Educação de Jovens e Adultos – uma perspectiva freireana e intercultural Micheli Daiani Hennicka (UFSM) Joze Medianeira dos S. de A. Toniolo (UFSM) CAPES (Coordenação de aperfeiçoamento de pessoal de nível superior Resumo: Este trabalho é uma pesquisa em andamento e faz parte de uma Dissertação de Mestrado em Educação cujo tema de pesquisa é a Educação de Jovens e Adultos. Busca-se, identificar as origens históricas e culturais, bem como os fundamentos epistemológicos da Educação de Adultos, tendo como referencial o autor Paulo Freire (1921-1987), um dos precursores da temática no Brasil. Esta pesquisa tem caráter teórico-bibliográfico inserida na perspectiva da educação intercultural. Estamos realizando um mapeamento histórico da modalidade de Educação de Adultos tendo como referência histórica e epistemológica a proposta de alfabetização de Freire. Após, faz-se a aproximação entre essas propostas e suas relações com a modalidade de EJA como hoje se apresenta. Na fase em que nos encontramos podemos afirmar que (1) mesmo tendo se passado várias décadas a educação de adultos ainda é uma área que carece de estudos e pesquisas epistemológicas; (2) algumas das dificuldades enfrentadas pelos educadores ainda permanecem intocadas e (3) algumas das deficiências da educação de adultos têm mais que ver com nossa formação em geral de educadores que com a especificidade da modalidade EJA. Palavras-Chave: EJA. Intercultura. Paulo Freire. Introdução Todo o sistema educacional, como uma das partes que integram a sociedade, é influenciado pelas mudanças que nele ocorrem. Mesmo levando-se em conta que as sociedades estão sempre em processos de transformação, não se pode negar que em alguns momentos estas adquirem uma conotação mais intensa, mais radical ou até mesmo dramática. Consideramos que a época atual se constitui em um destes momentos. Senão vejamos: em nenhum outro momento tivemos uma aceleração tão intensa dos processos de destruição ecológica decorrentes da ação humana no planeta; o processo de circulação de pessoas no mundo nunca foi tão intenso e, paradoxalmente, tão vigiado e em muitos casos negado; nunca as mercadorias tiveram seu consumo tão descontrolado e, ao mesmo tempo, tão desigual; vivemos um tempo em que, da mesma forma que se afirmam identidades étnicas e religiosas, aniquilam-se outras através de guerras e perseguições; a exclusão e a privação são uma constante para imensos contingentes da população do planeta; o acesso aos aparatos tecnológicos sofisticadíssimos são um privilégio para poucos e, ao mesmo tempo, um objeto 2 de desejo para muitos; as possibilidades de satisfação pessoal de lazer e de alegria são ampliadas e diversificadas para algumas camadas da sociedade e negadas para outras tantas; da mesma forma que a medicina técnica consegue “quase milagres” para aqueles que podem pagar fortunas por uma cirurgia embelezadora ou por um processo de fertilização artificial, enormes contingentes de homens, mulheres e crianças morrem de fome, de doenças da idade média e de abandono; ao mesmo tempo em que alguns poucos podem dar-se ao luxo de pagar verdadeiras fortunas por uma viagem numa espaçonave, milhares vagam a pé por desertos sem água ou comida em busca de trabalho, moradia, saúde, educação, etc. É neste cenário intercultural (FLEURI, 2003; 2009; FIGUEIREDO, 2009) de cruzamentos, encontros e confrontos culturais e étnicos que o processo educativo acontece. Como não poderiam ser diferentes, as proposições e Diretrizes Educacionais Nacionais não ficam a margem desses acontecimentos e buscam, também, adequar-se aos mesmos. Contudo, nem sempre essas adequações acontecem de forma pacífica. Um exemplo disto é o que vemos em documentos oficiais como, por exemplo, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) do MEC (1997), onde podemos encontrar, no que se refere à relação currículo e cultura, o seguinte fragmento no qual a legitimidade, o reconhecimento e a valorização da diversidade cultural brasileira e das formas de perceber e expressar a realidade própria