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Câmera, Olho
Que Observa
Camera, eye
that observes
RESUMO – Tendo como referência a câmera, que registra imagens em movimento,
o artigo aponta alguns momentos na história do cinema e do vídeo, em que o
modo de olhar através da máquina modificou o modo de observação da realidade.
Palavras-chave: cinema – olhar – vídeo – câmera.
ABSTRACT – From the camera point of view, that register moving images, the article point out some moments in cinema and video histories, where the way of
look through the machine has changed the way of looking the reality.
Keywords: cinema – look (meaning the visual approaching of reality) – video – camera.
N
o final do século passado, três descobertas contribuíram para
modificar a percepção do homem sobre si mesmo e sobre o
mundo: a invenção do Raio X, as teorias sobre a psique, de
Sigmund Freud, e o nascimento do cinema. As três descobertas referem-se ao olhar, sendo que o cinema sintetiza as duas primeiras: a máquina, câmera que registra a imagem, e a psique, na qual se aloja a matéria-prima para a constituição da obra de arte.
“As folhas se mexem!”, exclamavam maravilhadas as pessoas diante das imagens projetadas numa tela, há mais de cem anos, quando,
pela primeira vez, assistiam numa exibição cinematográfica a folhas se
mexendo e trens chegando fora do tempo e do espaço no qual o evento acontecera. “Os ingênuos recuavam vendo avançar sobre eles o
trem de ‘La ciotat’, filmado por Louis Lumière.”1 Realizada no dia 28
de dezembro de 1895, no Grand Café de Paris, por Louis e Auguste
1
AMENGUAL, 1971, p. 5.
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MARIA THEREZA
AZEVEDO DA FONSECA
[email protected]
Cineasta, doutoranda em artes
cênicas na ECA/USP e professora na
Universidade Metodista de Piracicaba
(UNIMEP), diretora de vídeos para a
educação, entre eles a série Imagens da
Cidade, para o Ensino Fundamental
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Lumière, a primeira exibição de L’arrivée d’un train en gare de la ciotat
comprovava a existência de uma máquina que imprimia em película
imagens estáticas, pequenos fotogramas que, ao serem projetados em
fluxo contínuo através de uma fita celulóide em uma lente iluminada,
criavam a ilusão de movimento.
Essa “câmera mágica”, que faz com que as imagens se mexam,
foi inventada graças a uma aposta de um milionário americano, chamado Leland Stanford, com um amigo: ele sustentava que um cavalo
numa corrida, ao galopar, ficava por alguns instantes com as quatro
patas no ar. Ao provar isso, através das fotografias realizadas por
Edward J. Muybridge, convidado por Stanford a desenvolver um mecanismo que disparasse uma série de câmeras fotográficas dispostas ao
longo de uma pista, estavam criadas as condições para a descoberta da
câmera cinematográfica.2
Depois da primeira sessão, a atração cinematográfica espalhouse por vários países. Salas especiais, com o conforto e o requinte dos
teatros, foram construídas, para que as pessoas pudessem observar o
mundo por intermédio das imagens que se moviam na tela.
Com o aperfeiçoamento das máquinas de filmar e a inclusão do
cinema no ramo do entretenimento, surgiram outras maneiras de trabalhar com a câmera que não apenas como registro do acontecimento
num dado espaço ou num determinado momento, que caracteriza o
gênero documentário.
Georges Méliès foi um dos primeiros a se interessar pelo tratamento não-documental do cinema. Começou a filmar logo após descobrir o invento dos irmãos Lumière e, um dia, por acaso, durante
uma filmagem na Praça da Ópera, em Paris, a película emperrou. Sem
mudar a câmera de lugar, ele recolocou a película e, nesse intervalo, os
pedestres, o ônibus e os carros mudaram de posição. Na projeção,
constatou-se que, no local onde havia ocorrido a parada da película,
o ônibus havia se transformado em carro funerário. Desse episódio,
surgiu a trucagem de substituição, denominada truc à arrêt, que foi utilizada no seu primeiro longa-metragem L’Escamotage d’une Dame
chez Robert-Houdin.
