MARIA DO SOCORRO SOUSA DA SILVA1 AUXILIAR DE TESOURARIA 11 ANOS DE TRABALHO Expresso Guanabara Nascida em Quixadá, Ceará Idade: 31 anos Estado civil: separada Antes de trabalhar aqui na Expresso Guanabara, passei um tempo como pesquisadora da Auto Viação Fortaleza. Acho que hoje nem existe mais essa função... Um colega meu me indicara para o trabalho, em 1993. No começo, cheguei a achar esquisito... Pesquisadora? Mas pesquisar o quê?!! Depois, com o dia-a-dia, aprendi a tarefa. Eu ficava nos ônibus, junto com os cobradores nas catracas, anotando a quantidade de vales-transportes, meias-passagens e passagens inteiras que eles recebiam nas viagens. Isso porque era importante para a empresa era descobrir um jeito de diminuir o tempo de cada viagem. Em 1994, não tinha terminal, não tinha muitos carros... o transporte era muito aperreado! O motorista não tinha tempo de parar: chegava e tinha que sair de novo. Então, eles resolveram colocar as pesquisadoras para colher dados e analisar, saber quanto tempo demorava, quantas pessoas subiam em cada parada. Era interessante. Eu ficava sempre do lado do cobrador, em pé ou sentada. Do melhor jeito que desse para se acomodar, desde que não atrapalhasse a subida das pessoas e a passagem pela catraca. Nos ônibus mais modernos, tinha aquela poltrona única, perto do cobrador, mas nos carros antigos era em pé mesmo. 1 Depoimento à Luciana Cardoso, na tarde do dia 08 de janeiro de 2003, na Expresso Guanabara. Transcrito em de junho de 2004, por Patrícia Menezes. A gente usava uma prancheta bem antiga com um questionário que já vinha preparado. Nesse questionário tinha lugar para anotar quantas pessoas subiam com vales-transporte, quantas subiam com meias-passagens e quantas pagavam com dinheiro. Tinha que prestar em tudo e ser rápida: “- Subiram quantas pessoas?” “- Tantas.” E então anotava. Uma coisa era importante: naquele tempo, os cobradores podiam vender os vales de um mês para outro. Eu marcava cada passageiro que subia fazendo quadradinhos. Depois contava tudo, verificava com o registro da catraca e anotava no questionário. Quando eu entregava meu relatório na empresa, eles confirmavam os dados com os cobradores e conferiam os horários. Ficava tudo direitinho. Acho que fiz todas as linhas da Auto Viação Fortaleza como pesquisadora. Foi o Sítio São José, Tancredo Neves, Aerolândia, Montese... Paranjana, quando já tinha o terminal. Eu ficava dentro do ônibus no tempo que durasse a viagem. Mas não dava para ficar todo o dia na mesma linha, então, a cada vez eu mudava. Além disso, por causa dos horários, não dava para cobrir todas as viagens de uma mesma linha... Tinha até linha que rodava com duas pesquisadoras, cada uma em carros e horários diferentes. Toda viagem acontecia alguma coisa diferente. Foi um tempo de muitas surpresas. Eu acordava de madrugada para o trabalho, porque meu horário era o primeiro, às três e meia ou quatro horas da manhã. Depois largava lá pela uma hora da tarde. Eram mais de oito horas de trabalho, com certeza. Era duro, mas mesmo assim eu gostava. Os motoristas e cobradores eram legais com a gente. Tínhamos uma relação muito profissional, independente de qualquer coisa. É claro que tinha aqueles que gostavam mais da gente, outros menos. Às vezes, vinham algumas indiretas... No começo, nosso trabalho incomodava os cobradores. Eles até diziam: “Ihhh! Hoje tem pesquisadora no meu carro...” Eu acredito que os cobradores pensavam que a gente estava lá para fiscalizar e entregar os erros para a empresa. Eles não pensavam que nossa função era somente saber se o passageiro ia pagar com dinheiro ou não. Acho que se eu estivesse no lugar deles, também