dos gêneros, das etnias e das muitas regiões e grupos sociais do país não significa renunciar da responsabilidade de constituir cidadania para um mundo que se globaliza e de dar significado universal aos conteúdos da aprendizagem (PCN, MEC, 1997). Porque afirmamos que nem sempre as adequações do currículo, aos documentos e normas geradas nas políticas públicas, acontecem de forma pacífica? Um dos motivos é simples: como no caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais soa bastante contraditória à proposição de um currículo de caráter nacional que acolha e defenda as diversidades culturais, a partir de parâmetros previamente estabelecidos. Como muito bem alerta Fleuri (2003; 2007), estamos frente a uma escola que, cada vez mais, está sendo transpassada por processos de encontros e/ou confrontos interculturais. Outra questão que merece uma reflexão ainda mais aprofundada, quando se trata da educação de jovens e adultos, é o caso, por exemplo, da dicotomia historicamente estabelecida em relação à formação para o mercado de trabalho e a formação de caráter mais geral que é inerente ao processo educativo escolar. Ao comentar esse debate, o pesquisador da 3 educação de jovens e adultos, Soares (2005), alerta para o fato de que pensarmos a educação de jovens e adultos, tomando como referência e objetivo apenas a dimensão relativa à inserção destes educandos(as) ao mercado de trabalho é ter uma visão muito reducionista e mesmo pragmática da educação. Essa é uma discussão antiga e que já fazia parte das preocupações do educador popular Paulo Freire (1921-1997), na década de 60 do século passado, quando este refletia sobre a educação de jovens e adultos e alertava sobre os perigos da visão meramente tecnicista e muito em voga à época do regime militar no Brasil. Contudo, podemos perceber, tristemente, que esta discussão continua muito presente, muito atual, e, em consequência, segundo Soares (2005), ela acaba influenciando, fortemente, os fundamentos que orientam a elaboração e o planejamento das políticas públicas na educação de jovens e adultos no Brasil de hoje. Concordamos com a posição apresentada pelo autor, pois, a ênfase nessa, ou em qualquer outra modalidade de ensino, não pode ser exclusivista, mas, sim, precisa pautar-se pela busca de uma formação aberta à diversidade, contemplando, dessa forma, as diferentes dimensões e possibilidades do humano. Tais como a afetividade, o conhecimento geral sobre os processos culturais, o acesso aos bens e valores sociais e ecológicos do mundo em que vive. Enfim, educação para ser educação, precisa estar envolvida com o desejo de instituição de pessoas que não só busquem um posto de trabalho, mas, que, estejam buscando a realização de seus desejos e mesmo de seus sonhos. É a partir desta introdução que chegamos ao seguinte problema de pesquisa: qual a atualidade e como as proposições freireanas para a Educação de Adultos podem contribuir para a modalidade de Educação de Jovens e Adultos no contexto atual da educação brasileira? Como forma de apontar alguns caminhos a esta indagação é que nosso objetivo principal de pesquisa é: (1) investigar quais as origens e os fundamentos epistemológicos da proposta de Paulo Freire para a Educação de Adultos e (2) relacionar estes pressupostos com a modalidade da Educação de Jovens e Adultos no Brasil atual, tendo como orientação epistemológica a Educação Intercultural. Paulo Freire e seu caminho pedagógico “Cada um de nós é um ser no mundo, com o mundo e com os outros”. 