O PT, os movimentos sociais e a questão da participação: preocupações metodológicas no estudo das experiências de São Paulo e Porto Alegre Wagner de Melo Romão Resumo Os dois principais centros dinâmicos do Partido dos Trabalhadores – tanto por sua importância no país, como por sua importância na trajetória do partido – são as cidades de São Paulo e de Porto Alegre. Propõese um estudo comparativo das primeiras experiências da gestão petista nas duas cidades, no que diz respeito às condições de governabilidade, articuladas às propostas de participação popular e de relação com os movimentos sociais. O objetivo é demonstrar a diversidade dessas experiências, o que pode ser explicado pelas particularidades na relação do governo com o partido, nas relações com o Legislativo e no modo como se estruturaram as condições de participação popular. Palavras-chave Partido dos Trabalhadores, movimentos sociais, São Paulo, Porto Alegre 1 - Preocupações metodológicas O presente texto reflete parte das preocupações de minha tese de doutorado, em elaboração. Em poucas palavras, trata-se, nela, de investigar as relações do Partido dos Trabalhadores com os movimentos sociais, desde o período de formação do partido até o ano de 2004. O principal objeto da pesquisa são os governos municipais do PT, mais especificamente cinco experiências de gestão consideradas representativas tanto da diversidade interna do PT quanto da diversidade local das cidades administradas. São elas: Porto Alegre, São Paulo, Santo André, Belo Horizonte e Belém. Todos os governos petistas que governaram estas cidades em períodos entre 1989 e 2004, de uma forma ou de outra, trataram da questão da participação popular. Neste sentido, tocaram em uma das mais fundamentais teses do programa do PT: o exercício do poder pelos governos petistas deveria compartilhar as decisões com os “trabalhadores”, os “movimentos sociais”, o “movimento popular”, denominação que varia muito nos documentos do partido. 1 Evidentemente, a maneira como isso em realidade se efetivou, não só em cada cidade, mas também em cada governo (e mesmo em distintos períodos de cada governo), variou muito. Em geral, mesmo no interior de cada seção local petista havia muita divergência sobre como os governos deveriam se relacionar com os movimentos e com a população como um todo. Isso se refletiu, invariavelmente, no fato de que mesmo no interior de um mesmo governo, diversos órgãos de gestão tinham sua própria especificidade no modo de construir essas relações. A participação popular sempre foi uma das principais marcas das administrações do PT. O tema era alvo de muita disputa no interior dos governos e nos diretórios municipais do partido. Estas disputas, muitas vezes, extrapolavam para as instâncias nacionais do PT, sobretudo em momentos de crise intensa, como aconteceu com o primeiro governo petista em Diadema e, também, na gestão de Luiza Erundina em São Paulo. Estes governos, considerados “vitrines” do PT, foram marcados por vigorosas disputas e freqüentemente foram alvo de questionamento e tentativa de apaziguamento das partes pelos Diretórios Estadual e Nacional do partido. Ou seja, a argumentação em torno do tema pode ter tido sua origem em peculiaridades locais, mas, no entanto, se refletiu no redimensionamento das relações do PT com os movimentos sociais, e com a questão da participação nos governos do PT em nível nacional. Sem dúvida, a questão da participação e da relação dos governos petistas com os movimentos sociais não pode ser encarada sob uma perspectiva estreita, na busca de um sentido geral sobre a participação a partir do qual a direção partidária nacional disciplinasse este aspecto nos governos. Cada local constrói sua experiência participativa no confronto com a realidade que se coloca. Ao considerarmos a ação política e administrativa por esse prisma – sendo nosso objetivo buscar reflexos da realidade sóciopolítica imediata no andamento dos processos participativos – poderemos, talvez, construir parâmetros de análise que possam apontar as causas do sucesso ou fracasso desses empreendimentos, assim como poderemos avaliar as condições para a realização de processos participativos em determinados ambientes sócio-políticos. Um dos primeiros trabalhos relativos à questão participativa, com ênfase, nesse caso, na relação dos governos petistas com o próprio partido é o trabalho de Simões (1992) sobre a primeira experiência de governo do PT em Diadema, no ABC paulista. 