SOBRE O MODELO POLÍTICO BRASILEIRO NA ERA FHC
Aluizio Alves Filho *
1 – Sobre o conceito de “modelo”.
Uma consulta aos principais trabalhos sobre a formação social brasileira
publicados na primeira metade do século XX deixa patente que o termo “modelo”
não fazia parte das categorias usuais no período.
Foi no fim da década de
sessenta que o termo ganhou grande evidência e começou a ser largamente
utilizado no linguajar de cientistas sociais brasileiros que passaram a falar amiúde
em “modelo econômico”, “modelo político”, “modelo político econômico” etc. Vale
convir que novos conceitos não surgem e tornam-se usuais ao sabor do acaso.
Dentre as razões do surgimento do conceito de modelo, e de seu largo uso
no campo intelectual brasileiro em momento histórico preciso, destaco duas que me
parecem fundamentais:
A primeira prende-se ao fato de o conceito ter entrado na ordem do dia e se
tornado
popular
com
o
advento
da
chamada
“sociedade
de
consumo”,
acontecimento marcante no desabrochar da segunda metade do século XX. Para
fundamentar melhor o raciocínio, observo que o advento da dita “sociedade de
consumo” teve por força motriz o crescimento exponencial da “revolução técnicocientífica” (RTC) no pós - 45. Desta forma, na medida em que dinamizava as
forças produtivas do modo de produção capitalista, a RTC criava as condições de
uma
cada
vez
maior
globalização
consumista
pela
colocação
no
mercado
internacional de um conjunto de produtos tipificados pela diversidade de ofertas e
marcas.
No bojo desse intenso processo de mudanças nos hábitos de consumo foi se
popularizando o conceito de “modelo”. O processo competitivo entre as empresas
visando a conquistar e ampliar o mercado consumidor levou-as a investir mais e
mais em pesquisa científicas. O propósito era produzir o “modelo novo”, atraindo
público para o consumo de novidades. Tal foi a magnitude deste processo que
comprar (possuir) o “modelo do ano” (do carro, da geladeira, do aparelho de som,
da TV etc.) funcionava como símbolo de status no interior de sociedades
massificadas, indicativo da posição social elevada ocupada na estratificação sócioeconômica pelo “feliz proprietário” da bugiganga adquirida. Em fins da década de
sessenta e na de setenta, os apelos propagandísticos voltados para o consumo do
“novo modelo”, do “modelo do ano”, invadiram as telinhas das TVs, as páginas dos
classificados e as vitrines e paredes das lojas e magazines, inculcando desejos
consumistas e fazendo a palavra “modelo” espalhar-se no uso cotidiano.
A segunda razão relaciona-se com a primeira e dela deriva. O conceito de
modelo invadiu o universo semântico das ciências sociais em meados da década de
sessenta. Invadiu não apenas em função da popularização do termo, alavancado
pela ideologia do “novo”. Invadiu também em função de especificidades vivenciadas
no campo intelectual, mormente a decorrente da necessidade sentida por cientistas
sociais de valer-se de novos conceitos para tentar compreender a nova, inesperada
e enigmática conjuntura brasileira, trazida à baila pelo golpe de 1964. Golpe
seguido por outros de natureza e propósitos similares e que, em poucos anos,
transformaram a América Latina no paraíso das multinacionais, tendo sua ação de
rapina avalizada pelos então chamados, com eufemismo, “regimes autoritários” –
fortemente apoiados pelos Estados Unidos e pelo empresariado em geral.
Para bem alicerçar a razão apresentada no parágrafo anterior, faz-se
necessária uma fundamentação mais acurada. Objetivando fazê-la, parto do
princípio de que a mera alusão à macro acontecimentos - como a Abolição (1888) e
a República (1889) - é suficiente para indicar o quadro referencial no qual floresceu
o pensamento social brasileiro do século XX e, desta forma, prover de significado
sociológico o conjunto de raciocínios que imediatamente se seguem.
Abolição e República deram um bom pontapé nas bases organizacionais em
que se alicerçava o Brasil Império. Entre outras quinquilharias, mandaram às favas
a escravidão e os privilégios da nobreza. O 13 de maio redefiniu o status dos afrobrasileiros, que passaram de escravos a cidadãos (1). Com a Constituição de 1891,
decorrente do 15 de novembro, caiu por terra a eleição à base de renda, passando
o povo a ser o soberano do processo político – ao menos na letra da lei. Ao lado
dos ideais da democracia representativa, a 1a Constituição Republicana adotava o
liberalismo e o federalismo como princípios ordenadores. Apesar das esperanças
colocadas em curso, o anunciado progresso sempre esteve longe de fazer-se real.
Esta situação pode ser ilustrada pela mera lembrança do título de um livro
publicado pouco após a revolução de 1930: Brasil errado (1932), de Martins de
Almeida.
Entre a Proclamação de 1889 e o golpe de 1964, o Brasil conheceu quatro
Constituições que, produto de lutas e contradições, procuraram ordená-lo de
formas bem diferenciadas: 1891, 1934, 1937 e 1946. Como um todo, pode-se dizer
que o pensamento social e político brasileiro - que atravessa o longo período
1889/1964, em que pesem especificidades conjunturais, diferentes orientações
teóricas e opções ideológicas de tantos “interpretes”- procura responder a um
conjunto de questões que possuem um núcleo comum.
1a Quais as conseqüências da “herança colonial” sobre a formação social
brasileira?
2o Qual é a identidade do brasileiro?
2a Quais são as peculiaridades da nossa formação social, e como estas lhe
deram uma configuração específica, tendo em vista a “herança colonial” e a
identidade nacional?
4a Quais são os efeitos da importação das idéias nas instituições políticas
brasileiras?
5a Como superar o “atraso” e modernizar o país, levando em conta suas
peculiaridades, inclusive a dependência externa?
6a Qual a melhor forma de organizar a nação, tornando-a próspera e
combatendo a pobreza?