poderia desconfiar... Mas não era nada disso! Quando começamos, a direção da empresa já tinha avisado a todo o mundo que as pesquisadoras iriam acompanhar as viagens... Mas mesmo assim o pessoal estranhava. Cobrador é um povo muito desconfiado... Eu sei, porque já fui cobradora e também desconfiava muito. Era só alguém me olhar diferente que eu já pensava que era fiscal secreto. Eu acho que ainda existe fiscal secreto em algumas linhas... É uma pessoa que parece ser um passageiro normal, mas fica fiscalizando. É bem possível... Também, os cobradores mexem com dinheiro, com bastante dinheiro. Já pensou em uma viagem de Fortaleza a Goiânia? É uma viagem longa, de muitos dias. Quantas pessoas não sobem? Quantas não descem? Quantas tiram bagagens? É preciso controlar tudo! Além disso, aqui na Guanabara, nós colocamos câmeras nos ônibus não para fiscalizar os motoristas, mas para garantir a segurança, no caso de um assalto ao carro, por exemplo. Fiquei como pesquisadora por mais ou menos um ano, então, saí da Auto Viação Fortaleza e fui trabalhar no comércio. Depois de um tempo, recebi o telefonema do Sobrinho, que trabalhava na Auto Viação Fortaleza. Me admirei! Ele dizia para eu voltar à empresa. Então, lá na Fortaleza, fui entrevistada pelo Seu Paulo Porto, que era diretor administrativo de lá e também daqui da Guanabara. Eu fiquei sabendo que a Expresso Guanabara tinha comprado a Expresso de Luxo há uns quatro meses. Depois disso vieram os testes e a conversa, mas olhando para trás, me parece que foi fácil conseguir o emprego aqui. No começo, meu trabalho na Expresso Guanabara não era como rodomoça, mas como cobradora dos ônibus que faziam a linha de Fortaleza para Aracati. Até hoje tem cobradores trabalhando nessa linha. E eu fiquei três meses viajando de Fortaleza para Aracati... Me lembro até dos detalhes do meu primeiro dia de trabalho como cobradora. Foi uma experiência difícil... Primeiro porque eu tinha que me equilibrar dentro do ônibus em movimento para conseguir tirar uma passagem. Eu viajava em pé, como acontece em todos os ônibus intermunicipais. Quando um passageiro entrava no carro, eu esperava que ele sentasse e se acomodasse, depois tinha que me aproximar para expedir o bilhete da passagem. Então preenchia o bilhete em pé. No primeiro dia foi horrível! As primeiras passagens que eu tirei eram bem feias mesmo! Não dava nem para entender a letra, porque estava toda trêmula. E olha que eu tinha que escrever naquele bloco de passagem de uma forma legível. Era difícil... Eu tinha que preencher todos os espaços das passagens. Era o destino do cliente, o valor da passagem e o seguro, além de meu nome e o número de minha matrícula. Às vezes não dava tempo para preencher todos os espaços, porque subia muita gente ao mesmo tempo. Então eu deixava para completar meu nome e número quando desse uma folga. Além disso, quando o carro parava nas agências, eu tinha que controlar o número de passageiros. Era preciso saber quantas pessoas estavam no carro, quantas subiam e quantas desciam. Eu ficava fazendo a conta de cabeça, olhando disfarçadamente. Eu prestava atenção principalmente nas poltronas que estavam vagas, para facilitar. Se o carro tinha quarenta e três poltronas, eu dava uma voltinha lá atrás, assim como quem não quer nada e contava os lugares. Depois chegava na agência e conferia. Eu devia controlar as bagagens dos passageiros também. Tinha um homem que subia no ônibus na saída de Fortaleza, não me lembro bem onde.. Ele embarcava e deixava a bagagem para eu colocar no bagageiro, sem nenhuma ajuda. E eu não podia me negar: era minha obrigação. Eu precisava ter o controle das malas, para depois poder