A LITERATURA PIRANDELLIANA NO CINEMA: UM ESTUDO
LITERÁRIO E DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM.
Ivo DI CAMARGO Junior (PG - UFSCar – SP)
ISBN: 978-85-99680-05-6
REFERÊNCIA:
DI CAMARGO Junior, Ivo. A literatura
pirandelliana no cinema: um estudo literário e da
filosofia da linguagem. In: CELLI – COLÓQUIO
DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS.
3, 2007, Maringá. Anais... Maringá, 2009, p. 485494.
1 - INTRODUÇÃO:
Analisar filmes não é uma das tarefas mais fáceis, mas pode-se dizer que é uma
arte muito gratificante. Analisa-lo lingüisticamente então é uma procura de minúcias e
detalhes escondidos nas malhas textuais, porque, o filme é sim, uma forma de texto e
sendo tratado como tal, esconde em suas cenas as particularidades que dão sentido e
continuidade à obra.
Dando seguimento a uma série de trabalhos e pesquisas a respeito da análise
lingüística de cinema, com base nos pressupostos teóricos da Lingüística Textual para o
resgate da intertextualidade como forma de coerência e enriquecendo esta pesquisa
utilizando as teorias dialógicas do pensador russo Mikhail Bakhtin, analisaremos aqui o
filme “As duas vidas de Mattia Pascal” (1985), do diretor Mario Monicelli e
tentaremos demonstrar as intertextualidades que nos levam a perceber um rico dialogo
entre a cena, as descrições da obra literária e o mundo criado pelo escritor e
representado pelo diretor encerrados no filme.
Neste trabalho procuraremos analisar com afinco este filme e traçar assim um
paralelo entre o filme e seus intertextos mais perceptíveis que são a obra literária que o
inspirou, as nuances da personagem do livro e as do filme e o universo criado por autor
e diretor auxiliando a criação de sentido no texto fílmico.
2 - A TEXTO E O FILME
Parece ser possível dizer que desde, pelo menos, a Antigüidade Clássica, o texto
é um objeto de discussão teórica. O debate entre Platão e os sofistas, por exemplo,
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parecia girar em torno da questão textual, num certo sentido. Preocupado com uma
linguagem que refletisse uma razão ideal, Platão acusava os sofistas de construírem um
texto falacioso, que não refletia a verdade das coisas. Nesse sentido, a questão da
relação entre linguagem e verdade poderia ser vista como uma questão de coerência e,
portanto, textual.
De fato, tanto Platão quanto Aristóteles, nesses momentos, estão colocando em
discussão a linguagem em uso, em processo e, especialmente, os efeitos de sentido que
essa linguagem provoca através dos textos em que é veiculada. Estava em jogo o poder
de persuasão da linguagem, o poder, supostamente, de manipulação de realidades
(também supostas), o poder poético, mimético, o poder, enfim, de a linguagem
simbolizar discursivamente.
O filme As duas vidas de Mattia Pascal é um bom exemplo de como o texto
fílmico pode se adequar às teorias da Lingüística Textual. Em um filme em que as
imagens e os diálogos entre personagens não escondem a verdade, mostram suas
virtudes e vilanias o texto presente na obra tenta levar o espectador a adquirir a verdade
guiando-o ao drama sofrido pela personagem em seu martírio quando da sua perda de
identidade. O filme nos leva a sentir o que a personagem sente através da abstração ou
pelas imagens, ou pelos diálogos ou pelas canções que contém o sentido que o texto
tenta nos passar. Desta forma atente para Koch:
Desta forma, o texto deixa de ser entendido como uma estrutura
acabada (produto), passando a ser abordado no seu próprio processo
de planejamento, verbalização e construção. (Koch, 2000, p.21)
O filme não nos dá uma forma acabada de compreensão e sim um conjunto de
sentidos vários que ao serem agrupados determinam a construção de um sentido total e
por conseguinte, da realização da verdade da obra. Assim, a busca pela verdade nos
mais diversos textos, que vêm desde os gregos até nossos dias, pode ser conseguida
através do que Bakhtin chamou de Dialogismo. O texto não é um texto único, um
monólogo, sem referenciais. O texto é uma forma de construção pluricultural, em nosso
caso um relato do cotidiano da vida na Itália e repleto de mensagens implícitas.