Todas estas questões, que ganham tons e cores tão diversas em diferentes
autores e momentos históricos determinados, apontam sempre para um mesmo
centro de preocupações comuns: o da construção de um Estado Nacional,
concretamente soberano e independente. O golpe de 1964, atrelando mais e mais o
Brasil à dependência externa, fez com que a problemática urdida ao longo de
décadas ruísse de uma hora para outra, como se fora um castelo de cartas.
Foi durante a longa noite em que o país mergulhou durante as décadas
estranhamente batizadas como da “revolução redentora” e do “milagre brasileiro”
que economistas, politicólogos e outros estudiosos do social lançaram mão de
novas ferramentas para tentar compreender a inusitada situação. Foi neste
contexto que noções e conceitos como “populismo”, “colapso do populismo”,
“ideologia nacional-desenvolvimentista”, “dependência”, “teoria da dependência”,
“modelo”, “modelo econômico”, “modelo político-econômico” e “modelo político”
irromperam, substituindo outras e se tornando recorrências muito usuais.
Durante a República e até 1964 a questão que se fazia central nas pesquisas
e debates sobre Estado e sociedade no Brasil tinham por propósito tentativas de
compreender o que estava dentro para ordenar o nacional. Após 64, o problema –
cada vez mais fabricado pela mídia e imposto pela dita “elite bem pensante” - era
como adequar o interno aos interesses do capital alienígena, que se tornaria cada
vez mais voraz e globalizador.
2 – Alguns estudos sobre “modelo”, no pós - 64.
Com o propósito de ilustrar como o termo “modelo” tornou-se recorrência no
pós - 64, mas sem nenhuma intenção de esgotar o assunto, lembramos o título de
algumas publicações - livros, artigos e mesmo o título do capítulo de um livro (já
clássico) – que vieram a lume nas décadas de sessenta e setenta: Sistemas
políticos e modelos de poder no Brasil (Almeida, 1966), Modelo brasileiro de
desenvolvimento (Campos, 1970), Análise do modelo brasileiro (Furtado, 1972), O
modelo político brasileiro (Cardoso, 1973), Radiografia de um modelo (Sodré,
1974) e O modelo autocrático-burguês (Fernandes, 1976). (2).
Nenhum dos autores, nos trabalhos citados, chega claramente a definir o que
compreende por “modelo”, embora as linhas centrais que dão sentido ao conceito
possam ser apreendidas na leitura destes textos. Grosso modo, e apartadas
especificidades, a expressão composta “modelo econômico” aponta para o estudo
da maneira como uma formação social determinada produz e reproduz suas
relações de produção.
Por “modelo político-econômico” deve-se entender a
articulação entre a instância política e a econômica da formação social considerada.
Finalmente, por “modelo político” deve-se entender os mecanismos sociais de que
se vale e engendra quem detém o cetro do poder político para manter e exercer o
mando (legitimamente ou não), tendo em vista limites legais impostos, correlação
de forças, sistema de alianças, compromissos com as bases de sustentação social e
outras peculiaridades internas e externas, como desigualdade social e dependência,
respectivamente.
Em que pese a complexidade e a qualidade teórica dos trabalhos citados, é
no texto O modelo político brasileiro, que Fernando Henrique Cardoso originalmente
apresentou em seminário da Universidade de Yale (EUA), em 23 de abril de 1971,
que encontramos rico manancial metodológico útil aos nossos propósitos analíticos
no presente artigo.
3 – Algumas características do “modelo político brasileiro” nos governos militares,
segundo FHC.
Os chamados “marxistas dogmáticos” julgam bastar “catar” citações em
Marx - estudioso que viveu no século XIX, tendo a sua obra, obviamente, por
referencial empírico o capitalismo industrial que então desabrochava na Europa - e,
por analogia e dedutivismo, “pregar” tais citações em situações historicamente
vivenciadas em outro continente, mais de século depois, para assim elaborarem
explicações que acreditam consistentes e convincentes para o entendimento dos
fenômenos sociais. Pobres almas!
No reverso da medalha, situam-se imbecis raivosos que imaginam que
métodos que não entendem nem estudam perdem a eficácia, na medida em que
são xingados e amaldiçoados por eles. Pobres diabos!
Fernando Henrique Cardoso, cientista político bem apetrechado teoricamente
e ex-presidente da República do Brasil, entende de outra maneira. Entende que
método é método e, sendo assim, é para ser utilizado como tal – quando vem ao
caso – no exame de situações sociais concretas. É o que faz ao utilizar, no artigo “O
modelo
político
brasileiro”,
instrumental
legado
por
Marx
para
produzir
conhecimentos úteis para a compreensão do “modelo político” posto em curso em
abril de 64.
É apoiado em algumas das fecundas ferramentas analíticas construídas pela
genialidade de Marx que Fernando Henrique Cardoso formula uma explicação
sociológica capaz de acender um feixe de luz sobre as razões da ruptura
institucional ocorrida em 1964.
Uma delas é a que concerne a determinação da política pela economia. Ou
dizendo de maneira mais precisa: a determinação, em última instância, da
superestrutura pela infraestrutura, com autonomia relativa da primeira em relação
à segunda.
Outra hipótese de que também se vale é a de que são as forças produtivas
que articulam e determinam a natureza das relações de produção. Com base neste
referencial, Marx elabora algumas situações “típicas ideais”, entre as quais a
seguinte: mudanças qualitativas ocorridas nas forças produtivas materiais supõem
um
remanejamento
nas
bases
sociais
de
sustentação
do
poder
político.
Remanejamento imprescindível para assegurar, na instância do poder, a necessária
adequação entre o ritmo das mudanças nas forças produtivas materiais e a
reprodução ampliada das relações de produção. (3)
É sem dúvida tendo por referencial os postulados em questão que Fernando
Henrique Cardoso considera que a gênese do golpe de 64 deve ser procurada em
mudanças ocorridas nas forças produtivas materiais durante o governo Juscelino
Kubitschek (1956 – 1961).
“Por certo, essa alteração deu-se antes de 1964 no que diz respeito ao estilo
de desenvolvimento econômico; desde o governo JK perdera força o modelo
de desenvolvimento que, nascido no final dos anos 30 – com a siderurgia de
Volta Redonda, se se quiser dar um marco – ganhara força durante a guerra
e se transformara em orientação política relativamente clara durante o
segundo governo de Vargas. (1950 –1954).