4 (Paulo Freire, em A importância do ato de ler, 2003) Paulo Freire foi uma criança que nasceu e cresceu em um contexto social pouco privilegiado. Resquícios desta realidade vivenciada por Freire exerceu influência sobre sua pedagogia comprometida com os oprimidos. Para ele, a qualidade fundamental para um bom educador era o gosto que este deveria ter pela vida, afirmando sempre que a vida é que aguça a nossa curiosidade e nos leva ao conhecimento. Esse homem e educador, durante toda sua trajetória, sempre esteve preocupado e engajado com questões sociais. Prova disso, são suas inúmeras contribuições para a construção do conhecimento, suas reflexões no campo político-educacional no Brasil e no mundo. As primeiras experiências de Freire com alfabetização de adultos iniciaram em 1961, enquanto trabalhava na superintendência do Departamento de Educação e de Cultura (SESI) em Pernambuco. As mesmas originaram a criação de uma metodologia de alfabetização diferenciada para os adultos. Esta foi colocada em prática pelo Movimento de Cultura Popular do Recife, o qual desenvolvia as atividades de alfabetização, por meio dos Círculos de Cultura. Esta proposta político-pedagógica foi idealizada por Freire e ocorreu por volta de 1962. Esse movimento de educação popular aconteceu na região Nordeste do país, onde se encontravam, então, mais de 15 milhões de analfabetos. O trabalho de alfabetização popular conseguiu alfabetizar cerca de 300 analfabetos da região, no período de 45 dias. Por esse resultado bastante significativo, resolveu-se expandir a proposta para o restante do país. Para isso, foram criados cursos de capacitação para os professores interessados, na maioria das capitais do Brasil. Estava prevista a criação de mais de 20.000 círculos de cultura que tinham a capacidade de alfabetizar mais de 2 milhões de pessoas. Em cada circulo estudariam cerca de 30 educandos durante 2 meses. Nesses círculos de cultura, denunciava-se a dominação das massas e se afirmava-se o poder de criação de todos os seres humanos. Antes da leitura da palavra, nesses círculos procurava-se desenvolver processos reflexivos por meio do diálogo-problematizador, fazendo com que os participantes alfabetizandos tomassem consciência da sua condição de dominados e explorados, mas não determinados, que poderiam “ser mais”, construtores e autores da sua própria história. O objetivo de Freire com a alfabetização de adultos ultrapassava a mera codificação/decodificação das palavras, procurando problematizar a compreensão do mundo 5 em que vivem, fazendo-os perceber como seres críticos e transformadores da sua própria realidade. Assim os alunos aprenderiam que também poderiam atuar na sociedade em que viviam, transformando-a, pois, para Freire (1980, p.20) “(...) uma educação deve preparar, ao mesmo tempo, para o juízo critico das alternativas propostas pela elite, e dar a possibilidade de escolher o próprio caminho”. Cenário da Educação de Adultos Talvez seja este o sentido mais exato da alfabetização: aprender a escrever a sua vida, como autor e como testemunha de sua história, isto é, biografar-se, existenciar-se, historicizarse.” (FIORI, em Pedagogia do Oprimido, 1987) Freire (1980, p.41) idealizava a alfabetização como se “fosse ao mesmo tempo um ato de criação, capaz de gerar outros atos criadores; uma alfabetização na qual o homem, que não é passivo nem objeto, desenvolvesse a atividade e a vivacidade da invenção e da reinvenção, características dos estados de procura.” Complementando, Freire acreditava que o analfabeto deveria reconhecer-se como sujeito capaz de “apreender”, compreender e transformar sua realidade, sendo sujeito do seu pensar e agir. Nessa perspectiva, o processo de alfabetização proposto por Paulo Freire partia do pressuposto de que toda pessoa, alfabetizada ou não, trazia conhecimentos próprios, oriundos das diferentes experiências construídas durante suas vidas. Para Freire, esses conhecimentos se constituíam em ponto de partida para o aprendizado da escrita, sendo necessário conhecer o universo de conhecimentos dos alfabetizandos. Através do diálogo problematizador, Freire ia trabalhando com assuntos do interesse dos aprendizes, instigando-os a dizerem a sua palavra (FIORI, 1987). A partir desse diálogo, o processo de alfabetização era organizado em 5 etapas: - Levantamento do universo vocabular dos grupos com que se ia trabalhar. - Seleção das palavras geradoras do universo vocabular pesquisado. 