MANUSCRITOS: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA Vanessa Lini (Especialização em Língua Portuguesa -UEL) Joyce Elaine de Almeida Baronas (co-autor - UEL) PALAVRAS-CHAVE: desvios da norma; ensino de língua portuguesa; manuscritos. 1. Apresentação O ensino tradicional de Língua Portuguesa no Brasil, ainda dominante nas escolas brasileiras, aponta os desvios da norma como formas incorretas e intoleráveis na escrita, sem expor ao aluno a existência das variantes lingüísticas e seus respectivos valores. A iniciativa de realizar esta pesquisa surgiu da necessidade de propor uma nova visão aos professores perante os “erros escolares”, comum à escrita dos alunos do ensino fundamental e que segundo dados da história da língua portuguesa, acontecem desde séculos anteriores. Tal constatação gerou curiosidade de comparar textos atuais de alunos do ensino fundamental com manuscritos de séculos anteriores a fim de melhor compreender os chamados “erros escolares”. O corpus do presente trabalho constitui-se de documentos manuscritos do século XVIII e de textos de alunos da 4ª série do ensino fundamental. Recorreu-se aos manuscritos por serem considerados de suma importância para o resgate histórico de várias áreas de estudo, principalmente no que diz respeito à escrita, pois, tais documentos trazem à tona a natureza do texto: seus argumentos, os propósitos, as intenções, o vocabulário e principalmente as características da escrita da época. A partir deste material, observaram-se as características da escrita do século XVIII e as características da escrita do século XX, buscando uma relação entre as ocorrências atuais e as de séculos anteriores para, desta forma, melhor compreender os desvios da norma apresentados pelos alunos. Estabeleceu-se um estudo comparativo entre os textos atuais e os manuscritos, constatando-se a semelhança entre as duas escritas em relação às ocorrências de desvios da norma. Foram encontradas semelhanças em desvios ortográficos como as confusões de letras e fonemas, na fonética, os casos de neutralização das vogais / e / e / i / e / o / e / u /, e na morfologia, marcas da oralidade, desmembramento de vocábulo e acentuação. Pode-se considerar que a ocorrência desses desvios encontrados nos documentos manuscritos e nas produções escritas dos alunos, explica-se pela falta de conhecimento e domínio da norma padrão. No primeiro caso, não existia ainda uma norma padrão definida, no segundo, a interferência da linguagem não-padrão adquirida pelo aluno fora da escola e a estranheza à nova forma da linguagem escrita, podem ser os fatores responsáveis pelos desvios da norma. 2. Pressupostos teóricos 2.1 Sobre a história da língua portuguesa Durante o processo de aquisição da língua escrita no ensino fundamental, a ocorrência de problemas ortográficos e desvios da norma padrão são evidentes, devido, principalmente, à interferência da fala na escrita e a falta de conhecimento da norma padrão. Tais ocorrências acontecem desde séculos anteriores. No início da história da Língua Portuguesa no Brasil, a língua se deu sem tanta normatização e pode-se afirmar que a escrita era baseada na fala, visto que registros dessa época apontam variações que denunciam uma possível aproximação com a fala e uma ausência de rigidez na ortografia. Como em séculos passados a língua portuguesa ainda estava em processo de adaptação como língua oficial do Brasil, as mudanças na língua no decorrer do tempo foram significativas no que se refere à ortografia. Segundo estudos feitos por Coutinho (1967), foram três os períodos da história da ortografia portuguesa: o fonético, o pseudo-etimológico e o simplificado. No período fonético da ortografia, a escrita procurava espelhar a pronúncia, ocorrendo grande flutuação ortográfica. Nesta fase, os escritores visavam a simplificar a leitura, tornando-a próxima da língua falada, procuravam usar as letras latinas para transcrever a pronúncia do Português da época. Não havia um padrão uniforme na transcrição das palavras, pois era possível encontrar um só vocábulo grafado de várias maneiras. Podese dizer que se escrevia não para a vista, mas sim para o ouvido, já que, na época, era uma minoria que dominava a leitura. Na grafia do período pseudo-etimológico procurava-se respeitar, tanto quanto possível, as letras originais da palavra, embora nenhum valor fonético representassem. São dessa época os muitos CH, PH, TH, Y, K, W, em palavras de origem grega, ou de suposta origem grega como: eschola, phrase, rhetorico, theatro, estylo, etc. Já o período simplificado foi marcado pela proposta da reforma ortográfica, em razão de os escritores da época estarem escrevendo cada um com uma grafia própria e diferente. O objetivo desse período era a simplificação da ortografia orientando-se pela pronúncia, sem desconsiderar a etimologia e o elemento histórico da palavra. Desta forma, pode-se verificar que, com a evolução do tempo e conforme cada período, a Língua Portuguesa transformou-se. Embora o período simplificado tenha contribuído consistentemente para certa facilitação de escrita da língua, ainda hoje é natural haver confusão no que diz respeito à ortografia de determinadas palavras. 