Argumenta ainda Fernando Henrique Cardoso que, a partir do Estado Novo:
“o papel do Estado nos investimentos para a construção da indústria de base
e em setores pioneiros da produção de bens de consumo durável era
decisivo (...) Estado, capital nacional e investimento externo (principalmente
através do financiamento de obras públicas), nesta ordem, constituíam as
molas para o desenvolvimento”. (Cardoso: 1973; pp. 53 e 54).
Em contrapartida, no período JK:
“Com a política econômica de Kubitschek, de rápida industrialização e de
ampliação do consumo de massas (isto é, de classes médias urbanas),
começou a haver uma inflexão no que diz respeito aos grupos que atuavam
nas decisões sobre a política econômica, na forma como se dava o
investimento e no seu controle. As bases sociais e políticas sob as quais se
assentava o regime populista (...) começaram a deixar de corresponder, em
forma variável, aos setores de classe que controlavam as forças produtivas”.
(Cardoso: 1973; p. 54).
Ou seja, em contraste com o modelo de desenvolvimento posto em curso
por Vargas, onde o Estado tinha o papel de “locomotiva do progresso”, secundada
pelo capital nacional e pelo externo, com a política de rápida industrialização
adotada por JK (cujo slogan era “Fazer 50 anos em 5”) foi sendo rapidamente
invertida a ordem dos investimentos que, como numa espécie de “efeito gangorra”,
passou de: Estado, capital nacional e capital externo para capital externo, capital
nacional e Estado.
Sintetizando, Fernando Henrique Cardoso entendia que o golpe de 64 – em
sua essência e para além das aparências – substituiu as velhas bases sociais em
que se alicerçava o poder do Estado Nacional, montado na era Vargas, pelo poder
emergente de novas forças políticas como produto da necessidade de compatibilizar
o poder político com as forças produtivas postas em curso nos anos JK e, desta
forma, dar livre curso ao deslanchar das relações de produção que cada vez mais
encheriam com as burras do dinheiro o capital alienígena.
Dizendo de outra forma: tratava-se de “desmontar” o dito “pacto populista”,
“paralisar o protesto social” (Cardoso: 1973, p. 67) e afastar o fantasma de um
pretenso golpe que Jango daria para implantar uma “República anarco-sindicalista”
(segundo o jargão usual nos órgãos da imprensa que funcionavam como os
corneteiros do rei), para, assim, dar livre trânsito ao capital monopolista.
“O desmantelamento das organizações de classe dos assalariados, e a
„tranqüilidade política‟ obtidas com a repressão facilitam, naturalmente, a
retomada do desenvolvimento, isto é, a acumulação capitalista em escala
ampliada” (Cardoso; 1973; p. 67).
No novo bloco do poder, constituído com a queda de Jango:
“... ganharam importância os grupos sociais que expressam o
capitalismo internacional, sejam eles compostos por brasileiros ou por
estrangeiros, por empresas brasileiras que se associam às estrangeiras ou
por estas diretamente (...) Também ganham influência os setores das Forças
Armadas e da tecnocracia que – por serem antipopulistas – estavam
excluídos do sistema anterior, mas que, em função de suas afinidades
ideológicas e programáticas com o novo eixo de ordenação política e
econômica, constituíram-se em peça importante do regime atual. (Cardoso:
1973; p. 54 e 55).
Até aqui juntei elementos que julgo suficientes para considerar que entre os
eixos centrais que estruturam a interpretação que Fernando Henrique Cardoso
oferece para o golpe de 1964 – no texto O modelo político brasileiro - estão que as
modificações ocorridas no controle das forças produtivas materiais entre os
governos Vargas e JK fizeram surgir uma nova correlação de forças que tinha o
capital externo, e não mais o Estado, como mola propulsora das relações de
produção. O golpe assegurou, na instância política, a passagem da velha ordem
alicerçada no “pacto populista” para a nova ordem (autoritária) capaz de dar livre
curso às relações de produção. Nesta, a burguesia nacional deixava explicito
“aceitar” o papel de coadjuvante do capital alienígena. É com tal sentido que o
cientista político escreve:
“Eu não penso, entretanto, que a burguesia local, fruto de um capitalismo
dependente, possa realizar uma revolução econômica no sentido do
conceito.
A
sua
„revolução‟
consiste
em
integrar-se
no
capitalismo
internacional como associada e dependente”. (Cardoso: 1973; p. 71).
À luz da chamada “teoria da dependência”, Fernando Henrique Cardoso
chama a atenção para o fato de que, além dos condicionamentos internos, é
necessário
examinar
os
condicionamentos
externos
para
compreender
a
configuração que ganha o modelo de desenvolvimento implantado logo após a
derrubada do governo João Goulart (1961–1964). É neste sentido que após apontar
para as grandes transformações pelas quais passam os pólos hegemônicos do
sistema capitalista internacional na segunda metade do século XX, entre as quais,
uma maior diversificação da produção e o deslocamento de fábricas para países
subdesenvolvidos, como o Brasil, considera:
“Disso derivou maior interdependência na esfera produtiva internacional –
visto o sistema econômico mundial do ângulo dos centros de decisão - e
uma modificação nas formas de dependência que condiciona os estilos de
desenvolvimento dos países que se integram à periferia do capitalismo
internacional”. (Cardoso: 1973; p. 54).
Considera ainda que em 1964, tendo em vista as transformações internas e
externas em curso e as novas bases de sustentação do poder correspondentes as
tais transformações:
“... tratava-se da necessidade de recompor os mecanismos de acumulação e
de recolocar esta última num patamar mais alto capaz de atender ao avanço
verificado
no
desenvolvimento
das
forças
produtivas.
Esse
processo
requereu, entre outras políticas, a de contenção salarial e desmantelamento
das organizações sindicais e políticas que, no período populista, haviam
permitido que os assalariados lutassem e conseguissem diminuir os efeitos
negativos que a acumulação inicial exerce sobre os salários”. (Cardoso:
1973; 51).