Vejamos novamente Koch:
Um texto se constitui enquanto tal no momento em que os parceiros
de uma atividade comunicativa global, diante de uma manifestação
lingüística, pela atuação conjunta de uma complexa rede de fatores de
ordem situacional, cognitiva, sociocultural e interacional, são capazes
de construir, para ele, determinado sentido. (Koch, 2000, p.25).
Como se pode ver, a realidade que cerca o texto cria-lhe o sentido. Buscaremos
agora os elementos que dão sentido ao filme As duas vidas de Mattia Pascal.
3 - O PENSAMENTO DE BAKHTIN PARA ENTENDER O TEXTO FÍLMICO
Todorov, no prefácio da Estética da Criação Verbal, define Bakhtin como uma
das figuras mais múltipla e enigmática da cultura européia de meados do século XX.
Procurando romper com a concepção de homem que adquire uma linguagem ideal,
pronta e acabada, e com a dicotomia que toma a linguagem como forma e conteúdo,
Bakhtin concebe um homem que dialoga com a realidade por meio da linguagem. Este
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teórico provoca fascínio, talvez, pela sua capacidade de ver o mundo, o homem e a
linguagem como sendo partes de um mesmo processo dialético. As concepções de
Bakhtin exigem do leitor um olhar múltiplo sobre o mundo e sobre o outro. Trata-se de
uma teoria que vê o mundo a partir de ruídos, vozes, sentidos, sons e linguagens que se
misturam, (re) constroem-se, modificam-se e transformam-se. Dentro desse burburinho,
a palavra assume papel primordial, pois é a partir dela que o sujeito se constitui e é
constituído. Para pensar a palavra a partir dessa perspectiva, faz-se necessário
considerar o direito e o avesso não como partes distintas, mas como elementos que se
complementam por meio de uma relação dialógica.
A partir dos anos de 60 e 70, quando os trabalhos do teórico russo foram
amplamente divulgados no mundo ocidental, verificamos que é impossível não se
curvar frente as mais variadas direções e embasamentos que sua obra influenciam no
mundo desde então. Os mais variados estudos a respeito da linguagem e da
intertextualidade presente nas obras em geral dão testemunho à força do pensamento do
estudioso russo. Sua obra tem o poder de promover a linguagem humana ao patamar de
interação social, ligar o conhecimento humano e penetrar nas fundamentações
ideológicas.
Tratando do papel da consciência individual e da palavra na formação das
ideologias, Bakhtin apresenta uma série de reflexões no sentido de facilitar nossa
compreensão sobre a importância dos processos de interação semiótica dos grupos
sociais.
Essa cadeia ideológica estende-se de consciência individual em
consciência individual, ligando umas às outras. Os signos só
emergem, decididamente, do processo de interação entre uma
consciência individual a uma outra. E a própria consciência individual
está repleta de signos. A consciência só se torna consciência quando
se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, conseqüentemente,
somente no processo de interação social. (Bakhtin, 1997, p. 34).
Para Bakhtin, o signo além de constituir uma grande pureza ideológica na
manutenção das relações sociais e do dialogo, serve ainda de suporte para todo e
qualquer signo não-verbal, sendo este também entendido como signo ideológico.
Naturalmente, as relações dialógicas que se encontram dentro de um
determinado texto estão intimamente ligadas por uma ideologia que as mantém dentro
de um mesmo padrão de coerência e de sentido. Para que possamos ter um maior
entendimento de como as teorias de Bakhtin encontram se atualizadas dentro do ínterim
no qual nos debruçamos, recorreremos agora a uma de sua obra mais expressiva.