2 Diadema configurou-se na primeira ocasião em que teve de ser comprovada a fidelidade do PT ao seu próprio programa, sobretudo no que se refere à participação popular. A vitória do PT em Diadema está ligada, evidentemente, à própria história política da cidade e, também, às características do pleito eleitoral de 1982, em que o mecanismo do voto vinculado fortaleceu o Partido dos Trabalhadores no contexto do ABC paulista – embora o tivesse prejudicado no resto do estado de São Paulo e do país1. O candidato a prefeito era o sindicalista Gilson Menezes. Ligado a Lula e, portanto, ao grupo que no ano seguinte iria formar a corrente hegemônica no PT até os dias de hoje (a Articulação), Menezes também tinha bom trânsito na esquerda do partido. Esta, por sua vez, formava a maioria do Diretório Municipal de Diadema, sendo as correntes mais expressivas a Democracia Socialista, a Convergência Socialista e a Causa Operária. O PT conquista a prefeitura em uma disputa apertada. Menezes teve 27,8% dos votos (23310 no total), enquanto os dois outros principais competidores, a legenda do PMDB teve 26,99% (22632) e o PTB teve 26,17% (21943). Ou seja, o PT se beneficiou da disputa partidária entre grupos tradicionais da política de Diadema e conseguiu alcançar a vitória por uma pequena margem de votos. O tema da participação popular – e também do controle do partido sobre o governo – foi o principal motor das disputas políticas internas entre o grupo do prefeito e o grupo hegemônico no diretório municipal do PT. Não é o caso, neste texto, de nos aprofundarmos sobre o caso de Diadema2. No entanto, é digna de nota a percepção de que os principais elementos de contradição sobre “os dilemas da participação popular” nos governos petistas já estavam presentes naquela que foi a primeira experiência de gestão de uma prefeitura pelo PT. Tendo por base o estudo da gestão de Luiza Erundina na prefeitura de São Paulo, Couto busca estabelecer os parâmetros para a mudança de linha política do petismo, sobretudo da porção regional do petismo que já manteve relações carnais com o “ser governo”. Embora Couto considere, com acerto, a idéia de que o PT se constitui como um partido “movimentista” - definição, segundo ele, avessa às teorias sobre partidos 1 O ABC paulista foi a região em que o PT melhor se saiu naquelas eleições, fruto do reconhecimento dos sindicalistas como lideranças políticas de peso. 2 Para uma análise bastante cuidadosa sobre o caso, ver Simões (1992). 3 políticos3 - seu enfoque se deu, sobretudo, quanto às mudanças internas do PT em seu contato a experiência de comandar o aparelho estatal. O fato de que o PT tenha assumido o comando de tantas prefeituras importantes no período provocou uma revisão das resoluções petistas que tentavam dar conta de sua relação com o Estado. O PT passou a assumir uma postura de partido “agregador”, como é característica dos partidos que comandam governos. Em outra formulação, Couto vê a assunção de uma “ética da responsabilidade” petista, em contraponto à “ética da convicção”, que expressava a aversão de origem ao Estado (Couto, 1995, p. 43). Os embates entre partido e governo se deram, em um primeiro momento, apenas na esfera municipal. Ou seja, era entre o governo do município e o diretório municipal respectivo que se davam as principais polêmicas em torno das decisões de governo. Porém, o fato de que o PT tenha ganhado algumas das principais prefeituras do país – São Paulo, Porto Alegre, Campinas, Vitória e outras – fez com que, quando as divergências entre governo e partido locais estivessem incontornáveis, os diretórios estaduais e, sobretudo no caso de São Paulo e Campinas, o Diretório Nacional, tivessem que intervir. Essas divergências fizeram com que o tema da relação entre partido e governo se tornasse uma preocupação fundamental do PT, naquele princípio de década de 90. Nesse momento, os principais debates do partido se dão em torno das metas a serem conquistadas nos governos municipais e sobre o embate entre petistas do partido e petistas do governo4. A crise petista entre 1989 e 1992, é a de um partido