Entusiasmado com a ludicidade do instrumento (nessa época o
cinema não era nem arte nem indústria), ele se tornou um bricolleur
experimentando com máscaras e contramáscaras na lente, fusões, câmeras lentas e aceleradas.
2
Ibid.
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Mas foi com David Wark Griffith, em Nascimento de uma nação
(1915), e, principalmente, com Intolerância (1916), que o cinema começou realmente a desenvolver uma narrativa, valendo-se das novas
possibilidades de movimentar a câmera. Em contraponto à tragédia
clássica, Griffith estabelece a regra dos “três multiplicadores” – lugar,
tempo e ação – e cria a ação paralela.
Olhar o mundo através de uma câmera e transformar esse olhar
em filmes ou vídeos rendeu, ao longo desses mais de cem anos de história, muitos debates e milhares de imagens. “Ver é idealizar, abstrair
e extrair, ler e escolher, é transformar. Na tela, revemos o que a câmera
já viu uma vez: dupla transformação, uma vez que se multiplica, elevada ao quadrado.”3
A pesquisadora Laura Mulvey aponta três diferentes olhares associados ao cinema: o da câmera, que registra o acontecimento prófílmico, o da platéia, quando assiste ao produto final, e o dos personagens, dentro da ilusão da tela. Nesse artigo, o enfoque estará no
olhar da câmera, que registra o acontecimento pró-fílmico. Não há intenção de fazer uma análise aprofundada da questão, mas de mapear
alguns momentos de valorização da câmera, que alteraram os modos
de criação e os de realização dos filmes.
Partirei da compreensão de que toda imagem tem por princípio
a observação, entendendo que esta acontece sob determinado ponto
de vista. Estarei privilegiando as câmeras que experimentaram ou subverteram a estética e a ideologia dominantes. As imagens captadas por
essas câmeras rebeldes influenciaram a produção videográfica da atualidade. É a partir dessas mudanças nos modos de olhar, quando a câmera muda de posição, que ocorre uma relação mais estreita entre a
máquina e o olho que observa. O crítico francês Noel Burch estabelece
para a câmera três funções: a de interlocutor, a de espectador passivo
e a de condutor da ação.
Na realização cinematográfica, o material fílmico transforma-se
a cada etapa, desde a preparação até a pós-produção, num processo de
construção/desconstrução constante. Louis Baudry lembra que “a câmera ocupa ao mesmo tempo uma posição extrema, distanciada tanto
da ‘realidade objetiva’ quanto do produto final, e uma posição
intermediária no processo de trabalho que vai do material bruto ao
produto final”.4
3
4
EPSTEIN in XAVIER, 1991, p. 277.
BAUDRY in XAVIER, 1991, p. 385.
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Nos primeiros filmes, a câmera instalava-se de modo fixo no lugar do observador de platéia. Ao descobrirem o travelling (um operador de Lumière havia colocado espontaneamente a câmera sobre uma
gôndola, em Veneza),5 o inglês James Willianson (Big Swallow) e o
francês Méliès (L’homme à tête de caoutchouc) não imaginavam a potencialidade narrativa desse movimento de câmera.
Quando colocaram a câmera viajando em trens, charretes, gôndolas, etc., perceberam que ela poderia se movimentar assim como
o nosso olhar. A partir desse momento, a movimentação dos atores em
cena, que até então tinha como modelo o teatro, altera-se. Mudam-se
então os modos de narrar e de montar. “Assim, em A última gargalhada (Murnau), a câmera, num vertiginoso travelling para frente, materializa no espaço a trajetória das palavras de uma dona de casa que
grita para uma vizinha os mexericos de um edifício.”6
Quando Sergei Eisenstein, em A linha geral (1929), precipita-se
em travelling com a câmera, avançando para uma vaca, age sob o ponto de vista de um touro no cio; e quando Epstein sobe com a câmera
num carrossel em movimento, assume o ponto de vista das pessoas
sendo levadas pelo movimento da roda.