6 - Criação de situações existenciais do grupo, situações que abrem possibilidade de análise das questões pessoais, regionais, nacionais. - elaboração de fichas-roteiros. - Confecção das fichas com as famílias silábicas das palavras geradoras. A fase do levantamento do universo vocabular ocorria nos encontros informais com os futuros educandos dos círculos de cultura. Nestes se selecionam as palavras mais significativas, como expressões típicas, formas particulares das experiências do grupo, entre outras. Esta fase é muito importante, porque aproxima muito os educadores dos educandos, e estes com o conteúdo. Para Freire (1980) estas são as “palavras geradoras”. Ainda nessa perspectiva, Freire defende que “(...) as palavras geradoras devem nascer desta procura e não de uma seleção que efetuamos no nosso gabinete de trabalho, por mais perfeita que ela seja do ponto de vista técnico” (Ibidem, p.43). Complementando Freire, indica que são necessárias de 15 a 18 palavras geradoras para a alfabetização de adultos. Já a seleção das palavras geradoras, dentro do universo vocabular, era guiada pelos critérios de riqueza silábica, dificuldades fonéticas e o conteúdo prático da palavra na realidade do círculo de cultura. Para Freire, a melhor palavra geradora era aquela que conseguia reunir alto grau de créditos sintáticos, semânticos e poder de conscientização. A fase posterior consistia na criação de situações existenciais típicas do grupo com que se trabalha. A situação era compreendida como um desafio ao grupo, uma problemática, que tem elementos a serem decodificados pelo grupo com o auxilio do coordenador. Para Freire (1980, p.45), são essas “(...) situações locais que abram perspectivas para a análise de problemas nacionais e regionais”. Nestas situações encontram-se as palavras geradoras distribuídas pelo seu grau de dificuldade fonética. A fase seguinte era a elaboração de fichas –roteiros. Estas fichas auxiliavam os coordenadores nos seus debates com os demais componentes do circulo de cultura, mas elas não eram algo rígido, apenas auxiliares do processo de construção de conhecimentos sobre a leitura e a escrita. E, finalmente, a última fase consistia na confecção das fichas com as famílias silábicas das palavras geradoras. Essas fichas com as famílias fonéticas de cada palavra geradora eram elaboradas em cartazes. Posteriormente, organizavam-se as equipes, com supervisores e coordenadores preparados nos debates das fases descritas anteriormente. Com essas fichas indicadoras iniciava-se o trabalho de alfabetização dos grupos. 7 Assim, dava-se início ao processo com a apresentação das palavras geradoras representadas oral e graficamente e, em seguida era aberto o debate. Depois que este se esgotava, o educador mostrava ao grupo a palavra geradora sozinha, sem o seu objeto correspondente, mas não exigia sua memorização. Em seguida, a palavra era separada por sílabas e identificada por partes. Após seu reconhecimento, passava-se então para o reconhecimento das famílias silábicas que compõem a palavra geradora estudada. Por exemplo: PALAVRA GERADORA: TIJOLO. FAMILIA: TA, TE, TI, TO, TU/ JÁ, JE, JI, JO, JU/ LA, LE, LI, LO, LU. Depois do estudo isolado dessas palavras, era realizado o estudo conjunto das mesmas, identificando as vogais. Posteriormente, eram apresentadas aos educandos as fichas das famílias em seu conjunto, chamada por Aurenice Cardoso (1963) de “ficha descoberta”. Com elas, o alfabetizando ”(...) descobre o mecanismo de formação das palavras de uma língua silábica como o português, que repousa sobre combinações fonéticas” (FREIRE, 1980, p.45). Esse processo ocorria concomitantemente ao processo de codificação/decodificação da palavra e da própria realidade, uma vez que o método Paulo Freire não ensina a repetir palavras, não se restringe a capacidade de desenvolver a capacidade de pensá-las segundo as exigências lógicas do discurso abstrato; simplesmente coloca o alfabetizando em condições de poder re-existenciar criticamente as palavras de seu mundo, para, na oportunidade devida, saber e poder dizer sua palavra. Eis porque, em uma cultura letrada, aprende a ler e