Segundo o autor:
O psiquismo subjetivo é o objeto de uma análise ideológica, de onde
se depreende uma interpretação sócio-ideológica (...) O que faz da
palavra uma palavra é sua significação. O que faz da atividade
psíquica uma atividade psíquica é, da mesma forma, sua
significação.(idem, p. 48-49).
Em sintonia com o teórico russo, podemos afirmar que qualquer reflexão em que
se vise a palavra só ganha sentido e importância se a linguagem for considerada em sua
perspectiva pragmática, ou seja, como o lugar mais indicado para a manipulação de
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valores sociais. Neste caso perceberemos a afinidade entre a teoria e o objeto de nosso
estudo, pois o protagonista do filme encontra-se em uma encruzilhada ideológica onde
seu grande domínio da palavra e da ideologia o fez entrar num mundo de crescente
contradição. Seu psiquismo foi duramente abalado por uma falta de controle ideológico.
O dialogismo é o permanente diálogo entre os diversos discursos que
configuram uma sociedade, uma comunidade, uma cultura. A linguagem é, portanto,
essencialmente dialógica e complexa, pois nela se imprimem historicamente e pelo uso
as relações dialógicas dos discursos. A palavra é sempre perpassada pela palavra do
outro. Isso significa que o enunciador, ao construir seu discurso, leva em conta o
discurso de outrem, que está sempre presente no seu.
Diante do exposto até o momento, pensamos poder garantir que o cinema
representa uma instância privilegiada de relações intertextuais, de construção ideológica
e interação social, devido ao inter-relacionamento das mais variadas modalidades de
signos – sistematizados, não apenas pela palavra, mas, igualmente, pelo som e pela
imagem - na constituição de seu produto final, o texto fílmico.
4 - A SÉTIMA ARTE E A PRÁTICA SOCIAL
Poucos anos após a sua criação e eleição como Sétima Arte - ao lado das artes
plásticas (pintura, escultura e arquitetura), da literatura, do teatro, da música, da dança e
da fotografia – o cinema adotou a narrativa como estrutura, iniciando, automaticamente,
a comercialização da nova tecnologia. No lugar de breves registros de cenas do dia-adia, seus pioneiros voltavam-se para a elaboração de conceitos variados que
possibilitassem a representação de fatos reais em forma de histórias da vida humana.
Como fator de desenvolvimento do cinema várias técnicas foram surgindo com o
propósito de atribuir mais sentido ao “enunciado” fílmico e ampliar o campo de visão e
interpretação da realidade proposta pela narrativa. Dentre os procedimentos adotados
temos, por exemplo: 1) o uso da edição (arranjo das seqüências na tela, ou seja,
montagem cinematográfica); 2) o fade-out (método de transição ou fechamento que
provoca o desaparecimento gradual da imagem); 3) o lap-dissolve (sobreposição gradual
de uma nova imagem); 4) a adoção do som e da cor na tela do cinema; 5) a substituição
do “ator” por “gente de verdade” (filmes neo-realistas); 6) cenas externas vs filmagens
de estúdios; 7) a adoção da noção de gênero no cinema; 8) maior atenção para a
composição das tomadas – mise-en-scène - do que para a sua combinação - montagem (com vistas à valorização do movimento dos elementos cinematográficos, do
posicionamento de figuras e cenas pela câmera, da iluminação, do foco de profundidade
etc.).
Com a aplicação das primeiras técnicas, o cinema estava voltado mais para a
forma do que para o conteúdo em si. A partir da adoção do som e da cor, além da
implementação de novas técnicas, os cineastas, muitas vezes, buscaram aumentar a
noção de realidade, passando a explorar mais significativamente o enredo e impingindo
maior complexidade às expressões psicológicas das personagens. Por outro lado, a
adoção das noções de gênero e de autor provocou o estabelecimento de uma relação
mais forte entre o cinema e o espectador, dando origem ao chamado filme popular.
