A FAMÍLIA PÓS-MODERNA NO CONTO “PASSEIO NOTURNO” DE
RUBEM FONSECA.
Silvana Perrella Brito
Mestranda em Letras - orientadora: Helena Bonito Couto Pereira
INSTITUIÇÃO: Instituto Presbiteriano Mackenzie.
RESUMO:
Este trabalho pretende fazer uma análise, à luz da pós-modernidade, de uma família
de classe média alta representada no conto “Passeio Noturno” de Rubem Fonseca.
Considerando a família uma das instituições divinas, pela qual o Senhor oferece
promessas de bênçãos, esse conto é uma oportunidade de se refletir a respeito do
que a família tem se tornado. O conto narra a trajetória de um empresário que sai a
noite com seu carro importado, um jaguar, para atropelar pessoas pobres e
indefesas, como forma de aliviar o estresse do dia-a-dia; enquanto isso, sua família
está envolvida em futilidades, sem desconfiar, ou pelo menos se importar, com os
objetivos dos passeios noturnos desse chefe da família. Vê-se, então, a alienação, o
isolamento e a fragmentação do sujeito pós-moderno na célula básica da formação
da sociedade, a família.
ABSTRACT:
The present study intends to analyze, in post-modernity light, a high middle class
family represented in Rubem Fonseca's story " Passeio Noturno." Considering the
family one of the divine institutions, from which the Lord offers promises of blessings,
this story is an opportunity to reflect about, and to contemplate, what the family is
turning to. The story narrates the trajectory of a businessman who goes out at night
with his imported car, a Jaguar, to run over poor and defenseless people, as way to
relieving the daily stress; meanwhile, his family is involved in trivialities, without
distrusting, or at least caring about, with the objectives of his night “walks”. Then, the
alienation, the isolation and the post-modern person's fragmentation can be seen in
the basic cells of the society formation, the family.
A FAMÍLIA PÓS-MODERNA NO CONTO “PASSEIO NOTURNO” DE RUBEM
FONSECA
Este trabalho pretende fazer uma análise, à luz da pós-modernidade, de uma
família de classe média alta representada no conto “Passeio Noturno 1 ” de Rubem
Fonseca; mostrando a crítica, a ironia, a fragmentação do sujeito pós-moderno e o
hiper-realismo grotesco dentro de uma sociedade massificada.
Considerando a
família uma instituição divina e fundamentando esta análise em conceitos propostos
por teóricos da pós-modernidade, pretende-se uma reflexão sobre o que tem se
tornado a família em algumas situações que, embora possivelmente pouco
freqüentes, são bastante significativas.
O conto narra as aventuras de um executivo pertencente a classe média alta
do Rio de Janeiro , que sai todas as noites para dar um “passeio” com a finalidade
de relaxar as tensões de um dia árduo de trabalho, depois de ter jantado com a
esposa e os filhos. O ponto alto desse “passeio“ se dá quando ele atropela vítimas
indefesas com seu carro importado, deixando-as mortas em ruas desertas, voltando
satisfeito e relaxado para casa. “Homem ou mulher? Realmente não fazia grande
diferença, (...) Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos
emocionante” (FONSECA, 2004, p.244). Esse conto é um conto urbano que critica a
sociedade de massa. Essa crítica, que se estende por todo o conto, tanto na “Parte
I” quanto na “Parte II”, ajuda a revelar como se constrói a ironia, a partir da qual são
questionados os valores estabelecidos. Nesse conto, o discurso irônico do narrador
leva ao questionamento de determinado modelo de instituição, a família, pois “o
impulso pós-moderno não é buscar nenhuma visão total. Ele se limita a questionar”.
(HUTCHEON, 1991, p.73).
1
Conto no Anexo 1
O consumismo e a futilidade são as características da família apresentada no
conto.
A sociedade de consumo é, a um só tempo, sofisticada e bárbara.
Imagem do caos e da agonia de valores que a tecnocracia produz
num país de Terceiro Mundo é a narrativa brutalista de Rubem
Fonseca que arranca sua fala direta e indiretamente das experiências
da burguesia carioca. (BOSI, 1997, p.17).
