TEMPLOS DA “VERDADEIRA” ARTE, ESPAÇOS INTERATIVOS OU
LOCAIS DE PROPAGANDA? Um estudo sobre o Museu de Arte do Rio Grande
do Sul.
BEN, Clarice Pinto – ULBRA – [email protected]
eixo: Educação e Arte / n.16
Este artigo trata de uma pesquisa desenvolvida durante o curso de Mestrado em
Educação da Universidade Luterana do Brasil, entre agosto de 2004 e setembro de
2006, focalizada no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), que é aqui
examinado como um espaço pedagógico, mas que atua para além das suas propostas
categorizadas como educativas. Utiliza-se, neste estudo, o conceito de pedagogia
cultural a partir de autores como Shirley Steinberg (2004) e Henry Giroux (apud Silva,
1999).
Steinberg indica que a pedagogia cultural está presente em diversas áreas sociais
e não apenas na escola. Para esta autora (2004, p.14), “áreas pedagógicas” são “lugares,
onde o poder é organizado e difundido, incluindo bibliotecas, TVs, cinemas”. O museu
de arte assume também dimensões pedagógicas e culturais na medida em que é um
lugar onde o poder organiza-se, difunde-se e produz identidades, bem como legitima e
produz conhecimentos sobre arte.
Em seus estudos sobre museus de História Natural, Timothy Lenoir (1997) e
Donna Haraway (apud Wortmann & Veiga-Neto, 2001) investigaram como, nos
museus, se configuraram historicamente visões da natureza, do homem e da vida1.
Baseada em alguns destes estudos, indico, que, em um museu de arte, se produzem
modos de ver e de categorizar a arte, bem como de disciplinar os corpos, pois, muitas
vezes, os objetos não podem ser tocados e há poucos museus de arte que propõem
algum tipo de interação. O MARGS, assim como outros, instituiu e legitimou visões de
arte em âmbito regional, contribuindo para que artistas e obras se tornassem autênticos e
reconhecidos.
São inúmeras as representações associadas aos museus nos tempos, as quais,
neste trabalho, indicam-se três: o museu como templo, espaço interativo e local de
propaganda. O museu, entretanto, nem sempre esteve relacionado aos mesmos
significados que o configuram nos dias de hoje. Cabe destacar, que busquei, neste
estudo, elucidar e relacionar as questões pertinentes aos museus no presente com outros
1
Timothy Lenoir realizou seus estudos sobre o Palácio de Cristal , em Londres e Donna Haraway sobre o
Museu Americano de História Natural.
2
significados que lhes foram atribuídos desde sua origem na Grécia Antiga, onde o termo
mouseion, ou “Casa das Musas”, foi usado pela primeira vez, passando pelo
Colecionismo e pela institucionalização dos museus no século XIX, onde passou a atuar
em uma dimensão mais educativa.
Desde o século XVIII e XIX, começam a surgir os museus públicos e, com eles,
a necessidade de se educar o maior número de pessoas possível. Benett (apud Rose
2001), inspirado na obra “Vigiar e punir: o nascimento das prisões” de Foucault,
ressalta que os museus modernos e as prisões surgiram, de maneira geral, na mesma
época e ambos tinham uma função disciplinar. Para Benett (apud Rose 2001, p. 74),
ainda, tanto as galerias como os museus
(...) eram defendidos como antídotos à embriaguez dos homens da classe
trabalhadora, como alternativa ao descontentamento e inquietação da
classe trabalhadora, e como meio de civilizar a moral e os costumes.
Procurei também, durante este estudo, indicar as mudanças de perfil sofridas
pelos museus ao longo do tempo, passando de guardiões dos tesouros (século XVIII) a
espaços de entretenimento2 (século XX). Assim como os espaços midiáticos se utilizam
da cultura high-tech, dotada de tecnologia avançada, para atrair melhor o público,
também os museus se modernizaram nesse sentido, como através das imagens que
disponibilizam em seus sites e das exposições que envolvem alta tecnologia, buscando,
como aqueles espaços, atrair e seduzir o público em busca de entretenimento.
Atualmente, é possível acessar qualquer museu do mundo pela internet, bem como as
exposições, obras do acervo, artigos, produtos, etc. A própria mídia proporciona ao
público, seja no âmbito profissional, escolar ou domiciliar, fazer releituras de obras de
arte no computador, como forma de aprendizagem, divertimento e interação.
Outra forma de entretenimento que os grandes museus, principalmente, hoje
abarcam é a mega-exposição ou mostra de grande porte. Régis Michel (Martins &
Longman, 2006), conservador-chefe de Artes Gráficas do Museu do Louvre em Paris,
discute esta questão comparando estes museus a máquinas de marketing. Dedico-me a
investigar, neste trabalho, como os museus hoje têm se configurado como espaços
globais, acompanhando uma tendência à internacionalização das mostras, embora se
verifique também a existência de particularidades locais, mas em menor escala.