A trajetória nem sempre coerente da Sétima Arte acabou estendendo para outras
áreas de pesquisa - a antropologia, a lingüística, a semiótica, e, mais tarde, a psicologia as fundamentações dos teóricos, dando início aos estudos sobre cinema, fato esse
discutido, por exemplo:
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Finalmente, e numa outra configuração, alguns teóricos do cinema de
autor afastaram-se de suas fundamentações nos modos literários e
estéticos de análise, abraçando a lingüística, a antropologia e a
semiótica. Este é um dos primeiros indícios do futuro dos estudos
sobre cinema, que gradativamente tornou-se alvo da aplicação de
teorias desenvolvidas em outras áreas. O elemento comum entre a
lingüística e a antropologia era o grupo de teorias abrigado sob a
denominação de estruturalismo. O estruturalismo admite que os filmes
sejam feitos por cineastas, mas nos lembra que os cineastas são
“produzidos” pela cultura. Assim, a teoria estruturalista tem sido
muito útil em reassociar o cinema com a cultura que ele representa.
Também proporcionou meios de perceber o cinema como um
conjunto de linguagens, um sistema para criar significados,
aprofundando desta maneira nossa compreensão desse meio de
comunicação. Turner (1997, p. 46):
A publicação de artigos sobre cinema, na década de 60, em diferentes meios de
comunicação, a preocupação em adequar o cinema a um público mais jovem nessa
mesma época, a criação dos primeiros cursos de cinema em nível superior, o
lançamento de revistas e periódicos especializados, enfim, o aumento de conhecimento
acerca desse novo fazer artístico, promoveu um maior interesse por parte dos
pesquisadores acadêmicos pelos diferentes aspectos que compõem a arte
cinematográfica. Por outro lado, as pesquisas passaram a estimular maior cuidado em
relação à elaboração do texto fílmico por parte de seus produtores, roteiristas e,
especialmente, de seus diretores.
O conjunto das variadas abordagens voltadas para a arte cinematográfica deu
origem ao campo denominado estudos culturais, os quais não se restringiam apenas à
análise do cinema, mas passaram a se preocupar, igualmente, com o entendimento sobre
“a função, as práticas e os processos culturais”, a partir de análises sobre “os meios
pelos quais os significados sociais são gerados pela cultura...”. (Turner, 1997, p. 48).
5 - PIRANDELLO: BREVE BIOGRAFIA
Pirandello nasceu na cidade de Chaos, perto de Girgenti (hoje, Agrigento), no
dia 28 de junho de 1867, de uma família rica, que explorava minas de enxofre. O pai
Stefano, um aventureiro, havia lutado junto com Giuseppe Garibaldi e, durante a
campanha pela unificação italiana, tornou-se amigo de Rocco Ricci Gramitto, com a
irmã de quem viria a se casar (Caterina). Passaram a viver em Agrigento, cidade
monótona e religiosa, até que veio a epidemia de cólera: nesta ocasião, enviou a mulher
para o campo – para a aldeia de Chãos, onde Luigi nasceu.
Iniciou seus estudos em Palermo. Os primeiros passos foram feitos em casa
e, mais tarde, ainda criança, passou a freqüentar a escola técnica e, depois, foi para o
ginásio Empédocles. Ia constantemente à Biblioteca Pública da cidade, onde teve
oportunidade de dedicar-se à leitura, principalmente à literatura italiana. Um fato,
porém, o marcou: ao descobrir uma aventura amorosa de seu pai, decidiu não mais
lhe dirigir a palavra. Assim, quando a família voltou a viver em Agriento, Luigi
ficou em Palermo, residindo na casa de um de seus colegas. Foi nessa ocasião que se
apaixonou por Lina, irmã de seu colega, sendo ela quatro anos mais velha que ele –
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ele, apenas um adolescente. Também nessa ocasião se tornou poeta, tanto mais
porque se afastara da amada, vivendo, agora, na casa e sua tia Sara. Com o tempo
contraiu noivado com Lina, mas precisava da petição oficial de seu pai, como era
costume da época. Mas Stefano expressou a sua contrariedade face ao casamento,
devendo, pois, concluir os estudos antes de se casar.
