MÁRCIA, DERLEI, MARIA DO SOCORRO, MULHERES PRESAS MULHERES TORTURADAS – UM RECORTE DO GOLPE MILITAR DE 1964 VERÍSSIMO, Marise da Silveira Universidade Federal de Santa Catarina (275) RESUMO Meu objetivo com esta pesquisa, é trazer, através de um trabalho com a memória de mulheres, ex militantes e presas políticas na ditadura militar nos anos sessenta no Brasil, suas experiências, representações, contradições , os nuances, a respeito desta situação histórica vivida por elas. Seus relatos são variados, refletindo a heterogeneidade das suas formações das suas origens, das suas definições ideológicas e militância. As representações construídas, refletem um envolvimento político e emocional que marcaram suas vidas de maneira bastante profunda. Trabalhar esta memória é estar aberto para o questionamento das muitas versões construídas, seja pela história oficial ou pelas esquerdas, sobre a experiência política militante envolvendo o aparato da ditadura e as esquerdas clandestinas, nos anos 60. É muitas vezes deparar-se com o inesperado, como na voz de uma ex-militante, perceber que " nunca se é forte e fraco o tempo todo", e que os sujeitos históricos são muito mais ricos e variados, do que os exemplos que geralmente a historiografia nos permite acesso. Esta pesquisa enfoca através da História Oral, vivências de mulheres, ex-presas políticas durante o período da Ditadura Militar no Brasil, nas décadas de 60 e 70. Traz um universo muito individual nas suas representações, sem tirar a característica de uma vivência coletiva destas mulheres , para um espaço de evidência histórica; é poder trabalhar com o indizível, no dizer de Pollak(276), fazer dessa experiência rica de vida um referencial para que se questione o saneamento da história oficial, que franze a testa à menção da palavra tortura, que homogeneiza as nuances das vivências e as pasteuriza, com o mesmo invólucro rotulado de preso político, comunista e terrorista e, finalmente, questionar a construção de mitos e vítimas construídos por um tipo de historiografia "oficial" da esquerda. Procuro trazer, através dos relatos de experiências destas vidas, as especificidades, as representações, as contradições, as dores de militantes que, antes de serem militantes, são mulheres - seres humanos trazendo consigo, na sua condição de mulher, e em sua grande maioria muito jovens, um mundo de representações que as envolve na ebulição dos anos 60 e 70, os anos "dourados". Para Michel Pollak trabalhar com a memória marginalizada é estar em conflito constante com o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, é estar atento para perceber até que ponto o presente colore o passado, em quê o momento de emergência de certas lembranças faz com que a ênfase seja dada a este ou aquele aspecto. O vivido e o aprendido, o vivido e o dividido, o vivido e o transmitido são questões que se interagem e colocam em evidência características específicas deste trabalho com este tipo de memória(277). Num movimento similar, o sujeito entrevistado procura a todo momento, num "esforço psicológico," controlar as feridas, as tensões e contradições entre a imagem oficial do passado e suas lembranças pessoais, "ao mesmo tempo que contando a sua história de vida ele está num processo de reconstrução da sua identidade e não apenas fazendo um relato factual" Esta perspectiva abre espaço para que se possa refletir o tratamento dado à história, fugindo do parecer monolítico para a pluralidade, seja no que diz respeito ao foco nos mais diversos sujeitos históricos, quanto às representações possíveis arquitetadas nas suas subjetividades. Assim os trabalhos com História Oral se tornam um espaço para que a história oficial, cujas interpretações são quase sempre feitas com base em documentos escritos e cartoriais, possa ser questionada na forma única de explicar a história(278), fazendo emergir as falhas da memória, o esquecimento, que deixam de ser um problema e passam a ter um significado, na compreensão de Alessandro Portelli, quando nos coloca que "o realmente importante é não ser a memória apenas um depositário passivo de fatos, mas também um processo ativo de criação de significações". O autor abre, dessa forma, um olhar mais humano para a história, pois "a utilidade específica das fontes orais para o historiador repousa não tanto em suas habilidades de preservar o passado quanto nas muitas mudanças forjadas pela memória" (279). No período da ditadura militar no Brasil, encontram-se em disputa no cenário político a "legalidade", praticada e difundida pelo grupo então dominante no poder, e o "terrorismo", ou a subversão, praticados pelos grupos clandestinos da esquerda organizada. Neste confronto, ao divergirem da ordem autoritária da ideologia oficial, a esquerda disputa a legitimidade do seu projeto. Para o regime, tal disputa representa um desafio e uma ameaça à sociedade, à ordem. Neste confronto, que é permeado pela violência e arbítrio, à esquerda não resta alternativa a não ser entrar para a clandestinidade. Com este procedimento, esta já estigmatizando para a sociedade a posição de transgressores da ordem política