A LITERATURA PIRANDELLIANA NO CINEMA: UM ESTUDO LITERÁRIO E DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM. Ivo DI CAMARGO Junior (PG - UFSCar – SP) ISBN: 978-85-99680-05-6 REFERÊNCIA: DI CAMARGO Junior, Ivo. A literatura pirandelliana no cinema: um estudo literário e da filosofia da linguagem. In: CELLI – COLÓQUIO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS. 3, 2007, Maringá. Anais... Maringá, 2009, p. 485494. 1 - INTRODUÇÃO: Analisar filmes não é uma das tarefas mais fáceis, mas pode-se dizer que é uma arte muito gratificante. Analisa-lo lingüisticamente então é uma procura de minúcias e detalhes escondidos nas malhas textuais, porque, o filme é sim, uma forma de texto e sendo tratado como tal, esconde em suas cenas as particularidades que dão sentido e continuidade à obra. Dando seguimento a uma série de trabalhos e pesquisas a respeito da análise lingüística de cinema, com base nos pressupostos teóricos da Lingüística Textual para o resgate da intertextualidade como forma de coerência e enriquecendo esta pesquisa utilizando as teorias dialógicas do pensador russo Mikhail Bakhtin, analisaremos aqui o filme “As duas vidas de Mattia Pascal” (1985), do diretor Mario Monicelli e tentaremos demonstrar as intertextualidades que nos levam a perceber um rico dialogo entre a cena, as descrições da obra literária e o mundo criado pelo escritor e representado pelo diretor encerrados no filme. Neste trabalho procuraremos analisar com afinco este filme e traçar assim um paralelo entre o filme e seus intertextos mais perceptíveis que são a obra literária que o inspirou, as nuances da personagem do livro e as do filme e o universo criado por autor e diretor auxiliando a criação de sentido no texto fílmico. 2 - A TEXTO E O FILME Parece ser possível dizer que desde, pelo menos, a Antigüidade Clássica, o texto é um objeto de discussão teórica. O debate entre Platão e os sofistas, por exemplo, 485 parecia girar em torno da questão textual, num certo sentido. Preocupado com uma linguagem que refletisse uma razão ideal, Platão acusava os sofistas de construírem um texto falacioso, que não refletia a verdade das coisas. Nesse sentido, a questão da relação entre linguagem e verdade poderia ser vista como uma questão de coerência e, portanto, textual. De fato, tanto Platão quanto Aristóteles, nesses momentos, estão colocando em discussão a linguagem em uso, em processo e, especialmente, os efeitos de sentido que essa linguagem provoca através dos textos em que é veiculada. Estava em jogo o poder de persuasão da linguagem, o poder, supostamente, de manipulação de realidades (também supostas), o poder poético, mimético, o poder, enfim, de a linguagem simbolizar discursivamente. O filme As duas vidas de Mattia Pascal é um bom exemplo de como o texto fílmico pode se adequar às teorias da Lingüística Textual. Em um filme em que as imagens e os diálogos entre personagens não escondem a verdade, mostram suas virtudes e vilanias o texto presente na obra tenta levar o espectador a adquirir a verdade guiando-o ao drama sofrido pela personagem em seu martírio quando da sua perda de identidade. O filme nos leva a sentir o que a personagem sente através da abstração ou pelas imagens, ou pelos diálogos ou pelas canções que contém o sentido que o texto tenta nos passar. Desta forma atente para Koch: Desta forma, o texto deixa de ser entendido como uma estrutura acabada (produto), passando a ser abordado no seu próprio processo de planejamento, verbalização e construção. (Koch, 2000, p.21) O filme não nos dá uma forma acabada de compreensão e sim um conjunto de sentidos vários que ao serem agrupados determinam a construção de um sentido total e por conseguinte, da realização da verdade da obra. Assim, a busca pela verdade nos mais diversos textos, que vêm desde os