Decepcionnado, voltou a Palermo, aí iniciando, inclusive, seus estudos
universitários – ingressou na Faculdade de Letras, em 1887. Um ano depois, passou
a viver em Roma, onde ingressou no curso de Letras da Universidade de Roma. Por
causa de uma querela com o latinista Onorato Occioni, transferiu-se de Roma para a
Universidade de Bonn, em 1889, onde obteve diploma (em 1891), em Filologia
Românica, com uma tese dialetológica – Sons e evolução fonética do dialeto de
Agrigento.
O distanciamento agravara as suas relações com a noiva, Lina, e, depois de
formado, viajou a Palermo, onde rompeu o noivado. Já em Roma, em 1893, recebeu
de seu pai uma carta, com proposta de casamento. Stefano queria uni-lo a Maria
Antonietta Portulano, filha de um milionário, a quem se associara. O casamento
realizou-se em 1894, com plena concordância dos noivos. Em seis anos, o casal teve
três filhos: Stefano, Lietta e Fausto.
O dote de Antonietta – cerca de 70 mil liras – foi aplicado pelo pai do
escritor numa mina de enxofre e seus rendimentos permitiram que o casal tivesse
uma vida folgada por algum tempo. Mas, em 1897, uma inundação veio a destruir a
mina, causando a ruína financeira de Luigi, que chegou, então, a pensar em suicídio.
Esse acontecimento ainda seria desastroso por um outro aspecto: exasperou o ciúme
doentio de Antonietta, fazendo-a mergulhar em uma loucura da qual não mais sairia.
Luigi viveria ao lado da esposa até 1919, data em que ela foi definitivamente
internada, após inúmeras crises.
Após a ruína, ele passou a ganhar a vida na situação de professor de
Literatura Italiana, em Roma, ou dando aulas particulares. Complementava a vida,
modesta, com a atividade literária. Foi por essa atividade que se tornou célebre,
alcançando, depois, o renome internacional, consagrado, em 1934, pelo prêmio
Nobel de Literatura. Pouco depois, a 10 de dezembro de 1936, faleceu, tendo
deixado sua vontade expressa, em testamento, para ser cremado e que suas cinzas
fossem dispersadas pela cidade onde nasceu, "para que nada subsistisse".
Dotado de grande sensibilidade, sua obra reflete os traumas causados
especialmente pelo pai – com quem tinha relações difíceis – e pela loucura de
Antonietta. Não sem razão, boa parte de sua obra é dedicada às alterações de
personalidade. Alguns nomes também o influenciaram, como os filósofos Bérgson e
Schopenhauer. Além disso, a própria situação de vida o impeliu a defrontar-se com a
sociedade siciliana, com suas normas constritivas: talvez isso explique o motivo para
uma de suas temáticas principais ser a oposição entre o "eu" e o mundo.
A produção literária de Pirandello é de grande abundância. A narrativa
desenvolveu-se antes de 1917, vindo a abarcar cerca de 300 novelas (reunidas,
sugestivamente, sob o título Novelas por um ano). Muitas delas foram adaptadas
pelo próprio autor para o teatro. São sete os romances, dos quais se destacam
L'esclusa ("A excluída"), escrito em 1895 e publicado apenas em 1901; Il fu Mattia
Pascal ("O falecido Mattia Pascal"), escrito em 1904 e I vecchi e i giovani ("Os
velhos e os jovens"), escrito em 1908, publicado em 1913.