entregá-las de novo quando o passageiro descesse. Aparecia cada bagagem... Era um castigo. Tinha um monte de sacolas pesadas, principalmente do pessoal que ia para o interior e levava saco de arroz, de feijão... Acho que eu sou uma mulher forte por causa dessas bagagens. Mas muitas vezes o motorista ou o próprio passageiro ajudavam a colocar no bagageiro. Então facilitava. Acho que faziam isso porque eu sou mulher... Nessa parte das bagagens que eu mais sentia preconceito por ser mulher. De vez em quando apareciam uns engraçadinhos na hora de tirar a passagem, mas era menos. Depois de uns seis meses que eu estava como cobradora, a empresa lançou os ônibus executivos e começou com a moda da comissária de bordo, a rodomoça. Eu fui convidada para ser rodomoça em uma linha maior e aceitei. Foram uns três anos, viajando daqui para Recife. Eu tinha uns vinte e quatro ou vinte e cinco anos. Fiz o treinamento para rodomoça aqui na empresa mesmo, com uma pessoa que nos orientou. Eu não diria que foi uma aula de etiqueta... foram somente umas orientações sobre como a gente deveria se comportar. Com o tempo de serviço, fui pegando prática, principalmente na hora de servir o cafezinho, que era o mais difícil. Fiquei trabalhando dia sim, dia não. Se eu trabalhasse um dia, folgava no outro, porque eu passava o dia todinho no ônibus. Saía de manhã e só voltava de noite. Dias alternados, sem sábado nem domingo. O ônibus para Recife partia da rodoviária de Fortaleza às oito horas da manhã. Os passageiros entravam e se acomodavam. Então, eu fazia a apresentação no microfone, porque os carros tinham um sistema de som. Eu dizia meu nome e que iria acompanhá-los até Larges, no Rio Grande do Norte. Dizia que em Larges, outra moça seguiria viagem até Recife. Depois, eu avisava a trajetória todinha do ônibus e dizia que íamos parar em Mossoró para um lanche rápido. Assim, os passageiros ficavam sabendo de todo o percurso antes de saírem. Além disso, tinha um boletim de tráfego, na venda da passagem, que indicava todas as paradas, porque era um ônibus executivo que não parava em qualquer canto: tinha parada certa. Depois de Fortaleza, só parava em Aracati, Mossoró e Açu, se tivessem passageiros. Depois parava em Larges para o almoço. O pessoal prestava atenção nessa apresentação. Se alguém não escutasse direito ou não entendesse, sempre pedia para repetir. Eu sempre repetia, lá na frente, em pé, no microfone. Era difícil eu falar com os passageiros de dentro da cabine, então eles sempre podiam me ver. Eu decorei o roteiro da apresentação. O pessoal da empresa tinha dado um manual para as rodomoças falarem no microfone, mas com o tempo, eu nem precisava mais ler. Já sabia de tudo. Eu me lembro que quando eu comecei a falar no microfone, não conseguia pronunciar a palavra “satisfatória”. Aí, eu ficava em casa, treinando mais de quatro horas, para não errar. Era na hora que eu falava “que sua viagem seja satisfatória”. No manual tinha a palavra “satisfatória”. Eu achava difícil... Em Larges eu descia e pegava o ônibus que estava vindo de Recife de volta para Fortaleza. Nós éramos em quatro rodomoças, duas de Fortaleza, duas de Recife. Em Larges, a moça que vinha de Recife trocava comigo e retornava. Era uma escala muito bem programada. Eu gostava, porque em nenhum dia eu dormia fora de casa. Durante o percurso, eu passava pelos passageiros e perguntava se estavam precisando de alguma coisa e me punha às ordens. Eu oferecia café, água e lanche.No lanche tinha biscoito e suco. A gente levava uma cafeteira no ônibus e o dia todo tinha café quentinho. Às vezes, eu até pegava um café quentinho lá em Larges. Nas datas comemorativas, a empresa