Abel Gance, do impressionismo francês, amarrava a câmera na
garupa de um cavalo a galope, como se fosse Bonaparte fugindo dos
nacionalistas corsos.7 Gilles Deleuze lembra que neste filme, Napoleão
(1929), Abel Gance “se vangloriava de ter liberado a câmera não só de
seus trilhos terrestres, mas até de suas relações com um homem que a
carrega, para colocá-la sobre um cavalo, lançá-la como uma arma,
fazê-la rolar como uma bola, fazê-la precipitar-se em hélice no mar”.8
Com a câmera, os processos de significação podem se desenvolver segundo: 1) a angulação – o ponto de vista, o lugar onde a câmera
é colocada. Pode ser abaixo, acima ou no nível do objeto observado;
2) os movimentos: panorâmica – a câmera se movimenta sobre seu
próprio eixo; travelling – o eixo também se movimenta; trajetória –
combinação de panorâmica com travelling; 3) os enquadramentos –
definem o que aparece dentro do quadro. Pode-se ver toda a paisagem, em plano geral, metade de uma pessoa, em plano médio, o rosto
de alguém, em close.
5
6
7
8
MARTIN, 1990, p. 31.
Ibid.
Ibid., p. 32.
DELEUZE, 1983, p. 63.
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CÂMERA OLHO
A idéia da câmera como um olho que observa a realidade teve
sua origem no movimento de vanguarda russo, nos anos 20, com o cineasta Dziga Vertov, em O homem da câmera (1929), que preconizava
um cinema revolucionário ancorado no realismo: um cine-olho (kino
glaz), entendido como cinema-verdade (kino pravda), em que a câmera registra os fatos tais como eles ocorrem, sem encenação. Para ele, a
interferência deve ocorrer só na montagem.
Mostrar as pessoas sem máscara, sem maquilagem, ler seus pensamentos desnudados pela câmera era o que Vertov buscava, acreditando no cine-olho como “a possibilidade de tornar visível o invisível
(...) desmascarar o que está mascarado”.9
A câmera de Dziga Vertov estava à procura de uma verdade contida no mínimo gesto, em cada expressão: o homem no seu ambiente.
Ele acreditava que, ao desvendar imagens do cotidiano, a câmera oferece uma possibilidade de compreensão da realidade que o cerca.
Vertov opunha-se ao cinema expressionista alemão, que desfigurava a realidade com enquadramentos oblíquos e luzes projetadas de
baixo para cima, a Sergei Eisenstein, seu compatriota, em Encouraçado Potequim (1925), pela interferência na realidade com encenações
teatrais, e aos filmes de aventura americanos, porque eram “cheios de
dinamismo espetacular”.
Através do Grupo Kinoks, criado por Vertov, manifestos defendiam todas as instâncias da realização cinematográfica em torno de
uma postura de cine-olho: “para ajudar a máquina-olho, existe o piloto Kinok, que não apenas dirige os movimentos do aparelho como
também se entrega a ele para vivenciar o espaço”,10 “um mergulho
vertiginoso de acontecimentos visuais decifrados pela câmera”, numa
proposta de “libertar a câmera reduzida a uma lamentável escravidão,
submetida que foi à miopia do olho humano”.11
O cine-olho, que revela o homem nas ruas, no trabalho, em cenários reais, foi retomado no pós-guerra com o neo-realismo italiano
(anos 40). Influenciou a nouvelle vague francesa (anos 50/60), o cinema novo brasileiro (anos 60) e contribuiu para o fortalecimento de
uma estética peculiar do cinema latino-americano de resistência. E essa
câmera na mão, que percorre o cotidiano da vida em busca de uma
transparência da realidade, definiu um cinema que mescla documenVERTOV in XAVIER, 1991, p. 252.
Ibid.
11 Ibid., p. 253.
9
10
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tário e ficção, como Ladrões de bicicleta (1945), de Vitorio de Sica e
roteiro de Zavattini: a câmera perambula pela cidade, acompanhando
os personagens em suas andanças, captura acontecimentos ao acaso e
os incorpora à narrativa. Zavattini insistia que era preciso “colocar as
câmeras nas ruas, em uma sala, olhar com insaciável paciência, treinar
na contemplação de nosso semelhante em suas ações elementares”.12
Para Zavattini, importava “captar a duração real da dor do homem e de sua presença diária, não como homem metafísico, mas
como o homem que encontramos na esquina e para o qual essa duração deve corresponder a um esforço real de nossa solidariedade”.