A mãe, nessa família, é alcoólatra. Ao chegar do trabalho, o narrador assim
se refere a ela: “Minha mulher, jogando paciência na cama, um copo de uísque na
cabeceira” (FONSECA, 2004, p.242). Não é menos irônica a referência aos filhos
que, embora adultos, vivem futilmente a suas vidas, e são apresentados ao leitor
por sons, já que a família não se destaca pelo diálogo entre as pessoas: “Minha filha
no quarto dela treinando impostação de voz, a música quadrifônica do quarto do
meu filho” (FONSECA, 2004, p.242).
O autor coloca em foco um modelo de família egoísta, no qual cada pessoa
está envolvida apenas com os seus interesses. Seus laços estão baseados nas
relações financeiras de uma família doente e desestruturada, na qual o objetivo é ter
dinheiro, posição social, e bens materiais. Pela ironia com que o relato chega até o
leitor, podemos nos pergunta, se dessa forma seria possível atingir a felicidade:
“Meu filho pediu dinheiro quando estávamos no cafezinho, minha filha me pediu
dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada pediu, nos tínhamos conta bancária
conjunta” (FONSECA, 2004, p. 243).
Vivendo num padrão de vida muito elevado, a família é extremamente
consumista. Aliás, o consumismo é uma das marcas da sociedade de massa e pósmoderna. Tentando aliviar seus conflitos interiores, preencher as lacunas que ficam
nas relações e camuflar os vazios, essa sociedade se lança no mundo do consumo.
Quando o protagonista quer sair, ele precisa manobrar porque
“Os carros dos
meninos bloqueando a porta da garagem...”. Outro sinal de riqueza é mostrado de
modo sucinto no cotidiano da família, pois, no jantar “a copeira servia à francesa...”
(FONSECA, 2004, 243).
Ao mostrar essa família, Rubem Fonseca lança um olhar para o passado,
para a família que sempre foi considerada a base da sociedade, porque, afinal, “o
pós-moderno não nega tanto (o passado) nem é tão utópico (quanto ao futuro) [...]
Ele incorpora seu passado dentro do próprio nome e procura, parodicamente,
registrar sua crítica com relação a esse passado”. (HUTCHEON, 1991, p.72). Ao
olhar para esse modelo estabelecido de família, ele tenta demonstrar quantas
mudanças negativas e degradantes ocorreram em tempos recentes.
Com a desestruturação da família enquanto instituição, e de seus membros
como indivíduos que não se comunicam efetivamente entre si, o conto expõe o
sujeito pós-moderno, que se tornou isolado, fragmentado e, ao mesmo tempo,
massificado. Esse sujeito perdeu as suas referências enquanto sujeito. O
personagem de Passeio Noturno não tem nome, ele é o narrador que conduz o
relato em primeira pessoa. Ele é visto por outras personagens, hipoteticamente,
através do cargo que ocupa: “industrial?”; “traficante”? (FONSECA, 2004, p. 248). As
pessoas de sua família também não têm nome; elas são representadas numa
relação de posse: “minha mulher“; “meu filho”; “minha filha” (FONSECA, 2004, 243).
A única personagem que tem nome no conto não é da família; é “Ângela”, uma
jovem cujo nome faz referência a anjo, mas cuja atividade não é nada angelical. Ela
é a prostituta que aborda o executivo na rua, ela não faz parte da família. Assim
como ocorre no ambiente familiar, também fora de casa as relações do personagem
se baseiam em interesse. Ângela tem interesse no dinheiro e bens de seu cliente, e
ela nem de longe suspeita que ele tem interesse nela como vítima. O narrador
proporciona aqui uma visão irônica da sociedade: a jovem se interessa pelo carro e
não pelo sujeito; será o objeto de desejo de Ângela aquilo que a atrai, que a seduz,
o instrumento de sua destruição. Sem imaginar o desfecho violento que o
protagonista prepara para o breve caso entre ambos, ela diz ironicamente ao
protagonista: “E você não é lá essas grandes coisas. O teu carro é melhor do
você...” (FONSECA, 2004, p.249).
