Se há uma crise dos
movimentos sociais,
então chegou o
momento de revigorar
princípios e valores que
estão há trinta anos na
base da construção
partidária
e cidadãs, criados por governos de
extração popular e legitimados no
contexto do avanço da democracia
representativa?
Essas são apenas algumas das
questões que se colocam neste final de
governo Lula sobre o rótulo genérico
de “crise dos movimentos sociais”. O
padrão de análise parte, em geral, da
comparação entre o papel político e
as formas de organização e de luta dos
movimentos sociais desempenhados
desde o final da ditadura militar, fins
dos anos 70 e começo dos 80 do século
passado, e os hoje representados num
contexto histórico profundamente
alterado, ao final de oito anos de um
governo conquistado e mantido com
o apoio da maioria da militância dos
movimentos sociais organizados. No
interregno entre os dois polos, doze
anos de hegemonia opressiva do
neoliberalismo como filosofia oficial
do Estado brasileiro.
Jesus Carlos
Renato Simões
Inúmeros são os estudos
que buscam refletir sobre
a crise dos movimentos
sociais no Brasil. Teriam eles desaparecido, se transformado em meras
correias de transmissão de partidos,
governos, mandatos parlamentares
ou organizações não governamentais?
Ou, na contramão dessa análise, estariam esses movimentos num patamar
superior de organização e participação nas decisões que dispensariam as
formas tradicionais de luta que marcaram períodos anteriores? Seriam
os movimentos sociais apenas atores
políticos instrumentais, conjunturais,
acionados se necessário, de acordo
com estratégias de protagonistas de
maior quilate, como partidos e governos? Nesse sentido, haverá relevância
nesses movimentos diante de espaços
institucionais de participação popular
que estabelecem canais efetivos de
relação entre o Estado e os cidadãos
Cenário dos anos
Teoria
Debate
86 H janeiro/fevereiro
2010
Atoe do
movimento
contra
a carestia, na Praça da Sé (SP),
em 1979
20
Movimentos sociais
tica, sem discriminações de ordem
social e cultural. A amálgama dessa
militância comum era um ideário socialista, mais explicitado por uns e
umas que por outros e outras, que fornecia a liga ideológica que mesclou
coragem e generosidade de valorosa
geração de militantes.
A elaboração do PT sobre os movimentos sociais era original e consistente para um período de nascimento
de sua identidade política. A originalidade do PT no cenário da esquerda,
no Brasil e no mundo, alcançou, entre
outras elaborações importantes, a
relação entre partidos e movimentos
sociais. Propondo-se a superar a clássica dicotomia entre partido de quadros e partido de massas, o PT colocou-se temas sobre os movimentos
avançados em relação à elaboração
instrumental da “correia de transmissão”, preconizada pelos partidos e
organizações comunistas tradicionais.
Entre eles, a autonomia dos movimentos sociais em relação aos governos e
aos partidos, incluindo-se aí o próprio
PT. Na visão estratégica do V Encontro Nacional em meados dos anos 80,
essas ideias foram compiladas na clássica estratégia de acúmulo de forças
em que o partido se prevalece da luta
institucional e da luta de massas para
o avanço da consciência socialista e
do projeto político transformador.
A derrota eleitoral de 1989 abriu espaço para que as elites inaugurassem
doze anos sucessivos de governos neoliberais, que se colocaram como um
dos objetivos de suas políticas a repressão, o enfraquecimento e o enquadramento dos movimentos sociais e populares. Collor e, posteriormente, em
escala mais profunda, FHC acoplaram
como elemento essencial à aplicação
da agenda neoliberal a quebra de direitos das classes trabalhadoras e da
espinha dorsal de sua organização,
Bel Pedrosa/Folha Imagem
A título de notas sobre o assunto,
pelo caráter do presente texto, é interessante fazer alguns destaques.
O contexto político de irrompimento
dos movimentos sociais no cenário político dos anos 1980 é irrepetível, e,
mesmo tendo marcado de forma indelével os vários instrumentos de luta ali
criados, não é mais determinante em
suas formas de ação e de elaboração
política no presente. PT, CUT, MST,
movimentos sociais urbanos e outras
expressões do avanço da luta de classes e da luta democrática contra a
ditadura foram construídos num momento de ampla hegemonia socialista na condução da organização popular pelas vanguardas geradas na
resistência contra o regime de exceção.
