No litoral entre o tratamento e o cuidado leigo: sobre a inclusão do sujeito no
encaminhamento para os Serviços Residenciais terapêuticos
Ana Paola Frare
Ana Cristina Figueiredo
A partir de uma política de cuidado em saúde mental que faz a aposta da vida na
cidade como estatuto imprescindível para o tratamento, o Serviço Residencial
Terapêutico (SRT) ou Residência Terapêutica (RT) tem sido uma estratégia
fundamental da Reforma Psiquiátrica Brasileira.
Concebido para ser um dispositivo substitutivo à longa internação, possui
estrutura idêntica a uma casa, deve ser localizado fora do hospital e contar com a rede
de saúde mental para sustentá-lo. O cuidado deve diferenciar-se radicalmente do
hospital, com uma rotina totalmente individualizada para cada morador, esquemas mais
nuançados de gerência do dispositivo e cuidadores que não devem imprimir no cuidado
a marca da enfermagem hospitalar (Figueiredo & Frare 2008). Há, porém, uma
dimensão terapêutica incluída na lógica do serviço. Essa contradição casa/serviço foge
ao escopo do presente artigo, mas indica que há uma política de tratamento que, para
coadunar com a proposta final de uma RT, deve ser explicitada. “Casa ou serviço? Se
for uma casa por que pensar em termos de terapêutica? (...) por que pensar em uma
“equipe” responsável pela casa?” (Cavalcanti e cols. 2006:74).
Assim, localizada no litoral entre o “tratamento” e o “cuidado leigo”, a RT nos
convida a pensar em muitos aspectos da prática em atenção psicossocial e, ancorados na
referência psicanalítica, circunscreveremos a “avaliação de pacientes” para ingresso
nestes serviços.
Como calcular as horas e as especificidades da atenção/cuidado que um sujeito
precisa para morar em uma residência terapêutica?
De um lado, um critério com base no tempo de cuidado que o morador precisa, e
de outro, qual a melhor casa para ele. O que oferecemos na verdade é uma variedade de
outras normas a serem instituídas: regras discutidas entre todos, (vizinhos, a rua, poder
de contratualidade etc.) que determinam um modo de convivência e de conseqüência
para as atitudes. Assim, habitar uma RT é um ponto de partida para que cada um
encontre um novo modo de arranjo subjetivo. Nesta teia a contingência deve ser a regra
fundamental: não há como determinar a priori o que dali vai se decantar. Pode ser uma
construção de família, uma república, ou uma casa de senhoras, etc. Cabe à supervisão
recolher junto aos cuidadores os efeitos da convivência, para que todos se disponham a
acolher o arranjo de cada um.
Em geral, a preocupação maior na avaliação é o que o paciente precisa ter para ir
morar em determinada RT. Mas, fato é que para colocar um morador em uma residência
seja com 4hs ou 24hs de cuidado-dia, há uma aposta delicada que traz conseqüências
importantes para os futuros moradores. Permanecem certas perguntas essenciais, como:
Ele sabe pedir ajuda quando tem algum problema? Sabe telefonar? Consegue pegar um
ônibus sozinho? Que tipo de auxilio de enfermagem precisa? Fala em sair do hospital?
Como esse tema foi tratado com ele? E assim por diante. Mesmo um questionário
minucioso não daria conta de saber o que o paciente precisa.
A avaliação que parte das habilidades adquiridas e das conjecturas feitas sobre o
paciente considera apenas o que o paciente quer, o que ele já faz, e o que, com o
trabalho desenvolvido, poderá vir a fazer.
Chegamos então a uma questão estrutural da avaliação: a concepção de sujeito
que está em jogo quando se aposta na mudança para uma RT. Para a psicanálise o
sujeito não está consistido, não está em consonância ou discordância com uma realidade
material, não é apreensível. É antes um efeito de sua relação com o Outro e com o
objeto. É um efeito de linguagem da qual podemos ter notícias, mas não pode ser
mensurado e nem ajuizado. “O sujeito está, se permitem dizê-lo, em uma exclusão
interna a seu objeto.” (Lacan, 1998:875)
O ideal de inclusão leva então à metodologia de buscar na avaliação algo que dê
garantias, partindo assim, para um inventário de habilidades. O que propomos é um
caminho complementar, em que a noção de sujeito seja um balizador, partindo da sua
relação com o Outro, para que, junto com o paciente, possamos construir uma
indicação. Propomos um trabalho através do estabelecimento de laços sociais, tendo em
mente a pergunta “sair de onde?” e não “pode sair para onde?”. O imperativo passa a ser
o lugar subjetivo, tendo como decantação uma casa pragmaticamente constituída. Mas
como incluir o conceito de sujeito e Outro em uma avaliação? Sem determo-nos na
questão de método, vamos propor alguns elementos a serem cernidos no processo.