a escrever, mas a intenção última com que o faz vai além da alfabetização (FIORI, 1987, p. 13) Nesse sentido, alfabetizar-se não se restringe a aprender a repetir palavras, mas a dizer a sua palavra, geradora de cultura. Ensinar a ler e a repetir as palavras ditas e ditadas pelos outros impossibilita o processo de conscientização, despersonalizando-as na repetição — é a técnica da propaganda massificadora (FIORI, 1987). Aprender a dizer a sua palavra deve ser o objetivo maior de toda e qualquer ação educativa que se diga comprometida com a conscientização dos sujeitos. Mesmo porque, o método de conscientização de Paulo Freire refaz criticamente esse processo dialético de historicização. Como todo bom método pedagógico não pretende ser método de ensino, mas sim de aprendizagem; com ele, o homem não cria sua possibilidade de ser livre, mas aprende a efetivá-la e exercê-la. [...] Não foi por acaso que esse método de conscientização originou-se como método de alfabetização (Ibidem, p. 18) Por toda essa complexidade que envolve o método de alfabetização proposto por Paulo Freire é que, no primeiro dia, já é possível criar combinações entre as sílabas e descobrir 8 novas palavras. Cada silaba é trabalhada separadamente; depois de reconhecer a sílaba, apresenta-se a sua família fonética. Em seguida, faz-se exercícios de leitura para fixar as sílabas e, após, mostra-se todas as famílias juntas, as quais são lidas horizontal e verticalmente. Assim, aos poucos, os educandos vão combinando sílabas e formando palavras, oriundas da sua cultura. Sobre esta conquista Freire (1980, p.46) escreve que “alguns utilizam a vogal de uma das sílabas, unindo-a à outra e acrescentando uma consoante, formam uma palavra”. Depois dos exercícios orais, nos quais se reproduz o conhecimento e o reconhecimento, os educandos têm a tarefa de criar novas palavras, em casa, pelas combinações dos fonemas. Sobre esse assunto, Freire (1980, p. 47-48) defende que, “para que a alfabetização não seja puramente mecânica e assunto só de memorização, é preciso conduzir os adultos a conscientizar-se primeiro, para que logo se alfabetizem a si mesmos”. Na proposta de alfabetização Freire procurou “introduzir na consciência das pessoas, alguns símbolos associados a palavras, e, em um segundo momento, desafiá-las criticamente para redescobrir a associação entre certos símbolos e as palavras, e assim aprendê-las” (FREIRE, 1980, p. 49). Contextualizando as repercussões na atualidade do método de alfabetização Freireano Freire, com a implantação dos círculos de cultura para a alfabetização de adultos, em 1962, foi o pioneiro na educação de jovens e adultos no Brasil. Até a segunda metade da guerra mundial, a educação de jovens e adultos foi ligada à educação popular, ou seja, educação para o povo. Nesse período, o Brasil enfrentava uma séria problemática, com os altos índices de analfabetismo. Conforme os dados encontrados no site do IBGE sobre o analfabetismo, temse que em 1940 cerca de 54,50% das pessoas (de 15 anos ou mais de idade) eram analfabetas, já em 1950 eram 50,30% e no ano de 1960 cerca de 39,50% das pessoas. Com as mudanças que estavam ocorrendo no País, precisava-se alfabetizar (mecanicamente) o maior número de pessoas possível para atenderem as demandas do mercado. Além das altas taxas de analfabetismo da época, destaca-se outro fato significativo que ocorreu até a ditadura militar em 1985, envolvendo diretamente os analfabetos: é o fato deles não terem o direito de voto no Brasil. Esse direito foi permitido aos analfabetos, somente com a promulgação da Emenda Constitucional número 25, de 15 de maio de 1985, regulamentada pela Lei 7.332, de 1º de junho de 1985. Hoje, de acordo com o artigo 14 da Constituição 9 Federal promulgada em 5 de outubro de 1988, o alistamento eleitoral e o voto são facultativos para os cidadãos analfabetos. Assim, somente com o fim da ditadura militar, que o analfabeto conquistou o seu direito de voto, que é um dos símbolos do efetivo exercício da cidadania. Iniciam-se, nesse contexto, as