A cidade em fluxo: a representação da metrópole no curta-metragem
Jam1
Daniela Ramos de Lima
Resumen
O curta-metragem “Jam” (Cesar Cabral, Coala Filmes, Brasil, 2013) produzido para a série “Piscar de Olhos”
(Canal Brasil) convida o espectador a seguir na mise-en-scène a conversão da cidade-panorama (CERTEAU,
2013) e seus elementos sígnicos numa extensão fluvial. Desse modo, a metrópole-aquática e seu caminhante
híbrido e surreal (um pescador-urbano) apresentam um universo reversível (GENETTE, 1972) em que a
água se torna “matéria e substância para o devaneio criativo” (BACHELARD,1997). Ao propor um diálogo
entre “Jam”(2013) e Tempestade (2010), do mesmo diretor, esse trabalho procurará apontar o indício de um
elemento constituinte que os une- os desdobramentos da figura da água- a um projeto poético (SALLES, 2007)
que se presume estar em discussão.
Palabras clave: metrópole- projeto poético- animação – espaço audiovisual - surrealismo
Cara imaginação, o que eu amo, sobretudo em você,
é que você não perdoa. (BRETON, 1924)
Introdução
Em julho de 2012, o Canal Brasil2 passou a exibir uma série de interprogramas, no formato de curta-metragens
de até três minutos, totalizando vinte e seis produções audiovisuais de diretores brasileiros (consagrados e
emergentes). O projeto oferecido pelo canal, intitulava-se “Piscar de Olhos” e buscava extrair da sensibilidade
e do olhar aguçado dos diretores convidados, obras de ficção capazes de trazer às telas reflexões acerca de fatos
cotidianos e momentos fugidios que, por vezes, escapam do “pestanejar” dos menos atentos observadores,
sejam eles pedestres e/ou viajantes. No entanto, ao serem captados pelas lentes cinematográficas, esses
fragmentos de tempo são revitalizados na edição ao ancorarem-se no formato proposto (curta-metragem).
Porém, uma vez que a temática exibida na narrativa parece simular a curta duração de um “piscar de olhos”,
trazem devires imagéticos que ampliam a noção do tempo, suscitando lembranças, sonhos e fantasias que
condensam devaneios criativos.
Jam é o nome do curta-metragem dirigido pelo brasileiro Cesar Cabral (Coala Filmes, Santo André, São Paulo,
Brasil, 2013) e produzido para a série. A produção de Cabral convida o espectador a seguir na mise-en-scène o
itinerário de uma híbrida personagem - um pescador-urbano- sob um cenário também duplo e ambivalente: a
metrópole-aquática. Desse modo, elementos sígnicos que remetem à cidade de São Paulo (o tráfego acelerado,
a luminosidade intensa dos faróis dos carros, a garoa e os pedestres e seus guarda-chuvas) convertem-se
1
Trabalho apresentado na mesa temática “La construcción del espacio en el audiovisual- Sección II”, no IV Congreso
AsAECA, 2014.
2
“Canal Brasil” é o nome dado a um canal brasileiro multimídia. Surge em 1998 como resposta ao Decreto n.2.206 de 14 de
abril de 1997 para atender à exigência de divulgação na televisão via cabo de programação audiovisual independente exclusivamente
nacional.
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numa extensão fluvial, num mundo reversível (GENETTE, 1972), reforçado pela presença dessa personagem
surreal.
Ademais, a água como um “ornamento de paisagem, matéria e substância para o devaneio criativo”
(BACHELARD, 1997) já havia habitado outra obra do diretor: o curta-metragem de animação Tempestade,
2010. Desse modo, é possível dizer que, uma das imagens primordiais da água, isto é, a força imaginante da
violência e da provocação, propõe-se como fio condutor das duas narrativas empreendidas pelo diretor Cesar
Cabral. No entanto, desdobram-se em meios díspares: “Tempestade” em alto mar, produzida em estúdio por
manipulação de bonecos em stop motion e “Jam”, história em pixilation para a qual a captação de externas
dependia totalmente do meio em que se fazia tema. Apesar das diferenças apontadas e das qualidades estéticas
e técnicas que lhe conferiram contornos particulares, os curtas-metragens se aproximam ao colocarem seus
solitários protagonistas frente a desafios que superam e transgridem as ordens das ações previstas e roteirizadas.
Em outras palavras, o mar e a metrópole são transformados em “universos míticos”, condensando pretextos
para uma discussão maior: a relação do homem com o mundo.