que, no entender de sua maioria, deveria seguir seu programa nos executivos das prefeituras. A prática petista de respeito às instâncias de decisão, em seus três (ou quatro, no caso das cidades com diretórios zonais) níveis – nacional, estadual e municipal – acabou fazendo com que os embates nos municípios fossem, a principio, estabelecidos no ambiente local. Em cidades importantes governadas pelo PT, como São Paulo e Campinas, houve incompatibilidade entre as direções das prefeituras e as direções dos diretórios municipais. Por principio, como se pode observar por exemplo nas resoluções do V Encontro Nacional do PT, 3 “Denominar um partido político como partido movimentista significa apontar nele um traço que não é característico, por definição, dos partidos.” Couto, p. 86. 4 Muitas obras tematizaram essa questão, entre intelectuais assumidamente petistas (que em muitos casos participaram dessas administrações) e estudiosos a princípio não pertencentes ao PT. Ver, por exemplo, Marcondes (1991), Singer (1996) e Couto (1995). 4 realizado em 1987, os candidatos a prefeito e a vereador deveriam se comprometer com uma série de pontos (?) que, na prática, colocavam o prefeito eleito numa relação de submissão ao Diretório Municipal respectivo. Chegando aos governos, no entanto, os prefeitos ficavam premidos pela necessidade de “governar para todos” (como no slogan da prefeitura petista de São Paulo), ao invés de governar apenas para a classe operária ou para o que o partido, em sua instância local, entendia ser a melhor forma de governar. Essa crise, que já estava bastante acentuada no ano de 1989 (primeiro ano de gestão), vai repercutir nas primeiras eleições presidenciais em 20 anos, em que Lula consegue ir ao segundo turno e quase vence as eleições. Em muitas grandes cidades, como São Paulo e Campinas, a prefeitura estava passando por períodos turbulentos5 e a avaliação que se fazia era de que a derrota eleitoral (por menos de 5% dos votos) teria acontecido em parte por conta dos problemas das prefeituras. Os efeitos dessa crise que se configurou com a chegada a importantes governos municipais, modificaram o partido nacionalmente. Não só porque ser governo na cidade de São Paulo e em outras cidades importantes dava ao PT a responsabilidade de influir na vida de milhões de cidadãos brasileiros, mas porque as instâncias estaduais e nacionais do PT se mobilizaram na tentativa de resolver os impasses na relação entre os governos e as instâncias locais do partido, constituindo-se, inclusive, novos arranjos institucionais partidários para dar conta das contendas locais6. Os estudos de caso, assim, devem ser norteados pela verificação e análise de alguns aspectos fundamentais das gestões. Embora os procedimentos metodológicos para estes estudos ainda estejam em fase de elaboração, a proposta é que as principais variáveis analíticas sobre as experiências locais de governo sejam as seguintes: a) conformação do ambiente externo, sentido amplo: características sociais, econômicas, políticas e históricas mais gerais do município em que se dá a disputa. Este aspecto pode ser importante para se perceber as condições gerais de freqüência dos movimentos sociais 5 Ver, por exemplo, o caso da cidade de Campinas, em Marcondes, Celso e o caso da cidade de São Paulo, em Couto (1995). Também seria interessante verificar as condições em que se deram o governo de Vitor Buaiz, em Vitória. 6 No caso de São Paulo, foi criado o Fórum das Três Instâncias, que agrupava membros do Diretório Municipal, Estadual e Nacional e membros do governo Luiza Erundina, na tentativa de diminuir as tensões entre o governo e a seção local do partido. 