Essa ironia
é muito presente na sociedade
fragmentada. Buscam-se bens materiais para suprir as necessidades emocionais e
espirituais das quais as personagens estão esvaziadas (não têm sequer noção
dessa falta), e essa busca obsessiva pode conduzir aos piores resultados possíveis
para o sujeito.
Esse sujeito pós-moderno é solitário e não busca relacionar-se com as
pessoas: “Fui à biblioteca, o lugar da casa onde gostava de ficar isolado e como
sempre não fiz nada” (FONSECA, 2004, p. 243). Ele finge trabalhar para não
estabelecer contato pessoal com a própria família, pois seu relacionamento mais
íntimo e prazeroso é com seu carro. É o que lhe traz emoções e ajuda a preencher
seu vazio: “Ao ver os pára-choques salientes do meu carro, o reforço especial duplo
de aço cromado, senti o coração bater apressado de euforia” (FONSECA, 2004,
p.244). Quando esse indivíduo se relaciona com a sua vítima, Ângela, ele não está
interessado na pessoa, mas sim no ato que cometerá depois. O que o motiva é a
violência do atropelamento, e tudo o que acontece antes apenas induz o leitor a
impressão, depois desfeita, de que ele se aborrecia com o relacionamento pessoal,
mas estaria motivado para um relacionamento sexual com a jovem: “Aquela
situação, eu e ela dentro do restaurante me aborrecia. Depois ia ser bom”
(FONSECA, 2004, p.248). Trata-se de um personagem doentio, solitário e alienado
que, apesar disso, age como se suas condutas fossem normais. O protagonista de “
Passeio Noturno” é um caso extremo dos indivíduos que, segundo Hall, são
facilmente encontrados no mundo urbano pós-moderno: “Encontramos, aqui, a figura
do indivíduo isolado ou alienado, colocado contra o pano-de-fundo do exilado ou
alienado da multidão ou da metrópole anônima e impessoal” (HALL, 2002, p.32).
A personalidade desse sujeito pós-moderno não é estável, ela muda, se
desloca, pois “as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo
social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o
individuo moderno...” (HALL, p.7). No escritório, o personagem central do conto é o
executivo atarefado: “cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis,
relatórios, estudos, pesquisas, propostas e contratos” (FONSECA, 2004, p.243). Em
casa desempenha os papéis de marido e pai, mesmo que tenha por função somente
abastecer a conta bancária de todos. Na rua, ele é o assassino implacável. “Peguei
a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a
esquerda, um golpe perfeito...” (FONSECA, 2004, p.244). Essa desestabilidade na
personalidade faz que esse sujeito não tenha dramas de consciência, pois ele não
tem uma personalidade fixa, ele se adapta às situações e, então, o fato de ele matar
pessoas para relaxar parece não exercer nenhum
efeito negativo em sua vida
diária: “Vou dormir, boa-noite para todos, respondi, amanhã vou ter um dia terrível
na companhia” (FONSECA, 2004, p.244).
Outra crítica, carregada de ironia, é direcionada à questão da impunidade,
pois todos as noites o corpo de alguém, da classe social menos favorecida, ficava
abandonado em algum lugar que podia ser “na Lagoa, na curva do Cantagalo” ou
“numa rua mal iluminada, cheia de árvores escuras” (FONSECA, 2004, p.244).
Nenhuma conseqüência disso chegava até o personagem, empresário rico, que
continuava saindo “todas as noites” para o “seu passeio”: “À noite, saí, como sempre
faço” (FONSECA, 2004, p. 245). Notemos que o advérbio “sempre” indica um fato
que vem se repetindo constantemente. Mas, afinal, quem se importa com pobres e
prostitutas?
Muitos adversários do pós-modernismo consideram a ironia como
sendo fundamentalmente contrária à seriedade, mas isso é um
equivoco e uma interpretação errônea sobre a força critica da dupla
expressão. [...] Na verdade talvez a ironia seja a única forma de
podermos ser sérios nos dias de hoje(HUTCHEON, 1991, p. 62).