oferecia uma lembrança, um chocolate, essas coisas. No dia das mães, a gente dava uma flor... O serviço de rodomoça da Guanabara era nota dez! Mas sempre tem algum passageiro que exige alguma coisa que você não tem. É difícil satisfazer todo o mundo! Então eles perguntavam: “- Por que não tem isso?” Eu acho que era exigência demais. Tinha cobertor, travesseiro, tudo bem cheirosinho... Me lembro de um caso de um passageiro que rejeitou o cobertor dizendo que estava com cheiro ruim. Não era verdade. Eu sempre prestei muita atenção nisso e a empresa exigia que tudo estivesse bem limpinho sempre, inclusive os sanitários. Eu varria ônibus e lavava o banheiro quando fosse preciso. Levava até um perfuminho para deixar o carro cheiroso. O trajeto era longo e o carro tinha que estar sempre limpo. Nesse ônibus, ninguém vendia passagem na estrada. O carro já saía com os lugares marcados. Se a pessoa quisesse descer em Mossoró, por exemplo, não tinha problema, mas subir, só nos lugares programados. Em Aracati, não podia subir. A viagem assim era mais sossegada! Às vezes, os passageiros dormiam depois do almoço e dava para eu descansar um pouco também. Eu acho que as rodomoças desempenharam seu papel muito direitinho. Tinha gente que viajava de avião e depois vinha viajar com a gente. O pessoal elogiava: “-Não é rodomoça! É a aeromoça!”. Isso porque a gente andava toda arrumadinha. Usava a fardinha, tinha o cabelo sempre bem arrumado e bem preso. Ninguém ficava descabelada, desorganizada... era como uma aeromoça. Usava meia, sapato social...Tinha até passageiro que queria tirar fotografia com a gente. Alguns deles davam presentes. No Natal, Ano Novo, eu ganhava muitos presentes. Tinha umas irmãs, que viajavam no executivo várias vezes. Eu cuidava direitinho delas, porque elas eram mais velhas... ajudava, pegava na mão para descer, lavava até o banheiro...Então, elas sempre traziam alguma lembrança ou alguma mensagem. De Fortaleza até Recife eram onze horas e meia de viagem. Eu sempre falava isso na apresentação. É claro que ás vezes batia cansaço. Me lembro de uma vez que eu tive uma dor de barriga terrível durante a viagem... Eu não queria usar o toalete do ônibus, porque não ia me sentir bem. Era pequeno, apertado e o ar condicionado estava ligado... Então tive que pedir para o motorista parar e me deixar usar um banheiro fora. E teve uma outra história engraçada. Nem tudo é sempre certo, sempre etiqueta. Tem também os contra-tempos e os erros. Então, lá estava eu, toda arrumada e controlada saindo de Mossoró. O motorista do ônibus era o seu Edgley, com quem eu fazia uma dupla e tanto! O ônibus já tinha saído e eu estava falando com os passageiros pelo microfone, quando um cachorro atravessou a pista, bem perto do carro. Eu assustei e falei, sem pensar: “-Matou!”. O carro estava lotado e eu nem percebi que estava no microfone. Todos os passageiros ouviram e se levantaram. Eu, sem jeito, comecei a consertar: ”- Não matou não! É um cachorro!”. Todo o mundo começou a rir, os clientes adoraram. Quando nós chegamos na empresa, o seu Edgley espalhou essa história para todo mundo. Até hoje eu sou conhecida por causa dela... Mas eu só tenho boas lembranças da época em que fui rodomoça. A melhor coisa do mundo é fazer o que se gosta, e eu gostava de trabalhar no ônibus. Eu me sentia bem e as pessoas me tratavam muito bem. É claro que apareciam pessoas e situações que me deixavam estressada. Tinha gente que reclamava de tudo. Isso era ruim. Mas as coisas são assim mesmo e eu tinha que saber lidar com isso. Afinal, os seres humanos são diferentes. A gente pode encontrar pessoas maravilhosas e pessoas nem tanto. É assim mesmo. Eu ficava aborrecida quando algum passageiro acendia cigarro. Não porque me incomodasse, mas sim porque incomodava as outras pessoas. Aí vinha reclamação: “- Fulano abriu a janela! Fulano está fumando!”