Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2015
À MODA DO OUTRO: MODA, ESPAÇOS URBANOS E RELAÇÕES DE ALTERIDADE
NO INÍCIO DO SÉCULO XX
At the other’s fashion: fashion, urban spaces and alterity relations in the early 20th century
Mariana Braga (PUC-SP| CNPq)1
[email protected]
Resumo: O presente trabalho procura explorar as mudanças topológicas ocorridas na cidade do Rio de
Janeiro no início do século XX e suas relações estreitas com a moda pelos discursos da revista Fon-Fon!,
utilizando uma abordagem sociossemiótica. Para isso, são abordadas questões sócio-histórico-culturais que
delimitam o intertexto desses discursos analisados. Tais análises fazem parte de uma pesquisa de mestrado
que é desenvolvida e explicitada no decorrer do trabalho.
Palavras-chave: história da moda; urbanidade; sociossemiótica.
Abstract: This paper seeks to explore the topological changes that occurred in the city of Rio de Janeiro in the
early 20th century and its close links with fashion by the speeches of the magazine Fon-Fon!, using an
discursive semiotics approach. To do so, are addressed socio-historical-cultural issues that delimit the context
speeches analyzed. Such analyses are part of a Masters research, which is developed and made explicit in
the course of work.
Keywords: history; fashion; discursive semiotics.
Num livro lançado recentemente sobre as histórias da moda no Brasil, Luis André do Prado e João
Braga (2011), salientam que “a moda feita no Brasil” ainda está se firmando e que, para que seja reconhecida
internacionalmente, precisa construir uma “identidade sólida para o setor no país, e esta se projeta também a
partir do autorreconhecimento no espelho da história.” Ainda segundo os autores, por ser um país de origem
colonial, os hábitos de cultura, que incluem a moda, eram copiados e imitados das metrópoles, principalmente
internacionais.
Este tipo de desenvolvimento deixa rastros por muito tempo, e, identificar estes “outros” se torna de
extrema importância quando se considera que um sujeito só pode construir sua identidade a partir de outrem,
ou seja, o que dá forma a identidade própria, do “eu”, não é apenas a autodefinição, mas também “a maneira
pela qual, transitivamente, objetivo a alteridade do outro. [...] a emergência do sentimento de ‘identidade’
parece passar necessariamente pela intermediação de uma ‘alteridade’ a ser construída” (LANDOWSKI,
Mariana Braga é mestranda em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, orientada pela Profa. Dra. Ana Claudia de Oliveira e é
bolsista integral do CNPq. É graduada em Design de Moda pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Participa do Atelier
Moda, Corpo e Consumo coordenado pela Dra. Kathia Castilho, e integra o Centro de Pesquisas Sociossemióticos (CPS)
coordenado pela Profa. Dra. Ana Claudia de Oliveira.
1
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2012, p. 4). Assim, os papéis das alteridades foram primordiais na constituição de modos e modas brasileiras,
nas idas e vindas entre o “outro” e o “si”.
Nesse cenário, a sociossemiótica e as análises discursivas (GREIMAS 1976, 2011; LANDOWSKI
1992, 1997, 2012; OLIVEIRA 2002, 2004, 2014; FIORIN 1994, 1997, 2013) nos permitem melhor
compreensão dos fenômenos colocados, a partir da análise de revistas, que serão posteriormente pontuadas.
A pesquisa de mestrado desenvolvida busca responder como as alteridades, que poderemos mapear nas
revistas ilustradas do século XX, exercem papéis condutores que vem a definir as várias feições da moda
brasileira, bem além da moda vestimentar. Objetiva-se identificar quais são estes “outros”, mapear os
processos tradutórios de estilo de vida e consumo destes aos brasileiros, por meio das revistas ilustradas do
século XX – Fon-Fon!, O Cruzeiro, Manchete -, que são um corpus do uso da moda; além disso, analisar
como esses processos, atrelados a aspectos sócio-histórico-culturais, auxiliam na construção de uma
identidade de modos e modas brasileiras, da construção do gosto pelo consumo do brasileiro no decorrer do
século XX.
Para melhor compreensão do contexto dos quais emergem os discursos e colocações das figuras de
alteridade, e para melhor compreensão do objeto será necessário analisar a intertextualidade. A
intertextualidade para Calabrese (2004, p. 162), é “o conjunto de repertórios presumidos do leitor referidos
quase sempre de modo explícito no texto”, e esse conjunto de informações que se espera que o leitor já
possua, estão relacionadas a histórias previamente desenvolvidas por outras culturas. E essas, atuam como
“o intertexto de uma obra” e se referem a outros textos construídos anteriormente, a fim de expor tanto a
consistência da obra, quanto a produção de “efeitos de sentido estéticos locais ou globais.” Assim, partimos
para a colocação do intertexto.
Uma retomada histórica: Colonizadores e Colonizados
Retomando o longínquo 21 de abril de 1500, quando a frota de Pedro Álvares Cabral
aportou o litoral baiano, [...], não deixa de ser curioso observar que as primeiras trocas
entre portugueses e indígenas, na tarde do dia 23, já envolveram o vestuário (PRADO E
BRAGA, 2011, p. 20).