gregos até nossos dias, pode ser conseguida através do que Bakhtin chamou de Dialogismo. O texto não é um texto único, um monólogo, sem referenciais. O texto é uma forma de construção pluricultural, em nosso caso um relato do cotidiano da vida na Itália e repleto de mensagens implícitas. Vejamos novamente Koch: Um texto se constitui enquanto tal no momento em que os parceiros de uma atividade comunicativa global, diante de uma manifestação lingüística, pela atuação conjunta de uma complexa rede de fatores de ordem situacional, cognitiva, sociocultural e interacional, são capazes de construir, para ele, determinado sentido. (Koch, 2000, p.25). Como se pode ver, a realidade que cerca o texto cria-lhe o sentido. Buscaremos agora os elementos que dão sentido ao filme As duas vidas de Mattia Pascal. 3 - O PENSAMENTO DE BAKHTIN PARA ENTENDER O TEXTO FÍLMICO Todorov, no prefácio da Estética da Criação Verbal, define Bakhtin como uma das figuras mais múltipla e enigmática da cultura européia de meados do século XX. Procurando romper com a concepção de homem que adquire uma linguagem ideal, pronta e acabada, e com a dicotomia que toma a linguagem como forma e conteúdo, Bakhtin concebe um homem que dialoga com a realidade por meio da linguagem. Este 486 teórico provoca fascínio, talvez, pela sua capacidade de ver o mundo, o homem e a linguagem como sendo partes de um mesmo processo dialético. As concepções de Bakhtin exigem do leitor um olhar múltiplo sobre o mundo e sobre o outro. Trata-se de uma teoria que vê o mundo a partir de ruídos, vozes, sentidos, sons e linguagens que se misturam, (re) constroem-se, modificam-se e transformam-se. Dentro desse burburinho, a palavra assume papel primordial, pois é a partir dela que o sujeito se constitui e é constituído. Para pensar a palavra a partir dessa perspectiva, faz-se necessário considerar o direito e o avesso não como partes distintas, mas como elementos que se complementam por meio de uma relação dialógica. A partir dos anos de 60 e 70, quando os trabalhos do teórico russo foram amplamente divulgados no mundo ocidental, verificamos que é impossível não se curvar frente as mais variadas direções e embasamentos que sua obra influenciam no mundo desde então. Os mais variados estudos a respeito da linguagem e da intertextualidade presente nas obras em geral dão testemunho à força do pensamento do estudioso russo. Sua obra tem o poder de promover a linguagem humana ao patamar de interação social, ligar o conhecimento humano e penetrar nas fundamentações ideológicas. Tratando do papel da consciência individual e da palavra na formação das ideologias, Bakhtin apresenta uma série de reflexões no sentido de facilitar nossa compreensão sobre a importância dos processos de interação semiótica dos grupos sociais. Essa cadeia ideológica estende-se de consciência individual em consciência individual, ligando umas às outras. Os signos só emergem, decididamente, do processo de interação entre uma consciência individual a uma outra. E a própria consciência individual está repleta de signos. A consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, conseqüentemente, somente no processo de interação social. (Bakhtin, 1997, p. 34). Para Bakhtin, o signo além de constituir uma grande pureza ideológica na manutenção das relações sociais e do dialogo, serve ainda de suporte para todo e qualquer signo não-verbal, sendo este também entendido como signo ideológico. Naturalmente, as relações dialógicas que se encontram dentro de um determinado texto estão intimamente ligadas por uma ideologia que as mantém dentro de um mesmo padrão de coerência e de sentido. Para que possamos ter um maior entendimento de como as teorias de Bakhtin encontram se atualizadas dentro do ínterim no qual nos debruçamos, recorreremos agora a uma de sua obra mais expressiva. Segundo o autor: O psiquismo subjetivo é o objeto de uma análise ideológica, de onde se depreende uma interpretação sócio-ideológica (...) O que faz da palavra uma palavra é sua significação. O que faz da atividade psíquica uma atividade psíquica é, da mesma forma, sua significação.