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Quanto à obra teatral, pelo que é mais conhecido, são cerca de 40 peças, reunidas
sob o título geral de Maschere nude ("Máscaras nuas"). As principais são escritas:
em 1917: Così è se vi pare ("A verdade de cada um"); Il piacere dcll'onestà ("O
prazer da honestidade") ;Il berretto a sonagli ("O barrete de guizos"); em 1918, Il
giuoco delle parti ("O jogo dos papéis"); em 1920, Tutto per bene ("Tudo pelo
melhor"); em 1921, Sei personaggi in cerca d'autore ("Seis personagens à procura
de um autor"); em 1922, Enrico IV ("Henrique IV"); Vestire gli ignudi ("Vestir os
nus"); 1924, Ciascuno a suo modo ("Cada qual a seu modo"); 1930, Questa será si
recita a soggetto ("Esta noite improvisamos"); 1932, Trovarsi ("Achar-se"). Cabe
ainda mencionar os "mitos", no final de sua vida: La nuova colônia ("A nova
colônia"), de 1928; I giganti della montagna ("Os gigantes da montanha"), obra de
1936, interrompida por sua morte.
6 - A OBRA DE LUIGI PIRANDELLO
A obra de Pirandello é farta e diversificada: só no gênero narrativo – produção
anterior a 1917–, são mais de 300 novelas – fato que é esquecido, em geral, graças a
seu prestígio como dramaturgo. Mas será exatamente por essa última faceta (a
escrita dramática) que ele se tornará mais conhecido e lembrado.
A trama das obras narrativas centra-se, em geral, na Sicília, com sua situação
sócio-política (também abrangendo a Itália, como um todo) – que se constitui em
espelho amplificador da situação mundial – alimentada pela cobiça, exploração,
opressão e injustiça. A miséria, a exclusão social, os costumes também compõem o
cenário das obras, de tal modo que o estado de insatisfação é levado ao absurdo.
Acrescente-se a todo esse conjunto o peso da sociedade siciliana, de dependência
total, o que vai gerar o estado de imobilização total das personagens, nas obras.
Pirandello, tal qual o seu contemporâneo Ítalo Svevo, não chega a
sensibilizar-se pelo sujeito em si, ou pelo objeto em si, mas pela consciência da
relação entre os dois. A sua temática articula-se no eu e o mundo, pelo duplo
aspecto: social e existencial. É, nesse aspecto, um "antecipador" do homem
contemporâneo, imerso em angústia e desacerto face ao mundo – idéia que se
tornará mais precisa a partir de 1925, com Kafka, Joyce e Musil.
A OBRA TEATRAL: No começo do século XX, a dramaturgia italiana era
dominada pelo teatro burguês, baseado na comédia de costumes. Mas há quem diga
que a comédia é uma situação trágica não levada às últimas conseqüências: parece
ter sido essa a percepção de Pirandello, que aceitou o desafio de radicalizar o teatro,
até o paroxismo.
O germe da obra teatral de Pirandello está, certamente, nos romances e
contos por ele escritos. No entanto, embora a sua narrativa seja enquadrada nos
moldes tradicionais de escrita, o mesmo não se pode dizer de seu texto teatral, que se
oferece transgressor e, até certo ponto, demolidor. O exemplo mais contundente
talvez seja Sei personaggi in cerca d'autore ("Seis personagens à procura de um
autor"), paródia do teatro burguês do século XIX, do qual o autor destrói as bases.
As seis personagens, que os atores não conseguem "representar", vivem
realmente seu drama no palco – o que significa a destruição da ilusão teatral e de sua
capacidade de "representação" – e regressam ao nada de onde surgiram (destruição
do desfecho). A peça, ao subir o pano, tem sua ação anterior à cena primeira –
destruição da ação dramática –, mas tudo ainda está "por ser feito" – o que significa
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a destruição da obra/ação acabada. Assim, em um jogo de espelhos, Pirandello faz
com que a ficção teatral e a realidade se entrelacem, de tal modo que o espectador
não saberá onde uma acaba para começar a outra: qual a imagem real, qual não –
essa é a grande indagação.
A grande questão posta pelo teatro pirandelliano é o da autenticidade: é
impossível viver em estado de sinceridade perante o mundo, o que termina por gerar
uma dilaceração do "eu", incapaz de coadunar as duas cenas: o "eu" e o mundo. Ao
mesmo tempo, há uma tomada de consciência da desagregação do mundo, que é a
causa da infelicidade – a dor resulta da consciência da dor, segundo Schopenhauer.