A ironia também está presente no uso que o personagem central faz de seu
carro, pois ele usa um veículo tão caro e sofisticado para matar e intimamente — só
para os seus leitores, já que sua atividade é ignorada pelos demais personagens —
se orgulha disso: “Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade
no uso daquelas máquinas” (FONSECA, 2004, p. 244). Aqui o carro representa a
posse, o dinheiro, que não torna o ser humano melhor, mas que ajuda a trazer à
tona todas as suas psicopatias. Talvez o narrador pretenda mostrar o quanto a
classe média-alta abandonou valores autênticos e passou a dar importância
exclusivamente aos bens materiais, e ainda a desvalorizar a vida dos outros seres
humanos. Estes, no caso do conto, tornam-se apenas objeto para diversão, já que o
protagonista considera que matá-los não significa nada.
O realismo de Rubem Fonseca é mórbido, misturando a aparência de
normalidade burguesa com o instinto amoral. Seja no romance, seja
no conto, o tom é agressivo e ameaçador, enquanto a linguagem, ao
menos nos trabalhos iniciais, é coloquial e cheia de terminologia
convencionalmente proibida (SILVERMAN, 2000, p.120)
São escritores como Rubem Fonseca que tentam retratar a cidade como um
abismo urbano no qual seus heróis são sujos, e a transgressão é bem-sucedida. A
violência, a impunidade, o descaso com a vida e o crime são facetas de uma
realidade que passou a ser parte da rotina das pessoas nas cidades grandes. O
autor mostra, de forma irônica, que a sociedade está massificada e não se importa
com o que está acontecendo: “A família estava vendo televisão”. “Eu sabia que ela
não ia, era hora da novela.” (FONSECA, 2004, p. 243-244).
É importante ressaltar que toda a crueldade de que se reveste a narrativa, ou
o modo irônico como o conto se constrói, tem por objetivo expor uma denúncia,
estabelecendo a discordância do autor em relação a essa massificação e ao
embrutecimento presente em todas as classes sociais, inclusive nas mais
privilegiadas. “Portanto o relacionamento do pós-moderno com a cultura de massa,
não é apenas de envolvimento; é também de crítica” (HUTCHEON, 1991, p.65).
“Aquilo que quero chamar de pós-modernismo na ficção usa e abusa
paradoxalmente das convenções do realismo e do modernismo, e o faz com o
objetivo de contestar a transparência dessas convenções...” (HUTCHEON, 1991,
p.79). Nesse sentido, Rubem Fonseca nos apresenta um hiper-realismo grotesco ao
pintar com cores fortes os assassinatos cometidos por seu personagem.
“Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas,
um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do
impacto partindo os dois ossões [...]” ( FONSECA, 2004, p.244);
“ Bati em Ângela com o lado esquerdo do pára-lama, jogando seu
corpo um pouco adiante, e passei, primeiro com a roda da frente — e
logo atropelei com a roda traseira, um golpe de misericórdia, pois ela
já estava liquidada, [...]” (FONSECA, 2004, p. 249).
Passeio Noturno Parte I e Parte II, retrata a sociedade urbana que se tornou
niilista, perdendo seus valores, inclusive o valor da vida humana. É, igualmente, um
reflexo das famílias burguesas que se tornaram egoístas, esvaziando-se do sentido
de existirem como famílias, tornando o relacionamento entre seus membros algo
mecânico e comercial. Com a ausência de um relacionamento mais profundo dentro
da família, que deveria ser o lugar onde as pessoas verdadeiramente se conhecem,
o ser humano tornou-se alienado com relação aos outros seres humanos. A ironia é
a principal característica pós-moderna adotada por Rubem Fonseca, como forma de
crítica, mas ele recorre também à fragmentação do sujeito pós-moderno, ao hiper-
realismo e à massificação para mostrar cada indivíduo como apenas mais um; mais
um que mata ou mais um que morre. Seu desencanto com o mundo contemporâneo
se revela nessas páginas da mais amarga ironia, com o objetivo de despertar os
seus leitores do entorpecimento em que se encontram.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOSI, Alfredo. “Situação e Formas do Conto Brasileiro Contemporâneo”, in: O conto
Brasileiro Contemporâneo. SP: Cultrix, 1997.