O trecho acima elucida a moda e o vestuário como importantes adjuvantes nos contextos social,
econômico e político, na construção e desenvolvimento das sociedades ocidentais. O vestuário fora sempre
importante como um dos meios de colonizar e ocidentalizar os países da América que foram descobertos, ou
melhor, “achados”; cobrir as “vergonhas” dos nativos que encontraram era primordial para que pudessem
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dominar e catequizar. Os nativos, principalmente no período da colonização, se configurariam em sociedades
abertas, ou “quentes”, aptas a incorporarem características de alteridades com as quais tinham contato.
Enquanto os “descobridores” que partiam da Europa Renascentista na qual as sociedades de seus países –
considerando suas respectivas diferenças – se configuravam “frias” e fechadas, tendo como objetivo maior
dominar e expandir seus territórios.
Segundo Gruzinski (2001, p. 95), a ocidentalização “assumiu formas diversas, quase sempre
contraditórias [...]. Uma vez na América, uns e outros empenharam-se em edificar réplicas da sociedade que
haviam deixado para trás.” Mas tais réplicas não seriam cópias propriamente ditas, e sim, passariam por
processos que poderiam ser chamados de abrasileiramentos. Por exemplo, as construções arquitetônicas não
seriam réplicas exatas, pois seriam construídos com outros materiais, em outro terreno, sob outras
temperaturas e num tempo diferente de exposição ao sol; são processos tradutórios figurativos pelos quais
passaram todos esses meios, tanto materiais quanto imateriais, de alcançar a ideal “construção” de uma
nação fora do continente europeu.
Nesse contexto, os indígenas passaram a reproduzir hábitos e indumentárias, incorporando técnicas
e aprimorando os produtos ao contexto em que se inseriam. A concepção da reprodução para os europeus
deixava margens a diferentes interpretações, a invenção ao copiar era permitida aos índios, ainda que “por
essência, [a reprodução dos produtos se configurasse como] a manifestação da superioridade dos
vencedores” (Ibidem, p. 107). O impacto da colonização obrigou as sociedades que já se encontravam no
continente a se adaptarem a fragmentos e os decodificarem, e assim, para Gruzinski (Ibidem), “de tanto
justaporem de maneira ocasional e aleatória os dados e as impressões assim recolhidos, formam conjuntos
jamais fechados em si mesmos”. Este contexto heterogêneo acaba estimulando a capacidade dessas
sociedades, incluindo os brasileiros, de se adaptarem e se rearranjarem diante às diferentes situações e aos
diferentes encontros. As sociedades “quentes” como as da América Latina, de acordo com Pinheiro (2009,
p.19), se configuram em sua maioria como culturas “aptas para incorporar os agregados metonímicos
provenientes dos mais diversos códigos e linguagens”.
Segunda retomada histórica: Introdução ao contexto histórico-social de 1910
O ser humano possui uma natureza proeminentemente social: seu comportamento, sua
personalidade, seu modo de pensar e de sentir suas necessidades – inclusive a de
decorar-se – começam a ser explicáveis quando o percebemos suscetível à existência real
ou imaginária de outros indivíduos. [...] A comunicação, a linguagem e o discurso serão
entendidos como práticas sociais que nascem e se organizam culturalmente e respondem a
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características inerentes aos contextos sociohistórico, econômico e cultural,
intrinsecamente relacionados ao ser humano e à História da humanidade que se processa
continuamente por meio de estruturas diversificadas [...] (CASTILHO; MARTINS, 2005,
p.39).
A partir da constatação supracitada, e entendendo que a comunicação e o discurso são práticas
sociais inerentes ao contexto em que se inserem, partimos para a contextualização da primeira década que é
estudada, a década de 1910. Marcando o primeiro decênio do século XX, o fim recente da monarquia e a
instauração da Primeira República se caracterizaram por um grande período de incertezas políticas e,
consequentemente, sociais. Os vários grupos que disputavam o poder eram divergentes em suas intenções e
concepções de como organizar a nova República (FAUSTO, 2002). Segundo Boris Fausto (Ibidem, p.42), a
nova Constituição buscava assegurar direitos aos brasileiros e estrangeiros residentes no país “à liberdade, à
segurança individual, e à propriedade”.
A Primeira República é comumente denominada como a república dos coronéis, “que eram em sua
maioria proprietários rurais, com uma base local de poder” (Ibidem, p.149) E, nessa estreita relação entre
poder econômico privado e poder público, esse início de século também ficou conhecido como a era do “café
com leite”, termo que exprime a relação entre as produções cafeeira em São Paulo e leiteira em Minas
Gerais, e que, por conseguinte, comandavam o cenário político brasileiro. As províncias (hoje,
correspondentes ao que se entende por estados) obtiveram direito a pedir empréstimos no exterior para
aumentar e melhorar a produção, de 1909 a 1912, o preço do café estava altíssimo e a produção acelerada,
utilizando-se da mão de obra dos imigrantes que desembarcavam aos montes nos portos brasileiros.