(idem, p. 48-49). Em sintonia com o teórico russo, podemos afirmar que qualquer reflexão em que se vise a palavra só ganha sentido e importância se a linguagem for considerada em sua perspectiva pragmática, ou seja, como o lugar mais indicado para a manipulação de 487 valores sociais. Neste caso perceberemos a afinidade entre a teoria e o objeto de nosso estudo, pois o protagonista do filme encontra-se em uma encruzilhada ideológica onde seu grande domínio da palavra e da ideologia o fez entrar num mundo de crescente contradição. Seu psiquismo foi duramente abalado por uma falta de controle ideológico. O dialogismo é o permanente diálogo entre os diversos discursos que configuram uma sociedade, uma comunidade, uma cultura. A linguagem é, portanto, essencialmente dialógica e complexa, pois nela se imprimem historicamente e pelo uso as relações dialógicas dos discursos. A palavra é sempre perpassada pela palavra do outro. Isso significa que o enunciador, ao construir seu discurso, leva em conta o discurso de outrem, que está sempre presente no seu. Diante do exposto até o momento, pensamos poder garantir que o cinema representa uma instância privilegiada de relações intertextuais, de construção ideológica e interação social, devido ao inter-relacionamento das mais variadas modalidades de signos – sistematizados, não apenas pela palavra, mas, igualmente, pelo som e pela imagem - na constituição de seu produto final, o texto fílmico. 4 - A SÉTIMA ARTE E A PRÁTICA SOCIAL Poucos anos após a sua criação e eleição como Sétima Arte - ao lado das artes plásticas (pintura, escultura e arquitetura), da literatura, do teatro, da música, da dança e da fotografia – o cinema adotou a narrativa como estrutura, iniciando, automaticamente, a comercialização da nova tecnologia. No lugar de breves registros de cenas do dia-adia, seus pioneiros voltavam-se para a elaboração de conceitos variados que possibilitassem a representação de fatos reais em forma de histórias da vida humana. Como fator de desenvolvimento do cinema várias técnicas foram surgindo com o propósito de atribuir mais sentido ao “enunciado” fílmico e ampliar o campo de visão e interpretação da realidade proposta pela narrativa. Dentre os procedimentos adotados temos, por exemplo: 1) o uso da edição (arranjo das seqüências na tela, ou seja, montagem cinematográfica); 2) o fade-out (método de transição ou fechamento que provoca o desaparecimento gradual da imagem); 3) o lap-dissolve (sobreposição gradual de uma nova imagem); 4) a adoção do som e da cor na tela do cinema; 5) a substituição do “ator” por “gente de verdade” (filmes neo-realistas); 6) cenas externas vs filmagens de estúdios; 7) a adoção da noção de gênero no cinema; 8) maior atenção para a composição das tomadas – mise-en-scène - do que para a sua combinação - montagem (com vistas à valorização do movimento dos elementos cinematográficos, do posicionamento de figuras e cenas pela câmera, da iluminação, do foco de profundidade etc.). Com a aplicação das primeiras técnicas, o cinema estava voltado mais para a forma do que para o conteúdo em si. A partir da adoção do som e da cor, além da implementação de novas técnicas, os cineastas, muitas vezes, buscaram aumentar a noção de realidade, passando a explorar mais significativamente o enredo e impingindo maior complexidade às expressões psicológicas das personagens. Por outro lado, a adoção das noções de gênero e de autor provocou o estabelecimento de uma relação mais forte entre o cinema e o espectador, dando