FONSECA, Rubem. “Passeio Noturno, Parte I” e “Passeio Noturno Parte II”, in: 64
contos de Rubem Fonseca. SP: CIA das Letras, 2004.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 7 ed. RJ: DP&A, 2002.
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. 3 ed. RJ: Imago, 1991.
SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é Pós-Moderno. SP: Brasiliense, 2006.
SILVERMAN, Malcolm. Protesto e o novo romance brasileiro. RJ: Civ.Brasileira,
2000.
ANEXO 1
PASSEIO NOTURNO — PARTE I
Rubem Fonseca
Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos,
pesquisas, propostas, contratos. Minha mulher, jogando paciência na cama, um
copo de uísque na mesa da cabeceira, disse, sem tirar os olhos das cartas, você
está com um ar cansado. Os sons da casa: minha filha no quarto dela treinando
impostação de voz, a música quadrifônica do quarto do meu filho. Você não vai
largar essa mala? Perguntou minha mulher, tira essa roupa, bebe um uisquinho,
você precisa aprender a relaxar.
Fui para a biblioteca, o lugar da casa onde eu gostava de ficar isolado e como
sempre não fiz nada. Abri o volume de pesquisa sobre a mesa, não via as letras e
números, eu esperava apenas. Você não para de trabalhar, aposto que os teus
sócios não trabalham nem a metade e ganham a mesma coisa, entrou a minha
mulher na sala com o copo na mão, já posso mandar servir o jantar?
A copeira servia à francesa, meus filhos tinham crescido, eu e minha mulher
estávamos gordos. É aquele vinho que você gosta, ela estalou a língua com prazer.
Meu filho me pediu dinheiro quando estávamos no cafezinho, minha filha me pediu
dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada pediu, nós tínhamos conta bancária
conjunta.
Vamos dar uma volta de carro? Convidei. Eu sabia que ela não ia, era hora da
novela. Não sei que graça você acha em passear de carro todas as noites, também
aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu é que cada vez me apego
menos aos bens materiais, minha mulher respondeu.
Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem, impedindo que eu
tirasse o meu carro. Tirei o carro dos dois, botei na rua, tirei o meu, botei na rua
coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas manobras
todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os pára-choques salientes do meu
carro, o reforço especial duplo de aço cromado, senti o coração bater apressado de
euforia. Enfiei a chave na ignição, era um motor poderoso que gerava sua força em
silêncio, escondido no capô aerodinâmico. Sai, como sempre, sem saber para onde
ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade que tem mais gente do que moscas.
Na avenida Brasil, ali não podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal
iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente
não fazia grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a
ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi a
mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser mais
fácil. Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de papel ordinário,
coisas de padaria ou de quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia
árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma
grande dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei, Ela só percebeu que
eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus batendo no meiofio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco
mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os
dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete
rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto.
Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em onze segundos. Ainda deu
para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de
sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa do subúrbio.
Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve pelos
pára-lamas, os pára-choques sem marca. Poucas pessoas, no mundo inteiro,
igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas.
A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está mais calmo?
Perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando fixamente o vídeo. Vou dormir,
boa-noite para todos, respondi, amanhã vou ter um dia terrível na companhia.
PASSEIO NOTURNO — PARTE II
Rubem Fonseca
Eu ia para casa quando um carro encostou no meu, buzinando
insistentemente. Uma mulher dirigia, abaixei os vidros do carro para entender o que
ela dizia. Uma lufada de ar quente entrou com o som da voz dela: Não está mais
conhecendo os outros?
Eu nunca tinha visto aquela mulher. Sorri polidamente. Outros carros
buzinaram atrás dos nossos. A avenida Atlântica, às sete horas da noite, é muito
movimentada.
A mulher, movendo-se no banco do seu carro, colocou o braço para direito
para fora e disse, olha um presentinho para você.
Estiquei meu braço e ela colocou um papel na minha mão. Depois arrancou
com o carro, dando uma gargalhada.