A imigração em massa foi um dos mais importantes modificadores do cenário socioeconômico do
Brasil, e, compunham essa massa cerca de 3,8 milhões de europeus e asiáticos – entre 1887 e 1930 – que
vinham em busca de melhores oportunidades de trabalho. Os Estados, principalmente o Estado de São
Paulo, concentrou a maior parte desses imigrantes, devido, também, às facilidades oferecidas pelo governo
como passagens e alojamento. Dentre esses, a principal etnia que forneceu mão de obra à produção cafeeira
foi a italiana. Juntamente com os italianos, portugueses e espanhóis compunham a maioria dos imigrantes
que chegavam ao Brasil (Ibidem). A imigração europeia e oriental foi estimulada buscando mão de obra para
substituir a mão de obra dos negros ex-escravos e, “como propósito simultâneo, [buscar] o ‘branqueamento’
da população” (PRADO E BRAGA, 2011, p.48). Denota-se, portanto, a busca pela “europeização” da
população residente no Brasil; fato que se une a outras buscas de identificação com as “culturas
consideradas mais civilizadas.”
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Apesar das duras condições de vida a que eram submetidos, às vezes quase em condições de
escravos, os imigrantes conseguiam alguma mobilidade social – diferentemente dos ex-escravos negros – e
se tornavam grandes fazendeiros e/ou comerciantes, posto que o Brasil fora predominantemente agrícola até
meados de 1930. Não só nas lavouras de café é que estes imigrantes tiravam seu sustento, muitos deles já
com experiência no ramo têxtil, passaram a trabalhar com a fabricação ou comercialização de vestuário, em
especial, na cidade de São Paulo, concentrando-se no bairro do Bom Retiro.
Tais fatos provocaram um crescimento industrial e produtivo no Brasil, mais concentrado nas regiões
do Rio de Janeiro e São Paulo, mas que também incluía outras grandes cidades do norte e nordeste, como
Recife, Manaus e Salvador. A produção e escoamento do café levaram a melhorias tanto do poderio
econômico, quanto de infraestrutura e logística, incluindo a construção de várias ferrovias que escoavam o
produto aos portos. Nesse caminho, outros produtores e indústrias aproveitaram a oportunidade, o que levou
ao crescimento produtivo para outras áreas do país. Dentre esses ramos industriais, a produção da borracha
se viu acrescida pela demanda para a produção de pneus para carros e bicicletas, além de sapatos e alguns
acessórios e utensílios.
Nesses tempos, muitas empresas estrangeiras aproveitaram para instalar suas empresas no Brasil,
sendo controladoras, por exemplo, do fornecimento de energia elétrica em boa parte do país; de bancos, de
empresas de navegação e de seguros. Os estrangeiros dominavam o mercado de prestação de serviços,
enquanto o mercado produtivo se endividava com empréstimos externos e nenhum recurso realmente ficava
no país. Nesse cenário, o país se beneficiou da infraestrutura fornecida por todos esses produtores e
prestadores (FAUSTO, 2002).
Sobre a Revista Fon-Fon!
Com os processos benéficos à infraestrutura nas principais cidades do país, sugiram espaços na
esfera pública para que a burguesia pudesse discutir questões que abrangiam a sociedade civil de como um
todo, pelas suas visões e expectativas, o que exigiu outros meios para que expusessem tais visões. E, nesse
cenário, a imprensa foi a “primeira instancia mediadora” da população para a discussão dos e nos espaços
públicos. Já nos primeiros anos da Imprensa Régia surgiram as primeiras revistas no Brasil, tais periódicos
rapidamente foram adotados no cotidiano dos brasileiros letrados. Diferentemente dos jornais, a variedade
das reportagens e o uso de humor e curiosidades do cotidiano aproximaram as revistas do público-leitor, uma
vez que “dispunha as informações de maneira interpretativa e envolvente para o leitor” (RIBEIRO; SANTANA,
2011, s/n).
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Em meio à modernização do país, ou melhor, à “inserção compulsória do país na Belle Époque”
(SEVCENKO, 1999, p.25), surge a revista Fon-Fon! – uma revista para o lar, tratava-se de uma revista
literária e ilustrada, a qual foi um veículo de comunicação midiática que surge em abril de 1907 – dezoito anos
após a proclamação da República – como um símbolo do progresso, um “ruído novo para a cultura da classe
média” no Brasil (NARRES, 2007, p.14). Seu nome, uma onomatopeia que figura o som feito pela buzina dos
automóveis, anunciava a chegada do século XX com toda a sua inovação tecnológica, a industrialização, e o
ritmo cada vez mais rápido dos novos carros. Segundo Mira (2013, p.14), as primeiras revistas ilustradas no
Brasil tiveram suas “origens nos magazines ilustrados ou revistas de variedades do século XIX, de inspiração
europeia, sobretudo francesa”. Fora um francês, chamado Plancher, que trouxe a tecnologia da litografia para
o Brasil, o que propiciou a reprodução de imagens.
Segundo Ribeiro e Santana (2011, s/n), a revista “abordava tudo que era urbano, moderno e
cotidiano”, propiciando um cenário que construía o simulacro da modernidade, e esta, que se fazia presente
por seus valores postos em circulação. Assim, a Fon-Fon! “emergiu sob os anseios da alta sociedade carioca
em ter um veiculo de comunicação” de qualidade, visto que buscaram inovações gráficas para a revista
(Ibidem, s/n). É importante ressaltar que boa parte de seu público se restringia aos letrados, compostos,
principalmente, pela alta sociedade.