origem ao chamado filme popular. A trajetória nem sempre coerente da Sétima Arte acabou estendendo para outras áreas de pesquisa - a antropologia, a lingüística, a semiótica, e, mais tarde, a psicologia as fundamentações dos teóricos, dando início aos estudos sobre cinema, fato esse discutido, por exemplo: 488 Finalmente, e numa outra configuração, alguns teóricos do cinema de autor afastaram-se de suas fundamentações nos modos literários e estéticos de análise, abraçando a lingüística, a antropologia e a semiótica. Este é um dos primeiros indícios do futuro dos estudos sobre cinema, que gradativamente tornou-se alvo da aplicação de teorias desenvolvidas em outras áreas. O elemento comum entre a lingüística e a antropologia era o grupo de teorias abrigado sob a denominação de estruturalismo. O estruturalismo admite que os filmes sejam feitos por cineastas, mas nos lembra que os cineastas são “produzidos” pela cultura. Assim, a teoria estruturalista tem sido muito útil em reassociar o cinema com a cultura que ele representa. Também proporcionou meios de perceber o cinema como um conjunto de linguagens, um sistema para criar significados, aprofundando desta maneira nossa compreensão desse meio de comunicação. Turner (1997, p. 46): A publicação de artigos sobre cinema, na década de 60, em diferentes meios de comunicação, a preocupação em adequar o cinema a um público mais jovem nessa mesma época, a criação dos primeiros cursos de cinema em nível superior, o lançamento de revistas e periódicos especializados, enfim, o aumento de conhecimento acerca desse novo fazer artístico, promoveu um maior interesse por parte dos pesquisadores acadêmicos pelos diferentes aspectos que compõem a arte cinematográfica. Por outro lado, as pesquisas passaram a estimular maior cuidado em relação à elaboração do texto fílmico por parte de seus produtores, roteiristas e, especialmente, de seus diretores. O conjunto das variadas abordagens voltadas para a arte cinematográfica deu origem ao campo denominado estudos culturais, os quais não se restringiam apenas à análise do cinema, mas passaram a se preocupar, igualmente, com o entendimento sobre “a função, as práticas e os processos culturais”, a partir de análises sobre “os meios pelos quais os significados sociais são gerados pela cultura...”. (Turner, 1997, p. 48). 5 - PIRANDELLO: BREVE BIOGRAFIA Pirandello nasceu na cidade de Chaos, perto de Girgenti (hoje, Agrigento), no dia 28 de junho de 1867, de uma família rica, que explorava minas de enxofre. O pai Stefano, um aventureiro, havia lutado junto com Giuseppe Garibaldi e, durante a campanha pela unificação italiana, tornou-se amigo de Rocco Ricci Gramitto, com a irmã de quem viria a se casar (Caterina). Passaram a viver em Agrigento, cidade monótona e religiosa, até que veio a epidemia de cólera: nesta ocasião, enviou a mulher para o campo – para a aldeia de Chãos, onde Luigi nasceu. Iniciou seus estudos em Palermo. Os primeiros passos foram feitos em casa e, mais tarde, ainda criança, passou a freqüentar a escola técnica e, depois, foi para o ginásio Empédocles. Ia constantemente à Biblioteca Pública da cidade, onde teve oportunidade de dedicar-se à leitura, principalmente à literatura italiana. Um fato, porém, o marcou: ao descobrir uma aventura amorosa de seu pai, decidiu não mais lhe dirigir a palavra. Assim, quando a família voltou a viver em Agriento, Luigi ficou em Palermo, residindo na casa de um de seus colegas. Foi nessa ocasião que se apaixonou por Lina, irmã de seu colega, sendo ela quatro anos mais velha que ele – 489 ele, apenas um adolescente. Também nessa ocasião se tornou poeta, tanto mais porque se afastara da amada, vivendo, agora, na casa e sua tia Sara. Com o tempo contraiu noivado com Lina, mas precisava da petição oficial de seu pai, como era