2
O Museu Transnacional Guggenheim de Nova Iorque é considerado um museu-mundo, assemelhandose aos supermercados, onde no seu interior a cultura é espetacularizada, assim como o faz a mídia.
3
Abordando a questão da globalização, Néstor Canclini (1995), indica que nos
anos 1980, deu-se a redução do papel da valorização das culturas nacionais,
processando-se a abertura da economia de cada país aos mercados globais e aos
processos de integração regional. Ainda segundo este autor, isso se deu nos estilos de
arte, na publicidade, na moda, nas linhas editoriais que passaram a se estabelecer a
partir das redes globalizadas de produtividade e circulação de bens simbólicos3.
Segundo Canclini (1995, p.111), até meados do século XX, os museus nacionais
destacavam aspectos das identidades nacionais e, a partir de 1950, este cenário se
transformou, dando maior ênfase às “culturas-mundo” que “passaram a ser exibidas
como espetáculos multimídia”.
Algumas transformações foram observadas no MARGS, principalmente a partir
de 1998, em relação não apenas às tendências mundiais já citadas, mas também às
propostas de cada gestão associadas às políticas locais.
Procurei mostrar, neste estudo4, como se processam ações pedagógicas em um
museu, no sentido de exercer uma pedagogia cultural. Para Foucault (apud Rose, 2001)
as instituições funcionam através de seu aparato e de suas tecnologias. Hall (apud Rose,
2001, p.70) define o aparato institucional como “um conjunto de formas de poder/saber
que constituem as instituições: arquitetura, regulações, tratados científicos, declarações
filosóficas, a Moral, o Direito, etc., e o discurso articulado através de todos estes”.
Examinei a instituição museu de arte e os discursos que nele são postos em
circulação e produzidos em seus aparatos e tecnologias. Dentre os aparatos do museu
que analiso, estão a arquitetura do prédio onde o MARGS está instalado e as
ferramentas deste aparato, como fotos, CD-ROM e catálogos. Detive-me, também, no
exame da forma como os espaços de exposição estão distribuídos neste museu. Haraway
(apud Rose, 2001, p.78) se refere “as tecnologias institucionais como técnicas práticas
usadas para a articulação de determinadas formas de poder/saber: ‘as técnicas de
efetivação de sentidos’”.
Cabe salientar que constatei grande presença do elemento arquitetônico nos
materiais examinados no MARGS, como catálogos, CD-ROM, fotos de divulgação e
3
Acrescentaria, também, que os museus se inseriram no processo de globalização, embora estudos ainda
não mencionem a participação dos museus brasileiros.
4
Examino, neste estudo, aspectos e práticas processadas no MARGS, valendo-me principalmente de
considerações que Gillian Rose (2001) propõe acerca do modo de proceder a análises discursivas. O
estudo de Rose (2001), focalizado nas galerias de arte e nos museus e os seus modos de ver, me permitiu
lidar com o aparato institucional do museu e as tecnologias que nele atuam, bem como as práticas que se
processam na relação entre poder e saber, no campo da arte.
4
outras publicações. A arquitetura do prédio do MARGS destaca-se como principal
elemento de chamamento para conhecer e visitar o museu. Ressalto, ainda, que o prédio
do MARGS, embora não tenha sido construído para abrigar um museu, assemelha-se a
outros prédios de museus famosos pela suntuosidade de sua aparência.
0 prédio do MARGS utiliza elementos da arquitetura clássica, como portas e
colunas, e nos remete aos templos gregos, evocando a origem dos museus na Grécia.
Indico a associação do museu com uma espécie de santuário ou um templo, marcando o
museu como um lugar para guardar tesouros e conectar-se ao sagrado. Sendo assim, um
dos sentidos que poderiam ser atribuídos a este prédio incidiriam na construção de
representações de poder, de autoridade e da “verdadeira” arte.
Indiquei, também, neste estudo, a forma como os espaços de exposição do
museu está distribuída, estabelecendo algumas hierarquias e graus de importância e
visibilidade a determinadas expressões e formas artísticas. A grande pinacoteca, por
exemplo, abriga não somente exposições de maior porte, como também aquelas que se
pretende destacar mais, sendo considerada pelo museu como o espaço mais nobre. O
Café do MARGS, situado dentro do museu, não possui a mesma legitimidade que as
salas de exposições propriamente ditas, embora, também, se realizem aí mostras de arte.
Examino as tecnologias de exposição como tecnologias institucionais do museu,
evidenciando o modo como os objetos e imagens são exibidos no museu, os nomes
atribuídos às salas e as classificações procedidas para destacar aspectos pertinentes aos
objetos artísticos. Ao examinar algumas destas tecnologias de exposição no MARGS,
verifiquei que o visitante é concebido como um olho. Em uma exposição do MARGS
que analisei, destaco a neutralidade das paredes brancas, que segundo Rose (2001,
p.82), citando Brian O’Doherty, funciona como um espaço elástico:
(...) a minimalidade do espaço branco da galeria novamente produz a
ilustração como algo a ser contemplado separado de quaisquer outras
distrações; e novamente produz o visitante para tais galerias como
simplesmente um olho libertado pelas considerações outras que a aparência.