Em decorrência:
“... o modelo de desenvolvimento dependente que está sendo posto em
prática permite dinamismo, crescimento econômico e mesmo mobilidade
social, pelo menos no setor urbano industrial da sociedade. É certo que ele
provoca atrito entre as classes, é provavelmente „marginalizador‟ e seus
efeitos não impedem as desigualdades: concentra rendas e aumenta a
miséria relativa” (Cardoso: 1973; 65). (GN).
Quanto a natureza e objetivos do modelo econômico implantado no pós 64,
Fernando Henrique Cardoso, com muita propriedade, contrapõe-se à interpretação
então bastante corrente. Segundo esta, os militares tinham origens nas classes
médias e, assim sendo, seu projeto político-econômico centrava-se em interesses
das classes médias. Contrapondo-se, Fernando Henrique Cardoso observa que:
“É de pouca valia saber se os militares são de „classe média‟ ou se a
burguesia está „à margem do mecanismo de decisões‟. Porque este está nas
mãos de um grupo funcional composto por militares e tecnocratas etc. Bem
como consiste um falso problema insistir que os protagonistas do golpe de
64 pertenciam á classe média e que o aparelho de Estado está controlado
por grupo e indivíduos da classe média. Em que sociedade capitalista não é
assim? Só por exceção os cargos do Estado, mesmo os de cúpula, são
preenchidos diretamente por empresários. A questão não está em saber
quem ocupa funções no Estado, mas que tipo de políticas podem ser
implementadas dentro de um quadro estrutural que reflete a relação de
forças das classes sociais. Esta relação de forças se expressa, no plano mais
geral, pelo que hoje se chama de um modelo de desenvolvimento”.
(Cardoso; 1973; p.56).
4 – Dos governos militares ao governo FHC: antecedentes históricos.
As águas de um oceano rolaram por baixo das pontes desde que, no início
dos anos 70, Fernando Henrique Cardoso – à época professor aposentado da
Universidade de São Paulo pelo decreto 477/68 - apresentou em um seminário
acadêmico seu estudo sobre o modelo político brasileiro, até que o mesmo fosse
eleito e reeleito presidente da República do Brasil, exercendo a presidência entre
1995 e 2002.
Tarefa hercúlea e fora de qualquer propósito, nos limites de um artigo,
pretender inventariar o conjunto de acontecimentos dotados de forte significação
histórica e sociológica que permitem ligar os dois fios da meada, ou seja: o modelo
autoritário implantado em 64 e o emergente na era FHC. Entretanto, para melhor
compreensão, algumas palavras necessitam ser ditas.
O modelo político implantado em 64 nasceu marcado por uma contradição
interna que gerava tensões e que, pela lógica de seu funcionamento, não tinha
como solucionar: a contradição inerente ao problema da legitimidade. O modelo
político adotado concentrava poderes ditatoriais no Executivo que, entre outras
medidas arbitrárias, podia editar atos institucionais e cassar mandatos, estando
tais mecanismos em evidente contradição com princípios básicos da democracia
representativa – pedra de toque do ideário das sociedades ocidentais.
Quanto ao modelo econômico, os governos militares também acabaram
inseridos em grandes contradições. As razões pelas quais encabeçaram o
movimento de abril de 64 eram bem diversas das dos demais grupos que
constituíram o bloco no poder. Os militares julgavam estar não só libertando o
Brasil do “perigo vermelho” assim como criando condições materiais para que o
país se transformasse numa potência no início do novo século que se avizinhava.
Isto os levou, ambiguamente, a escancarar o país para o capital externo sem deixar
de fazer crescer o setor público. O grande capital internacional apoiava o
movimento armado entendendo que este criava as condições ideais, no contexto da
guerra fria, para ampliar seus negócios e solidificar mais ainda a área de dominação
imperialista. A burguesia nacional, assustada com a mobilização das massas
urbanas e rurais, mais e mais aceitava ser uma “burguesia associada e
dependente” – para usar uma expressão tão a gosto de Fernando Henrique Cardoso
– e, abdicando do projeto nacional, não veria com bons olhos o crescimento do
setor público. A tecnocracia, apoiando o golpe, desvencilhava-se dos limites que lhe
são impostos pelos poderes existentes no Estado de Direito, para assim poder
impor à nação, sem restrições, os seus projetos elitistas e mirabolantes,
refestelados no ar refrigerado.
Enquanto durou o chamado “milagre brasileiro”, o modelo político manteve
coesas as suas principais bases de sustentação social – burguesia externa e
interna, militares e tecnocratas palacianos - sendo o poder suficientemente forte
para neutralizar ou esmagar todas as formas de oposição surgidas. Com o aumento
do preço do petróleo - produto das crises internacionais de 1974 e 1979 - e a
decorrente multiplicação do endividamento externo em progressão geométrica pela “arapuca” dos “juros flutuantes” (4) - o modelo econômico começou a fazer
água. A aguda crise econômica da década de 80 colocou o caráter artificial do
modelo inteiramente desnudo: o que era dito “milagre” virou pesadelo. Os altos
índices de crescimento econômico foram abruptamente substituídos pelos do
endividamento externo e os da mega-inflação. Foi nesta ocasião que ganharam
corpo os debates sobre a crise do Estado, sobre “projetos faraônicos” e sobre
pedido de moratória. A agudeza da crise econômica associada ao aumento do
protesto político provocou fissuras nas bases sociais de sustentação política,
colocando na agenda política a urgente necessidade de mudanças na estratégia
desenvolvimentista e o retorno ao regime democrático.
Aos militares seguiu-se o governo de “transição conservadora” do presidente
José Sarney (1985 – 1990), o desastre Fernando Collor de Mello (1990 –1992),
Itamar Franco (1992 – 1994) e os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso,
entre (1995 – 2002).
Fernando Henrique Cardoso, por circunstância fortuita, veio a ser Ministro da
Economia de Itamar Franco e, nesta qualidade, ganhou de mão beijada o direito de
propagandear nos meios de comunicação de massa um “plano” do qual não
participara da confecção: o chamado “plano real” - elaborado pela equipe
econômica do governo Franco, visando a debelar a inflação, que há muito passara
da casa dos dois dígitos mensais e era apresentada pela mídia como “o grande
problema nacional”.
