UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS SUBÁREA DE LITERATURA PORTUGUESA MEMÓRIAS INVENTADAS E VIVIDAS EM JOSÉ SARAMAGO: ENTRE VERDADE E FICÇÃO NITERÓI Agosto de 2009 Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá R748 Rolim, Michelle de Oliveira. Memórias inventadas e vividas em José Saramago: entre verdade e ficção / Michelle de Oliveira Rolim. – 2009. 143 f. Orientador: Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2009. Bibliografia: f. 131-135. 1. Autobiografia. 2. Verdade. 3. Ficção - Crítica e interpretação. I. Oliveira, Maria Lúcia Wiltshire de. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título. CDD 801.953 MICHELLE DE OLIVEIRA ROLIM MEMÓRIAS INVENTADAS E VIVIDAS EM JOSÉ SARAMAGO: ENTRE VERDADE E FICÇÃO Dissertação de Mestrado apresentada ao curso de PósGraduação em Letras da Universidade Federal Fluminense – UFF, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre. Área de Concentração: Estudos de Literatura. Subárea: Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Orientadora Prof. Dra. MARIA LÚCIA WILTSHIRE DE OLIVEIRA Niterói Agosto de 2009 ii MICHELLE DE OLIVEIRA ROLIM MEMÓRIAS INVENTADAS E VIVIDAS EM JOSÉ SARAMAGO: ENTRE VERDADE E FICÇÃO Defendida e aprovada em agosto de 2009. BANCA EXAMINADORA ___________________________________________________________________________________ Prof. Dra MARIA LÚCIA WILTSHIRE DE OLIVEIRA – UFF (Orientadora) _____________________________________________________________________ Prof. Dra DALVA CALVÃO – UFF _____________________________________________________________________ Prof. Dra CRISTINA MARIA PAES DOS SANTOS – Faculdades Santa Dorotéia _____________________________________________________________________ IDA FERREIRA ALVES – UFF (Suplente) _____________________________________________________________________ MÁRIO LUGARINHO – USP (Suplente) NITERÓI 2009 iii Às famílias Cherém, Matsumoto e Oliveira, para além da distância e do tempo. iv AGRADECIMENTOS O ato de ler exige muita concentração e momentos solitários para que possamos nos envolver com a leitura. Agradeço a todos que souberam respeitar meu silêncio e minhas ausências. Uma palavra em especial à Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira, pela dedicação e pelo incentivo constantes, sem os quais o acúmulo de dúvidas e de questionamentos teria impedido meu desejo de conhecer mais. Quero agradecer também às professoras Cristina Santos e Dalva Calvão que, mesmo em meio aos comprometimentos diários, aceitaram o convite para participarem da Banca, contribuindo com sugestões de teorias importantes para o desenvolvimento da pesquisa. A Cláudio Capuano e à Christina Ramalho, professores de graduação que, de alguma forma, continuam presentes. Agradeço ainda à família Cherém, a Roger Matsumoto e aos amigos que sempre me auxiliaram, ao me ouvirem falar sobre o tema da dissertação, contribuindo e enriquecendo minha pesquisa com seus conhecimentos. À minha mãe e meus irmãos que, mesmo distantes, torceram por mim e compreenderam minha ausência. Aos meus colegas do Mestrado que compartilharam comigo as descobertas e as angústias durante o decorrer das disciplinas, em especial à Roberta Franco, à Elisângela Teixeira e a Luciano Souza, pelo apoio e amizade para além do ambiente acadêmico. A todos vocês, enfim, agradeço e compartilho essa pesquisa que para mim representa um pedaço da minha própria autobiografia. v Perdi-me dentro de mim/ Porque eu era labirinto/ E hoje, quando me sinto/ É com saudades de mim. (Mário de Sá Carneiro). vi RESUMO Esta pesquisa tem como objetivo identificar vestígios autobiográficos do autor na obra Manual de pintura e caligrafia de José Saramago, recorrendo constantemente à autobiografia As Pequenas Memórias bem como a entrevistas que contribuem para a elucidação das possíveis influências autobiográficas do autor, inseridos de forma oblíqua na ficção. A partir dessas narrativas, escritas em primeira pessoa, será verificada a problemática da representação sob o enfoque de teorias relacionadas ao tema da representação na escrita, como, por exemplo, as de Umberto Eco, Roland Barthes, Anatol Rosenfeld e Philippe Lejeune. Para tanto, será observado que a escrita, seja autobiográfica ou fictícia, revela a dupla visão que o autor cria sobre o mundo e sobre ele próprio, desenvolvendo versões de si que se desdobram em duplos e em alter egos, tornando tênues as linhas entre o que são memórias imaginadas e aquelas efetivamente vividas. Será assinalada ainda a importância da linguagem no processo de constituição identitária do Eu que se encontrava em vias de um total apagamento. Tudo parece