costume da época. Mas Stefano expressou a sua contrariedade face ao casamento, devendo, pois, concluir os estudos antes de se casar. Decepcionnado, voltou a Palermo, aí iniciando, inclusive, seus estudos universitários – ingressou na Faculdade de Letras, em 1887. Um ano depois, passou a viver em Roma, onde ingressou no curso de Letras da Universidade de Roma. Por causa de uma querela com o latinista Onorato Occioni, transferiu-se de Roma para a Universidade de Bonn, em 1889, onde obteve diploma (em 1891), em Filologia Românica, com uma tese dialetológica – Sons e evolução fonética do dialeto de Agrigento. O distanciamento agravara as suas relações com a noiva, Lina, e, depois de formado, viajou a Palermo, onde rompeu o noivado. Já em Roma, em 1893, recebeu de seu pai uma carta, com proposta de casamento. Stefano queria uni-lo a Maria Antonietta Portulano, filha de um milionário, a quem se associara. O casamento realizou-se em 1894, com plena concordância dos noivos. Em seis anos, o casal teve três filhos: Stefano, Lietta e Fausto. O dote de Antonietta – cerca de 70 mil liras – foi aplicado pelo pai do escritor numa mina de enxofre e seus rendimentos permitiram que o casal tivesse uma vida folgada por algum tempo. Mas, em 1897, uma inundação veio a destruir a mina, causando a ruína financeira de Luigi, que chegou, então, a pensar em suicídio. Esse acontecimento ainda seria desastroso por um outro aspecto: exasperou o ciúme doentio de Antonietta, fazendo-a mergulhar em uma loucura da qual não mais sairia. Luigi viveria ao lado da esposa até 1919, data em que ela foi definitivamente internada, após inúmeras crises. Após a ruína, ele passou a ganhar a vida na situação de professor de Literatura Italiana, em Roma, ou dando aulas particulares. Complementava a vida, modesta, com a atividade literária. Foi por essa atividade que se tornou célebre, alcançando, depois, o renome internacional, consagrado, em 1934, pelo prêmio Nobel de Literatura. Pouco depois, a 10 de dezembro de 1936, faleceu, tendo deixado sua vontade expressa, em testamento, para ser cremado e que suas cinzas fossem dispersadas pela cidade onde nasceu, "para que nada subsistisse". Dotado de grande sensibilidade, sua obra reflete os traumas causados especialmente pelo pai – com quem tinha relações difíceis – e pela loucura de Antonietta. Não sem razão, boa parte de sua obra é dedicada às alterações de personalidade. Alguns nomes também o influenciaram, como os filósofos Bérgson e Schopenhauer. Além disso, a própria situação de vida o impeliu a defrontar-se com a sociedade siciliana, com suas normas constritivas: talvez isso explique o motivo para uma de suas temáticas principais ser a oposição entre o "eu" e o mundo. A produção literária de Pirandello é de grande abundância. A narrativa desenvolveu-se antes de 1917, vindo a abarcar cerca de 300 novelas (reunidas, sugestivamente, sob o título Novelas por um ano). Muitas delas foram adaptadas pelo próprio autor para o teatro. São sete os romances, dos quais se destacam L'esclusa ("A excluída"), escrito em 1895 e publicado apenas em 1901; Il fu Mattia Pascal ("O falecido Mattia Pascal"), escrito em 1904 e I vecchi e i giovani ("Os velhos e os jovens"), escrito em 1908, publicado em 1913. 490 Quanto à obra teatral, pelo que é mais conhecido, são cerca de 40 peças, reunidas sob o título geral de Maschere nude ("Máscaras nuas"). As principais são escritas: em 1917: Così è se vi pare ("A verdade de cada um"); Il piacere dcll'onestà ("O prazer da honestidade") ;Il berretto a sonagli ("O barrete de guizos"); em 1918, Il giuoco delle parti ("O jogo dos papéis"); em 1920, Tutto per bene ("Tudo pelo melhor"); em 1921, Sei personaggi in cerca d'autore ("Seis personagens à procura de um autor"); em 1922, Enrico IV ("Henrique IV"); Vestire gli ignudi ("Vestir os nus"); 1924, Ciascuno a suo modo ("Cada qual a seu modo"); 1930, Questa será si recita a soggetto ("Esta noite improvisamos"); 1932, Trovarsi ("Achar-se"). Cabe ainda mencionar os "mitos", no final de sua vida: La nuova colônia ("A nova colônia"), de 1928; I giganti della montagna ("Os gigantes da montanha"), obra de 1936, interrompida por sua morte. 