5 e da população nos processos participativos. Também pode explicar situações de confronto direto entre os governos petistas (aliados ou não aos movimentos sociais) e as elites locais, personificadas nos partidos políticos tradicionais. b) conformação do ambiente eleitoral: como se deu o processo eleitoral que levou o PT ao poder em determinada localidade. Pode-se, por meio desta avaliação, perceber o enraizamento da plataforma petista, bem como identificar as alianças políticas que podem ou não conformar prioridades de gestão. c) conformação interna da instância de decisão local do PT (na sua diversidade de correntes e forças políticas): número de representantes de cada “força”, posições-chave na estrutura partidária, peso político de suas principais lideranças, etc. Este aspecto pode influir sobre a sustentação política do governo petista e o sucesso de suas iniciativas. Por outro lado, os canais de participação abertos pelo governo são, invariavelmente, influenciados pelas forças políticas organizadas nos movimentos sociais, a maioria deles hegemonizadas pelo PT (ou partidos de esquerda). d) conformação dos poderes relacionados à administração: tamanho da bancada de vereadores, fidelidade da bancada, alianças para a governabilidade, acordos ocasionais, etc. Pode-se inferir a capacidade da gestão petista em implementar seus programas e projetos. Também se pode medir a validade institucional de propostas de mudança nos mecanismos decisórios do Estado. e) conformação governamental: alianças internas ao governo, distribuição de tarefas e cargos entre os petistas, etc. Como se dispõem as secretarias e organismos de gestão? Como os líderes de movimentos sociais se inserem no governo? A disputa interna no PT sempre se reflete em disputas no interior dos governos. Entendemos que estes pontos, acrescidos de outras dimensões que possam se apresentar ao longo da pesquisa, podem ser de grande valia para o estudo de cada uma das experiências de gestão petista, nas cinco cidades indicadas, e da comparação entre 6 elas. A partir destes estudos, poderão ser avaliadas as circunstâncias da instalação dos governos, bem como sua relação com os movimentos sociais e o modo como foi tratada a questão da participação popular. Como um objetivo mais de fundo, buscar-se-á avaliar o surgimento de determinados padrões de participação e de relação com os movimentos, que possam indicar certa uniformização nestes procedimentos. E, indo um pouco mais além, verificar se nos vários setores do governo Lula, a partir de 2003, é possível perceber permanências de gestão, a partir da presença de petistas oriundos destas experiências de governos locais, que possam dar determinado caráter à relação do governo com a questão da participação. Evidentemente, guardando as devidas proporções com relação às diferenças de escala entre a dimensão nacional e a municipal. Partimos, a seguir, para a análise comparativa, ainda que de modo bastante preliminar, dos governos petistas nas capitais dos estados de São Paulo e do Rio Grande do Sul. 2 - As experiências da primeira gestão do PT em São Paulo e Porto Alegre Porto Alegre e São Paulo são centrais no que se refere à construção do petismo. São Paulo é o núcleo inicial do PT e a cidade mais importante do país. Porto Alegre, além de ser uma importante capital brasileira, exerce papel importante no Cone Sul. É também, desde os anos 80, um dos principais núcleos do PT. Sua importância estratégica se ampliou ainda mais por ter sido governada por petistas durante um período de 16 anos. Tratam-se, é claro, de experiências distintas. Embora ambas as gestões petistas se iniciem com vitórias eleitorais em 1988 – ano em que o PT conquistou 36 prefeituras -, em Porto Alegre o PT conseguiu se firmar como o centro de um processo de conquista de hegemonia dos setores de esquerda na cidade, governando-a por quatro mandatos seguidos (1989-2004). Em São Paulo, depois de um primeiro mandato bastante conturbado, a experiência é interrompida por um período de domínio da direita malufista na cidade, que se conclui com um novo governo petista, liderado por Marta Suplicy, de características bastante distintas do primeiro. 7 O ambiente eleitoral e nas Câmaras Municipais Os primeiros sucessos petistas nestas capitais ocorreram quando ainda não havia segundo turno nas eleições. Este fato possibilitou que o PT pudesse se apresentar como alternativa e ganhar as eleições. Tanto em Porto Alegre – em que Olívio Dutra foi eleito com 34% dos votos na coligação PT-PCB-PSB – como em São Paulo, em que Luiza Erundina superou Paulo Maluf por com 29,84% dos votos, na coligação PT-PCB-PCdoB ficando Maluf com 24,45% - ocorreu uma divisão nas hostes de centro e direita. Essa situação se reverteria em dificuldades para a obtenção de qualquer base de apoio nas respectivas Câmaras Municipais. Nas duas cidades, a coligação que havia eleito o Executivo era minoritária. No