O crítico e teórico francês André Bazin percebia no comportamento do neo-realismo um respeito pela integridade fenomenológica
dos fatos, “da desordem amorfa da realidade, que ele tira sua originalidade”.13
Já o surrealismo via o mundo de outra forma. Em Un chien Andalou (1928), Luiz Buñuel, precursor desse movimento estético, em
parceria com Salvador Dali, tornava a câmera captadora de uma outra
dimensão da realidade, da expressão do mundo onírico.
No texto Cinema, instrumento de poesia,14 Buñuel aponta divergências com o neo-realismo:
Para um neo-realista, um copo é um copo e nada mais; nós
o veremos ser tirado do armário, levado à cozinha onde a
empregada o lave e talvez o quebre, o que pode ou não custar-lhe o emprego etc. Mas este mesmo copo visto por seres
diferentes pode ser milhares de coisas, pois cada um transmite ao que vê uma carga de afetividade; ninguém o vê tal
como ele é, mas como seus desejos e seu estado de espírito
o determinam.15
O cinema de Buñuel propunha uma ampliação da visão através
da imagem-sonho, que revela o inconsciente. Já a vanguarda americana dos anos 50 buscava um olhar sensorial que dá à câmera um outro
sentido, ao navegar por formas e texturas. Stan Brakhage, um dos criadores da Vanguarda americana, imagina um “ver” por meio de um
olho que se desloca do corpo:
Imagine um olho não governado pelas leis fabricadas de
perspectiva, um olho livre de preconceitos, de lógica da composição, um olho que não responde aos nomes que a tudo se
12
13
14
15
ZAVATINI, Cesare. Apud: XAVIER, 1984, p. 58.
BAZIN, 1983, p. 258.
BUÑUEL, Luiz in XAVIER, 1991, p. 333.
Ibid.
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dá, mas que deve conhecer cada objeto encontrado na vida
através da aventura da percepção.16
Experiências com texturas em interferências no próprio celulóide, a câmera decodificando o olhar do artista com desfoques e lente
macro para observar, por exemplo, a textura da pele do corpo em formas e movimentos, como uma pintura abstrata, eram realizadas pelo
cinema underground norte-americano.
Produzindo tais ruídos na comunicação do espectador com
o que a câmera “mostra”, ele convida a platéia a ter uma experiência sensorial, organizada dentro de outros parâmetros
e chama a atenção para a textura da tela, como superfície bidimensional, e não como a janela que se abre para um espaço tridimensional.17
Stan Brakhage enfatiza as sensações, em detrimento da narração
ou da montagem; por isso, dá importância à câmera que observa os recônditos lugares que o olho físico não percebe.
Se na vanguarda americana a câmera passeia em primeiríssimos
nebulosos planos, na nouvelle vague francesa ela transpõe os limites
do quadro e mostra o que está fora de campo: a equipe técnica em
ação. Jean Luc Godard, Acossado (1960), um dos principais cineastas
da nouvelle vague, alcança os espaços fora da linha divisória do quadro, como se quisesse revelar, desnudar o processo de construção cinematográfica, fazendo com que o espectador participe da intenção de
quem vê. E os atores, ao falarem diretamente para a câmera, atribuemlhe a função de interlocutora.
No filme Moi, un noir, Jean Rouch dá destaque à câmera interlocutora quando põe os personagens em diálogo com ela; ao invés de
ignorarem a sua presença, relevam a sua existência, ou seja, a existência de um espectador. “É em torno das interações constantemente móveis entre os personagens e os instrumentos que os registram que se articula o desenvolvimento formal de Moi, un noir.”18
No Brasil, experiências com a câmera na mão foram realizadas
pelo cinema novo, principalmente pelo cineasta Glauber Rocha, que
a deslocava com uma mobilidade estonteante. Em Terra em transe, a
câmera se agita mirabolante em torno dos personagens. No filme curto Câncer, Glauber Rocha pega na câmera e experimenta a resistência
dos atores, utilizando como parâmetro o tempo de duração da corda
da câmera.19 Enquanto havia corda, o ator Antônio Pitanga dialogava
16
17
18
BRAKHAGE, in XAVIER, 1991, p. 341.