Considerando-se que na virada do século XIX para o século XX, 84% da população residente no
Brasil era analfabeta, pode-se concluir que o público da Fon-Fon! no Brasil era relativamente seleto e
pequeno. Para Mira (2013, p.18), “a leitura só fazia parte dos hábitos de uma pequena elite culta e rica, cujos
filhos eram educados por preceptores e concluíam seus estudos na Europa”; nesse cenário, o público
feminino era ainda menor, pois, o analfabetismo entre as mulheres ainda era considerado uma virtude. Eram
revistas como a Fon-Fon! que procuravam suprir os anseios por informação advindos de um público seleto,
abordando assuntos como a “preocupação com os bons costumes, referências a discussões mundanas da
época ou às intrigas dos gabinetes ministeriais, em suma esses magazines indicavam tudo o que se devia
saber para fazer parte da ‘boa sociedade” (SEGUIN DES HONS, 1986, p.27).
Consideradas como usufruto da imprensa brasileira, revistas como a Fon-Fon! transformam-se em
tendência, e iniciam como ditaduras de novos modelos de comportamento em todos os âmbitos do cotidiano
(NARRES, 2007, p.100). Entretenimento, moda, humor, recreação, entre outros, tornam-se profundamente
ligados ao hábito da classe burguesa brasileira. Esse novo modo de fazer imprensa no Brasil buscava
aproximar-se dos modos franceses e, com as chamadas “historietas ilustradas”, introduziram a caricatura
como narrativa no Brasil (MARTINS, 2008).
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Apesar de ter sua sede de publicação residente no Rio de Janeiro, a sua distribuição englobava São
Paulo, Paris e Londres, além de muitas outras cidades e capitais do Brasil, o que ampliava consideravelmente
o público ao qual se destinava (MIRA, 2013, p.17). Para Narres (2007, p.100), este intercâmbio entre os
países deve-se ao fato de que grande parte da “inteligência” brasileira da época situava-se na região Sudeste
no Brasil, e no eixo cultural Londres-Paris. A Fon-Fon! foi uma revista que passou de geração em geração, e
permaneceu em voga, passando de grupos em grupos de editores e proprietários, até seu fim em 1958.
Transformações sociais, transformações no espaço
Seguindo o caminho trilhado pelos tempos de ouro do café, os poderosos procuravam maneiras de se
identificar cada vez mais com as grandes potências mundiais, como os Estados Unidos, mas, principalmente,
a França. Nesse viés, para Sevcenko (1999), buscaram – além da criação de novos meios impressos e da
imposição de novos modos –, a “regeneração” da cidade do Rio de Janeiro, recentemente definida como o
distrito federal do Brasil.
De acordo com o autor:
A expressão ‘regeneração’ era por si só esclarecedora do espírito que presidiu esse
movimento da destruição da velha cidade, para complementar a dissolução da velha
sociedade imperial, e montagem de uma nova estrutura urbana (Ibidem, p. 30).
Ainda de acordo com o autor (Ibidem, p.27), a “penetração intensiva de capital estrangeiro” ativou a
“cadência dos negócios e a oscilação das fortunas”, o que incentivou as frenéticas mudanças sociais,
econômicas e políticas que tendenciaram o ritmo de vida dos brasileiros, principalmente na capital federal.
O dicionário2 define regeneração como:
1. Renascimento de quem recebeu a graça pelo batismo ou peça penitência; 2. Segunda
vida, segundo nascimento, revificação, refortalecimento; 3. Recuperação moral ou
espiritual, emenda de vida; formação ou produção, em segunda instancia, do que estava
parcial ou totalmente destruído; reconstrução; restauração. [...]
Por meio dessas definições pode-se compreender melhor a razão do uso dessa palavra: buscavam a
reprodução dos modos de vida de cidades e países que consideravam “civilizadas”, como uma espécie de
segunda vida, renascimento; bem como buscavam a substituição dos modos, costumes, arquitetura,
literatura, dentre muitos outros aspectos considerados retrógrados ou que remetiam à antiga sociedade
brasileira. Restauraram espaços, prédios e ruas para que se adequassem ao gosto do “novo brasileiro”; por
2
Dicionário Online Houaiss Beta. Disponível em: << http://houaiss.uol.com.br>>. Acesso em: 28.Jul.2014.
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meio de novas regras da sociedade ou, por vezes, novas leis procuravam reformar os conceitos de
moralidade, dos hábitos, do vestuário, tentando substituir o local e buscando reproduzir tudo o que aprendiam
no “estrangeiro”.
Sob a perspectiva da semiótica greimasiana, a regeneração dos espaços é uma espécie de
tratamento, numa tentativa de “curar-se” dos “mitos” da origem e destino da cidade, tentando ocultar o
passado e disfarçar seu provável futuro (Greimas, 1976). Esclarecemos o que se entende aqui por espaço,
com Greimas e Courtés (2011, p.177):
O termo espaço é utilizado em semiótica com acepções diferentes, cujo denominador
comum seria o ser considerado um objeto construído [...]. A construção do objeto-espaço
pode ser examinada do ponto de vista geométrico [...], do ponto de vista psicofisiológico
[...], ou do ponto de vista sociocultural (como a organização cultural da natureza: exemplo,
o espaço construído).