Desse modo, esse trabalho pretende apresentar “Jam” sob a ótica do processo criador, mais precisamente
por meio da tarefa de apontar um “elo entre o pensamento e o fazer”, que se materializa como resultado
da percepção artística. Depois, traçar um paralelo entre as produções mencionadas, levantando pontos que
as unem a fim de argumentar a hipótese de que a repetição da primordial figura da água nesses trabalhos
apresenta, como previsto por Salles (2007, p.37) o modo “inevitável [de] imersão do artista no mundo que o
envolve”. Ainda seguindo a autora:
Quando acompanhamos processos, deparamos com artistas imersos em seu momento histórico e no clima de seu projeto
poético. Observam-se recorrências e tendências perceptivas: são modos de se aproximar da diversidade de estímulos e
maneiras singulares de se apoderar de informações. Um artista plástico pode retirar a cor do mundo e outro, suas curvas e
retas. São as diferentes formas de representação do mundo. (SALLES, 2007, p.122)
Ao se pautar em tais ideias, analisar o curta-metragem em pixilation que traz o movimento frenético da cidade
como tema, não seria apenas pontuar o estranhamento e a saída surreal prevista por Cabral para a transposição
do fantasiar em um “piscar de olhos”. Mais que isso, é entender como a cidade, enquanto cenário, se oferece
como elemento provocativo, despertando devaneios criativos e revelando a possível concretização de um
projeto maior que parece nortear uma poética pessoal em processo.
Dos pontos de vista da cidade, o que se avista?
A cidade de São Paulo guarda um ar bravio. Talvez pelas lúgubres marcas históricas, inauguradas na antiga
Vila de São Paulo de Paratininga, no século XVI, de onde partiram expedições bandeirantes que mobilizaram
inúmeros homens – livres ou não-, em prol da expansão territorial e do acúmulo de riquezas. Sinais
subvertidamente monumentalizados desses fatos se esparramam pela cidade, como é o caso da grande barca
brecheretiana3 nas mediações do Parque do Ibirapuera.
Mas não foram as monumentais esculturas aos bandeirantes que renderam à capital paulista o epíteto de “Selva
de Pedras”. Esse último deve-se a verticalidade arquitetônica que, pouco a pouco, foi enlaçada pelos viadutos,
vias paralelas e demais acessos viários, cortando visualmente essa paisagem erigida de concreto. Ecossistema
de argamassa e ferro que cresce de modo frenético. Eterno mutante que se constitui de sobreposições
3
Referência à obra “Monumentos às Bandeiras” (1921-1953) do escultor italiano, naturalizado brasileiro, Victor Brecheret
(1894-1955). Escultura de dimensões monumentais (8mx7mx40m, granito, Prefeitura de São Paulo) que abarca a temática nacionalista
de exaltação ao movimento de entrada de grupos de expedição ao interior do território brasileiro, que ficaram conhecidos como
“bandeiras”.
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arquiteturais. Texto sobre texto. Cidade palimpsesta.
E a figura labiríntica, na qual a metrópole paulistana se transformou, impôs aos seus habitantes modos de
percurso. Para o historiador Michel de Certeau (1925-1986), as caminhadas pela cidade “são sistemas reais
cuja existência faz efetivamente a cidade.”(CERTEAU, 2013, p.163) O pesquisador francês compreende a
cidade (e consequentemente, propõe sua leitura) a partir da análise do cotidiano, das experiências “ordinárias”
pelas quais seus habitantes constituem enredos de vivências, cognominando-os poeticamente como “artes do
fazer”. Seu objeto de partida é Manhatan, vista do 110º andar, paisagem oferecida pela extinta edificação do
World Trade Center
O pressuposto certeauniano, advindo da experiência da visão panorâmica da cidade americana, sugere
observar os sentidos produzidos naquele que abarca visualmente a urbe de seus pontos altos. Certeau compara
o experimento à figura mítica de Ícaro, que curiosamente é o primogênito de Dédalo, exímio arquiteto da
Antiga Grécia. Tudo isso para que possa despertar a observação daquele que mais lhe interessa na cidade: o
caminhante no caos, o “homem ordinário”, um “herói comum” de cujos pés é possível extrair a “retórica da
caminhada.” (CERTEAU, 2013, p.159)
Para o estudioso a trajetória dos pedestres constitui-se discurso. Em suas palavras, “o ato de caminhar está para
o sistema urbano como a enunciação está para a língua ou para os enunciados proferidos” e sob esse prisma,
“parece portanto encontrar uma primeira definição como espaço de enunciação.” (CERTEAU, 2013, p.164)
O pedestre estabelece com a cidade uma espécie de jogo em que dadas as regras ele tentará segui-las, mantendo
a orientação dos caminhos e estabelecendo vínculos de diversas ordens, ou poderá burlá-las, criando desvios
ou descaracterizando-a funcionalmente.