e social do país - propaganda veiculada pelo novo governo, de todas as maneiras possíveis. Ainda na concretização deste seu projeto, os militares lançaram mão da censura, da prisão, da tortura, do aniquilamento do potencial "inimigo", que se expressava sob qualquer tipo de resistência ao projeto desenvolvimentista brasileiro associado ao capital internacional. Colocam-se para os militantes de esquerda situações de clandestinidade, de tortura e prisão. Conscientes desta perspectiva, as organizações se orientam dentro de um quadro ético que norteia o comportamento dos militantes nestas situações extremas. O que fazia, com que parte de uma geração abrisse mão das possibilidades de liberdade, das oportunidades culturais que se colocavam nos anos 60 e 70, e partisse para uma militância profundamente disciplinada, militarizada, quase toda baseada no centralismo democrático negando de forma veemente o "comodismo burguês"? Era o momento da ousadia, da coragem, da audácia, onde, como dizia uma das mulheres entrevistadas: "Quem racionalizava caia fora. Não conseguia acompanhar nem segurar a barra. Era mais paixão do que razão". "... uma população que dirigia seu próprio destino, que acreditava no seu país e na própria capacidade." Era como se o mundo, e o Brasil nele, dançassem uma ciranda, onde os pares apresentavam facetas bastante ímpares. A possibilidade do múltiplo levava a que pequenas diferenças dentro das organizações da esquerda gerassem novos agrupamentos, as vezes de dois ou três. Ao mesmo tempo que esta possibilidade era rica em termos de liberdade e autonomia, ela também marcou a fragilidade, saciou muitas vaidades personalistas. "Proibido proibir", "A imaginação no poder" , eram frases levadas da França para a juventude de todo o mundo. O máximo do prazer de ser livre e autônomo, ser dono da sua vontade, a valorização do corpo, da sensibilidade, da intuição, rasgando o tradicionalismo. Era assim o momento, quando discutir o uso do anticoncepcional era, para esta juventude, uma questão nacional. A profunda liberação sexual facilitada pelo uso da pílula, o movimento feminista levantando bandeiras de participação feminina e igualdade entre os gêneros, batiam de frente com preceitos moralistas da sociedade. No depoimento de uma ex-militante ela expressa o significado destas mudanças na mentalidade feminina no período: "Nós é que fazíamos as mudanças. As transformações dentro do mundo feminino nós é que fizemos. A gente namorava muito, fazia amor, não havia AIDS, ninguém usava camisinha, tiramos a aliança do dedo e penduramos num cordão no pescoço, cortamos a saia e usamos mini-saia. A gente não mentia para os pais, só não contávamos tudo. Omitíamos. E mesmo que a gente contasse, eles não acreditavam que nós estivéssemos levando a sério e fazendo as mudanças". "Em 1968 as meninas mais certinhas iam para o Serviço Social, dirigido por freiras (funcionava na Mauro Ramos). As ricas iam para a Medicina. Nós íamos para a UFSC. Eu junto. Foi a primeira geração de mulheres catarinenses a ir para a UFSC. Morávamos no PARAÍSO - uma casa de estudantes, tomávamos banho à noite na beiramar norte (não era poluída)". "Íamos à baile, no Lira, no Doze e todo domingo no Paineiras. Os agentes do DOPS freqüentavam os bailes para ver quem namorava quem. Fazíamos acampamento na Joaquina nos fins de semana , os rapazes pescavam com arpão, nós cantávamos e todos participavam das tarefas. O ônibus só ia até o centro da Lagoa que tinha duas casas, o resto do caminho era feito a pé. Todo mundo trabalhava e estudava e ninguém se queixava da vida. Fazíamos muito comício relâmpago, para não sermos presos. Distribuíamos folhetos pela cidade e passávamos as madrugadas pichando muro: VIETNÃ VENCERÁ NA LUTA - ABAIXO A DITADURA - ASSALTO AOS BANCOS PÚBLICOS ESTÃO ROUBANDO A UFSC". Ao falarem sobre suas militâncias, as mulheres entrevistadas também mostraram as suas especificidades, construções que foram se elaborando com o passar dos anos, depois que estas ações acorreram. Suas representações foram construídas tendo como pontos referentes suas histórias de vida, seu equilíbrio psicológico, a forma como posteriormente processaram as experiências vividas na prisão. Permanecendo por muito tempo, numa situação de clandestinidade, imposta pelas mesma forças políticas, que deram o golpe e se mantiveram no poder, por vinte e um anos, a história vivida pelas exmilitantes, que se tornaram presas políticas, num primeiro momento foi jogada nos subterrâneos. A Anistia Ampla , Geral e Irrestrita, estendeu-se aos torturados e torturadores, como um mata-borrão que chupou a tinta da história, apagou os rascunhos, as rasuras, deixando uma folha "limpa", saneada. Somente a partir da década de 90, é que se torna possível um enfrentamento maior, com os fatos ocorridos no período da ditadura. As décadas de 70 e 80, ainda foram permeadas por atividades atentatórias à liberdade, de pleno funcionamento dos órgãos de segurança e informação, e pelo medo introjetado dentro das pessoas, seja em relação à arbitrariedade da lei, como pela insegurança, em relação aos projetos da esquerda. O