A renúncia ao "eu" termina, pois, no não-ser, no aniquilamento. Não sem razão a
obra de Pirandello é marcada por uma nostalgia, apenas restando ao homem a morte.
Ou o prazer, advindo da obra de arte – espécie de ilha, capaz de também ser tragada
pelo "mar", como ocorre em Nuova colonia.
As personagens pirandellianas são tomadas por uma espécie de vertigem
desesperada de autodestruição, encerradas em sua própria solidão e no seu não-ser,
demonstrando uma incapacidade de comunicar-se. Mas como se achar, a si mesmo?
A saída é a ficção, que compense a alienação e o desespero. É assim que este "eu
fictício" permite conciliar o seu "eu autêntico" com o "eu social", com a "máscara";
ou, ainda, através do "eu fictício" aproximar-se, cada vez mais e no possível, do "eu
autêntico".
O peso dessa sociedade traz o infortúnio geral e faz eco com o peso da
História, deixando a todos sem saída. Os mais velhos, em geral, se imobilizam no
passado, não se contaminando; os mais novos, por sua vez, não encontram solução
nem no plano individual, nem no social, de modo que acabam com um ato de
renúncia, sem ao menos o consolo de retorno ao passado: imobilização geral, que se
reflete na estrutura circular de suas histórias. De certo modo, tendo-se desmoronado
as certezas do Positivismo, os intelectuais – principalmente os mais jovens – não
têm nada a se apegar, daí nascendo o sentimento de solidão, que desencadeia a busca
de si e de um refúgio na subjetividade.
Não se pode negar a influência que Pirandello exerceu e exerce sobre o teatro
moderno: o deliberado propósito de buscar a lucidez, em um mundo marcado cada
vez mais pela dissolução do sujeito e pela falsificação existencial, pela crise e pela
dilaceração, talvez sejam os motivos para que o autor tenha-se tornado uma
referência da literatura mundial na modernidade.
7 - AS DUAS VIDAS DE MATTIA PASCAL. O FILME E O LIVRO.
INTERTEXTOS
Imagine-se levando uma vida absolutamente aborrecida. Com uma mulher
chata e uma sogra insuportável. Com um emprego inútil. Numa minúscula e
inexpressiva cidade. Então morre sua mãe, pobre velhinha, seu último vínculo
afetivo sobre a face da terra. Você pensaria em suicídio?
Talvez não tenha coragem de se atirar nas águas barulhentas que banham sua
cidade. Talvez prefira uma morte rápida sobre os trilhos ferroviários. Mas, a
caminho deste sacrifício final, você contempla um trem parado na estação local e
constata que ele não se parece de modo algum a um carrasco. Suas janelas
iluminadas, cada uma exibindo personagens em movimento, como se um trem não
passasse de uma fila de telas de cinema, são o suficiente para que seu desejo de
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morte se transforme num desejo de viagem (e viajar não seria morrer
momentaneamente aqui para ressuscitar logo depois em algum outro lugar?).
Chegando ao seu destino desconhecido, você procura sensações desconhecidas.
Meio por acaso, acaba entrando num cassino e, em poucos dias, já é o feliz
possuidor de uma valise repleta de dinheiro. Você foi, viu e venceu. O novo e o
desconhecido, que da sua cidadezinha natal pareciam monstros ameaçadores, não
mais o assustam. Agora, você se sente um novo homem. Com a sua inseparável
maleta de dinheiro, deve voltar à casa como um vitorioso.