primeiras preocupações voltadas a modalidade que hoje chamamos de Educação de Jovens e adultos (EJA). Historicamente, as primeiras manifestações ocorreram nos seguintes períodos: de 1946 a 1958, surgiram grandes campanhas nacionais de iniciativa oficial, chamadas “cruzadas”, para acabar com o analfabetismo. De 1958 a 1964, ocorre o 2º Congresso Nacional de Educação de Adultos, que teve a participação de Freire. Neste surgiu a ideia de um programa para o enfrentamento do problema da alfabetização, que acabou gerando o Plano Nacional de Alfabetização de Adultos, coordenado por Paulo Freire (Plano extinto no golpe militar de 1964). Nesse período a educação da EJA era entendida como base, por meio dos Centros Populares de Cultura, articulados com a reforma da sociedade a partir das bases, defendida pelo governo popular de João Goulart. O governo militar investia nas Cruzadas do ABC (Ação Básica Cristã) e depois no Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização). Em 1970 surgiu um projeto conhecido como o MOBRAL: Movimento Brasileiro de Alfabetização, este atuava como aparelho ideológico do estado, seguindo os interesses políticos da época. Utilizando princípios freireanos “distorcidos”. O que se pretendia com esse movimento era auxiliar na promoção do povo brasileiro. Procurando então motivar, preparar e qualificando mão-de-obra para o desenvolvimento econômico do país. Mas, por causa da redemocratização e a nova república, em 1985, ele é extinto. E se cria a Fundação Educar, mais democrática, mas sem os mesmos recursos do Mobral. Já em 1988, surgiu a EJA (Educação de Jovens e Adultos), uma nova modalidade da educação proposta na Lei de Diretrizes e Bases da Educação em 1996 (LDB nº 9394/96). Isso se deve, e muito, ao movimento idealizado por Freire em 1962. Desta vez, a EJA vai além, no que se refere ao grau de escolaridade, abrangendo, não só a alfabetização, mas também o ensino médio. Assim, os jovens e adultos poderiam avançar nos seus estudos, sendo incluídos, não apenas no processo de aquisição da leitura e da escrita, mas também na política e na sociedade, exercendo a sua cidadania de fato. Para isso, se faz de suma importância que os professores e gestores de EJA repensem essa modalidade de educação, buscando atender aos anseios e necessidades das camadas populares. Talvez uma das iniciativas consista em reconquistar os educandos(as) que deixaram, por diversos motivos, de freqüentar as escolas, abandonando assim a sua vida 10 escolar, buscando incentivá-los a retornar novamente aos bancos escolares. Somente dessa maneira terão maior possibilidade de exercerem sua cidadania, participando ativamente, tanto nos âmbito social, como político da sociedade. Com base em observações nos ambientes escolares e leituras sobre a temática, percebemos ainda um grande número de adultos brasileiros fora do ambiente escolar, resultando assim em uma massa de adultos analfabetos, sem as habilidades da leitura e da escrita. Existem, também, aqueles que, mesmo estando dentro da escola, não compreendem o que estão aprendendo, porque os conteúdos estão descontextualizados da sua realidade de vida. Nesse sentido, Medeiros (2005, p. 11) ratifica que São milhões de jovens e adultos, que apesar de todos os esforços que vêm se efetivando nas várias esferas, sejam governamentais ou não, continuam à margem da escola ou, dentro dela, sem aprender, ou, ainda, aprendendo, mas não sabendo o que fazer com o que aprenderam em seu processo de escolarização, por terem sido obrigados a estudar conteúdos sem significação para suas vidas. Contrariamente a essa situação, Freire defendia em sua proposta de alfabetização de adultos, que o processo de aquisição da leitura e da escrita deveria ir além da memorização de letras e palavras, buscando também a construção da autonomia dos educandos. Esta alfabetização de adultos, segundo os estudos de Freire, deveria ter significado para os educandos, partindo sempre de uma análise criteriosa da realidade dos mesmos para, só então, fazer a identificação