A Igreja Católica, hegemonizada pelas
ideias da Teologia da Libertação, era
um espaço de formação de quadros
para a maioria das organizações populares e sindicais e para o processo
de formação de base do próprio PT. O
caráter militante de uma grande parcela da vanguarda das lutas sociais se
expressava em sua participação em
várias frentes – sindicalistas militavam
na organização de seus bairros, lideranças de comunidades de base eram
sindicalistas e presidentes de associações de moradores, oposições sindicais
eram formadas nas fábricas e nos bairros, todo mundo se reunia para discutir política e a criação do PT, e não
havia distinção entre as várias frentes,
entendidas pela militância como expressões diferenciadas de uma mesma
luta – por uma sociedade sem exploração econômica, sem opressão polí-
Greve dos petroleiros (1995): neoliberais tentam exterminar com organização dos trabalhadores
80 é irrepetível
21
Teoria e Debate 86 H janeiro/fevereiro 2010
então ancorada no movimento sindical. A destruição de milhões de empregos formais, seja pelo desemprego,
seja pela introdução de novas tecnologias e formas de gestão do trabalho,
diminuiu o peso quantitativo das classes trabalhadoras organizadas sindicalmente. A repressão institucional a
greves e outras manifestações sindicais, a criação de um sindicalismo de
resultados voltado à disputa política
com o sindicalismo combativo da
CUT, então expressão nacional única
das classes trabalhadoras, e o caráter
de resistência das lutas então verificadas afetaram a qualidade dos movimentos sindicais, forçados a inúmeras concessões internalizadas
mesmo em períodos posteriores, com
adversa, que rapidamente se incorporou também ao pensamento dominante, mesmo em períodos posteriores,
com correlações de forças mais favoráveis. Esse pragmatismo levou, de
certa forma, a uma diluição política e
programática das várias organizações
de esquerda e à adoção de táticas de
intervenção política que dialogavam
com ditames neoliberais. O que foi verdade, nesse campo, para efeito da condução de políticas públicas em administrações municipais de esquerda, que
adotaram discursos e práticas de concessão, privatização ou terceirização
de serviços públicos, por exemplo, foi
igualmente verificado em acordos sindicais mais tolerantes com a flexibilização de direitos ou em novas formas
O desgaste das políticas neoliberais
brasileiras produziu alternativas essenciais
para a vitória de Lula em 2002
correlações de forças mais favoráveis
às lutas sociais.
O principal impacto do neoliberalismo no PT, na CUT e nos movimentos
sociais não foi econômico ou político,
mas especialmente ideológico. A prolongada hegemonia neoliberal, a virulência de sua ofensiva ideológica e a
perda de paradigmas de esquerda que
entraram em crise com a queda dos
regimes do chamado “socialismo real”
promoveram uma revolução cultural
e ideológica na esquerda. O chamado
“fim da história” preconizado pelos
arautos do neoliberalismo e as dificuldades da resistência introduziram na
esquerda e em suas principais organizações partidárias, sindicais e sociais
um pragmatismo correspondente à
convivência possível com uma situação
de relação dos movimentos populares
com o espaço institucional transgressoras do princípio da autonomia.
Os anos 90 marcam maior dependência dos movimentos sociais das
estruturas partidárias, parlamentares
e governamentais e uma ênfase maior
nas ações de natureza institucional
sobre as ações diretas de massa. Seja
pelo enfraquecimento das estruturas
sindicais, seja pelo crescimento da
pobreza e da violência nas periferias
urbanas, movimentos populares se
encolheram nos anos 90 e definiram
estratégias de resistência calcados em
mandatos parlamentares, governos e
na ação institucional. Para tanto, contribuíram também a ofensiva conservadora na Igreja Católica e sua reforma
interna sob o papado de João Paulo II,
Teoria e Debate 86 H janeiro/fevereiro 2010
22
bem como as dificuldades de criação
de organismos nacionais representativos e autossustentados que pudessem
assumir tarefas de maior fôlego político e de ampliação do trabalho de
base e formação de novas lideranças.
Mesmo priorizando a luta institucional, PT, CUT e movimentos sociais
estabeleceram fóruns de luta de resistência ao neoliberalismo e uma estratégia eleitoral comum que levaram à
eleição de Lula em 2002. Em vários
momentos da resistência, como na
campanha do Fora Collor e nas mobilizações do Fora FHC e do Fórum
Nacional de Lutas, foi possível encontrar espaços de luta comum que lograram isolar o Brasil de outros países
latino-americanos e europeus devastados completamente pelo neoliberalismo. Derrotas pontuais importantes
foram impostas aos governos e o desgaste de suas políticas produziu a
emergência de alternativas que foram
fundamentais na vitória eleitoral de
Lula em 2002.