6 - A OBRA DE LUIGI PIRANDELLO A obra de Pirandello é farta e diversificada: só no gênero narrativo – produção anterior a 1917–, são mais de 300 novelas – fato que é esquecido, em geral, graças a seu prestígio como dramaturgo. Mas será exatamente por essa última faceta (a escrita dramática) que ele se tornará mais conhecido e lembrado. A trama das obras narrativas centra-se, em geral, na Sicília, com sua situação sócio-política (também abrangendo a Itália, como um todo) – que se constitui em espelho amplificador da situação mundial – alimentada pela cobiça, exploração, opressão e injustiça. A miséria, a exclusão social, os costumes também compõem o cenário das obras, de tal modo que o estado de insatisfação é levado ao absurdo. Acrescente-se a todo esse conjunto o peso da sociedade siciliana, de dependência total, o que vai gerar o estado de imobilização total das personagens, nas obras. Pirandello, tal qual o seu contemporâneo Ítalo Svevo, não chega a sensibilizar-se pelo sujeito em si, ou pelo objeto em si, mas pela consciência da relação entre os dois. A sua temática articula-se no eu e o mundo, pelo duplo aspecto: social e existencial. É, nesse aspecto, um "antecipador" do homem contemporâneo, imerso em angústia e desacerto face ao mundo – idéia que se tornará mais precisa a partir de 1925, com Kafka, Joyce e Musil. A OBRA TEATRAL: No começo do século XX, a dramaturgia italiana era dominada pelo teatro burguês, baseado na comédia de costumes. Mas há quem diga que a comédia é uma situação trágica não levada às últimas conseqüências: parece ter sido essa a percepção de Pirandello, que aceitou o desafio de radicalizar o teatro, até o paroxismo. O germe da obra teatral de Pirandello está, certamente, nos romances e contos por ele escritos. No entanto, embora a sua narrativa seja enquadrada nos moldes tradicionais de escrita, o mesmo não se pode dizer de seu texto teatral, que se oferece transgressor e, até certo ponto, demolidor. O exemplo mais contundente talvez seja Sei personaggi in cerca d'autore ("Seis personagens à procura de um autor"), paródia do teatro burguês do século XIX, do qual o autor destrói as bases. As seis personagens, que os atores não conseguem "representar", vivem realmente seu drama no palco – o que significa a destruição da ilusão teatral e de sua capacidade de "representação" – e regressam ao nada de onde surgiram (destruição do desfecho). A peça, ao subir o pano, tem sua ação anterior à cena primeira – destruição da ação dramática –, mas tudo ainda está "por ser feito" – o que significa 491 a destruição da obra/ação acabada. Assim, em um jogo de espelhos, Pirandello faz com que a ficção teatral e a realidade se entrelacem, de tal modo que o espectador não saberá onde uma acaba para começar a outra: qual a imagem real, qual não – essa é a grande indagação. A grande questão posta pelo teatro pirandelliano é o da autenticidade: é impossível viver em estado de sinceridade perante o mundo, o que termina por gerar uma dilaceração do "eu", incapaz de coadunar as duas cenas: o "eu" e o mundo. Ao mesmo tempo, há uma tomada de consciência da desagregação do mundo, que é a causa da infelicidade – a dor resulta da consciência da dor, segundo Schopenhauer. A renúncia ao "eu" termina, pois, no não-ser, no aniquilamento. Não sem razão a obra de Pirandello é marcada por uma nostalgia, apenas restando ao homem a morte. Ou o prazer, advindo da obra de arte – espécie de ilha, capaz de também