Valendo-se do “plano real” como idéia-força e de palavras de ordem vagas e
genéricas – saúde, educação, segurança, emprego e agricultura - Fernando
Henrique Cardoso sairia vitorioso das eleições presidenciais de outubro de 1994,
derrotando com relativa facilidade seu principal opositor.
5 – O modelo político brasileiro na era FHC.
Para compreender o funcionamento e os propósitos de um modelo político, o
cientista social Fernando Henrique Cardoso sugere – conforme argumentei - que
centralmente duas variáveis devem ser examinadas, ou seja: as bases sociais de
sustentação do poder e a especificidade da situação de dependência. Trata-se de
variáveis que, embora possuam suas próprias determinações intrínsecas, são
amplamente interpendentes.
Sugere também, nas pegadas de Marx, que a gênese da substituição de uma
forma de dominação político-econômica por outra, de novo tipo, deve ser procurada
em transformações anteriormente ocorridas na estrutura econômica da sociedade
(5). Transformações que necessitam reordenar o poder político de tal forma que
suas bases de sustentação sancionem o livre desabrochar das forças produtivas
postas em curso, ao invés de tentar contê-las. Fernando Henrique Cardoso procede
desta maneira ao indicar que a gênese do movimento armado, que em 1964
derrubou o governo constitucional de João Goulart, encontra-se nas transformações
econômicas ocorridas durante o governo JK, no sentido alhures comentado.
Sem dúvida, é de boa monta o instrumental analítico de que se valeu
Fernando Henrique Cardoso para examinar alguns aspectos do modelo político
brasileiro à época do dito “milagre econômico”. Por esta razão me apoiarei no
mesmo instrumental – mas não só – com o propósito de tentar produzir
conhecimentos úteis sobre aspectos do modelo político brasileiro construído e
operacionalizado na era FHC. Assim considerando, julgo que para compreender a
natureza, os propósitos e as especificidades do referido modelo, algumas questões
centrais devem ser propostas e examinadas:
1 - Que aspectos estruturais dão o desenho das conjunturas interna e externa dos
anos 90?
2 – Levando em conta a relação interna/externa, qual a especificidade da situação
de dependência na década de 90?
3 – Quais são as bases sociais de sustentação política do governo FHC?
Em relação à conjuntura interna, pode-se esquematicamente dizer que,
transcorridos cerca de uma década entre a “abertura” e a eleição de 1994, o Brasil
não encontrara um caminho para tirá-lo da crise econômica em que estava inserido
desde o fim do “milagre”. Crise agravada nos anos 80 – que ficariam conhecidos
como “a década perdida” - quando o endividamento externo levou a bancarrota à
quase totalidade dos Estados latino-americanos. No Brasil, a crise econômica
agravou mais ainda a perene crise social (6), juntando-se a estas a crise política,
que conduziu ao impeachment de Collor de Mello em setembro de 1992.
Quanto à conjuntura externa, em linhas gerais, pode-se dizer que em função
do total desmantelamento do bloco socialista do leste europeu, como é indicativo o
fim da União Soviética em 1991, os Estados Unidos ficaram a cavaleiro como
potência militar e econômica única, e em condições de levar às últimas
conseqüências o seu histórico projeto de expansão imperialista, passando a
pressionar, com intensidade redobrada, governos de países do 3 o mundo para que
submetessem interesses nacionais aos externos.
Na situação reinante, a dependência entrara em nova fase. Diferente do que
ocorrera nas décadas de 60 a 80, não mais bastava ao capital monopolista exportar
multinacionais para a periferia do sistema, onde governantes de “regimes
autoritários” lhes concediam “incentivos fiscais”, asseguravam polpudas remessas
de lucros e garantiam mão-de-obra dócil e barata, contendo movimentos
reivindicatórios pela força das baionetas. Não bastava, igualmente, apenas
“fabricar” endividamentos pela via de emprestar “dinheiro parado” – a juros
flutuantes - para financiar “megalomanias” que tecnocratas palacianos de países
latino-americanos vendiam aos seus chefões. Em meados dos anos 90 –
pomposamente apelidados na mídia de “década da esperança”, em oposição à
anterior, “a década perdida” - a situação de dependência já era outra. Cada vez
mais quebrados e endividados, os países latino-americanos deveriam agora alienar
patrimônio público, riquezas naturais e precarizar mais ainda as já tão precárias
condições de trabalho existentes, aviltar mais e mais o preço da mão-de-obra para
gáudio do deslanchar das relações de produção capitalistas na época em que um
consultor da Rand Corporation e do governo dos Estados Unidos qualificou como a
do “fim da história”. (Fukuyama: 1989).
Diferença substantiva entre o “bloco no poder” nos governos Fernando
Henrique Cardoso e no dos militares, é que estes, antes detendo o cetro do mando;
na era FHC – rotulados na mídia de “nacionalistas”, e apresentados como
responsáveis únicos não só pelos arbítrios ocorridos durante as duas décadas que
estiveram no centro do poder, mas também pela espiral inflacionária que conduzira
o país a índices de crescimento negativo nos anos 80 – seriam bastante alijados do
sistema de tomada de decisões políticas. Em suma, com o processo da “abertura
democrática”, enquanto os políticos profissionais, organizados em torno de novas
siglas partidárias, recuperaram posições na esfera do poder, os militares voltaram
às
casernas,
passando
a
vivenciar
basicamente
seus
papeis
profissionais
tradicionais, deixando a “arena política”. Na nova composição do poder, muitos dos
velhos tecnocratas que tantos “serviços” haviam prestado ao “regime autoritário”,
“jogaram fora” a antiga pele ditatorial comprometedora e – inversamente ao lobo
da fábula de La Fontaine – rapidamente vestiram a de “democratas bonzinhos”,
ciosos por novos cargos ou por mandatos parlamentares. No cenário político
surgiram novos tecnocratas – saídos dos cassados de 1964 e de 1968 – que, agora
partícipes do bloco do poder, apresentavam o “desmonte da nação” (Lespaubin:
1999) como terapia perfeita para curar de seus males a enferma economia
brasileira.