Por esse viés, principalmente no que tange ao espaço do ponto de vista sociocultural, o espaço
público era transformado e a sociedade burguesa buscava novos padrões que se adequassem a esse novo
espaço, e para isso, seguiram alguns “passos” para alcançar novos status e assegurar de vez o fim da velha
sociedade Imperial. Procuraram negar alguns elementos de cultura popular e local, e, para isso, condenaram
costumes e hábitos da “antiga” sociedade; bem como, foi implementada uma “política rigorosa de expulsão
dos grupos populares da área central da cidade, que será praticamente isolada para o desfrute exclusivo das
camadas aburguesadas”; desse modo, procuraram se identificar com o cosmopolitismo da vida parisiense
(SEVCENKO, 1999, p.30). Assim, de acordo com Sevcenko (Ibidem, p.29), o Brasil poderia oferecer ao
mundo uma imagem de credibilidade e acabar por conquistar uma parte da “fartura, conforto e prosperidade
em que já chafurdava o mundo [considerado como] civilizado”. Para acompanhar tal progresso, o alinhamento
aos padrões e ao ritmo da economia europeia era essencial para alcançar tais objetivos, e assim – para
Sevcenko (Ibidem, p.29) –, “a imagem do progresso – versão pratica do conceito homologo de civilização – se
transforma na obsessão coletiva da nova burguesia”.
Era preciso, portanto, reestruturar a cidade, higienizá-la, tirar a sujeira do centro da cidade, tiraram os
negros – antes escravos –, e também, os mendigos dos locais mais importantes da cidade para reformá-la,
para que apenas o limpo e organizado seja visível na “cidade maravilhosa” (RAGO, 2014). O país, e,
principalmente o Rio de Janeiro, precisava se modernizar para acompanhar o compasso de “progresso”
frenético das grandes capitais do mundo. E nessa busca, houve inúmeras reformas nos espaços públicos do
centro da cidade, foram criadas grandes avenidas, foram instaladas fiações elétricas em todo o centro, e tais
mudanças, ou melhor, os “Melhoramentos Municipaes” foram noticiados pela Fon-Fon! , como mostramos
abaixo:
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Figura 1: Esta imagem ocupa uma página da revista Fon-Fon! (25/06/1910 – n.26 – p.24-25), e que deve ser lida na
horizontal. Contém o seguinte título e descrição: “Os melhoramentos Municipaes – O novo calçamento a asphalto
na rua S. Francisco Xavier, iniciado e concluído na administração do Dr. Sezedello Corrêz.”. Na imagem acima
pode-se ver os novos trilhos do bonde, as fiações elétricas e uma rua claramente limpa e organizada após passar
pelo processo de “regeneração”.
Os cronistas da época – de acordo com Sevcenko (1999) – chamaram de “regeneração” as
mudanças ocorridas na cidade do Rio de Janeiro na época. Ainda para o autor (Ibidem, p. 30), era “a
‘regeneração’ da cidade, e por extensão, do país”. Surge uma nova classe, bastante conservadora e que
busca um “decor urbano à altura de sua empáfia” (Ibidem, p.30). Portanto, era esse novo decor que a FonFon! buscava explicitar constantemente em suas publicações do ano de 1910.
Todas as transformações, ou, regenerações do espaço – para Greimas (1976, p.118) –, atreladas às
práticas sociais organizadas em programas do fazer, podem ser lidas como significantes, ou melhor,
ressignificantes. É como se essas transformações pudessem ser definidas “ao mesmo tempo como inscrição
da sociedade no espaço e como leitura desta sociedade através do espaço”, respectivamente, significante
espacial e significado cultural (Ibidem, p.118). Desse modo, a Fon-Fon! como enunciador das narrativas que
incorporava, tem um papel primordial como construtor de simulacros da “nova sociedade brasileira”. Novas
avenidas, novas ruas, novos edifícios, enfim, uma cidade reescrita com novos significantes espaciais para a
capital brasileira; enquanto a sociedade buscava se regenerar em outros aspectos para se adequar a esses
novos espaços.
A partir dessas análises aqui demonstradas e das demais que foram realizadas no desenvolvimento
da dissertação, tem-se um cenário no qual a Fon-Fon! busca um papel de mediação enquanto informante dos
sujeitos-leitores, num fazer-saber aos leitores as novidades sobre o “novo” país, em outras palavras, do
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simulacro do que é ser brasileiro nesse “novo” Brasil, mas, claro, considerando que nesses casos, alguns
grupos sociais são compostos por sujeitos “um pouco mais sujeitos” que outros. (LANDOWSKI, 2012, p.32)
Considerando como Landowski (Ibidem, p.32), que esses processos informativos, como os da revista
aqui estudada, “têm por efeito introduzir entre os sujeitos, transformados em atores sociais, toda espécie de
disparidades [...] papeis e posições relativas, que interdefinem os indivíduos ou os grupos e os diferenciam
uns dos outros”. Nesse contexto, tem-se o papel da revista que estudamos como instaurador do discurso de
colocação de alteridades e disparidades entre os sujeitos e objetos construídos instalados no espaço, as
mudanças topológicas concretizam as mudanças sociais em conjunção com o objeto de valor da burguesia
brasileira. Tinham como objetivo instalar no Brasil a Europa – principalmente a França.