XAVIER, 1984, p. 102.
BURCH, 1992, p. 143.
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com a câmera, de improviso, num crescendo até a saturação. Para José
Carlos Avelar, é através de procedimentos como esse que “nasce um
cinema direto, com todas as suas tendências e com ele um mundo com
formas narrativas inteiramente novas, introduzindo mudanças no papel da câmera”.20
Essa forma de trabalhar com a câmera apontada para o ator num
tom de provocação está presente nas atuais produções independentes
de vídeo.
Nos anos 60, uma câmera perambulante e observadora ganhou
as ruas periféricas, os vilarejos do interior, o sertão e as ruelas dos morros, no primeiro movimento cinematográfico do Terceiro Mundo: o
cinema novo brasileiro, que tinha por lema a frase, cunhada por Glauber Rocha, “uma idéia na cabeça e uma câmera na mão”. A proposta
cinemanovista era subverter o modelo hollywoodiano de produções
em série e câmeras bem posicionadas nos estúdios, que registravam só
o que estava maquiado dentro do quadro. Esse modelo de cinema
concretizava-se no Brasil através da Companhia Vera Cruz, em São
Bernardo do Campo. “Como pode um autor olhar o mundo embelezado pela maquiagem, iludido com refletores, falsificado com cenografia de papel, disciplinado por movimentos automáticos?”21
Com o cinema novo, a câmera na mão ganhou um sentido de
mobilidade do olho que vê em volta, acima e abaixo, e não só o que
está na frente, num cinema ansioso por revelar o país e compreender
o subdesenvolvimento. No processo de revelação, o cinema novo internalizou a crise brasileira e incorporou o subdesenvolvimento na
própria construção cinematográfica. “O desejo de descobrir, revelar e
discutir o país provocou uma forma cinematográfica, onde a câmera
na mão do realizador via as coisas cara a cara, insegura, interessada,
nervosa, como se estivesse em transe.”22
O chamado cinema de resistência, com cineastas no Brasil como
Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Leon Hirzman, desenvolvia-se também em outros países da América Latina, como na Argentina, com os cineastas Fernando Birri – fundador da Escola Documentarista de Santa Fé e autor do filme Los inundados – e Fernando
Solanas – La hora de los hornos (1966), que encabeçou o movimento
Cine Liberacion –, em Cuba, com Tomas Gutierrez Alea – Memórias
del subdessarrolo (1967) e, mais recentemente, Morango e chocolate
19
20
21
22
Antes da câmera à bateria, usava-se a câmera à corda, que durava sete minutos.
AVELAR, 1985, pp. 3-5.
Ibid.
PEIXOTO, 1993, p. 245.
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(1994) –, e no Chile, com Miguel Littin – El chacal de Nuelthoro
(1968/69).
Essa câmera curiosa registrou para o filme Iracema, de Jorge Bodanski e Orlando Senna, momentos reveladores de acaso, durante
uma viagem pela Amazônia, quando o ator Paulo César Pereio mistura-se às pessoas do lugar, enquanto personagem caminhoneiro, para
desenrolar os depoimentos. Já em Cabra marcado para morrer, Eduardo Coutinho trabalha no tênue limite entre ficção e documentário, ao
emprestar um tratamento diegético aos fatos.
Por outro lado, os filmes norte-americanos, cuja matriz em Hollywood desenvolvera uma fórmula para fazer filmes em série, continuam praticando mirabolâncias com as câmeras, em movimentos que
se assemelham a um parque de diversões, nos chamados filmes de
ação, e nos filmes-catástrofe, em que a câmera se desloca cada vez mais
do seu eixo para filmar desastres, explosões, acidentes, arrombamentos e perseguições, com novos mecanismos, como requintadas gruas
que transportam a câmera, sem a presença do cameraman, para os lugares perigosos.