ser tragada pelo "mar", como ocorre em Nuova colonia. As personagens pirandellianas são tomadas por uma espécie de vertigem desesperada de autodestruição, encerradas em sua própria solidão e no seu não-ser, demonstrando uma incapacidade de comunicar-se. Mas como se achar, a si mesmo? A saída é a ficção, que compense a alienação e o desespero. É assim que este "eu fictício" permite conciliar o seu "eu autêntico" com o "eu social", com a "máscara"; ou, ainda, através do "eu fictício" aproximar-se, cada vez mais e no possível, do "eu autêntico". O peso dessa sociedade traz o infortúnio geral e faz eco com o peso da História, deixando a todos sem saída. Os mais velhos, em geral, se imobilizam no passado, não se contaminando; os mais novos, por sua vez, não encontram solução nem no plano individual, nem no social, de modo que acabam com um ato de renúncia, sem ao menos o consolo de retorno ao passado: imobilização geral, que se reflete na estrutura circular de suas histórias. De certo modo, tendo-se desmoronado as certezas do Positivismo, os intelectuais – principalmente os mais jovens – não têm nada a se apegar, daí nascendo o sentimento de solidão, que desencadeia a busca de si e de um refúgio na subjetividade. Não se pode negar a influência que Pirandello exerceu e exerce sobre o teatro moderno: o deliberado propósito de buscar a lucidez, em um mundo marcado cada vez mais pela dissolução do sujeito e pela falsificação existencial, pela crise e pela dilaceração, talvez sejam os motivos para que o autor tenha-se tornado uma referência da literatura mundial na modernidade. 7 - AS DUAS VIDAS DE MATTIA PASCAL. O FILME E O LIVRO. INTERTEXTOS Imagine-se levando uma vida absolutamente aborrecida. Com uma mulher chata e uma sogra insuportável. Com um emprego inútil. Numa minúscula e inexpressiva cidade. Então morre sua mãe, pobre velhinha, seu último vínculo afetivo sobre a face da terra. Você pensaria em suicídio? Talvez não tenha coragem de se atirar nas águas barulhentas que banham sua cidade. Talvez prefira uma morte rápida sobre os trilhos ferroviários. Mas, a caminho deste sacrifício final, você contempla um trem parado na estação local e constata que ele não se parece de modo algum a um carrasco. Suas janelas iluminadas, cada uma exibindo personagens em movimento, como se um trem não passasse de uma fila de telas de cinema, são o suficiente para que seu desejo de 492 morte se transforme num desejo de viagem (e viajar não seria morrer momentaneamente aqui para ressuscitar logo depois em algum outro lugar?). Chegando ao seu destino desconhecido, você procura sensações desconhecidas. Meio por acaso, acaba entrando num cassino e, em poucos dias, já é o feliz possuidor de uma valise repleta de dinheiro. Você foi, viu e venceu. O novo e o desconhecido, que da sua cidadezinha natal pareciam monstros ameaçadores, não mais o assustam. Agora, você se sente um novo homem. Com a sua inseparável maleta de dinheiro, deve voltar à casa como um vitorioso. Mas imagine-se agora chegando de volta. Há um enterro na cidade. Todos os seus amigos e parentes seguem o cortejo. Você não consegue adivinhar quem é o defunto, já que todos que lhe vêm à cabeça seguem o caixão. Mas, curioso e prevenido, observa tudo de longe. Imagine então (e não deixe de imaginar) que, ao chegar ao cemitério, você descobre que o cadáver chorado é o seu! Sim, todos pensam que você morreu! Você, que há poucos dias pensava em suicídio e agora tem uma valise preciosa nas mãos. Você olha para seus amigos e parentes (sua mulher está em prantos, quem diria?) e olha para a valise. E então você descobre que está livre de tudo aquilo que era motivo de aborrecimento. Que, com sua presumida morte e com todo o dinheiro que agora possui, você tem tudo para começar uma nova vida, num novo lugar, com um novo