Guardei o papel no bolso. Chegando em casa, fui ver o que estava escrito.
Ângela, 287-3594.
À noite, saí, como sempre faço.
No dia seguinte telefonei. Uma mulher atendeu. Perguntei se Ângela estava.
Não estava. Havia ido à aula. Pela voz, via-se que devia ser a empregada. Perguntei
se Ângela era estudante. Ela é artista, respondeu a mulher.
Liguei mais tarde. Ângela atendeu.
Sou aquele cara do Jaguar preto, eu disse.
Você sabe que eu não consegui identificar o teu carro?
Apanho você às nove horas para jantarmos, eu disse.
Espera ai, calma. O que foi que você pensou de mim?
Nada.
Eu laço você na rua e você não pensou nada?
Não. Qual é o teu endereço?
Ela morava na Lagoa, na curva do Cantagalo. Um bom lugar.
Estava na porta me esperando.
Perguntei onde queria jantar. Ela respondeu que em qualquer restaurante,
desde que fosse fino. Ela estava muito diferente. Usava uma maquilagem pesada,
que tornava seu rosto mais experiente, menos humano.
Quando telefonei da primeira vez disseram que você tinha ido à aula. Aula de
quê?, eu disse.
Impostação de voz.
Tenho uma filha que também estuda impostação de voz. Você é atriz, não é?
Sou. De cinema.
Eu gosto muito de cinema. Quais foram os filmes que você fez?
Só fiz um, que está agora em fase de montagem. O nome é meio bobo, As
virgens desvairadas, não é um filme muito bom, mas estou começando, posso
esperar, tenho só vinte anos.
Na semi-escuridão do carro ela parecia ter vinte e cinco.
Parei o carro no Bartolomeu Mitre e fomos andando a pé na direção do
restaurante Mário, na rua Ataulfo de Paiva.
Fica muito cheio em frente ao restaurante, eu disse.
O porteiro guarda o carro, você não sabia? ela disse.
Sei até demais. Uma vez ele amassou o meu.
Quando entramos, Ângela lançou um olhar desdenhoso sobre as pessoas
que estavam no restaurante. Eu nunca havia ido àquele lugar. Procurei ver algum
conhecido. Era cedo e havia poucas pessoas. Numa mesa um homem de meiaidade com um rapaz e uma moça. Apenas três outras mesas estavam ocupadas,
com casais entretidos em suas conversas. Ninguém me conhecia.
Ângela pediu um Martini.
Você não bebe? Ângela perguntou
Às vezes.
Agora diga, falando sério, você não pensou nada mesmo quando eu te passei
o bilhete?
Não. Mas se você quer, eu penso agora, eu disse.
Pensa, Ângela disse.
Existem duas hipóteses. A primeira é que você me viu no carro e se
interessou pelo me perfil. Você é uma mulher agressiva, impulsiva e decidiu me
conhecer. Uma coisa instintiva. Apanhou um pedaço de papel arrancado de um
caderno e escreveu rapidamente o nome e o telefone. Aliás, quase não deu para eu
decifrar o nome que você escreveu.
E a segunda hipótese?
Que você é uma puta e sai com uma bolsa cheia de pedaços de papel
escritos com o seu nome telefone. Cada vez que você encontra um sujeito num
carro grande, com cara de rico e idiota, você dá o número para ele. Para cada vinte
papelinhos distribuídos, uns dez telefonam para você.
E qual a hipótese que você escolhe? Ângela disse.
A segunda. Que você é uma puta, eu disse.
Ângela ficou bebendo Martini como se não tivesse ouvido o que eu havia dito.
Bebi minha água mineral. Ela olhou para mim, querendo demonstrar sua
superioridade, levantando a sobrancelha — era má atriz, via-se que estava
perturbada — e disse: você mesmo reconheceu que era um bilhete escrito às
pressas dentro do carro, quase ilegível.
Uma puta inteligente prepararia todos os bilhetinhos em casa, dessa maneira,
antes de sair, para enganar os seus fregueses, eu disse.
E se eu jurasse a você que a primeira hipótese é a verdadeira. Você
acreditaria?