Um caminho é considerar o Outro institucional, a alteridade radical que toma
contornos institucionais. Não como ideal de inclusão, ou seja, como Outro que demanda
algo inegociável. Isso quer dizer que não é necessário revestir o paciente com os ideais
da instituição para que o trabalho aponte para saída. Ao invés de assumirmos uma
posição de saber determinando o que é melhor para ele e o que precisa para viver na
cidade, apostamos em uma posição de não saber, e, nesse hiato, poder secretariá-lo em
seus arranjos.
Tomemos um caso como exemplo: Cesar mora em uma instituição de passagem 1
há onze anos, sem qualquer indicação aparente para ali permanecer, e afirma que não
quer sair para uma RT de modo algum. A equipe fica dividida: Por que ele deve sair se
não quer? Aqui é uma instituição de passagem e, portanto, ele tem que sair. No
cotidiano da instituição havia assembléias e um grupo chamado “porta de saída”,
espaços onde reafirmava que o governo tinha que sustentá-lo em um hospital e que não
entendia por que esse “papo” de RT. Até dizia para outras pessoas que era bom ir para
uma casa, mas ele não queria. Nas assembléias, começou a ficar mais clara sua posição:
se era questionado sobre o queria fazer em um determinado evento, no natal, por
exemplo, ele se queixava, perseguido, que quem deveria saber éramos nós (equipe), pois
nós éramos o hospital. Se não perguntávamos nada, reclamava novamente perseguido,
que queríamos fazer com que ele pagasse coisas, e que não queríamos saber a opinião
dele. Se então perguntávamos, novamente o ciclo recomeçava.
O lugar de objeto diante de um Outro invariavelmente perseguidor começou a
ser quebrado quando passamos a operar com o Outro institucional como terceiro, na
figura do Diretor. Primeiro, não poderia mais dormir em um quarto só para ele, pois
existia uma necessidade de vaga. A vinda de outro morador, mais pueril, fez com que
algumas vezes ele saísse para a cidade comprar coisas. Uma possibilidade de separação
totalmente inesperada que só funcionava porque ninguém falava nada. O silêncio
permitia uma perda de consistência do Outro. Segundo, foi dado um tempo para que ele
decidisse para onde gostaria de ir, e algumas pessoas, eleitas por ele, ficariam
responsáveis por ajudá-lo nessa tarefa. Por mais que apresentasse todas as habilidades
possíveis para morar em uma RT de baixa complexidade (4hs de cuidado-dia),
oferecemos uma RT de cuidados permanentes próxima à instituição. Cesar começa a
dizer, quase que conformado, que iria se mudar. A garantia de que se não gostasse
poderia voltar serviu como artifício para que ele se responsabilizasse pela escolha da
casa. No dia da mudança, a equipe continuava apreensiva, pois não acreditava que ele
queria sair mesmo. A pergunta “de onde não quer sair?” serviu para equipe silenciar e
possibilitar sua saída. Hoje na RT, Cesar fez outros laços inesperados e construiu novos
arranjos de suas certezas paranóicas, agora mais diluídas em endereçamentos múltiplos
No caso, a instituição é o CRIS (Centro de Reabilitação e Inserção Social) da Colônia Juliano Moreira no Rio de Janeiro. 1
e mais fáceis de manejar. Na RT, a direção é de não saber por ele, e não compartilhar do
engodo de que sabemos a priori tudo que ele irá fazer ou dizer.
Nesse caso singelo, pudemos traçar uma direção de trabalho: a avaliação não
deve se apoiar no critério de desempenho, mas sim na verificação dos efeitos de uma
indicação a partir de um ‘não saber’.
“Assim, é de outro lugar que não o da Realidade concernida pela Verdade que
esta extrai sua garantia: é da Fala. Como é também desta que ela recebe a marca que a
institui no lugar de ficção” [...] Efeito de retroversão pelo qual o sujeito, em cada etapa,
transforma-se naquilo que era, como antes, e só se anuncia “ele terá sido”, no futuro
anterior”. (Lacan, 1998:822-23)
Referências Bibliográficas
CAVALCANTI, M.T. ; VILETE, L. & SZTANJNBERG, T.K. Casa e/ou
Serviço? O dilema das moradias assistidas e/ou Serviços Residenciais Terapêuticos no
contexto da Reforma Psiquiátrica. Cadernos IPUB, vol. XII nº22, novembro de 2006.
FIGUEIREDO, A.C. & FRARE, A.P. A função da psicanálise e o trabalho do
psicanalista nos Serviços Residenciais Terapêuticos, Revista Latinoamericana de
Psicopatologia Fundamental, vol. XI, nº1, março de 2008, p.82-96.
LACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano.
Escritos. Rio de Janeiro, JZE, 1998.
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