dos problemas e das suas possíveis formas de superação. Ou seja, buscava uma educação que auxiliasse os educandos a se inserirem e interagirem na sociedade de forma participativa e crítica. Isso só seria possível, através de uma educação que considerasse o educando como um agente participativo do processo de ensino aprendizagem. Um contribuidor, não apenas recebedor de informações, de certa forma, desconexas e irrelevantes. Esta compreensão de processo de ensino-aprendizagem pode ser pensada tanto para a EJA, como para as demais modalidades. Ela também se enquadra na perspectiva intercultural, de acordo com os escritos de Fleuri (2003, p.31-32), quando ele afirma que: A educação na perspectiva intercultural deixa de ser assumida como um processo de formação de conceitos, valores, atitudes baseando-se uma relação unidirecional, unidimensional e unifocal, conduzida por procedimentos lineares e hierarquizantes. A educação passa a ser entendida como o processo construído pela relação tensa e intensa entre diferentes sujeitos, criando contextos interativos que, justamente por se conectar dinamicamente com os diferentes contextos culturais em relação aos quais os diferentes sujeitos desenvolvem suas respectivas identidades, torna-se um 11 ambiente criativo e propriamente formativo, ou seja, estruturante de movimentos de identificações subjetivos e socioculturais. A educação numa perspectiva intercultural busca aproveitar o encontro dos sujeitos na escola, ambiente, este, onde é possível interagir com uma diversidade de contextos sociais e culturais. Através desses diferentes contextos, pode-se promover o intercâmbio das culturas de forma dialógica e integrada entre os diferentes sujeitos. Dessa maneira, visa, também, ampliar o processo formativo dos educandos e também dos educadores, além de possibilitar a expressão das suas identidades culturais, muitas vezes inibidas nas escolas estruturadas nos modelos atuais. Percebe-se, assim, a visão de conhecimento como a relação entre as pessoas, as quais se consideram participantes ativos nesse processo, que é construído historicamente. Continuando a discussão sobre o processo de ensino-aprendizagem numa perspectiva intercultural, encontra-se na proposta idealizada por Freire, conforme os escritos de Medeiros (2005, p.4), que: Tomando o educando como sujeito de sua aprendizagem, Freire propunha uma ação educativa que não negasse sua cultura, mas que fosse transformando através do diálogo. Na época, ele referia-se a uma consciência ingênua ou intransitiva, herança de uma sociedade fechada, agrária e oligárquica, que deveria ser transformada em consciência crítica, necessária ao engajamento ativo no desenvolvimento político e econômico da nação. Através deste fragmento podemos perceber que para Freire os não alfabetizados deveriam ser identificados como seres produtivos pertencentes a uma cultura. Não um ser ignorante, vazio que só poderia receber conteúdos, saberes, sem nada para contribuir. Mesmo porque, “[...] nem a cultura iletrada é a negação do homem, nem a cultura letrada chegou a ser sua plenitude. Não há homem absolutamente inculto: o homem ‘hominiza-se’ expressando, dizendo o seu mundo” (FIORI, 1987, p. 19). Por isso mesmo, os analfabetos possuem sim saberes, “saberes da experiência feito” (FREIRE, 1992). A sua cultura muito tem a contribuir com o processo de alfabetização. Para isso, se faz necessário entender a complexidade e singularidade da cada ser humano. E, além disso, compreender que o aprender e o ensinar acontecem através do diálogo entre as pessoas, as quais possuem culturas diferentes. Por esse motivo, podemos compreender que a nossa educação é continua e ininterrupta, pois estamos aprendendo e ensinando todo o tempo, por isso devemos estar atentos às modificações sociais e as pessoas que estão ao nosso redor. 