2.2. Dificuldades ortográficas na aquisição da escrita As regras de ortografia surgiram para a uniformização da escrita, já que na fala as palavras estão sujeitas a mudanças e um mesmo vocábulo pode ser pronunciado de várias maneiras, causando dificuldades na transposição da fala para a escrita. Cagliari (1999: p.50) ressalta que isso ocorre porque as relações entre letras e sons (estabelecidas na leitura) são diferentes das relações entre sons e letras (estabelecidos na escrita), devido ao fato de uma palavra poder ser pronunciada de diversas maneiras (por exemplo, póti, poté, potchi, potch, etc.) e de ser escrita por meio de uma única forma congelada, estabelecida pela ortografia vigente. Para Cagliari (1999, p.61), escrever certas palavras segundo a ortografia vigente é uma dificuldade para muitas pessoas, mesmo que tenham uma prática de escrita relativamente intensa. Concordando com Cagliari, Bortoni-Ricardo (2005, p. 274) ressalta que o domínio da ortografia é lento e requer muito contato com a modalidade escrita da língua. Dominar bem as regras de ortografia é um trabalho para toda a trajetória escolar e, quem sabe, para toda a vida do indivíduo. Assim, é incorreto pensar que apenas as crianças na fase de aquisição da escrita têm dificuldades na ortografia das palavras; na realidade, qualquer ser humano, em algum momento, poderá ter dúvidas quanto à maneira correta, segundo a norma padrão de escrever alguma palavra. Entre as causas das dificuldades enfrentadas pelos alunos durante o processo de aquisição da escrita, observa-se uma interferência da fala na escrita e a falta de familiaridade com a norma padrão e com as regras da ortografia vigente. Nesse sentido, os “erros” ortográficos são comuns e devem ser aceitos pelo professor como uma das fases de desenvolvimento da aquisição da escrita, sem preconceito e discriminação em relação à escrita do aluno. Cagliari (1999) comenta que: Infelizmente, muitos métodos orientam-se pelas dificuldades dos adultos, deixando de lado o ponto de vista das crianças. À medida que insistem em apavorar as crianças com fatos da escrita ortográfica, pior será a relação que esses alunos terão com a escrita futuramente. Continuo dizendo que é muito melhor ensinar as crianças a escrever primeiro e, depois, a escrever ortograficamente... deixá-las escrever o mais livremente possível, como ponto de partida e, depois fazê-las passar para a outra grafia (a ortográfica), procurando verificar se o que escreveram num primeiro momento corresponde à maneira como se deve escrever, seguindo o estabelecido pela ortografia vigente. (1999, p.73) Desta forma, o aluno, em um primeiro momento, precisa familiarizarse com a escrita, para apenas mais tarde ser corrigido ortograficamente. Cabe, então, ao professor trabalhar a norma padrão de maneira natural através da prática de escrita e de leitura, pois, quanto maior o contato com a linguagem escrita, menor serão as dúvidas em relação à ortografia das palavras. Segundo o referido autor, quem lê muito e escreve bastante, com o tempo, passa a ter cada vez menos dificuldades em escrever ortograficamente, sem precisar consultar o dicionário. Obviamente, as dificuldades aumentam quando o usuário tem pouco contato com a leitura, como acontece com grande parte dos alunos de primeiro grau. Portanto, os “erros ortográficos” não devem ser vistos como uma incapacidade do aluno, mas sim como uma base para a aquisição da língua escrita. 