista Science em seu número especial de 26 de abril de 2002, dedicado ao que os editores chamaram “o enigma das doenças complexas”. De fato, as doenças mais comuns, como câncer, doenças cardiovasculares, diabetes e doenças psiquiátricas, são “complexas” por surgirem da interação de fatores genéticos, ambientais e comportamentais. O desafio nessas doenças é identificar a magnitude de cada fator de risco, tendo em vista o desenvolvimento de estratégias efetivas de diagnóstico, prevenção e tratamento. Para que se atinjam esses objetivos, é imperativo que a pesquisa genética seja articulada com a pesquisa clínica e epidemiológica. Referências 1. Lee PS, Lee KH. Genomic analysis. Current Opin Biotechnol. 2000;11(2):171-5. 2. Simon SD, Molina AL, Moreira-Filho CA. Aspectos genéticos dos cânceres de mama e ovário. In: Sociedade Brasileira de Clínica Médica. Clínica Médica: Oncologia Clínica. São Paulo, Medsi; 2002. v.2. p 539-600. 3. Ramaswamy S, Golub TR. DNA microarrays in clinical oncology. J Clin Oncol. 2002;20(7):1932-41. 4. Colhoun H, McKeige PM, Smith GD. Problems of reporting genetic associations with complex outcomes. Lancet. 2003;361(9360):865-72.