De acordo com o poeta francês André Breton (1896-1966), mais precisamente no Manifesto do Surrealismo
(1924), a instituição de uma arte imbricada com a vida e capaz de superar o binômio entre o mundo desejado e
o mundo real revelaria verdades e inibiria o cenário lógico e racional que assombrava a sociedade. Interrogavase Breton (1924, p.181): “O sonho não pode ser ele também aplicado à solução das questões fundamentais da
vida?”.
No curta-metragem “Jam” (Cesar Cabral, 2013), seu protagonista elege um ponto alto da cidade e o fantástico
surge a partir da interação que este se propõe ao olhá-la de cima. De lá, “num piscar de olhos”, a metrópole
permite que ele reverta as normas instituídas pelo jogo caótico das grandes cidades.
A cidade surreal e o devaneio de poder
“Jam”, com duração de dois minutos e trinta e cinco segundos, convida o espectador a seguir na mise-en-scène
o itinerário de um híbrido personagem: um pescador-urbano. Na produção audiovisual, a cidade de São Paulo
é o mote para uma construção poética da urbe: a metrópole acelerada destaca entre os anônimos pedestres
e a garoa que precipita, borrando a paisagem, esse passante capaz de dar visibilidade ao imaginário que o
cotidiano sôfrego das grandes cidades tenta encobrir.
O curta-metragem conta a aventura surreal de um personagem misterioso, que realiza no meio urbano uma
tarefa inusitada: do peitoril de um viaduto, lança um anzol e pesca guarda-chuvas que se animam no ar e
deslocam-se como águas-vivas, preenchendo o céu noturno da cidade de São Paulo.
Inicialmente, a câmera, alocada sob uma extensão viária – mais tarde, a panorâmica revelará o logradouro descreve uma topologia: as vigas de concreto do elevado arquitetônico cortam na diagonal o enquadramento
da tela, oferecendo um deslocamento em perspectiva, sugerindo movimento e expansão. Assim, a metrópole
é indiciada, mesmo que de forma fragmentada, quando a esse primeiro panorama são adicionados outros
1020
elementos sígnicos, visuais e sonoros: os semáforos, o tráfego acelerado, os grafites, a buzina, os motores dos
automóveis, a luminosidade intensa dos faróis dos carros, a garoa, os pedestres e seus guarda-chuvas.
A apresentação desse elevado4, exibido em plongée, alude à disposição fotográfica de um cartão postal. As
luzes amareladas fazem com que a fotografia do viaduto ganhe ainda mais destaque e contraste: a suave curva
lança o olhar ao infinito enquanto as luzes dos faróis dos automóveis movimentam-se ininterruptamente à sua
volta. Um corte finda a contemplação (se é que a rapidez do instante permite) e o dinamismo da cidade mantém
a temática em curso. Enquanto esse cenário é apresentado, a trilha musical reproduz o som de uma corda de
contrabaixo sendo friccionada, variando a afinação e ancorando um ambiente enigmático. Escolha que não é
aleatória, mas produtora de sentido, uma vez que a variação de altura (grave/agudo) do instrumento lembra
o efeito sonoro (Efeito Doppler5) promovido pelas sirenes de automóveis quando ouvidas em deslocamento.
Essa construção indicia os primeiros aspectos aproximativos da produção audiovisual com a estética surrealista.
Breton (1924, p.180) afirmava que “o sonho é contínuo e apresenta traços de organização”. Em “Jam”, essa
referência à sonoridade da metrópole é construída a partir de um recorte da faixa musical “Música da Mulher
Morta” (2011), do grupo de MPB (música popular brasileira) “Passo Torto”. A inserção no curta-metragem
desse trecho como som extradiegético intenta, também, assemelhar-se à cacofonia urbana que é gerada por
diferentes fontes sonoras (buzinas, motores de carros, propagandas, sirenes...) que conduzem o habitante das
grandes metrópoles ora a um estado de perturbação extrema, ora a um estado vertiginoso proporcionado pelos
ruídos das cidades.
É interessante lembrar que a relação entre o surrealismo, a cidade e o caos, aparece nos estudos de Walter
Benjamin, como uma figura de revelação e de revolução. A literatura benjaminiana (1987) atribui aos
surrealistas a propensão em sentir a tristeza imposta pela idealização da modernidade, cujo reflexo é a cidade
ilusória, discutida nas imagens da Paris Surrealista. Para Benjamin, o surrealismo não era visto apenas como
um movimento estético vanguardista, mas como a materialização de uma proposta capaz de libertar o homem
do controle exercido pela razão, isto é, o despertar para a realidade instituída pela modernidade, cuja cidade
portaria tais reflexos.