Nos anos 80, com a facilidade de acesso às câmeras de vídeo que
gravam imagens em fitas magnéticas sem necessidade de passar por
um processo de revelação, os independentes, os artistas e os movimentos populares apropriam-se da câmera. No movimento popular, os observados do cinema novo passam então à condição de observadores:
agricultores, sem-terra, mulheres, índios e negros aprendem a olhar
através da câmera, desmistificando o aparato e realizando seus próprios vídeos. Várias formas de utilização da câmera são desenvolvidas,
seja através do vídeo-processo, em que a câmera é um recurso pedagógico que funciona como memória de um processo, seja pelo vídeoproduto, utilizado para a formação das comunidades envolvidas nos
projetos.
Nos anos 90, a câmera passa a rever sua trajetória, inspirandose nos movimentos ocorridos no século, desde Lumière e Méliès: expressionismo e vanguarda russa, nouvelle vague e Hollywood, documentário e melodrama, numa mistura de gêneros e de formas. Girando em torno da multiplicidade, da diversidade do fragmento, hibridismo que mistura gêneros e formas num caldeirão em busca da síntese.
Às vezes, são imagens fragmentadas, picotadas e quebradas que
invadem as telas. Imagens que fogem do quadro, sem deixar rastros,
em corridas aceleradas que proliferam em quantidades tais que dois
olhos são pouco para observá-las. Outras vezes, imagens ralentadas
num tempo de descoberta, a busca da essência, o registro do mínimo
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gesto, como imaginava Dziga Vertov, do movimento cine-olho. Imagens que se organizam hoje de forma linear ou não-linear, em narrativas ou poéticas, com estruturas abertas, inserindo o espectador na
construção do percurso.
Com o advento do controle remoto e do chamado “efeito zapping” e os múltiplos canais, a câmera passa a buscar outros modos de
olhar, uma certa exploração dos espaços e mentes, tal como propunha
Brakhage.
Imagens desencadeiam emoções e, como numa linguagem multimídia, posso acessar na memória aquelas que me tocaram e construir
um trajeto narrativo. Por exemplo: vejo a imagem de um policial matando um assaltante num shopping, captada por uma câmera-olho de
prontidão; zapando através do controle remoto, capturo em seguida
outra imagem, a de um lindo carro vermelho num comercial; outro
zapping e aparece um grupo de presos assassinados, mais outro e uma
melodramática cena de novela, aperto novamente o botão e vejo as
crianças chacinadas da Candelária e, mais um, um menino comendo
iogurte com o rosto dentro de uma geladeira cheia. O próprio espectador edita as imagens, ao mudar de canal.
Arlindo Machado distingue, nessa linha, duas tendências opostas, embora semelhantes na aparência: “de um lado, as mensagens estariam se deteriorando na direção da inércia absoluta (...) e, de outro,
uma tendência no sentido de buscar modelos de organização mais
complexos, menos previsíveis, mais abertos ao papel do acaso”.23
CÂMERAS VIGILANTES
Nesse final de século, a câmera ganhou também uma outra função: câmeras ligadas em vários pontos do planeta enviam imagens
para outros tantos vários pontos. De observadoras dos fatos, passam
a fazer parte deles, exercendo funções de cumplicidade, testemunha
ou vigilância. As câmeras que vigiam têm espaço garantido nesse cenário “e se distribuem como uma rede sobre a paisagem social”.24
Essas câmeras vigilantes, que Paul Virilio chama “máquinas de vigiar”, estão espalhadas pelos supermercados, pelas entradas de prédios, dentro das empresas comerciais, com a função de espionar o movimento dos empregados e dos compradores. “Os sistemas eletrônicos
de vigilância se multiplicam em progressão geométrica por toda a parte.”25
23
24
25
MACHADO, 1993, p. 164.
Ibid., p. 220.
VIRILIO, 1993, p. 26.