Não. Ou melhor, não me interessa, eu disse.
Como que não interessa?
Ela estava intrigada e não sabia o que fazer. Queria que eu dissesse algo que
a ajudasse a tomar uma decisão.
Simplesmente não interessa. Vamos jantar, eu disse.
Com um gesto chamei o maitre. Escolhemos a comida. Ângela tomou mais
dois Martinis.
Nunca fui tão humilhada em minha vida. A voz de Ângela soava ligeiramente
pastosa.
Eu se fosse você não bebia mais, para poder ficar em condições de fugir de
mim, na hora em que for preciso, eu disse.
Eu não quero fugir de você, disse Ângela esvaziando de um gole o que
restava na taça. Quero outro.
Aquela situação, eu e ela dentro do restaurante, me aborrecia. Depois ia ser
bom. Mas conversar com Ângela não significava mais nada para mim, naquele
momento interlocutório.
O que é que você faz?
Controlo a distribuição de tóxicos na zona sul, eu disse.
Isso é verdade?
Você não viu o meu carro?
Você poderia ser um industrial.
Escolhe a sua hipótese. Eu escolhi a minha, eu disse.
Industrial.
Errou. Traficante. E não estou gostando desse facho de luz sobre a minha
cabeça me lembra as vezes em que fui preso.
Não acredito numa só palavra do que você diz.
Foi a minha vez de fazer uma pausa.
Você tem razão. É tudo mentira. Olha bem para o meu rosto. Vê se você
consegue descobrir alguma coisa, eu disse.
Ângela tocou de leve no meu queixo, puxando meu rosto para o raio de luz
que descia do teto e me olhou intensamente.
Não vejo nada. Teu rosto parece o retrato de alguém fazendo uma pose, um
retrato antigo, um desconhecido, disse Ângela.
Ela também parecia um retrato antigo de um desconhecido.
Olhei o relógio.
Vamos embora?, eu disse.
Entramos no carro.
Às vezes a gente pensa que uma coisa vai dar certo e dá errado, disse
Ângela.
O azar de um é a sorte do outro, eu disse.
A lua punha na lagoa uma esteira prateada que acompanhava o carro.
Quando eu era menino e viajava de noite a lua sempre me acompanhava, varando
as nuvens, por mais que o carro corresse.
Vou deixar você um pouco antes de sua casa, eu disse.
Por quê?
Sou casado. O irmão de minha mulher mora no teu edifício. Não é aquele que
fica na curva? Não gostaria que ele me visse. Ele conhece o meu carro. Não há
outro igual no Rio.
A gente não vai se ver mais?, Ângela perguntou.
Acho difícil.
Todos os homens se apaixonam por mim.
Acredito.
Você não é lá essas grandes coisas. O teu carro é melhor do que você, disse
Ângela.
Um completa o outro, eu disse.
Ela saltou. Foi andando pela calçada, lentamente, fácil demais, e ainda por
cima mulher, mas eu tinha que ir logo para casa, já estava ficando tarde.
Apaguei as luzes e acelerei o carro. Tinha que bater e passar por cima. Não
podia correr o risco de deixá-la viva. Ela sabia muita coisa a meu respeito, era a
única pessoa que havia visto o meu rosto, entre todas as outras. E conhecia também
o meu carro. Mas qual era o problema? Ninguém havia escapado.
Bati em Ângela com o lado esquerdo do pára-lama, jogando o seu corpo um
pouco adiante, e passei primeiro com a roda da frente — e senti o som surdo da
frágil estrutura do corpo se esmigalhando — e logo atropelei com a roda traseira, um
golpe de misericórdia, pois ela já estava liquidada, apenas talvez ainda sentisse um
distante resto de dor e perplexidade. Quando cheguei em casa minha mulher estava
vendo televisão, um filme colorido, dublado.
Hoje você demorou mais. Estava muito nervoso?, ela disse.
Estava. Mas já passou. Agora vou dormir. Amanhã vou ter um dia terrível na
companhia.
64 contos de Rubem Fonseca. SP: CIA das Letras, 2004
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