Durante o processo de criação do curta-metragem, os idealizadores se veem diante da dificuldade de selecionar
uma locação que se adequasse ao que foi previsto para o projeto: a cidade ofereceria o cenário contrastante
em que viria caminhar um pescador solitário, cuja performance teria um “outro tempo, mais lento”6, a fim de
marcar tais oposições. Assim, seria necessário selecionar um local de pouco fluxo de pedestres, uma zona em
que o tráfego de veículos não prejudicasse as filmagens. A própria cidade de São Paulo, vista como matéria7
da criação, responderia ao diretor que se manifesta da seguinte forma durante a elaboração do roteiro dessa
produção:
“Pensei no Minhocão, pois pode ser um contraponto com a cidade: muitos prédios, meio caótico, etc.
Filmaríamos num domingo quando é possível andar por lá.” (CABRAL, 2013)
Segundo Cecília Almeida Salles (2007, p.67),
Olhando mais de perto a relação do propósito do artista com as matérias por ele escolhidas, compreendemos a
4
Mais tarde, outras referências visuais assinalarão tratar-se do Elevado Costa e Silva ou “Minhocão”.
5
Efeito Doppler é o nome dado à variação de altura (grave/médio/agudo) de uma fonte sonora quando esta se encontra
em movimento. Em 1842, o físico austríaco Christian Johann Doppler descobriu que as ondas de som comprimem-se na frente e
esticam-se atrás da fonte sonora produzindo uma variação da frequência, em virtude do tempo e em relação à posição do ouvinte.
6
Anotações do material digital datado em 24 de janeiro de 2013 (documentos de texto, possivelmente trocados entre os
idealizadores via e-mail).
7
Emprega-se o termo matéria, de acordo com o sugerido por Salles (2007, p.66), isto é, o conjunto das escolhas (físicas e/
ou conceituais) do artista para a concretização de sua obra. No tópico em questão, entende-se que diante dos inúmeros logradouros
paulistanos à disposição dos realizadores, o local privilegiado em detrimento aos demais se justifique pelo trajeto com tendência que
o projeto visava seguir.
1021
interdependência desses elementos. A intenção criativa mantém íntima relação com a escolha da matéria. Opta-se por uma
determinada matéria em detrimento de outras, de acordo com os princípios gerais da tendência do processo.
Os documentos processuais8 indiciam outras sugestões de locais para as captações. Desse modo, presume-se
que a seleção da locação não se restringiu apenas às facilidades oferecidas pelo local como set de filmagem,
mas por aquilo que dela emerge como conceito. Walter Benjamin (1987, p.26) diz que “no centro desse mundo
de coisas está o mais onírico dos objetos, a própria cidade (...). E nenhum rosto é tão surrealista quanto o rosto
verdadeiro de uma cidade.”
Benjamin confere personificação à cidade. Ela passa a ser sujeito. E se assim o é, possui também uma história.
Esse espaço escolhido pelo diretor Cesar Cabral é o Elevado Costa e Silva9, tradicionalmente conhecido
por “Minhocão”, codinome incorporado à cultura paulistana10. Essa via de acesso possui um sistema de
funcionamento que revela as ambiguidades do local. O logradouro é motivo de controvérsias com relação a
sua funcionalidade, desde sua inauguração na década de 1970. Em 1976, cinco anos após ter sido entregue aos
munícipes, a via paralela passou a ser interditada às noites como estratégia para a diminuição dos inúmeros
registros de acidentes de trânsito e para a promoção do bem-estar (ou melhor, do silêncio) dos moradores
dos arredores. A partir dessa data, o espaço passou a englobar as contradições de um discurso cotidiano:
conserva o perfil caótico de segunda a sábado, das 6h30 às 21h30, e abriga o passeio de pedestres e ciclistas
especialmente nos finais de semana. Assim, o lugar condensa por um lado, os aspectos angustiantes daqueles
que moram em sua proximidade e a dubiedade dos passos inquietantes no horário comercial e, por outro,
o caminhar despretensioso e a liberdade de sua apropriação, nos finais de semana, instaurando no espaço,
trajetos multiformes.
Em “Jam”, a cidade de São Paulo transmutada em espaço onírico passa a ser representada por esse caminho
ambivalente. Nessa sinédoque, talvez resida um exemplo da “retórica ambulatória” 11 que Certeau (2013,
p.166) prevê como forma enunciativa.