2.3. Sobre a noção de erro Diante de uma língua heterogênea e tão diversificada como a língua portuguesa, fica difícil impor uma noção de “certo e errado”. Na perspectiva da gramática tradicional, ainda principal foco do ensino de língua portuguesa no Brasil, “erro” é tudo aquilo que foge à norma padrão. Bagno (2001) comenta que: A principal (e pior) conseqüência do elitismo e do caráter não científico da Gramática Tradicional foi o surgimento da noção folclórica de “erro”. Como já vimos, tudo o que não estivesse de acordo com a régua da GT, tudo que escapasse de seu sapatinho de cristal, era considerada “errado”, “feio”, “estropiado”, “deselegante” etc. O grande problema com essa noção ultrapassada é que, como os estudos lingüísticos modernos têm revelado, simplesmente não existe erro em língua. Existem, sim, formas de uso da língua diferentes daquelas que são impostas pela tradição gramatical. No entanto, essas formas diferentes, quando analisadas com critério, revelam-se perfeitamente lógicas e coerentes. (2001, p. 25) Com o surgimento da Sociolingüística no Brasil, na década de setenta, tornou-se necessária a revisão do conceito de “erro” no ensino de língua materna, já que essa veio revelar a heterogeneidade da língua portuguesa. Para os sociolingüistas, qualquer variedade é adequada para aqueles que a usam, desde que sejam compreendidos por seus interlocutores. Nessa visão, o “erro” ocorre apenas quando há problemas de comunicação entre indivíduos. Apesar disso, a mudança no ensino é lenta e o domínio da gramática normativa ainda é considerável. Estudos sobre o assunto apontam que o ensino de português ideal para a atualidade exige do professor boa formação lingüística e, ao mesmo tempo, domínio da gramática tradicional, para poder incluir no vocabulário do aluno a norma padrão e mostrar sua necessidade social sem discriminar sua variante. Uma fatalidade no ensino é que essa formação não é realidade no currículo de todos os professores de língua portuguesa no Brasil. Sobre a correção do texto do aluno, Mattos e Silva (2006), comenta que o professor não deve simplesmente “corrigir” os chamados “maus usos”; se tiver uma boa formação lingüística, especificamente sociolingüística, deverá demonstrar, por exercícios, o valor social das variantes de um elemento variável no português do Brasil. Bortoni-Ricardo (2005) também ressalta a importância da contribuição da lingüística para o ensino de línguas. Por meio de um aparato teórico e metodológico de “análise e diagnose de erros”, a autora acredita na contribuição da identificação dos fenômenos lingüísticos distantes da norma padrão, para a elaboração de materiais didáticos e para a racionalização e explicação das avaliações subjetivas dos professores diante de tais fenômenos. A autora enfoca também a necessidade de o professor conhecer as características do dialeto do aluno para lidar com esses fatos lingüísticos. Para nortear esse trabalho, a autora desenvolveu quatro categorias de ”erros”: 1-Erros decorrentes da própria natureza arbitrária do sistema de convenções da escrita; 2-Erros decorrentes da interferência de regras fonológicas categóricas no dialeto estudado; 3-Erros decorrentes da interferência de regras fonológicas variáveis graduais; 4-Erros decorrentes da interferência de regras fonológicas variáveis descontínuas. (BORTONI-RICARDO: 2005, p. 54) Nessa perspectiva, o “erro” pode contribuir diretamente com o trabalho pedagógico do professor. Os desvios da norma podem ser ferramentas para levar o professor a conhecer as dificuldades de seus alunos, para, desta forma, redirecionar o ensino de acordo com as necessidades de cada um. 3. Análise de dados A seguir apresenta-se uma síntese dos dados colhidos na presente pesquisa a partir de gráficos que descrevem a ocorrência de fenômenos lingüísticos distantes da norma padrão. • Gráfico 01 O gráfico 01 representa os desvios que resultam do conhecimento insuficiente das convenções que regem a língua escrita, os fatos ortográficos. Pode-se constatar a maior ocorrência de troca de letras nos textos dos alunos em 04 casos: (c por s, m por n, n por m e z por s), apenas em 01 caso, a troca de (ss por c) os manuscritos apresentaram maior ocorrência que os textos atuais. Nos demais casos (s por c, ç por c, ss por s, x por s e s por z) verifica-se uma igualdade de ocorrência entre as duas escritas. 9 8 7 6 5 4 3 2 1 0 Textos dos alunos Documentos manuscritos c s m n ç ss ss x s z por s por por por por por s por por s por por s c n m c c z • Gráfico 02 O gráfico 02 representa os desvios referentes à fonética, que se encaixam na categoria dos erros decorrentes da interferência de regras fonológicas categóricas no dialeto estudado. Nessa categoria o desvio que acontece nos textos dos alunos e nos textos manuscritos são os casos de neutralização das vogais / e / e / i / e / o / e / u /, verificando-se uma igualdade de ocorrência. 