entanto, o espectro partidário representado em Porto Alegre possibilitava ao governo compor uma maioria relativamente ampla. Com Dias (2002), a composição da Câmara em Porto Alegre era a seguinte: Composição da Câmara Municipal de Porto Alegre (1989-1992) Situação: 11 vereadores (PT – 9, PCB – 1, PSB – 1) Oposição: 11 vereadores (PMDB – 5, PDS – 4, PFL – 1, PL – 1) “Fiel da balança”: 11 vereadores (PDT – 11) TOTAL: 33 vereadores Assim, uma vez que a bancada do PDT geralmente apoiava os projetos do governo, Olívio conseguiu estabelecer certa folga em sua relação com o Legislativo. Isso foi importante para que o projeto do Orçamento Participativo – principal marca de gestão do PT e a confirmação de um compromisso assumido com os movimentos sociais de Porto Alegre – pudesse ser o menos possível prejudicado pela oposição na Câmara Municipal. Em São Paulo, embora o PT tivesse a maioria individual das cadeiras da Câmara, a soma dos vereadores oposicionistas superava amplamente aquele número. Composição da Câmara Municipal de São Paulo (1989-1992) Situação: 19 vereadores (PT – 16, PCB – 1, PCdoB – 1, PDT – 1) Oposição: 34 vereadores (PMDB – 9, PDS – 8, PSDB – 5, PTB – 5, PFL – 4, PL – 3) 8 TOTAL: 53 vereadores A inexistência de uma bancada que atuasse como o “fiel da balança”, como a do PDT em Porto Alegre, tornou a vida do governo do PT bastante difícil na Câmara de São Paulo. Em Porto Alegre, a aproximação ideológica com o PDT possibilitou a ampliação da base de apoio do governo, constituindo uma maioria relativamente segura. Além disso, no que se referiu às sessões de votação do orçamento, os movimentos, delegados do OP e população em geral ocupava as galerias da Câmara porto-alegrense, pressionando os edis a aprovar a proposta orçamentária do Executivo, construída nas plenárias do OP. Em São Paulo, além da inferioridade numérica na Câmara, havia nenhuma disposição do partido – e, pelo menos em um primeiro momento, também da prefeita – a negociar uma aliança de governo que viabilizasse uma maioria estável entre os vereadores. Conforme Couto, um documento do DM petista elaborado antes da posse afirmava que “a maioria absoluta permanente na Câmara não é essencial para a bancada do PT desenvolver suas atividades no Legislativo e no Executivo. Através da mobilização popular, em caso de votação de questões importantes para o povo e para a cidade, e através da subscrição de emendas populares poderemos estabelecer uma nova relação de funcionamento do Legislativo municipal, onde a pressão popular poderá forçar alianças pontuais tanto para os projetos elaborados pelo Executivo como aqueles apresentados pela bancada petista” (Couto, 1995, p. 202-3)7. Essa expectativa com relação à capacidade da participação popular subverter a ordem institucional – mudando, na prática, uma situação minoritária na Câmara – também se refletiria na proposta petista de Conselhos Populares, que será discutida mais à frente. Na realidade, em poucos momentos houve mobilizações de vulto contra os parlamentares oposicionistas e, quando isso ocorreu, estes pouco se impressionaram, aplicando derrotas seguidas aos projetos do governo, principalmente na segunda metade do mandato. 7 O referido documento, citado por Couto (1995), se intitula “Política de alianças do PT em São Paulo”, sem data especificada. 9 As relações internas ao PT em São Paulo e Porto Alegre Quanto às relações entre o governo e o PT, também o governo petista em São Paulo se viu em dificuldades. Em Porto Alegre tinha expressiva maioria a união da Articulação, de Olívio Dutra, com o agrupamento de Tarso Genro à época, denominado Nova Esquerda. Estes dois grupos se contrapunham ao campo da Democracia Socialista. Esta, por sua vez, era a tendência que dirigia o GAPLAN (Gabinete de Planejamento), que coordenava os trabalhos do Orçamento Participativo. Havia, portanto, a hegemonia dos grupos ligados ao prefeito e ao vice-prefeito. Mas as tendências minoritárias não deixavam de participar ativamente do governo (Filomena, 2006) Em São Paulo, a situação era bastante diferente. Luiza Erundina teve como seu concorrente nas prévias do partido Plínio de Arruda Sampaio, que então representava o grupo dos moderados no PT. Couto (1995) divide os apoios internos dos dois candidatos do seguinte modo: Plínio: Setores hegemônicos da Articulação em São Paulo, Direção Nacional do PT (Lula), maioria dos setores da Igreja e independentes. Erundina: PPS, PRC, DS, O Trabalho, Convergência Socialista, PT na Capital (PT Vivo), MCR, Contratempo, Setores minoritários da Articulação, minoria dos setores da Igreja e independentes. Erundina, em disputa interna acirrada, conquista o direito de ser a candidata do PT com 55,9% dos votos válidos da prévia petista, contra 44,1% de Plínio. A direção municipal (estadual e nacional também) do partido sai derrotada da disputa em São Paulo. Já no período eleitoral, os grupos dominantes do DM deslocam-se para a campanha em São Bernardo, abandonando a campanha de Erundina. Depois da vitória de Erundina, começaram a aparecer as rusgas. A nomeação do secretariado e dos administradores regionais se deu à revelia da direção municipal do PT. Meses depois, a situação se agravaria com o apoio da grande maioria do governo, inclusive de Erundina, ao advogado Hélio Bicudo à presidência do Diretório Municipal, contra Rui Falcão. Este sai vitorioso. 10 Ocorreu também a desvinculação dos membros do governo de seus cargos no partido, uma vez que o DM considerou incompatível a permanência em dois cargos. No decorrer do mandato de Erundina, inúmeros foram os momentos de crise e tensão entre o governo e a direção partidária (elevação das tarifas de ônibus, greve dos funcionários da prefeitura, crítica ao “administrativismo” da gestão). Muitas foram as tentativas de diminuir as animosidades entre partido e governo, havendo, inclusive, em maio de 1991, a criação do Fórum das Três Instâncias8, que congregava os presidentes e secretários do PT em nível nacional, estadual e municipal, mais a representação do governo (Couto, 1995). As propostas de participação popular Nos meses que antecederam a vitória petista em 36 prefeituras em 1988, este era o tema da hora nos debates internos ao PT9. À falta de propostas concretas, o que havia era a convicção de que os governos petistas, pela própria característica da formação do partido, deveriam se diferenciar ao dividir o poder com o “povo”, “os trabalhadores”, os movimentos sociais. Assim, o termo “conselhos populares” se colocava como o mais apropriado para galvanizar o ideário participacionista do PT. De modo geral, as opiniões se dividiam entre aqueles que entendiam que os governos tinham algum papel no sentido de organizar os conselhos em conjunto com os movimentos sociais e, por outro lado, os que mantinham certa aversão a qualquer iniciativa estatal que pudesse tutelar os movimentos. Assim, entendiam que os conselhos deveriam “surgir” a partir dos próprios movimentos sociais e, em seguida, o governo petista deveria, praticamente, lhes transferir o poder de decisão sobre as políticas a serem adotadas na gestão10. 8 Já mencionado na nota 6. Textos importantes foram publicados na revista vinculada ao PT “Teoria e Debate”. Celso Daniel, que ganharia as eleições para o governo de Santo André, publica o artigo “Como viabilizar a participação popular no governo municipal” (março/1988). Também Ricardo Azevedo, então membro da Executiva Estadual do PT-SP, publica “Uma varinha de condão?” (setembro/1988), discutindo a proposta dos Conselhos Populares e as futuras administrações petistas. 10 Paul Singer, que foi secretário de Planejamento da gestão de Luiza Erundina, sobre a possibilidade de criação de um Conselho Popular que reunisse os movimentos sociais da cidade: “Na realidade, somente os movimentos populares poderiam ter criado o Conselho, mas com toda probabilidade não sentiam necessidade dele. Os movimentos setoriais – de saúde, de habitação, de creche – tinham acesso direto às secretarias respectivas e através delas disputavam as verbas do orçamento. Os movimentos locais tinham 9 11 O resultado disso, nas cidades em que o segundo entendimento era mais forte, foi certa paralisação nas atividades de gestão e planejamento dos governos. Mas, mais importante que isso – uma vez que os governos não poderiam ficar esperando pela iniciativa dos movimentos -, foi o estado de tensão gerado entre o governo e o partido que, sobretudo em São Paulo – assim como já havia ocorrido em Diadema -, batia-se pela proposta ortodoxa de governo por meio dos conselhos populares. A proposta de