. Então eu tinha que interferir: “- Senhor, por gentileza. Não é permitido fumar”. Mas muita gente não entendia, ficava reclamando e não deixava o cigarro. Minha situação era difícil. Uma vez uma senhora reclamou: “- Esse ônibus não tem moral! O homem está fumando.” Era muito chato de contornara essa situação. Tem gente muito mal educada mesmo! A maior dificuldade que eu tinha era na hora de servir o cafezinho. Quando eu comecei, eu usava uma bandeja simples. Então, precisava ter muito equilíbrio para levar e servir o café sem derrubar. O ônibus tinha um frigobar e uma cafeteira. Nos ônibus mais antigos, eles ficavam na parte de trás, perto do banheiro. O café e a água ficavam ali. Nós levávamos o café pronto, porque não dava para fazer durante a viagem. Por isso, meu trabalho era só servir, mas tinha que ter cuidado para eu não me queimar e nem queimar o passageiro. Nunca aconteceu comigo e também eu nunca soube de colegas que tenham derramado café, mas não acho difícil que pudesse acontecer. Depois, com a mania das rodomoças, apareceu uma bandeja da Marcopolo que tinha uns lugares para colocar os copos e o café. Ficou bem melhor. Não tinha como derramar. As empresas passaram a melhorar o serviço com essa bandeja, porque muitos passageiros ficavam com medo quando a gente aparecia com aquela bandeja. Todo o serviço de rodomoça era incluído no preço da passagem. Era uma maneira de a empresa servir melhor ao cliente. Uma propaganda da empresa, talvez... O cliente podia pensar: “- Vamos pela Guanabara. Lá tem um executivo que serve café, água...”. E vinha muita gente. Tanto é que na minha época, a Viação Nordeste também tinha serviço de rodomoça. Acho até que continua tendo até hoje. Eu até fiquei amiga de uma rodomoça da Nordeste. Era a Edileuda, que morava em Natal. De vez em quando, dependendo dos nossos horários, nos encontrávamos e almoçávamos juntas. A diferença da Nordeste para a Guanabara era que lá as rodomoças vendiam algumas coisas durante a viagem. Tinha sanduíche, refrigerante, mas era tudo comprado pelo passageiro. Tanto é que as meninas eram responsáveis por esse caixa também. Nós não fazíamos isso. Oferecíamos o serviço completo, sem vender nada. Água, café, suco, biscoito, chocolate... Me lembro que uma vez eu comi tanto chocolate que até enjoei... Eu fiz amizade com as moças da Guanabara também. Com os motoristas, acho que eu tinha mais era afinidade. Em geral, minha relação com eles era profissional, mas amigável. Nenhum motorista dizia para mim: “- Socorrinho, faça isso, ou faça aquilo.”. Era sempre eu que chegava oferecendo um café ou uma água. Tinha uns motoristas que eram mais próximos e a gente conversava muito. De vez em quando, se alguém tinha um problema, chegava e desabafava. Nunca participei de acidente na estrada, graças a Deus. Mas prego eu já passei bastante. Os passageiros ficavam muito zangados, muito aborrecidos quando dava um problema mecânico. Então eu tinha que conversar, acalmar as pessoas, falar, amenizar as coisas. Enquanto isso, o motorista estava lá para ajeitar o pneu, o ar condicionado ou qualquer outra coisa que tivesse quebrado. Geralmente, o prego atrasava a viagem e mudava meu horário. Eu saía de Fortaleza às oito horas da manhã e chegava às oito horas da noite, na garagem. De lá, seguia para casa. Eram 12 horas de trabalho. Só que dava prego, eu chegava na garagem até ás dez da noite. Com tantas viagens, eu fui me aproximando de alguns passageiros. A gente conversava