As mesmas bases sociais que fundamentalmente deram sustentação política
aos governos militares, também deram aos dois mandatos de Fernando Henrique
Cardoso, ou seja: o capital externo e o interno - este sempre na qualidade de
“burguesia capacho”, associada e dependente. Entretanto, quando o “capital
interno” é comparado como base de sustentação dos governos militares e dos
governos Fernando Henrique Cardoso, há pelo menos uma sutil diferença que deve
ser colocada em evidência. Refiro-me à fração de classe da burguesia nacional que
é proprietária de meios de comunicação (mormente da imprensa escrita). Esta
fração – como parte da burguesia - apoiou o “golpe” e o modelo político-econômico
implantado em 1964. Mas na medida em que a censura e a repressão frontalmente
atingiram a imprensa, impedindo-a de publicar certas matérias – com a decretação
do AI-5/68 –, os proprietários de alguns dos jornais de maiores tiragens do país
entraram em rota de colisão com o “regime militar”, fazendo-lhe primeiro oposição
velada e, a partir do governo Geisel (1974 –1979), oposição cada vez mais
“aberta”. No caso do apoio dado a Fernando Henrique Cardoso, os jornais da
grande imprensa apenas o criticavam em questões pontuais. Concretamente,
deram apoio ao seu governo desde que se formou o consenso empresarial em torno
de sua primeira candidatura presidencial, até o último dia de seu mandato.
Fazendo parte das bases sociais que apoiavam as candidaturas e os dois
governos Fernando Henrique Cardoso, e como arauto ideológico delas, o discurso
produzido na mídia, durante todo esse período, satanizava o Estado e as empresas
públicas (sobretudo as mais lucrativas, como a Petrobrás, o Banco do Brasil e a
Vale do Rio Doce), defendendo a adoção, em larga escala, das ditas políticas
neoliberais – “privatização”, “ajuste fiscal”, “flexibilização da legislação trabalhista”,
“fim
dos
monopólios
estatais
e
da
estabilidade
dos
servidores
públicos”,
“internacionalização do capital” etc. Estas políticas, espécies de panacéias “pósmodernas”, eram afiançadas como sendo a única maneira de, uma vez adotadas,
finalmente, como num passe de mágica, colocar o país na rota do desenvolvimento
econômico e da prosperidade social. Ao mesmo tempo, barnabés apavorados com a
possibilidade de verem minguar mais ainda seus depauperados salários eram
estereotipados, na mídia, como “privilegiados” e “corporativistas” e, políticos
rotulados de “populistas” - Lula, Brizola, Itamar Franco - eram ditos “símbolos do
atraso e da irracionalidade”.
Eleito e reeleito presidente da República, Fernando Henrique Cardoso
cumpriu à risca o fio do bordado. A política que implementou durante seus oito
anos
de
mandato
presidencial
sempre
foi
–
em
suas
linhas
centrais
–
absolutamente afinada com os interesses objetivos de suas principais bases de
sustentação social: o capital financeiro e a burguesia tupiniquim. E, justiça seja
feita, com competência comparável à que criticava e opunha-se aos “governos
autoritários”, o presidente Fernando Henrique Cardoso conduziu o processo de
desmonte da nação. O produto final de seus dois governos tem sido analisado por
estudiosos que seriamente se debruçaram sobre o assunto. Como síntese deste
produto final, valemo-nos das palavras de abertura, escritas por Ivo Lesbaupin e
Adhemar Mineiro, da Apresentação de um livro que recentemente publicaram:
Ao longo de seus dois mandatos, o governo Fernando Henrique Cardoso
conseguiu realizar uma façanha que nenhum dos seus antecessores havia
conseguido
realizar
até
então:
destruir
ou
atingir
seriamente
parte
considerável do que havia sido construído ao longo de 60 anos de história
republicana brasileira, dos anos 30 ao fim dos anos 80: desde os serviços
públicos
(energia
elétrica,
saúde,
universidade,
educação
em
geral,
habitação, assistência social, transporte) às empresas estatais – estratégicas
ou não (Eletrobrás, Telebrás, Vale do Rio Doce, Companhia Siderúrgica
Nacional, Banespa, Centrais Elétricas São Paulo etc.) – até a legislação
trabalhista e a Constituição Federal de 1988 (a famosa “Constituição
Cidadã”). (...) O Brasil de hoje é muito pior do que era quando FHC assumiu
o governo: desde o crescimento econômico medíocre, as maiores taxas de
desemprego
da
nossa
história,
passando
pela
queda
constante
do
rendimento médio real dos assalariados, até o aumento da dívida externa e
a decuplicação da dívida interna (dívida mobiliária federal), os dados são
assombrosos”. (Lesbaupin e Mineiro: 2002; p. 7).
Para que o presidente Fernando Henrique conseguisse apresentar resultados
tão “brilhantes”, segundo a ótica das suas bases de sustentação social, além da
política de privatização das empresas nacionais mais lucrativas e da quebra de
monopólios estatais e a da “flexibilização” dos direitos trabalhistas, colocou em
curso os projetos da reforma da previdência (que deverá será “completada” pelo
governo Lula) e o da reforma administrativa. As conseqüências sociais destas
reformas são bem sabidas. Os servidores públicos (que passaram 8 anos sem
reajuste salarial, coisa inimaginável até nas mais torpes das ditaduras), vivenciam
uma progressiva proletarização. Após a reforma da previdência, tais foram as
exigências criadas que, para quem está começando ou vai começar a trabalhar,
aposentar-se se tornou mais difícil do que acertar na quina da loto. Além disto,
mais do que nunca, aposentar-se se transformou em algo similar a cometer um
crime e ser condenado a uma “dura pena”: uma velhice miserável após uma vida
de trabalho. Quando aos lucros do capital basta observar, com um mínimo de
atenção, qualquer um dos balanços que por força de lei os bancos periodicamente
publicam em jornais pra concluir que tais lucros são fantásticos. Fabulosos!