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A própria televisão assume, muitas vezes, o papel da máquina de
vigiar: outro dia, num telejornal, um senhor assustado parecia pedir
socorro à câmera, como se ela pudesse interferir no que lhe estava
acontecendo. Ao fundo, um locutor eloqüente vangloriava-se do flagrante: “Acaba de ser preso”, e, logo abaixo, nos caracteres, a identificação em letras azuis “marginal”. “Não se trata de isolar pelo encarceramento o contagioso ou o suspeito, trata-se sobretudo de interceptá-lo em seu trajeto.”26
Para Arlindo Machado, o chamado jornalismo investigativo confunde-se cada vez mais com a investigação policial propriamente dita,
a ponto de realizar muitas vezes o sonho bethamiano de uma sociedade auto-vigiada.27
Mas outras câmeras em outros pontos provocam ações de rebeldia contra o estabelecido: em 1994, na Inglaterra, um grupo de manifestantes, entre eles, ecologistas, squaters (que ocupam casas abandonadas) e desempregados, subiu no telhado do parlamento inglês
para protestar contra a lei de justiça criminal, que proíbe protestos em
manifestações públicas. A encenação, gravada por uma câmera de vídeo do grupo manifestante, foi exibida posteriormente pelos canais de
TV ingleses. A lei que proíbe protestos em manifestações públicas não
proíbe imagens de protestos veiculados pelos canais de TV.
Durante a manifestação da Primavera de Pequim, os estudantes
pediram aos jornalistas e às câmeras na Praça Tienanmen que registrassem os protestos. No Brasil, é comum presos, quando promovem
rebeliões com reféns, exigirem a presença de jornalistas, munidos de
câmeras, como testemunhas da negociação. Isso denuncia que alguns
fatos só acontecem pela presença da câmera. Para Baudrillard, a imagem contemporânea está caracterizada pela imagem-simulacro. Essa
observação indireta dos fatos, sem a participação física, é chamada por
Paul Virilio tele-observação, “imbricação desmesurada de ação e de
teleação de presença e de telepresença à distância”.28
Já Antônio Negri defende esse espaço multimidiático como “espaço de luta para a transformação social. (...) É dentro desse novo
campo que se deve travar o debate”.29
O movimento de vídeo popular ou de vídeo para a democratização da informação, que, nos anos 80, expandiu-se por vários países,
atua na contramão dos meios massivos. O grupo Paper Tiger, nos Es26
27
28
29
MACHADO, 1993, p. 232.
Ibid.
Ibid., p. 174.
Ibid.
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tados Unidos, por exemplo, realiza em vídeos uma leitura crítica dos
programas de TV e os exibe via satélite para vários pontos do país. O
grupo Small Word, na Inglaterra, e o Zebra, na Escandinávia, movimentam-se em busca de um olhar alternativo. No Brasil, as TVs de
rua, como a TV Maxambomba, no Rio de Janeiro, e a TV Viva, em
Recife, utilizam-se do espaço da rua tanto para gravar quanto para exibir o que foi gravado, tornando possível uma interação entre o público
que participa e o grupo que grava, numa proposta de diálogo para a
construção da cidadania.
Esses grupos alternativos estão congregados numa organização
denominada Coalizão Mundial Videazimut, com sede no Canadá, criada com o propósito de lutar por espaços de informação audiovisual
e aprimorar a produção independente.
Pela acumulação de comunicação, a consciência do ser humano se transforma e ele se torna capaz de um reconhecimento coletivo dessa ampliação das possibilidades de saber,
das capacidades de transformação únicas que podem assegurar mais liberdade.30
Já o movimento de videoarte, utilizando como tema a própria
mídia e suas imagens viciadas, cria um olhar crítico ao incorporar, na
narrativa audiovisual, o fragmento e a dissociação, próprios da linguagem pós-moderna.
Se as imagens incidem sobre nossa forma de conhecer, pensar,
aprender e sentir, e essas formas imagéticas contemporâneas criam novas formas de compreensão do mundo e novos modos de apreender
a realidade, é preciso criar condições para uma leitura da imagem, organizar o olhar numa espécie de alfabetização audiovisual que proporcione o desnudamento dos processos de criação e de realização. Desvendando os códigos da imagem, teremos como fazer as conexões
nessa grande multimídia que é a sociedade contemporânea.
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__________ A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1991.
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