nome. Agora, me diga, não é ótimo imaginar tudo isso? Pois esta história imaginosa foi escrita por Luigi Pirandello em 1904, sob o título de O Falecido Mattia Pascal e pode ser assistida, no cinema ou no vídeo, numa versão atualizada dirigida pelo italiano Mario Monicelli chamada As Duas Vidas de Mattia Pascal (Le Due Vite di Mattia Pascal), de 1985. A identificação do público com o protagonista, interpretado pelo sempre competente Marcelo Mastroianni, não é difícil, graças a possibilidade de começar uma segunda vida, desejo que quase todos tivemos, temos ou teremos algum dia. A história, porém, não termina por aí. Novas aventuras e desventuras (e estas últimas serão maioria) acompanharão Mattia Pascal, que passará a chamar-se Adriano Meis mas que depois de algum tempo voltará ao seu velho nome. Se o personagem do livro de Pirandello possui espírito suficiente para elaborar, entre outras, a teoria de que o mundo seria mais feliz sem Copérnico (o que pode até nem ser verdade mas que demonstra claramente a erudição e o raciocínio apurado do Mattia Pascal literário), já o protagonista do filme não passa de um medíocre vivente, possuidor de um intelecto nada avantajado. Isto explicaria seu insucesso na nova vida, fugindo um pouco da concepção original de Pirandello. De qualquer maneira, o tema central, do paradoxo entre a essência e a aparência do homem, continua presente em As Duas Vidas de Mattia Pascal. Mario Monicelli, autor de filmes marcantes como Os Companheiros e O Incrível Exército Brancaleone, com sua narrativa simples e sóbria, chega por vezes a decepcionar. As brincadeiras com a linguagem cinematográfica que aparecem no início de As Duas Vidas de Mattia Pascal (por exemplo: Mattia lembra-se que um personagem já havia morrido e ele instantaneamente desaparece do flashback) são apenas um aperitivo para um banquete que não é servido. Felizmente o consagrado argumento é forte o suficiente para manter o interesse do espectador. A história de Mattia Pascal é recheada de sutilezas, algumas pouco exploradas na versão cinematográfica, como a significativa presença do jogo em sua vida alternativa (que também não passa de um jogo), outras muito bem marcadas, 493 como a escolha de um novo nome. Adriano Meis é um produto híbrido originado da soma do nome do imperador Adriano, um vitorioso, com o sobrenome de um comerciante de caixões, aludindo não só à origem da nova identidade mas também ao fracasso a que estava destinada. Muitos espectadores talvez, por não terem lido o livro, ao final do filme, já desiludidos com o destino do protagonista com o qual se haviam identificado, poderão lançar dúvidas sobre a verossimilhança de tal história. Para responder a isto, ninguém melhor que o próprio Luigi Pirandello, Prêmio Nobel de Literatura em 1934: "a vida, graças a todos os deslavados absurdos, pequenos e grandes, de que se acha tranqüilamente repleta, tem o inestimável privilégio de poder eximir-se daquela estupidíssima verossimilhança, à qual a arte considera seu dever obedecer". REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Arte poética. São Paulo: Martins Claret, 2003. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem – 8ª ed. – São Paulo – Hucitec – 1997. ______. Estética da criação verbal –3º ed- São Paulo –2000 – Martins Fontes. BRITO, João Batista de. Imagens Amadas: Ensaios de Crítica e Teoria do Cinema. São Paulo: Ateliê Editorial, 1995. MUNAFÓ, Gaetano. Conoscere Pirandello. 2º ed. Firenze. Le Monnier. 1971. KOCH, Ingedore V. O texto e a construção dos sentidos. 4º ed. – São Paulo: Contexto,2000. PIRANDELLO, Luigi. O Falecido Mattia Pascal. Nova Cultural. São Paulo. 2003. ______. Do teatro no Teatro. Organização e Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1999. TURNER, Graeme. Cinema como prática social. São Paulo: Summus, 1997. 494