E é por detrás de um dos postes de iluminação do elevado que, misteriosamente, o protagonista adentra a cena,
aproximando-se do parapeito da via. No campo sonoro extradiegético, as primeiras notas de um dedilhado de
violão acompanham seus passos e tornam-se o leitmotiv. Trata-se de um rapaz que, olhando de cima para baixo
o movimento do tráfego, desconfia estar sendo observado enquanto as janelas dos prédios que o circundam
cerram-se inominadamente. Ele tira do bolso um novelo de linha, em cuja ponta há um anzol e o desenrola aos
poucos enquanto se mantém sentinela.
Ao passo que a cidade conserva seu fluxo – o movimento dos automóveis cria desenhos de luz, pessoas
transitam de um lado para o outro e as janelas dos edifícios piscam e indiciam o tempo em curso – a intenção
daquele rapaz é revelada: ele pesca sob o viaduto. Ao puxar sua primeira presa, o sobressalto, ele fisga o
8
Os documentos processuais compreendem todas as formas (verbais, não verbais, gráficas, sonoras ou digitais) que as ideias
de uma criação em processo tendem a materializar antes daquela, entendida como final, que é entregue ao público. Cf.: Salles, 2007.
9
Com extensão de 3.400 m de extensão, o elevado foi entregue aos paulistanos no dia 25 de janeiro de 1971, durante a
gestão municipal de Paulo Maluf, com o intuito de ligar os setores leste-oeste da cidade. Em meio à ditadura, o elevado foi batizado
“Costa e Silva”, nome do segundo presidente brasileiro do regime militar.
10
O elevado já foi cenário de vários longas metragens, dentre eles “Terra Estrangeira” (Walter Salles, 1996) e “Ensaio sobre a
cegueira” (Meirelles, 2008) e tema do documentário “Elevado 3.5” (João Sodré, Maíra Bühler e Paulo Pastorelo, 2007). Além disso,
em 2013, o “Minhocão” foi tema de um projeto de lei na cidade de São Paulo que busca alterar o atual nome do logradouro público
pelo codinome atribuído pela cultura paulistana. Cf.: http://camaramunicipalsp.qaplaweb.com.br/iah/fulltext/parecer/JUST08212013.pdf
11
Ao aproximar a caminhada dos pedestres na cidade à estrutura do discurso enunciativo, Michel de
Certeau afirma que “moldar” frases tem como equivalente uma arte de moldar percursos. Assim, figuras de
linguagem como a sinédoque e o assíndeto definiriam essas relações que se constituem como as “práticas da
cidade”, isto é, a cidade é o resultado de seu uso, de sua apropriação.
1022
inimaginável: um guarda-chuva negro que após aberto e verificado é solto no ar, alcançando e ultrapassando,
em altura, os andares dos prédios que ressaltam a sua silhueta.
Repetidamente, o pescador-urbano vai lançando para o céu da metrópole outros guarda-chuvas que se
movimentam e comportam-se no espaço como águas-vivas, propulsionando as extremidades para se
locomoverem. Em meio às luzes da metrópole, os objetos tomam o céu enegrecido.
Nesse sentido, denota-se que a atitude do protagonista, ao debruçar-se sobre a via paralela, é despertada pela
mesma curiosidade daquele que observa a metrópole do alto: uma pulsão escópica. O historiador francês Michel
de Certeau (2013) acusa que os reflexos dessa manifestação na Arte são longínquos: podem ser observados
desde o período medieval quando das primeiras tentativas da representação do espaço. A vista panóptica do
pescador - apresentada pelos enquadramentos panorâmicos da cidade - exibe-se como a “imensa texturologia
da metrópole” vista do alto, ou como lembra Certeau (2013, p.158), sua planificação é um “artefato ótico”. A
urdidura urbana, criada pelas luzes dos faróis dos carros em movimento, é transposta para o curta-metragem
sob a metáfora da água, favorecendo e ancorando a figura do surreal pescador.
Esse personagem que adentra o espaço de forma sorrateira, camufla-se ao cenário. Seus trajes são sóbrios e
a iluminação amarelada do elevado confere-lhe um ar esvaído, mas misterioso, porque pondera para não ser
observado. E Cesar Cabral queria um personagem do “outro-mundo” para habitar a onírica cidade:
SP tão mergulhada no caos que há um outro mundo, uma outra existência, habitada por pescadores de sonhos, acima da
cidade, que jogam os guarda-chuvas no mar do trânsito e eles tomam vida (...) (CABRAL, 2013, grifo nosso)12
Alocado sob o elevado, o “pescador de sonhos” acredita ter a cidade sob seu controle. Ele apropria-se de um
poder mítico, capaz de consolidar metamorfoses (dar anima aos guarda-chuvas). Vista de cima a cidade é um
“outro-mundo”. Quem sabe pertencente aos deuses e heróis, uma vez que “Ícaro, acima dessas águas, pode
agora ignorar as astúcias de Dédalo em labirintos móveis e sem fim.” (CERTEAU, 2013, p.158)
Esse devaneio de poder que se une à imagem da cidade de São Paulo, “mergulhada no caos”, faz lembrar as
palavras do filósofo francês Gaston Bachelard (1997, p.186) quando diz que “comandar o mar é um sonho
sobre-humano. É ao mesmo tempo uma vontade de gênio e uma vontade de criança.”