regionalização, que também se orientava pela idéia de gerar mais espaços de participação nas administrações regionais, também se transformou em foco de tensão no governo. A criação dos Núcleos Regionais de Planejamento, que tinham a função de articular as políticas setoriais da prefeitura – de origem nas Secretarias – com a realidade local, tornaram-se espaços de fortalecimento dos administradores regionais. Eles entendiam que os Núcleos poderiam evoluir organizativamente para as Subprefeituras, proposta presente na plataforma de governo de Erundina. Os Núcleos, assim, com os administradores regionais à frente, acabaram se transformando em grupo de pressão a favor da descentralização, entrando em contradição com os secretários de quem eram os delegados junto às administrações regionais. A prefeita Luiza Erundina, quando tomou conhecimento da situação, decidiu dissolver no ato os núcleos, numa das poucas decisões autoritárias que a vi tomar (Singer, 1996, p. 109). São Paulo também apresentou ações relativas à participação na formulação do orçamento. No entanto, de forma menos organizada do que em Porto Alegre. A participação popular compreendia sessões de escuta das comunidades ou dos grupos setoriais (saúde, educação, cultura) que, invariavelmente, ultrapassavam em muito as possibilidades de execução orçamentária e os limites de despesa propostos pela Secretaria do Planejamento. De posse das reivindicações, entravam em cena os secretários de cada área, cada um tentando provar que o seu setor deveria ser prioritário, tendo em vista as necessidades que atendia, a importância da população que dependia dos serviços prestados pelo órgão que dirigia, o posicionamento acesso às administrações regionais e através delas participavam da mesma disputa.” (Singer, 1996, p. 244). 12 ideológico do partido, as susceptibilidades da opinião pública, etc. (Singer, 1996, p. 113)11. Em Porto Alegre, o processo do Orçamento Participativo começou desde o primeiro ano de gestão, e houve capacidade de aperfeiçoar-se nos anos seguintes. A proposta do OP porto-alegrense incorporava a formação de uma esfera pública, nãoestatal, em que tanto o governo como a população de cada uma das 16 regiões da cidade fossem co-responsáveis pelo processo participativo. Apesar dos poucos recursos no primeiro e segundo anos de gestão, com a reforma tributária conquistada pelo governo junto à Câmara de Vereadores, houve um aumento substancial da capacidade arrecadadora própria do município. Os resultados, porém, só apareceriam em 1992, ano em que foi iniciada a maioria das obras escolhidas pela população nos primeiros dois anos do OP. Havia tempo, ainda, para que a execução dessas obras pudesse ser avaliada positivamente pelos eleitores que conduziram o PT novamente à frente da prefeitura de Porto Alegre (Genro e Souza, 1997, p. 25-6). A vantagem do OP do sul era a de que havia canais institucionais consolidados (ou pelo menos previstos e em processo de consolidação) entre as plenárias e a elaboração da proposta orçamentária a ser encaminhada para o Legislativo. Segundo Filomena (2005), a criação do GAPLAN trouxe para o centro de governo o setor de planejamento econômico e orçamentário “colocando-o ao lado” do Orçamento Participativo e da Coordenação de Relações com a Comunidade, o que deu “agilidade e efetividade” para a Administração Popular no “cotejo entre recursos disponíveis e as demandas da cidade” (BUCHABQUI, 1994 apud Filomena, 2005). Participação para além das “classes populares” Para além da proposta do Orçamento Participativo, existem outros aspectos da proposta de ações participativas do primeiro governo do PT em Porto Alegre que 11 Há que se lembrar que os prefeitos eleitos em 1988 tiveram que lidar com uma profunda crise tributária que atingiu com muita força seus mandatos, sobretudo nos primeiros anos de gestão. O modo como este aspecto foi solucionado, em cada uma das cidades a serem pesquisadas, é de fundamental importância para se avaliar o grau de satisfação dos movimentos sociais e dos participantes de plenárias do OP. Há uma concordância geral na literatura, e entre os membros dos governos petistas, de que quando existe resposta concreta por parte do governo às demandas elaboradas nos processos participativos, estes ganham legitimidade junto à população e passam a ser prestigiados por outros grupos sociais. 