4 3 2 Textos dos alunos 1 Documentos manuscritos 0 neutralização de / e / e / i/ neutralização de / o / e / u / • Gráfico 03 O terceiro gráfico é referente aos desvios na morfologia e acentuação. Em relação à formação das palavras, o índice de semelhança entre as duas escritas foi menor, talvez pelo fato de a escrita dos documentos possuírem algumas características próprias da época, como o uso de consoantes duplas e o uso de letras sem valor fonético, característicos da escrita etimológica. Os fatos que aparecem nos dois casos foram: marcas da oralidade, desmembramento de vocábulo e ausência de acentuação. Percebe-se também que os textos dos alunos apresentam a maior ocorrência de desvios nos casos de oralidade e de desmembramento de vocábulo, já no caso da acentuação, houve semelhante ocorrência nos dois corpora. 7 6 5 4 3 Textos dos alunos 2 Documentos manuscritos 1 0 Oralidade Desmenbramento de vocábulo Acentuação Com base nesta análise, pode-se afirmar que, embora presentes de maneira mais expressiva nos textos atuais, vários desvios da norma já eram comuns em séculos anteriores. Tal constatação é importante para a formação do professor de língua portuguesa, que deve dar uma atenção especial aos desvios da norma apresentados pelos alunos, levando-os a perceber as formas inadequadas e a compreender de forma mais clara os motivos das confusões na escrita dos textos. 4. Considerações Finais Esta pesquisa baseou-se na escrita de séculos passados para comprovar que ocorrências de desvios da norma na linguagem escrita dos alunos são casos naturais, registrados desde séculos anteriores. Através de um breve histórico da língua portuguesa, descreveram-se as fases da língua e todo seu processo de evolução no decorrer do tempo. Antes do estabelecimento de uma norma padrão, as formas de escrita eram variáveis, como a escrita dos escribas setecentistas, que escreviam da forma como achavam melhor, baseados na linguagem oral. Nesta época, o chamado “erro” não era considerado, ao contrário do que acontece atualmente com os alunos do século XX, após a fixação da norma padrão. Pelo fato de o ensino de língua portuguesa atual ser baseado nas regras estabelecidas pela norma, muitas vezes a língua portuguesa se torna difícil, já que os alunos, assim como os escribas do século XVIII, dominam o idioma em sua modalidade coloquial. Desse modo os fatos lingüísticos distantes da norma são apenas evidências de dificuldades no processo de aquisição da língua escrita. Diante da análise dos desvios da norma nos textos dos alunos, em comparação com a escrita dos documentos manuscritos do século XVIII, concluiu-se que a falta de familiaridade com a norma padrão e a interferência da fala na escrita são realmente as principais causas desses acontecimentos. Observou-se também que os casos nada mais são que apenas troca de letras e fonemas, ausência de acentuação, marcas da oralidade, e outros fatos que ficam evidentes na escrita, mas não na linguagem falada. No caso dos desvios resultantes da falta de conhecimento das convenções que regem a língua escrita, um exemplo encontrado no texto de um aluno é a troca de / c / por / s / nas palavras selebrar e celebrar. Tal ocorrência só é perceptível na escrita, visto que na linguagem oral se utiliza o mesmo som para registrar as duas formas. Nos desvios resultantes da transposição da fala para a escrita, os casos analisados mostram que os alunos, e também os escribas do século XVIII, escrevem muitas palavras como são pronunciadas, como por exemplo as palavras: presenti, simbulo, janero, custuma, muinto, entre outros. Verifica-se, portanto, que a falta de familiaridade com a norma padrão traz confusão e dificuldades de escrita. O presente trabalho pretende, pois, contribuir com o ensino de língua portuguesa no Brasil, transmitindo uma nova visão aos professores a respeito dos desvios da norma. Isso não significa que tais ocorrências não devam ser corrigidas e simplesmente aceitas sem o menor controle, o importante, porém, é que não se tornem fonte de desmotivação no ensino. Espera-se que o professor consiga construir uma nova metodologia de ensino, buscando, através dos desvios da norma, conhecer a realidade lingüística de seus alunos para levá-los a redigir com clareza e adequação. Referências Bibliográficas BAGNO, Marcos. Português ou Brasileiro ? Um convite à pesquisa. São Paulo: Parábola, 2001. BORTONI–RICARDO, Stella Maris. Nós cheguemu na escola e agora? : sociolingüística e educação. São Paulo: Parábola, 2005. BORTONI-RICARDO, Stella Maris. O estatuto do erro na língua oral e escrita. In: GORSKI, Edair Maria; COELHO, Izete Lehmkuhl (orgs.). Sociolingüística e ensino: contribuições para a formação do professor de língua. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2006. CAGLIARI, Luiz Carlos. Diante das letras: a escrita na alfabetização. São Paulo: Fapesp, 1999. 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