De acordo com Rosane Feijão (2011, p.22):
A reforma, que decorreu de um esforço conjunto de autoridades ministeriais e municipais,
teve como principal articulador o prefeito Pereira Passos. A formação francesa de Pereira
Passos e seu profundo conhecimento das reformas parisienses da década de 1870 foram
decisivos nos partidos tomados na reforma no Rio.
Assim, é possível identificar que nesses processos, houve a tentativa de se assimilar a estes outros,
e, ao mesmo tempo, de acordo com o discurso que analisamos, procurou-se excluir aqueles que seriam seus
semelhantes, que se configurariam como identidade, os próprios brasileiros. Nos discursos, encontramos
traços de identificação com o que seria a alteridade – sendo considerada assim identidade – e, traços de nãoidentificação/exclusão com o que seria considerado identidade – dessa forma, consideradas alteridades.
Tendo estes valores postos, partiremos, a seguir, para as relações destes valores com as modas e suas
mudanças durante as análises das capas.
Os espaços transformados e a moda
Dadas as contextualizações, partimos para uma análise de capa da revista estudada e suas
narrativas, que possibilitará a compreensão do que se realiza no presente estudo. As capas analisadas, como
um discurso, são estruturadas por valores de base, organizados por narrativas no qual são construídos
sujeitos colocados como actantes e em busca de objetos de valor, que, por fim, são figurativizados e
tematizados na concretização do nível discursivo da enunciação. É no nível discursivo que se tem “o modo
como se concretizam as oposições do nível das estruturas fundamentais, os sujeitos, os valores e os objetos
apresentados no nível das estruturas narrativas num revestimento semântico mais concreto” (CASTILHO e
MARTINS, 2005, p.74). As revistas, como a Fon-Fon! são um importante suporte e criam simulacros do leitor,
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destinatário programado desses discursos. Este tipo de suporte incorpora discursos sobre modas e modos e
buscam, no nível narrativo, manipular num “fazer persuasivo de um sujeito sobre outro(s) sujeito(s) para
produzir um certo fazer desse sujeito manipulado” (OLIVEIRA, 2002, p.129). Aquele, como destinador do
discurso, e este, como destinatário desse fazer manipulador que, normalmente, nesse meio, pode se dar por
sedução e tentação.
Os textos enunciados nas capas são relacionados a outros textos ao redor e estabelecem diálogos
com esses, assim, a intertextualidade traz textos e narrativas que, como mencionamos, se referem a outros
textos construídos anteriormente, a fim de expor, tanto a consistência da obra, quanto a produção de “efeitos
de sentido estéticos locais ou globais.” (CALABRESE, 2004, p.162). Assim, as capas são relacionadas ao seu
contexto já mencionado e ao seu intertexto relacionado especificamente às modas e modos.
Para Rosane Feijão (2011, p.21):
O fenômeno da moda sempre esteve ligado ao desenvolvimento das cidades. [...] No
século XIX, o surgimento das metrópoles coincide com uma nova fase de culto das
aparências, durante a qual uma parcela maior da população passa a fazer parte daqueles
que consomem as novidades incessantemente criadas pela sociedade industrial.
Com as novas cidades brasileiras “civilizadas” surgia uma “nova filosofia financeira nascida com a
República [que] reclamava a remodelação dos hábitos sociais e dos cuidados pessoais” (SEVCENKO, 1999,
p.28), o que incluía os modos de se vestir. O “novo cenário suntuoso e grandiloquente exigia novos figurinos”,
e assim, sobrecasacas e cartolas pretas que simbolizavam a austeridade exigida na sociedade imperial,
foram substituídas por trajes mais leves, como paletós de casemira claros e chapéus de palha.
Além dos trajes masculinos, o vestuário feminino era importado, principalmente da França e chegava
pelos navios, juntamente com o mobiliário, notícias sobre peças e livros de maior sucesso, sobre
“comportamento, lazer, as estéticas e até as doenças, tudo enfim que fosse consumível por uma sociedade
altamente urbanizada e sedenta de modelos e prestigio” (Ibidem, p.36). Essa era a Belle Epoque brasileira,
paradoxal; buscavam o “progresso” da nação com o melhoramento urbano, eliminação de doenças e o
‘embelezamento’ da cidade, mas, ao mesmo tempo, mantinham o desejo de ser estrangeiros, de morar no
estrangeiro.
Tais produtos importados que chegavam aos portos determinavam padrões a serem seguidos, e
esses, eram quase como leis ditadas e contavam com ‘fiscais’ da moral e dos bons costumes. Tal foi a
rigorosidade dessas medidas, que foi realmente criado um projeto que lei que obrigava os homens mais
distintos a utilizarem paletó e sapatos na região central da capital, o cumprimento dessa lei chegou até
mesmo a prender um cidadão por andar por aí sem colarinho. (Ibidem, p.33)
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A adequação aos padrões em voga era de tal forma importante e extrema que, segundo Sevcenko
(Ibidem, p.37):
[...] os seus beneficiários, encabeçados pelos jornalistas, procuram organizar-se para
garantir a sua manutenção, exigir a sua extensão a todos os pontos mais distantes e mais
recônditos da cidade e impedir retrocessos. Nesse sentido destaca-se o pioneirismo de
Luis Edmundo, à frente de sua Liga Contra o Feio, já em 1908, e Coelho Netto, liderando a
Liga de Defesa Estética em 1915.