13 raramente são tratados pela bibliografia sobre o tema. Refiro-me aos novos marcos da relação entre o empresariado e o governo petista. O fato de o PT ter-se estruturado como um partido de esquerda, afeito ao socialismo, mas sem realmente defini-lo, possibilitou que nos momentos em que o partido vai desenvolvendo sua trajetória de ampliação para o governo de setores do Estado, obrigatoriamente ele tivesse que se haver com setores considerados, no mínimo, adversários de seu projeto de representação classista. No caso de Porto Alegre, a vitória de Olívio Dutra foi recebida com muita desconfiança e receio por parte do empresariado local (Silveira, 1997). No entanto, uma série de ações que beneficiavam os pequeno e micro-empresários – como projetos de comercialização de produtos, de disseminação tecnológica, etc. – fizeram com que a tensão inicial diminuísse. Isso se verificou quando, em maio de 1991, sob a coordenação do então vice-prefeito Tarso Genro, foi criado o Foro contra a Recessão e o Desemprego, formado em sua maioria por pequeno e micro-empresários. Tal iniciativa marca a passagem do PT de um partido fundamentalmente classista para um partido que propugna a unidade entre trabalhadores e empresários contra produtos das crises do capitalismo, como o desemprego e a recessão. Tal é o reflexo da entrada do PT no aparato estatal, em que a Administração Municipal precisa dar respostas às necessidades imediatas da população (Silveira, 1997, p. 47). Evidentemente, ações como essa fizeram com que o próprio empresariado local tivesse que matizar sua avaliação negativa do governo petista. Este tipo de iniciativa também ocorreu em São Paulo. Sua maior expressão foi o chamado Foro da Cidade, criado em 1991, que buscou encontrar saídas para a crise econômica gerada pelo Plano Collor. O objetivo era reunir representações de empresários, dos sindicatos de trabalhadores e dos movimentos populares, mais representantes do Executivo e Legislativo, para encontrar propostas de retomada da atividade econômica e para a geração de empregos. Começava a se constituir, assim como depois em Porto Alegre (como foi discutido há pouco), uma nova idéia de participação nos governos petistas, que consistia em reunir classe e grupos sociais, de interesses contrapostos, em foros representativos, para o amplo debate e construção conjunta de soluções. Apesar da incipiência destes Conselhos, várias experiências como essa ocorreram na gestão Erundina, como os fóruns de negociações tripartite em 14 momentos de greve do funcionalismo, incorporando, além do governo e dos sindicatos dos funcionários, representantes dos usuários/sociedade civil; o Conselho Municipal de Tarifas; o Conselho Municipal de Valores Imobiliários; e outros (Singer, 1996). 3 – Considerações finais Os processos participativos e a relação dos governos petistas com os movimentos sociais não podem ser analisados em si mesmos. É preciso considerar – com base nos cinco pontos propostos na parte 1 deste texto – as circunstâncias externas a estes processos, para que se possa perceber a real possibilidade de que eles tenham sucesso. Buscou-se aqui esboçar a análise de duas experiências de gestão do PT em governos de importantes cidades brasileiras, sob a óptica da participação popular. Após a caracterização destas experiências – não apenas em seus primeiros governos, mas também dos outros – e incorporadas as análises das gestões petistas em Belém, Belo Horizonte e Santo André, o que se pretende é estabelecer marcos analíticos sobre como a idéia de participação se transforma no PT e em seus governos ao longo destes anos, bem como o modo como os movimentos sociais se adaptam (ou ajudam a promover) às novas circunstâncias. 4 - Bibliografia Bittar, Jorge (org.). O modo petista de governar. (Caderno Especial de Teoria & Debate – PT-SP). São Paulo, 1992. Couto, Cláudio. O desafio de ser governo: o PT na prefeitura de São Paulo (1989-1992). São Paulo: Paz e Terra, 1995. Dias, Márcia Ribeiro. Sob o signo da vontade popular: o orçamento participativo e o dilema da Câmara Municipal de Porto Alegre. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2002. Filomena, César. 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