O dinamismo dos movimentos sociais, ainda que numa conjuntura adversa como a dos anos FHC, não foi
aproveitado pelo PT como elemento
importante para a disputa de projetos
sociais nos anos Lula. Particularmente no primeiro governo, a gravidade da
crise herdada e as opções políticas e
macroeconômicas adotadas para a
governabilidade afastaram um maior
protagonismo dos movimentos sociais
em torno de um programa mais avançado de transformações da sociedade.
Se por um lado vicejaram já nos anos
90 e avançaram muito até hoje novos
movimentos sociais relacionados aos
direitos de mulheres, negros e negras,
pessoas com deficiências, LGBTT, indígenas, crianças e adolescentes, entre
outros, por outro lado a conduta do
conjunto dos movimentos foi de ex-
Wilson Dias/Abr
Movimentos sociais esperam ver atendidos pontos essenciais do programa de governo de Lula
pectativa e apoio ao governo Lula, sem
maiores iniciativas de mobilização
social em torno de avanços reivindicados historicamente por esses setores.
A crise de 2005 e o segundo turno das
eleições de 2006, bem como a criação
da Coordenação dos Movimentos Sociais, foram momentos fortes de protagonismo dos movimentos sociais, com
reflexos fundamentais na conjuntura
política. A vitória política de 2006 e
teve com um de seus fatores fundamentais a mobilização dos movimentos sociais, em resposta a um embate
de projetos políticos que ficou mais
nítido com a adoção de uma polarização mais eficaz por parte da campanha. No entanto, um subproduto impor ta nte dessa at uação dos
movimentos sociais na campanha foi
a tomada de consciência de sua capacidade de intervenção política e da
necessidade de manter, em torno de
seus eixos de luta, mobilizações sociais
que disputem posições junto à sociedade e ao governo. A dependência
excessiva das iniciativas do governo,
que pautaram a ação dos movimentos
no primeiro governo Lula, significou
prejuízos relevantes tanto orgânicos
quanto de representatividade desses
movimentos em suas bases.
Houve avanços de participação popular e nas negociações dos órgãos do
governo com os movimentos sociais,
mas eles são insuficientes para definir
o caráter democrático-popular do governo e não podem substituir a autonomia dos movimentos sociais na defesa de seus interesses e reivindicações.
Esse parece ser o diagnóstico de uma
amplíssima faixa de lideranças de movimentos sindicais, populares e sociais
que apoiam o governo, o defendem dos
ataques conservadores, mas exigem
avanços mais consistentes. O I e especialmente o II Colóquio PT x Movimentos Sociais, este último realizado no
final de 2009, deixaram consolidado
que a imensa maioria dos movimentos
sociais, e sua fatia mais expressiva nacionalmente, não faz oposição ao governo Lula, nem o fará. Mas reivindica
o atendimento, ainda neste governo,
23
de pontos essenciais que fazem parte
do programa de governo e foram postergados e se dispõe a mobilizar bases
sociais nessa direção.
O programa de Dilma e sua campanha junto às bases dos movimentos
dependerão menos de afinidades e
mais de debate político. O atendimento de reivindicações e avanços sociais
conquistados neste governo é tido
como essencial pelos movimentos não
só pelos seus efeitos positivos na vida
da população, mas também para garantir avanços qualitativos para o
programa de um terceiro governo. Por
isso, temas como a autonomia dos
movimentos sociais em relação ao
governo, a retomada de bandeiras
históricas não contempladas pelo
atual governo e pelo atual Congresso
e as mobilizações como forma de ação
principal desses movimentos voltam
a circular com força dentro deles e do
PT, que precisa recuperar o atraso em
sua elaboração sobre a agenda política dos movimentos sociais. Se é verdade que a crise dos movimentos é
parte e fator da crise do PT, como elementos mais centrais de uma crise da
esquerda que ainda precisará de mais
tempo e elaboração para ser superada,
as soluções e alternativas a ela só serão construídas com diálogo, reflexão
e trabalho comum entre as várias organizações do campo democrático e
popular.
Este ano de 2010 será, portanto,
fundamental para essas tarefas. Vamos
a ele, com a determinação dos que sonham e lutam por valores, princípios
e ideais que não foram revogados ao
longo desses trinta anos, mas precisam
ser constante e urgentemente renovados e vividos em toda a sua radicalidade transformadora. ✪
Renato Simões é secretário nacional de Movimentos Populares e Políticas Setoriais do PT
Teoria e Debate 86 H janeiro/fevereiro 2010
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Se há uma crise dos movimentos sociais, então chegou o momento