É desse prazer em transpor para a criação artística os elementos do mundo em formas expressivas e poéticas
que fala Freud ao argumentar sobre as origens do devaneio criativo. Para o psicanalista, o mundo de fantasia
conjecturado pela criança é o mundo que, renunciado na vida adulta, emerge na realização criativa, portando
novas formas. Nas palavras do pensador “o devaneio é uma continuação, ou um substituto, do que foi o brincar
infantil.” (FREUD, 1996, p.141)
Também é à infância que Certeau (2013) se reporta quando menciona “praticar a cidade”, conferindo-lhe o
sentido de existência ao rememorá-la. “Praticar o espaço é portanto repetir a experiência jubilatória e silenciosa
da infância” (CERTEAU, 2013, p.177).
“Jam” confere ares pueris ao seu protagonista. Diante do caos, o herói que pode ver do alto do Minhocão a
“cidade mergulhada”, pesca sonhos. Sonhos de liberdade, pois somente pela “fantasia [que] é a realização de
um desejo, [torna-se possível] uma correção da realidade insatisfatória” (FREUD, 1996, p.137): fugir do caos
e imaginar ser Ícaro sobre a cidade de São Paulo.
A arte realiza os devaneios da vontade, do desejo, da brincadeira infantil levada a sério que cambia para um
mundo de fantasia que se nutre de questões também sérias.
De nada nos serve a tentativa patética ou fanática de apontar no enigmático o seu lado enigmático; só devassamos o
mistério na medida em que o encontramos no cotidiano, graças a uma ótica dialética que vê o cotidiano como impenetrável
12
Trecho contido no documento processual (estrutura narrativa, texto digital) datado em 15 de novembro de 2012.
1023
e o impenetrável como cotidiano. (BENJAMIN, 1987, p.33)
Na diegese, o pescador que fisga os guarda-chuvas transforma-os (ou os vê transformar) em águas-vivas, as
quais ocupam um novo habitat: o céu de São Paulo.
A analogia guarda-chuva/ água-viva vai além da similaridade estabelecida pelas formas côncavas dessas
figuras. O animal aquático possui em sua constituição física mais de 90% de água- ressaltando a continuidade
desse elemento no eixo de seleção. Além disso, também é comumente conhecido por medusa, nome que na
mitologia grega representa a deusa que petrificava com seu olhar. Ao comentar a imbricação do campo formaconteúdo na criação artística, Cecília Almeida Salles (2007, p.75) afirma que “a forma surge pela necessidade
de expressão do artista”, pois trata de um “acesso que o artista tem a seu projeto poético”. Desse modo,
tal analogia parece revelar a necessidade do criador em estabelecer uma cadeia de ideias contrastantes, que
numa ordem semântica se aproximaria a outras, tais como: petrificante/fluido, caos/ordem, prisão (limitação)/
liberdade, lógico/onírico, consciente/ inconsciente.
Essa mutabilidade das formas é ainda intensificada quando a imaginação do diretor percorre livremente a
fauna, transmutando os atributos dos animais. Em outras palavras, o guarda-chuva é simultaneamente um ser
aquático, ao provir da água e um ser alado, por voar entre os prédios.
É interessante trazer outra contribuição de Bachelard (1997) quando este percorre a produção literária em
busca de (escassos) exemplos dos “peixes imaginários”. Em seu trabalho, o filósofo francês debruça-se sobre a
“reversibilidade dos grandes espetáculos da água” e pontua ”uma simbiose das imagens [que] entrega o pássaro
à água profunda e o peixe ao firmamento” (BACHELARD, 1997, p.54). E esse desejo de materialização de
uma “metamorfose pisciforme” estende-se por todo o processo de criação13 do curta-metragem até encontrar
no guarda-chuva, símbolo de uma proteção temerosa14, um objeto para materializar essa transição: do acessório
de função restrita à liberdade imaginária provocada pelas figuras da água e do ar.