Nesse cenário, a produção de roupas em série no Brasil se restringia a peças como manteaux, robes
de chambre e alguns acessórios – roupas básicas do vestuário feminino. Com exceção de roupas íntimas e
roupas da casa, a maior parte do vestuário era encomendado nas costureiras ou comprado nas grandes lojas
que contavam com pronta entrega de roupas importadas. No Rio de Janeiro, casas como a Notre Dame de
Paris, A Brazileira, O Barateiro, Casa Colombo, Casa Raunier e Parc Royal; em São Paulo, casas como a
Casa Allemã e a Mappin Stores, se encarregavam da venda dessas roupas importadas e de tecidos e
aviamentos também importados – considerando-se que os tecidos produzidos no Brasil eram ainda de baixa
qualidade. Muitas dessas casas contavam com suas próprias oficinas para reproduzir os modelos de roupas
europeias e oferecê-los para seus clientes (PRADO E BRAGA, 2011, p.50).
As pequenas produções que se instalavam no Brasil, no inicio da produção têxtil no país, auxiliados
pela experiência de alguns imigrantes na área, passaram a produzir alguns tecidos e algumas peças de
roupas e acessórios a partir do final do séc. XIX. Instalaram-se em algumas cidades como em Petrópolis no
estado do Rio de Janeiro, em Blumenau em Santa Catarina, na cidade de São Paulo, entre outros. Mas tais
confecções cresceram e aumentaram a produção apenas após a Primeira Grande Guerra – de 1914 a 1919 –
quando “houve a necessidade de substituição das importações de tecido” (Ibidem, p.54). No interior dos
estados, o comércio se dava pelos mascates e pelos vendedores contratados pelas próprias lojas, na maioria
imigrantes – dentre esses, libaneses, sírios, árabes, turcos e judeus – que viajavam pelas cidades levando
mercadorias aos consumidores, mercadorias essas que, muitas vezes, já haviam sido encomendadas por
meio de catálogos de compra divulgadas pelas próprias revistas, como a Fon-Fon!
Continuando com Prado e Braga (Ibidem, p.59):
Durante a Belle Epoque, muitas vogas foram lançadas na Europa, e o Brasil tentou copiálas na medida do possível. Vigorava, nas artes decorativas, nas artes aplicadas e na
arquitetura, o estilo art noveau, consagrado na Exposição Universal de Paris de 1900, que
propunha um retorno à natureza com a adoção da estilização de formas orgânicas, o que
evidentemente influenciou a moda de vestir feminina.
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Assim, a silhueta das mulheres passou a ser ainda mais curvilínea, seguindo as curvas de arabescos
do art noveau3 – que acompanhava os processos de industrialização e desenvolvimento de tecnologia –, e
nesse movimento estético:
A fonte de inspiração primeira dos artistas é a natureza, as linhas sinuosas e assimétricas
das flores e animais. O movimento da linha assume o primeiro plano dos trabalhos, ditando
os contornos das formas e o sentido da construção. Os arabescos e as curvas,
complementados pelos tons frios, invadem as ilustrações, o mundo da moda, as fachadas e
os interiores [...]. (Definição de Art Nouveau pela Enciclopédia Itaú Cultural4)
Os espartilhos foram mais constringidos, e agora, iam da altura dos seios à virilha das mulheres,
realçando seios e quadris – adornados ainda por rendas, laços e babados – comprimindo ainda mais a
cintura. As saias não eram muito amplas, o que não permitia grande liberdade de movimentação. Mas, para
as novas e grandes cidades brasileiras, e para se locomover nas movimentadas avenidas, as mulheres
precisavam de um pouco mais de simplicidade – o que não necessariamente implica a melhoria de seu
conforto.
Na imagem abaixo, capa da revista Fon-Fon! de 26 de março de 1910, façamos uma análise:
De acordo com a Enciclopédia Itaú Cultural, a definição de art noveau: “Estilo artístico que se desenvolve entre 1890 e a Primeira Guerra
Mundial (1914-1918) na Europa e nos Estados Unidos, espalhando-se para o resto do mundo, e que interessa mais de perto às Artes
Aplicadas: arquitetura, artes decorativas, design, artes gráficas, mobiliário e outras. O termo tem origem na galeria parisiense L'Art Nouveau,
aberta em 1895 pelo comerciante de arte e colecionador Siegfried Bing. O projeto de redecoração da casa de Bing por arquitetos e designers
modernos é apresentado na Exposição Universal de Paris de 1900, Art Nouveau Bing, conferindo visibilidade e reconhecimento internacional
ao movimento. A designação modern style, amplamente utilizada na França, reflete as raízes inglesas do novo estilo ornamental. [...] O art
nouveau dialoga mais decididamente com a produção industrial em série. Os novos materiais do mundo moderno são amplamente utilizados
(o ferro, o vidro e o cimento), assim como são valorizadas a lógica e a racionalidade das ciências e da engenharia. Nesse sentido, o estilo
acompanha de perto os rastros da industrialização e o fortalecimento da burguesia.” Disponível em:
<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo909/Art-Nouveau-> . Acesso em: 24 Set 2014.