O “desmonte da nação” já era de tal monta ao fim do primeiro governo
Fernando Henrique Cardoso que a propaganda utilizada na campanha da reeleição
“esqueceu”
promessas
anteriormente
feitas:
“saúde,
educação,
segurança,
emprego e agricultura” – tendo suprimindo-as. Ora, com os hospitais públicos
caindo aos pedaços, as Universidades Federais mais arrasadas do que o World
Trade Center após o ataque de 11 de setembro de 2001, índices estatísticos sobre
o aumento da violência e do desemprego batendo seguidos recordes e os preços
dos produtos rurais pela hora da morte, como os marketeiros do presidente
poderiam querer lembrar ao eleitorado promessas feitas no passado? Bem melhor
esquece-las, suprimi-las.
A propaganda utilizada na reeleição apegou-se à
necessidade de reeleger o presidente para que o plano real fosse mantido e o
“fantasma da inflação não voltasse”. Apegou-se também a grotescas “denúncias”
que o principal candidato oposicionista era ligado a CUT e “populista” e, sendo
assim, caso eleito, seu governo seria uma catástrofe.
Finalmente, uma última questão. Para colocá-la, estabeleço um breve
paralelo entre diferença na imposição de decisões nos governos militares e os de
FHC, observando que se localizam em terrenos políticos institucionais inteiramente
distintos.
Os militares governaram num regime político fechado, alicerçados em
medidas de exceção que dotavam o Executivo de poderes draconianos; e Fernando
Henrique Cardoso governou num regime político aberto, segundo os parâmetros
das democracias representativas. No primeiro caso, o dos governos militares, é
“fácil” compreender como decisões políticas eram empurradas na “goela da nação”.
No segundo, a questão tem outra complexidade. Nas democracias representativas é
necessário que o governo tenha maioria parlamentar para poder aprovar os seus
projetos. Os cidadãos têm liberdade para articular interesses e colocar demandas
no sistema político, pressionando as decisões. Além disto, podem questionar a
constitucionalidade de políticas implementadas pelos governantes junto ao Poder
Judiciário. Apesar destas e de outras limitações que visam impedir que o Executivo
empurre decisões “goela abaixo da nação”, Fernando Henrique as empurrou.
Não contando com mecanismos similares aos que contavam os governos dos
militares para simplesmente impor, de cima para baixo, decisões à nação, o modelo
político implantado pelo governo FCH mascarou a questão da “imposição” de
medidas
com
maquiavélica
habilidade.
Neste
particular,
o
modelo
político
construído na era FHC possui algumas singularidades que convém desnudar.
A primeira singularidade deste modelo político é que além de contar com
maioria parlamentar, obtida pelo tradicional sistema de alianças partidárias muitas vezes costurada pela política do favor e da régia distribuição de cargos e de
outras benesses aos aliados (conforme farto noticiário publicado na imprensa) - o
governo Fernando Henrique Cardoso (também segundo farto noticiário estampado
em páginas dos próprios jornais que o apoiavam) era profundamente “generoso”
com
parlamentares
que
votavam,
assegurando
a
aprovação
de
emendas
constitucionais impopulares como as relacionadas às mudanças nas regras da
previdência social e na “flexibilização” dos direitos trabalhistas. Também por
ocasião da aprovação da emenda constitucional que permitiu a reeleição, criando as
condições legais para que o presidente em exercício conquistasse o segundo
mandato,
a
imprensa
publicou
diversas
matérias
denunciando
o
tipo
de
“diplomacia” que foi utilizada para amaciar e conquistar os votos de “rebeldes” nas
bases políticas governamentais.
A segunda singularidade diz respeito à redução que foi feita do ideal
democrático
a
parlamentares.
um
mero
debate
onde
os
interlocutores
eram
apenas
os
O modelo construído fazia passar gato por lebre, “fabricando” a
democracia como um regime político onde o direito dos cidadãos limita-se – na
prática - a escolher seus representantes, devendo depois assistir passivamente ao
resultado do “jogo político”, como quem assiste, sem participar, a uma partida de
futebol pela TV. No processo de doutrinação da população visando forjar consenso,
em torno da questão de que a “verdadeira democracia” é a das massas silenciosas
e silenciadas, a mídia teve papel ímpar. Não só por apresentar outras formas de
democracia como quinquilharias e obtusidades; mas também, porque já sabe a
priori que qualquer greve que consiga mobilizar uma categoria profissional a ponto
de pressionar o sistema central de tomada de decisões, não passa de “baderna”, e
deve ser anunciada e politicamente tratada como tal, sem nenhuma necessidade
de examinar suas razões. (7)
A respeito do direito de greve, vale recordar que nos primórdios de seu
primeiro mandato, Fernando Henrique Cardoso se negou a cumprir o acordo
referente a reajuste salarial, que seu antecessor na presidência da República –
Itamar
Franco
–
assinara
com
sindicatos
petroleiros.
Em
decorrência
do
descumprimento do acordo, houve greve. O presidente tratou-a com puro
maquiavelismo, terminando por quebrar a espinha dorsal do sindicalismo brasileiro.
Os sindicados petroleiros, que estão entre os maiores do país, saíram do
movimento de mãos vazias e bolsos arrasados: não conseguiram fazer valer o
acordo que à época firmaram com a maior autoridade do país e, tendo a greve sida
considerada ilegal pela Justiça, os sindicatos petroleiros foram condenados a pagar
pesada multa pelos dias em que estiveram parados. Quando o Senado aprovou um
projeto de anistia para que os sindicatos petroleiros não quebrassem, o presidente
Fernando Henrique Cardoso vetou.
Valeu-se de prerrogativa constitucional que
confere exclusivamente ao presidente da República o direito de conceder anistia.
Usou dois pesos e duas medidas; pois logo após a posse, concedera anistia ao
senador Humberto Lucena, condenado pela Justiça a ressarcir dinheiro público que
utilizara com finalidades pessoais, eleitorais. Poucas luas depois negou anistia aos
sindicatos petroleiros. Desta forma, deixava patente, no alvorecer do primeiro
mandado, sua intenção de cooptar políticos pela prática do favor assim como o tipo
de tratamento que receberiam movimentos reivindicatórios dos trabalhadores. No
fim das contas, com as tais “reformas do Estado”, era o bolso deles que seria
reformado...