Outra forma de se elucidar a questão é trazida por Gerard Genette (1972) ao lembrar a condição do homem
sobre a superfície da Terra. O autor menciona que, na crosta, o ser está sujeito a acidentes e perigos, enquanto
os pássaros e os peixes desses se esquivam por alcançarem espaços que são intransponíveis e inacessíveis ao
primeiro. Volta-se aqui à figura do herói: o simples caminhante de Certeau (2013) que ao alcançar o ponto
mais alto da cidade sente poder comandá-la, e ainda o herói presente nos devaneios criativos – a figura do Ego
- que Freud (1996) diz habitar em posição superior nas criações artísticas.
Fatigado da real condição imposta ao caminhante, ele deseja e ambiciona por novos espaços, novas conquistas:
nadar ou voar em busca da satisfação de seus desejos, porque “voo e natação propõem ao homem o mesmo
ideal de propulsão fácil, de uma felicidade onírica e, de alguma forma, miraculosa.”(GENETTE, 1972, p.10)
Também em outro trabalho de Cesar Cabral, um curta-metragem de animação em stop motion, intitulado
“Tempestade”(Coala Filmes, Brasil, 2010), o diretor já havia se apropriado da água como elemento natural e
primordial para o devaneio criativo. Em “Tempestade”, seu protagonista, também solitário, é um comandante
que conduz um barco rebocador em alto mar e enfrenta uma tormenta para cumprir seu objetivo: reencontrar a
mulher amada. O mar, a água violenta, é o meio propulsor e provocativo, junto ao ar tenebroso – a tempestadeque se impõe como obstáculo à satisfação de seu desejo.
A água, em ambas as produções, torna-se “pré-texto”, meio condutor. É a base, a urdidura para que questões
(e incertezas) mais profundas como a existência e os desejos do ser, bem como as suas ações no e sobre o
13
Na escaleta datada em 09 de dezembro de 2012 outros objetos cotidianos são cotados para transformar-se em peixes.
A título de ilustração, nesse documento textual os idealizadores sugerem que uma velha bolsa feminina e uma carteira poderiam
animar-se de forma a “debaterem-se” no chão como peixes fora da água.
14
Segundo Chevalier & Gheerbrant (1999, p.480-481). É interessante observar a comparação que os autores estabelecem
entre o guarda-sol e o guarda-chuva: “a pessoa se ergue debaixo de um pára-sol, mas se curva sob o guarda-chuva”.
1024
mundo possam libertar-se ao alterar e disfarçar suas formas egocêntricas em objetos de prazer estético. Sob
o mar, ou sob o asfalto (liquefeito) reina sempre um herói. “A água quer um habitante. Ela chama como uma
pátria” menciona Bachelard, porque nesse devaneio de poder “se o mundo é a minha vontade, é também o meu
adversário. Quanto maior a vontade, maior o adversário.”(BACHELARD, 1997, p.171, 166)
Um pensamento profundo está em devir contínuo, abarca a existência de uma vida e se amolda a ela. Do mesmo modo,
a criação única de um homem se fortifica em seus aspectos sucessivos e múltiplos que são as obras. Umas completam as
outras, corrigem-nas ou repetem-nas (...) (SALLES, 2007, p.39)
Aproximando os movimentos da criação à linguagem audiovisual, a qual acolhe e materializa as produções analisadas,
as reflexões de Edgar Morin sobre o cinema parecem trazer um oportuno enlace:
(...) o cinema não deixa de responder a necessidades...
Essas necessidades já nós as sentimos: são as necessidades de todo o imaginário, de todo o devaneio, de toda a magia, de
toda a estética: aquelas que a vida prática não pode satisfazer...
Necessidade de fugirmos a nós próprios, isto é, de nos perdermos algures, de esquecermos os nossos limites, de melhor
participarmos no mundo... ou seja, no fim de contas fugirmo-nos para nos reencontrarmos. (MORIN, 1970, p.136, grifo do
autor)
Considerações Finais
Talvez seja um pouco ousado antecipar e tecer algumas considerações acerca dos “fios condutores” que
permeiam as obras de Cabral. No entanto, nos trabalhos mencionados, é notória a presença da água como
matéria poética que dá forma e propõe traduzir intenções que extrapolam o campo estético. Lembra Bachelard
(1997, p.180): “há realmente do universo ao homem correspondência extraordinária, comunicação interna,
íntima, substancial. As correspondências se enlaçam em instantes raros e solenes”. (grifo do autor).
“Jam” e “Tempestade” parecem trazer em suas essências esses instantes: simples argumentos tornam-se temas
de reflexões mais profundas. No primeiro, por trazer o elemento aquático como meio fecundo à liberdade
do ir e vir no espaço social caótico da metrópole: somente a “cidade-mar” é geradora de sonhos e capaz de
metamorfosear as intempéries. No outro, enquanto a tempestade é adversária, o mar é o único meio para
alcançar o objeto do desejo.