bastante, porque a viagem era longa. Tinha uma menina que enjoava e sempre viajava. Eu ficava perto dela, com o saquinho. Ou às vezes, limpava o carro, quando não dava tempo. Eu fiquei amiga da mãe dela. Descobri que o pai da menina trabalhava em Recife e a família vivia em Fortaleza. Quando ele não podia voltar à Fortaleza, elas iam encontrá-lo em Recife. Tinha também uma passageira que estava noiva e viajava comigo quase todos os finais de semana para encontrar o noivo em Recife. Ficamos tão amigas que até hoje a gente se fala por telefone. Já fui à casa dela, ela já veio me visitar. Depois que ela se casou, morou um tempo em Pernambuco mas conseguiu arrastar o noivo para cá. Hoje ela mora perto de Messejana. Naquela época, eu inventei de casar. Nas minhas horas de folga, então, ficava cuidando da casa e do marido. Ele ficava um pouco enciumado com o meu trabalho. Sabe como é homem ... Ele achava que eu trabalhava diretamente com homens, tanto os motoristas como os passageiros. Eu levava muito passageiro estrangeiro. Tanto é que a empresa ofereceu um curso de inglês para as rodomoças e motoristas. Durou uns seis meses. Era para a gente entender quando os estrangeiros pediam alguma coisa... Só que com a prática, a gente sempre acabava entendendo o que eles pediam. Hoje, não me lembro de mais nada de inglês. Já minha família gostava muito da minha profissão, porque eu chegava e contava as histórias da estrada. Todo o mundo ficava ouvindo. O atendimento que as rodomoças davam aos passageiros era muito bom. A gente se esforçava para ajudar todos ao máximo. E olha que era preciso ser assim, porque havia os estrangeiros, as pessoas de idade que viajavam no ônibus. Eles pediam muita atenção. Em geral, os passageiros eram pessoas da classe média. Quando aparecia uma pessoa mais humilde, geralmente era uma viagem de cortesia. Isso porque as passagens do ônibus em que eu trabalhava tinham um preço intermediário. Não eram nem tão caras, nem tão baratas. Era um carro que tinha alguns leitos e alguns semi-leitos. Era assim: existiam os ônibus leito, executivos e semi-leitos. O leito era o mais caro. Já o serviço de bordo era uma exclusividade do ônibus executivo, que tinha um preço intermediário. Saía de manhã, às oito horas. Eu acho que a empresa resolveu colocar rodomoça no executivo justamente por causa do horário. As pessoas não gostam de viajar de dia, porque a viagem é longa e é difícil dormir. Então, para chamar os passageiros, a empresa colocou as rodomoças nesse horário. Eu acho que eu não mudaria nada no serviço de rodomoça. Se eu fosse trabalhar nisso hoje, só iria tentar me aperfeiçoar ainda mais. É claro que as coisas mudaram muito do meu tempo para cá. Hoje, por exemplo, eu tenho uma filha e minha vida é muito diferente. Para voltar a ser rodomoça, eu precisaria pensar um pouco. Aqui, as escalas eram boas e sempre eu dormia em casa... Mas na Nordeste não era assim: as meninas passavam dias fora de casa, ás vezes, até uma semana inteira no ônibus. Então, seria uma complicação! Mas apesar de todas essas dificuldades, eu gostaria de viajar de novo. É apaixonante, cada dia uma coisa nova! Nunca a gente ficava restrita... Com o tempo, a empresa Guanabara foi analisando se o serviço de rodomoça tinha fundamento. A quantidade de passageiros foi diminuindo, até mesmo porque nem todo o mundo gostava de viajar nas sextas-feiras e perder os fins de semana. Quando as rodomoças eram novidade, sempre os ônibus viajavam lotados. Depois de um ou dois anos, a concorrência foi crescendo e a quantidade de passageiros diminuindo. Então a empresa achou que o serviço de bordo não era viável. Não acabaram com o horário do