4 Idem.
3
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Figura 2: Nesta capa nos deparamos com uma cena que
não parece muito usual, dado o contexto histórico-social
em que se insere – plano do conteúdo. No plano da
expressão, uma senhora sozinha em uma mesa do que
parece numa confeitaria – ou cafeteria – faz seu pedido ao
garçom, esse que se mostra prestativo ao atender a
senhora. A cena é posta sobre o título da revista e assim é
colocada como uma encenação que se dá na própria
revista, como um espaço no qual se dão as cenas
cotidianas e no qual elas são retratadas. A tipografia do
título, fluida e dinamica, remete à tipografia utilizada em
gravuras com estética art noveau o que reitera a estética
dos trajes principalmente femininos – melhor explicitado
abaixo. É, portanto, um processo de intertextualidade no
que está enunciado na capa, outros textos estão inseridos
nesse texto e assim interagem dialogicamente, como, por
exemplo, o movimento estético oriundo de outras culturas
e que são incorporados pelo enunciador e para os
enunciatários. Nessa narrativa, os actantes do discurso
não nos olham diretamente – nós, destinatários do
enunciado –, mas os enunciatários são colocados em cena ao serem colocados como observadores
dessa encenação dos actantes na enunciação.
Revista Fon-Fon!: 26/03/1910 – n.13. Disponível em: http://hemerotecadigital.bn.br/fon-fonseman%C3%A1rio-alegre-pol%C3%ADtico-cr%C3%ADtico-e-esfusiante/259063
Tal encenação, de acordo com Landowski (2012, p.129), “nos faz olhar os simulacros que constrói e
[...] nos faz ser ao contemplá-los”. Ou seja, para gerar esse simulacro, o destinador, ao enunciar, instaura
traços semânticos e os investe nos objetos “em relação de junção com o sujeito [do enunciado] e garantem a
este uma existência semiótica” (Ibidem, p.129).
Portanto, é gerado um simulacro do novo cidadão das novas cidades. Na cena, o traje do garçom é o
único figurado na cor preta, o que denota as mudanças mencionadas anteriormente, poucos eram os
cidadãos de classe que ainda se postavam de preto, exeto em ocasiões especiais que exigiam austeridade. A
senhora, mulher sozinha que faz seu pedido, segura em uma mão seu leque e em outra sua sombrinha,
acessórios essenciais para as senhoras naqueles tempos, ambos tinham cores e materiais específicos para
cada classe e condição social, e no caso, as sombrinhas protegiam a pele das senhoras e mocinhas que
deveriam manter a pele alva e branca para reiterar sua condição social por não ter que trabalhar expostas ao
sol; parece vestir uma shirtwaist, uma espécie de casaco sobre a saia com abotoamento frontal, que
normalmente eram de sarja ou linho importados – tecidos mais frecos para o clima tropical –, e era uma das
peças que simbolizava “o guarda-roupa da mulher moderna e prática” (FOGG, 2013, p.204).
Ainda nos trajes da mulher, mangas e chapéu denotam referências orientais; devido a expansão
territorial de países europeus sobre países asiáticos, às vestes foram incorporados traçados estéticos do
vestuário oriental, como da China, Japão, Micronésia e Índia – mas tais traçados não foram só no vestuário, o
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próprio movimento estético e arstisco do art noveau se constituia de muitas referencias orientais. Assim, o
formato do chapéu, as plumas e penas acrescentadas a ele, bem como as mangas amplas nas extremidades
e com aplicações de rendas – para deixar o casaco um pouco mais fresco para a realidade do verão carioca –
denotam as referencias estéticas orientais, em vigor na moda europeia, principalmente francesa, contando
com estilistas como Paul Poiret.
Conclusões
O presente trabalho buscou explicitar uma parte dos estudos realizados na dissertação de mestrado
que é realizada. Mais especificamente, procurou abordar as relações estreitas estre as transformações e
configurações dos espaços urbanos e a moda sob uma abordagem sociossemiótica.
No decorrer das descrições e análises, encontramos muito presentes os valores de assimilação e
exclusão, homologados tanto no plano da expressão quanto do conteúdo, dentre um grupo social dominante
com “uma espécie de auto-imagem idealizada” e que tende a “definir negativamente a alteridade daqueles
que ele não reconhece como sendo seus” (LANDOWSKI, 2012, p.33). São construídos simulacros de
identificação para com alguns estrangeiros e, ao mesmo tempo, simulacros de não-identificação, ou,
exclusão, daqueles brasileiros que não se adequaram ao socialmente ou esteticamente aceito. Relembrando
os valores citados anteriormente, público vs. privado, que configuram o jogo de interesses pela apropriação
do centro da cidade e expulsão dos “excluídos”, homologados aos valores de assimilação vs. exclusão de
Landowski (Ibidem), temos uma tipologia de valores postos aos sujeitos presentes e presentificados no
discurso da Fon-Fon!. Portanto, vimos que em 1910, é clara a assimilação direta com os hábitos e costumes
franceses, que se estendem ao espaço urbano. Tal assimilação passa pela negação de seus semelhantes e
aceitação de suas alteridades, características que, se analisadas, podem ser delimitadas até os dias atuais,
afinal, é de extrema importância compreender como se deram esses processos que construíram o que se vê
no cenário atualmente.
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