A comercialização de produtos, como canecas, livros e brinquedos na loja, a
reprodução de logotipos nas louças do café e a denominação de artistas nos pratos do
restaurante, principalmente nos museus maiores, também foram analisadas como
artefatos que permitem articular as questões de consumo e a eternização de exposições
temporárias. O museu assemelha-se, nesta perspectiva, ao museu-mercado.
5
No início das investigações que realizei no Núcleo de Documentação e Pesquisa
(NDP) do MARGS, em fevereiro de 2006, levantei indicativos que pudessem relacionar
o MARGS a aspectos regionais, devido a observação sobre a predominância de artistas
gaúchos no acervo, nas atividades e eventos deste museu. Embora não tivesse a intenção
de fixar uma identidade para este museu, pretendia estabelecer, como ponto de partida,
alguns pressupostos que apontavam na direção de uma possível regionalidade deste
museu.
Elaborei um quadro de atividades a partir de documentos do NDP do MARGS,
contendo informações retiradas de boletins de atividades, jornais e catálogos. Durante a
investigação, procurei estabelecer relações entre as mudanças que percebi terem
ocorrido nas atividades do MARGS e o contexto mais global com eventos locais. Tendo
como proposta indicar mudanças ocorridas no museu ao longo dos últimos quinze anos,
analisei atividades documentadas pelos profissionais do museu, bem como falas
expostas em entrevistas. Uma das mudanças que indico é que, até 1995, era dada uma
ênfase maior às propostas de exposições e atividades relativas a artistas do Rio Grande
do Sul e, a partir da reinauguração do museu em 1998, após a sua principal reforma
ocorrida no ano de 1997, passaram a prevalecer propostas voltadas a temas bem mais
globais. Apresento a tabela organizada a partir do estudo que realizei no MARGS, em
2006:
TABELA 1. Atividades do MARGS 1990 – 2005.
ANO
ACERVO
ARTE
GAÚCHA
ARTE
BRASILEIRA
ARTE
INTERNACIONAL
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997*
04
02
14
11
07
07
04
-
37
32
30
47
44
19
19
-
08
05
03
08
03
02
02
-
06
12
06
07
05
04
03
-
1998
1999
03
04
20
15
05
03
07
01
2000
04
25
03
05
2001
02
06
-
01
2002
2003
01
01
22
19
02
05
02
MEGA
EXPOSIÇÕES
“I Bienal do
Mercosul”
“II Bienal do
Mercosul”
“Missões”
“Florença”
“Biblioteca
Nacional”
“Brasil 500
Anos”
“Petit Palais”
“IV Bienal do
TOTAL
55
51
53
73
59
32
28
01
35
24
40
10
26
28
6
2004
01
17
02
06
2005
04
09
04
02
TOTAL
69
361
55
67
Mercosul”
“Tapeçaria do
Petit Palais”
“V Bienal do
Mercosul”
10
27
20
562
* No ano de 1997, o MARGS esteve fechado para reforma, tendo sido reaberto apenas durante a I
Bienal do Mercosul.
A análise deste quadro e dos aspectos levantados pelo texto foi amplamente
discutida em meu trabalho de dissertação, no capítulo “Analisando o MARGS”.
Pretendi, portanto, neste texto, fazer algumas considerações gerais sobre este estudo
analisado a partir do campo dos Estudos Culturais, mostrando configurações e
significados sobre arte que são produzidos no museu. Indiquei algumas relações de
poder-saber dentro da instituição museu de arte, das quais participam o poder público,
os artistas, os técnicos, os críticos de arte, os visitantes e, recentemente, fundações
culturais de identidades variadas.
Referências bibliográficas
CANCLINI, Néstor Garcia. Consumidores y Ciudadanos: Conflictos multiculturales de
la globalización. México: Editorial Grijalbo, 1995.
LENOIR, Thimoty. A Ciência produzindo a Natureza: o museu de História
Naturalizada. Episteme – Revista do Grupo Interdisciplinar em Filosofia e História das
Ciências, Porto Alegre, v.2, n.4, p.55-72, 1997.
MARTINS, Luiz Renato & LONGMAN, Gabriela. “Museus são máquinas de
marketing”. Folha de São Paulo, Caderno Ilustrada, E1, 01 de junho de 2006.
ROSE, Gillian. Visual methodologies: An introduction to the interpretation of visual
materials. London: Sage, 2001.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: Uma introdução às teorias do
currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
STEINBERG, Shirley & KINCHELOE, Joe L. (Org.). Cultura Infantil: A construção
corporativa da infância. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
WORTMANN, Maria Lúcia Castagna & VEIGA-NETO, Alfredo José da. Estudos
culturais da ciência & educação. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2001
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A PEDAGOGIA CULTURAL DO MUSEU DE ARTE