Outra singularidade, é que sem ter em suas mãos instrumentos comparáveis
aos dos governos militares para impor decisões políticas à nação, Fernando
Henrique Cardoso
valeu-se da edição e reedição de enxurradas de medidas
provisórias. Instrumento que, a considerar por palavras que escreveu, primam pelo
caráter antidemocrático e, portanto, ditatorial.
“O Executivo abusa da paciência e da inteligência do país quando insiste em
editar medidas provisórias sob o pretexto de que, sem sua vigência
imediata, o Plano Collor vai por água abaixo e, com ele, o combate a
inflação. (...) Com esse ou com pretextos semelhantes, o governo afoga o
Congresso
numa
enxurrada
de
medidas
provisórias.
O
resultado
é
lamentável: Câmara e Senado nada mais fazem do que apreciá-las aos
borbotões (...) É certo que, seja qual for o mecanismo, ou o Congresso põe
ponto final no reiterado desrespeito a si próprio e à Constituição, ou então é
melhor reconhecer que no país só existe um ´poder de verdade´, o do
presidente.
democracia”.
Notas:
E
daí
por
diante
esqueçamos
também
de
(Cardoso: Folha de São Paulo; 7/6/1990; p. 2).
falar
em
(1) Acrescento, adquiriram cidadania apenas formalmente, como deixa patente o
estrutural deboche das classes dominantes com o destino da população afrobrasileira, em particular, e o da pobre, em geral.
(2) “O modelo autocrático-burguês” é o título do capítulo VII, do livro A revolução
burguesa no Brasil (1976), de Florestan Fernandes.
(3) Se tal adequação não for conseguida: “De formas de desenvolvimento das
forças produtivas , estas relações de produção se convertem em obstáculos a elas.
E se abre, assim, uma época de revolução social. A o mudar a base econômica ,
revoluciona-se, mais ou menos rapidamente , toda a imensa superestrutura erigida
sobre ela” (Marx: 1956, p. 301).
(4) A cláusula dos “juros flutuantes”, constante em contratos de empréstimos feitos
por governos latino-americanos junto aos grandes banqueiros internacionais,
mormente na década de setenta, teve papel impar na fabricação do alto montante
das dívidas externas que contraíram. Por esta estranha cláusula contratual, quando
mais o devedor paga, mais deve. Uma excelente abordagem sobre o assunto
encontra-se em Kucinski e Branford (1987).
(5) Este questão é tratado no capítulo XXIV (A chamada acumulação primitiva) do
1o volume de „O capital (Marx). O autor considera que para só é possível escapar de
um aparente circulo vicioso - “acumulação do capital pressupõe mais valia, mais
valia a produção capitalista e esta a existência de grandes quantidades de capital e
de força de trabalho nas mãos dos produtores de mercadoria” - admitindo “uma
acumulação primitiva anterior a acumulação capitalista”, ou seja “uma acumulação
que não decorre do modo capitalista de produção, mas é o seu ponto de partid –
„previous accumulation‟, segundo Adam Smith”. (Marx: 1968; v. 1; p. 828).
(6) Além do processo que culminou com o impeachment de Collor de Melo, o ano
de 1992 foi marcado por sucessivos saques a supermercados, pelo massacre do
Carandiru e por diversas denúncias de extermínio de meninos de rua. A respeito
ver: Alves Filho (1999).
(7) A exceção é quando a greve é nitidamente orquestrada pelo capital visando
inviabilizar governos legitimamente constituídos, mas que não fazem “reformas
neoliberais”. Neste caso, o movimento grevista nunca é rotulado como ”baderna”.
No jargão adotado na imprensa, em tais circunstâncias, o fato é anunciado como
“tumulto”, sendo o próprio governo apresentado como responsável por ele, por ser
“populista”.
Bibliografia:
ALMEIDA, Cândido Mendes. “Sistemas políticos e modelos de poder no Brasil”. Rio
de Janeiro: Dados – vol. 1; 1966.
ALMEIDA, Martins de. Brasil errado. Rio de Janeiro: Schmidt – Editor; 1932.
ALVES FILHO, Aluizio. “O Brasil no Clarín – um olhar argentino sobre uma crise
brasileira”. Rio De janeiro: Comum – publicação das Faculdades Hélio Alonso; vol.
4; n. 13, 1999.
CAMPOS, Roberto. “O modelo brasileiro de desenvolvimento”. Série de artigos
publicados no jornal O Estado de São Paulo; entre os dias 7 e 24 de julho de 1970.
CARDOSO, Fernando Henrique. O modelo político brasileiro. 2a ed; São Paulo:
Difusão Européia do Livro; 1973.
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. 2a ed. Rio de Janeiro:
1976.
FUKUYAMA, Francis. “O Fim da história”. Jornal do Brasil; Idéias; 10/12/1989.
FURTADO, Celso. Análise do modelo brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira; 1972.
KUCINSKY, Bernardo e BRANFORD, Sue. A ditadura da dívida. São Paulo: Editora
Brasiliense; 1987.
LESPAUBIN, Ivo e MINEIRO, Adhemar. O desmonte da nação em dados. Petrópolis:
Editora Vozes; 2002.
MARX, Karl. O capital – vol. 1. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira; 1968.
---------------- “Prefácio à Contribuição à crítica da economia política”. In; Marx &
Engels - vol. 1. Rio de Janeiro: Editora Vitória; 1961.
SODRÉ, Nelson Werneck. Radiografia de um modelo. Petrópolis: Vozes; 1974.
Resumo:
O propósito do artigo é, a partir de um prévio exame da utilização do
conceito de modelo político, investigar o modelo político construído e posto em
curso durante a “era FHC”.
Palavras-chave:
modelo
político,
bases
sociais,
poder,
dependência
neoliberalismo.
* Doutor em Sociologia pela FLACSO/UnB. Mestre em Ciência Política
pelo IUPERJ. Professor e Chefe do Departamento de Ciência Política
do IFCS/UFRJ.
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