esquecimento histórico, fez parte do projeto político-pedagógico dos governantes, do chamado período de "Abertura, lenta e gradual". No entanto, a memória subterrânea, ou aquela que se tornou clandestina e escondida, em função do momento político do país, não se apagou, antes, resistiu, esperando o momento oportuno de poder aparecer, e disputar o seu espaço com a versão oficial da história. Neste seu espaço de resistência, ela vai sendo passada adiante, contada, seja através de relatos de experiência, nas muitas possibilidades criadas por este mesmo setor excluído, ou nas manifestações, as mais variadas, que na situação de clandestinidade assumem muitas roupagens possíveis: no teatro, na literatura, na música, no cinema. Assim, mesmo que oficialmente a repressão soube agir de formas variadas, as narrativas sobre as histórias destes setores excluídos, a burla, também das formas mais variadas. Apesar de os anos 90 terem propiciado estas discussões sobre estes acontecimentos do período da ditadura no país, percebe-se, principalmente quem está envolvido com o ensino de história, como foi profícua, a rede de propaganda montada para o enquadramento da história, dentro dos parâmetros permitidos pelos órgãos oficias, e como este enquadramento, alijou dos referenciais históricos, a memória dos expresos e dos grupos da esquerda clandestina. Não é sem razão que uma entrevistada confessa a sua mágoa: "Eu não queria uma indenização, eu queria que esse país tivesse um pouco mais de memória, que esse país se olhasse mais, que a nação se olhasse mais." Na situação de clandestinidade, a esquerda também procedeu o enquadramento da sua história, organizando a sua memória coletiva, apesar das especificidades das memórias individuais, como ficou atestado neste pequeno contingente de cinco ex-presas que aceitaram participar deste projeto. A vivência entre as diversas militantes, dentro das celas das prisões , onde, devido à imaturidade política, e o momento histórico marcado pela disputa políticoideológica entre as diversas correntes, levou a momentos de muita tensão, entre as próprias ex-presas, que em momentos explícitos assumiram práticas hierarquizadas e autoritárias entre si, conforme o relato de outra entrevistada Estas lembranças, fazem emergir para a própria ex-presa, um conflito bastante intenso quando ao exteriorizá-las, porque podem se transformar em pequenas cunhas, que se fincam na elaboração desta memória coletiva possível, que procura fazer frente à descaracterização promovida pela história oficial. Ao mesmo tempo, desafia as interpretações construídas pela própria esquerda e podem levar à reações diversas, tensões, ou mesmo cisões dentro dos grupos, na procura de solidificação e coerência das suas memórias. A pequena distância no tempo, entre o acontecimento destes fatos e os dia de hoje, impossibilita uma solidificação desta memória, visto que muito ainda resta ser revolvido. Nesta elaboração, esbarramos nos espaços em branco, nas reticências, naquilo que permanece ao nível da subjetividade, sem ainda ser possível de ser exteriorizado, pois são lembranças muito traumatizantes, raramente deixam de aparecer por esquecimento. Passados alguns anos, as redes de relações construídas pelas ex-presas, levamnas ainda ao silêncio a respeito de muitos aspectos da experiência vivida , em função de se resguardarem, às suas famílias, ou mesmo por novos projetos pessoais assumidos. A credibilidade histórica ainda é uma preocupação que caminha junto com a recuperação da memória sobre aquele período. Como resultado da luta dos familiares dos mortos e desaparecidos políticos foi sancionada a Lei nº 9.140 (04/12/95), que reconhece como mortas pessoas, que desapareceram em razão de participação política no período de 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, o Estado brasileiro, apesar de não atender totalmente às reivindicações dos familiares dos mortos e desaparecidos, colocou em pauta a existência da arbitrariedade, da tortura, da perseguição política. A história subterrânea das esquerdas, encontra mais uma brecha, agora propiciada pela oficialidade, para poder emergir, disputar o seu espaço e trabalhar as suas interpretações. Mas esta lei, não dá conta daqueles ex-militantes que sobreviveram, e carregam consigo as mais diversificadas seqüelas, seja pela incapacidade ou dificuldades físicas, resultantes das torturas a que foram submetidos, às seqüelas psicológicas, que ainda hoje mantém muitos ex-militantes, em permanente tratamento psicológico ou psiquiátrico, arcando com todos os custos, seja material ou emocional. Sem mencionarmos aqueles que desapareceram, ou foram mortos, e sobre os quais ninguém reclama a memória, permanecem no esquecimento da história. Ainda há muito o que fazer. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA: PORTELLI, Alessandro – O que faz a História Oral Diferente. Estudos Históricos, nº 14, Rio de Janeiro, 1997. POLLAK, Michel – Memória, Esquecimento, Silêncio. Revista Estudos Históricos, vol.2, nº 3, Rio de Janeiro, 1989. BOM MEIHY, José Carlos Sebe – Manual de História Oral. Edições Loyola, São Paulo, 1996.