Nesse percurso poético em que a água aparece como substância que movimenta, contrasta, conduz e insere
seus personagens (o comandante do barco e o pescador-urbano) em desafios cósmicos, a solidão também
se torna uma constante e aproxima perfis: marujo e pescador, ambos desafiam as águas. Gaston Bachelard,
que via o enfrentamento das forças naturais do universo como um bem essencial e um esquema de coragem,
previa os percalços e as condições para essa aventura primordial: “ao desafio cósmico a solidão é um ideal
necessário, o mundo é uma provocação.” (BACHELARD, 1997, p.175)
Desse modo, Cabral e equipe atendem à proposta do programa televisivo: trazer à tela reflexões acerca de
fatos cotidianos e momentos fugidios que, por vezes, escapam à percepção num “piscar de olhos”. O olhar
visionário instituiu o sonho de uma metrópole reversível. Nesse pestanejar, o surreal se encerra, pois voltar
à realidade talvez seja mais “petrificante” que as próprias construções da metrópole. É bem provável que,
diante disso, restará a provocação daquele que pôde observá-la do alto: “Será necessário depois cair de novo
no sombrio espaço onde circulam multidões que, visíveis lá do alto, embaixo não veem? Queda de Ícaro”.
(CERTEAU, 2013, p.158)
Em “Tempestade”, o barco em alto mar, sem revelar ponto de partida nem chegada, também inquiri e delega
ao espectador refletir sobre as possibilidades de seu destino.
Tratam-se de produções audiovisuais que propõem olhar os desafios do mundo a partir da carga expressiva de
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formas universais. Assim, o elemento água não é fortuito. Diz Gerárd Genette (1972, p.11) que “caminhar é
servidão, voar e nadar são ambos liberdade e posse”. E ainda:
Haveria pois, entre o outro mundo interior e os diversos outros mundos exteriores (...) uma correspondência evidente, que
se designa num mito de alcance singular: sendo todos reversos de uma coisa única, são necessariamente idênticos: todos os
abismos resumem-se num único abismo. (GENETTE, 1972, p.20)
Assim, o espectador aproxima-se dessas substâncias poéticas, encanta-se pela atração exercida pelo espetáculo
imaginário da produção audiovisual, identifica-se com esses heróis, os quais conduzidos por esses meios fluídos
( o mar ou as vias públicas), são postos em presença de enfrentamentos: ora a tempestade, ora o sufocamento
imposto pela vida contemporânea. É nesse sentido que a água parece conduzir “Jam” e “Tempestade” pelas
metáforas da existência.
Bibliografia
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria.Trad.: Antônio de Pádua
Danesi São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BRETON, André. Manifesto do Surrealismo (1924). In: TELLES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e
modernismo brasileiro: apresentação dos principais poemas, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas
de 1875 a 1972. Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes, 1985.
CABRAL, Cesar. /Online. Re: Novo curta-metragem/Piscar de Olhos-documentos de processo [mensagem
pessoal/material digital anexo] Mensagem recebida por [email protected] em 10 jun. 2013.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1.Artes de fazer. 20.ed. Trad.: Ephraim Ferreira Alves. Rio
de Janeiro, Petrópolis: Vozes, 2013.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, figuras,
cores, números). 14.ed. Trad.: Vera da Costa e Silva [et al.] Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1999.
FREUD, Sigmund. Escritores criativos e devaneios.(1907) In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas e Completas de Sigmund Freud. (ESB), (Vol. 9). Trad.: Jayme Salomão (dir.geral). Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
GENETTE, Gerard. Figuras. Trad.: Ivonne Floripes Mantoanelli. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.
MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. Trad.: António-Pedro Vasconcelos. Lisboa: Editores
Moraes, 1970.
SACONI, Rose. Como era São Paulo antes do Minhocão. In: ESTADO DE SÃO PAULO [acervo digital].
Disponível em: http://acervo.estadao.com. br/noticias/acervo,como-era-sao-paulo-sem-o-minhocao,9070,0.
htm Acesso em: 07 dez.2013
SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. 3.ed. São Paulo: Annablume, 2007.
Filmografia
JAM. (curta-metragem). Direção:Cesar Cabral. Santo André, São Paulo, Brasil: Coala Filmes: Canal Brasil,
Programa: Piscar de Olhos, cor, 2013, 2min.30 seg.
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TEMPESTADE (curta-metragem). Direção: Cesar Cabral. Santo André, São Paulo, Brasil: Coala Filmes, cor,
2010, 10 min, 35mm.
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A cidade em fluxo: a representação da metrópole no curta