Mas imagine-se agora chegando de volta. Há um enterro na cidade. Todos os
seus amigos e parentes seguem o cortejo. Você não consegue adivinhar quem é o
defunto, já que todos que lhe vêm à cabeça seguem o caixão. Mas, curioso e
prevenido, observa tudo de longe. Imagine então (e não deixe de imaginar) que, ao
chegar ao cemitério, você descobre que o cadáver chorado é o seu! Sim, todos
pensam que você morreu! Você, que há poucos dias pensava em suicídio e agora
tem uma valise preciosa nas mãos. Você olha para seus amigos e parentes (sua
mulher está em prantos, quem diria?) e olha para a valise. E então você descobre que
está livre de tudo aquilo que era motivo de aborrecimento. Que, com sua presumida
morte e com todo o dinheiro que agora possui, você tem tudo para começar uma
nova vida, num novo lugar, com um novo nome. Agora, me diga, não é ótimo
imaginar tudo isso?
Pois esta história imaginosa foi escrita por Luigi Pirandello em 1904, sob o
título de O Falecido Mattia Pascal e pode ser assistida, no cinema ou no vídeo,
numa versão atualizada dirigida pelo italiano Mario Monicelli chamada As Duas
Vidas de Mattia Pascal (Le Due Vite di Mattia Pascal), de 1985. A identificação do
público com o protagonista, interpretado pelo sempre competente Marcelo
Mastroianni, não é difícil, graças a possibilidade de começar uma segunda vida,
desejo que quase todos tivemos, temos ou teremos algum dia.
A história, porém, não termina por aí. Novas aventuras e desventuras (e estas
últimas serão maioria) acompanharão Mattia Pascal, que passará a chamar-se
Adriano Meis mas que depois de algum tempo voltará ao seu velho nome. Se o
personagem do livro de Pirandello possui espírito suficiente para elaborar, entre
outras, a teoria de que o mundo seria mais feliz sem Copérnico (o que pode até nem
ser verdade mas que demonstra claramente a erudição e o raciocínio apurado do
Mattia Pascal literário), já o protagonista do filme não passa de um medíocre
vivente, possuidor de um intelecto nada avantajado. Isto explicaria seu insucesso na
nova vida, fugindo um pouco da concepção original de Pirandello. De qualquer
maneira, o tema central, do paradoxo entre a essência e a aparência do homem,
continua presente em As Duas Vidas de Mattia Pascal.
Mario Monicelli, autor de filmes marcantes como Os Companheiros e O
Incrível Exército Brancaleone, com sua narrativa simples e sóbria, chega por vezes a
decepcionar. As brincadeiras com a linguagem cinematográfica que aparecem no
início de As Duas Vidas de Mattia Pascal (por exemplo: Mattia lembra-se que um
personagem já havia morrido e ele instantaneamente desaparece do flashback) são
apenas um aperitivo para um banquete que não é servido. Felizmente o consagrado
argumento é forte o suficiente para manter o interesse do espectador.
A história de Mattia Pascal é recheada de sutilezas, algumas pouco
exploradas na versão cinematográfica, como a significativa presença do jogo em sua
vida alternativa (que também não passa de um jogo), outras muito bem marcadas,
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como a escolha de um novo nome. Adriano Meis é um produto híbrido originado da
soma do nome do imperador Adriano, um vitorioso, com o sobrenome de um
comerciante de caixões, aludindo não só à origem da nova identidade mas também
ao fracasso a que estava destinada.
Muitos espectadores talvez, por não terem lido o livro, ao final do filme, já
desiludidos com o destino do protagonista com o qual se haviam identificado,
poderão lançar dúvidas sobre a verossimilhança de tal história. Para responder a isto,
ninguém melhor que o próprio Luigi Pirandello, Prêmio Nobel de Literatura em
1934: "a vida, graças a todos os deslavados absurdos, pequenos e grandes, de que se
acha tranqüilamente repleta, tem o inestimável privilégio de poder eximir-se daquela
estupidíssima verossimilhança, à qual a arte considera seu dever obedecer".
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Arte poética. São Paulo: Martins Claret, 2003.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem – 8ª ed. – São Paulo –
Hucitec – 1997.
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um estudo literário e da filosofia da linguagem.