ônibus, mas tiraram as rodomoças para igualar o serviço e o preço com um semi-leito. Assim, a passagem do ônibus que saía de manhã ficou no mesmo preço do ônibus da noite. Aí, um dia, chegaram e disseram: “- Socorrinha, é o seguinte: Nós estamos com pouca demanda de cliente nos ônibus e manter um sistema de bordo em um carro é muito caro. Não dá para a empresa deixar um carro parado na garagem por falta de passageiros e custo alto. A empresa trabalha para o melhor. O que você sugere para seu trabalho?” Eu me despedi, porque sempre fui assim, meio impulsiva. Então o pessoal disse que não queria que eu saísse daqui. “- E vocês vão me colocar onde? Na garagem?”. E eu virei recepcionista da Guanabara. Por coincidência, depois de três ou quatro meses, eu engravidei. Fiquei toda a gestação trabalhando na recepção. Chegaram a dizer que eu tinha programado o bebê, só tinha esperado deixar de ser rodomoça. Mas não era verdade. Foi um vacilo mesmo! Além disso, eu já trabalhei em todos os cantos daqui da empresa. Uma vez fui trabalhar na rodoviária. Fiquei um mês por lá. Tinha também o Top Bus, que agora é da Via Urbana, mas na época era da Guanabara e funcionava em uma agência lá no Shopping Iguatemi. Quando eu ganhei minha bebê, fiquei trabalhando em uma agência do Top Bus no aeroporto novo, porque o horário de recepcionista era de dia inteiro, mas eu tinha que amamentar. Os ônibus do Top Bus levavam o pessoal do aeroporto para a praia de Iracema. Era um serviço feito principalmente para os turistas. E eu esperava o pessoal no desembarque do avião, levava até o ônibus, explicava a rota, dizia tudinho. Passei uns três meses no aeroporto depois voltei para cá. E fui convidada para trabalhar no setor financeiro, onde estou até hoje. Eu adoro trabalhar aqui! Já faz uns três anos que eu trabalho com a parte de pessoal. Olha, eu nunca tinha trabalhado nisso antes! Aprendi o serviço na marra mesmo! Por isso, eu me considero uma profissional que a Guanabara fez, e tenho essa gratidão com a empresa. Tudo que eu sei, aprendi aqui. Fui rodomoça quando eu nem sabia o que era isso, nem sabia que existia essa profissão. Depois fui recepcionista, trabalhando diretamente com a diretoria executiva. Nem sabia mexer no computador, tinha até medo, mas aprendi aqui. No financeiro também aprendi muita coisa, e sei que ainda tenho muito para aprender. Mas não dizem que é vivendo que se aprende? E tem também o esforço de cada um, não é? Às vezes eu digo: “- Já estou muito tempo aqui... Vou sair...”. Mas o pessoal pega no meu pé. “Se você sair, não voltará mais...” Mas se eu fosse começar minha vida profissional hoje, faria tudo de novo. Ia ser cobradora, rodomoça e todas as outras coisas que já fiz. Quem sabe, com mais experiência e maturidade, depois de tantas porradas que a vida dá, eu até consertaria minhas falhas. É com a vida que a gente cresce. A Guanabara é mesmo uma empresa muito boa! Ela dá muitas oportunidades para os funcionários. Eu devo muita coisa à administração dessa empresa. E digo isso com sinceridade, embora possa parecer que estou fazendo tipo. Mas não é... Tem vezes que eu falo demais, mesmo! É claro que tem chefe difícil de se lidar, mas isso é do serviço. A gente tem que tirar de letra. É só ter boa cabeça e bom equilíbrio. E acho que já falei foi muito mesmo. Só quero ressaltar para que as pessoas dêem valor àquilo que fazem. A melhor coisa do mundo é a gente fazer o que gosta. Fazer com amor. Não adianta insistir em ficar em um serviço que a pessoa não goste. Não aprende, não cresce, não sai do lugar. E nem se sente bem. Espiritualmente é ruim. É isso que eu quero lembrar. E espero que minha história sirva para isso.