12 Palavras finais, mas não conclusivas... Por tudo o que foi exposto neste artigo, acreditamos que a proposta de alfabetização de Freire traz muitas contribuições para a EJA nos nossos dias, como, também, para outras modalidades de ensino, até porque, estruturalmente, a sociedade Brasileira se mantém semelhante, com fortes relações de dominação, exploração, exclusão e alienação... A proposta de Freire busca, para além da alfabetização, a construção da autonomia dos jovens e adultos, para que, desta forma, essas pessoas possam interagir melhor em sociedade, exercendo sua cidadania de forma consciente. Essa proposta difere das demais propostas de alfabetização de jovens e adultos que temos, as quais visam somente a codificação/decodificação da leitura e da escrita, desvinculada da realidade e das necessidades dos educandos que dela participam. Temos também algumas propostas que concebem como única ou principal função do EJA, a preparação dos seus educandos para o trabalho, restringindo esse processo a uma visão reducionista da educação, que não supriria as necessidades atuais desta modalidade. Um dos motivos que acreditamos ser o responsável por esses acontecimentos, seria a formação dos professores do EJA. Percebemos, até o presente momento em que nos encontramos nesta pesquisa, alguns aspectos importantes que estão diretamente relacionados a esses acontecimentos. Por exemplo, o fato de, mesmo tendo se passado várias décadas, a educação de adultos ainda se constitui em uma área que carece de estudos e pesquisas epistemológicas, no que se refere a esta modalidade de ensino. E, além disso, algumas das dificuldades enfrentadas na EJA ainda permanecem intocadas no campo da pesquisa em educação, como por exemplo, a dicotomia historicamente estabelecida em relação à formação para o mercado de trabalho e a formação de caráter mais geral que é inerente ao processo educativo escolar. Por fim, nota-se que algumas das deficiências da educação de adultos têm mais que ver com nossa formação em geral de educadores que com a especificidade da modalidade EJA. Sobre este último aspecto, pode-se dizer que as dificuldades que esses docentes acreditam ser referentes ao seu trabalho com a especificidade da EJA, nada mais são do que problemas encontrados em qualquer outra modalidade de ensino, como por exemplo, trabalhar a partir da realidade, ouvir e utilizar uma metodologia em que os educandos participem. Talvez um diferencial no trabalho com a EJA que não pode ser desconsiderado é o fato de muitos dos educandos trabalharem em turno inverso ao período escolar e terem muitas 13 vivências diferenciadas, próprias de suas experiências de vida. Isto sim é uma especificidade desta modalidade. Para concluir, mas não finalizando a pesquisa, acreditamos que esta pesquisa é de suma importância acadêmica por trazer grandes contribuições escolares, pois retoma eixos temáticos, abordados nas pesquisas acadêmicas, que são: educação de jovens e adultos, alfabetização e Paulo Freire, numa perspectiva intercultural. Esta pesquisa busca ampliar o debate acadêmico sobre esses eixos temáticos, como também contribuir para a ampliação dos conhecimentos e a expansão do referencial bibliográfico sobre a temática. Muito já se escreveu sobre Paulo Freire e sua proposta de alfabetização de adultos, mas, poucas vezes, se investigou as origens e os fundamentos que levaram Freire a construir uma proposta alfabetizadora diferente, mais orgânica, crítica e humanizadora numa perspectiva intercultural. Depois de concluída, esta pesquisa poderá servir como referencial bibliográfico para subsidiar os debates que poderão surgir nas escolas de EJA e, até mesmo, dentro da própria universidade. Referências BOGDAN, Robert C. & BILKLEN, Sari Knopp. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. 4 ed. Porto: Porto, 1994. CARDOSO, Aurenice. Conscientização e Alfabetização: Visão Prática do Sistema Paulo Freire de Educação de Adultos. Revista Estudos Universitários, Universidade do Recife, Recife, 4:71-80, abr./jun., 1963. FIGUEIREDO, J. B. A. Educação e Afetividade na Relação com o outro: contributos da perspectiva eco-relacional. In: BARCELOS, V.; HENZ, C.; ROSSATO, R. (Orgs.) 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