levar a crer que, como os romances, também os textos memorialistas revelam a problemática da representação, já que a escrita de si é uma tradução simplificada e compacta do autobiógrafo. Palavras-chave: Sujeito; Autobiografia; Verdade; Ficção. vii ABSTRACT This work aims to identify traces of the author's autobiographical narrative Manual de pintura e caligrafia by José Saramago, constantly referring to the autobiography As pequenas memórias and to interviews that contribute to the elucidation of possible autobiographical influences of the author, inserted obliquely into the fiction. From these narratives, written in first speech, the issue of representing will be verified under the light of theories related to the theme of representation in writing, such as the works of Umberto Eco, Roland Barthes, Anatol Rosenfeld and Philippe Lejeune. Therefore it will be noticed that both autobiographical and fiction writings reveal a double foresight that the author creates from the world and from himself, developing inner versions that unfold in double autobiographies and alter egos, making thin lines between what are imagined memories and those actually lived. It is also addressed the importance of language in the process of the identity constitution of an individual that is nearly a complete black out. Everything leads to believe that, as in the romances, the memorialist texts also reveal the difficulties of representation, as the writing itself is a simplified and compact translation of the autobiographer. Keywords: Individual; Autobiography; Truth; Fiction. viii SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO 1 2. O ETHOS AUTOBIOGRÁFICO 18 2.1. A GÊNESE DA AUTOBIOGRAFIA 18 2. 2. A AUTOBIOGRAFIA SOB O OLHAR DE LEJEUNE 27 2. 3. AS VERSÕES DO PACTO LEJEUNIANO 34 2. 4. SUJEITOS LITERÁRIOS 40 3. AS FACES DA AUTOBIOGRAFIA 48 3. 1. A DUPLA IMAGEM DO REAL 48 3. 2. A ESCRITA COMO GUIA 62 3. 3. OS EQUÍVOCOS ENTRE VERDADE E FICÇÃO 67 3. 4. A ESCRITA COMO PERMANÊNCIA DA IDENTIDADE LITERÁRIA 71 4. ESCRITA COMO ESPELHO 86 4. 1. ALTER EGOS E DUPLOS COMO SUBJETIVIDADE AUTORAL 86 4. 2. O OUTRO E SUAS REPRESENTAÇÕES 94 4. 3. O FINGIMENTO NA DRAMATIZAÇÃO DE 1ª PESSOA 103 4. 4. AS PRIMEIRAS TENTAÇÕES AUTOBIOGRÁFICAS 115 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 128 6. REFERÊNCIAS 132 ix 1. INTRODUÇÃO Em primeira instância, gostaria de mencionar que meu interesse pelas obras de José Saramago nasceu durante o curso de graduação, quando me identifiquei com sua maneira de resgatar personagens históricos, recriando-os sob uma nova perspectiva. Minhas leituras, na época, eram orientadas apenas para o sentido histórico retratado nos romances. Logo em seguida, no curso de Pós-graduação Lato Sensu, na UERJ, tive a oportunidade de aprofundar os estudos e minha pesquisa direcionou-se, pois, para os aspectos do realismo fantástico e da figura mítica da mulher nos romances Memorial do Convento, O ano da morte de Ricardo Reis, História do cerco de Lisboa, Ensaio sobre a cegueira e A jangada de Pedra. Agora, no entanto, tenho o olhar atento para novos objetivos de enfoque, como a questão do sujeito na narrativa de primeira pessoa. Com o ingresso no curso de mestrado na Universidade Federal Fluminense, cursei a disciplina ministrada pela professora Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira, Literaturas e identidades culturais, no segundo semestre de 2007. Nesse curso, em contato com leituras que envolvem o sujeito na pós-modernidade, lancei-me nos caminhos da escrita de si em narrativas de caráter autobiográfico. Diante disso, a fim de compreender com que meios se dá o processo da constituição identitária do sujeito no código linguístico, tenho percorrido os caminhos das narrativas memorialísticas, em Saramago, refletindo sobre a trajetória da autobusca cujo Eu vai desenovelando os fios de si à medida que se escreve. Dentro de tal perspectiva, defini como corpus os romances Manual de pintura e caligrafia (1977) 1 e As Pequenas Memórias (2006), 1 Não levamos em consideração Terra do Pecado como primeiro romance (1947) por não representar uma postura inovadora no panorama do romance português. 1 considerando que as duas obras 2 nos permitem problematizar as linhas fronteiriças entre as categorias empíricas e imaginárias de autor, escritor e narrador. Ao pesquisar sobre a bibliografia crítica das obras Manual de pintura e caligrafia e As Pequenas Memórias, percebi que são dois livros ainda pouco estudados em comparação com outros romances. Há mais estudos direcionados para questões históricas, sobretudo em outros livros posteriores ao Manual, de 1977. Como são obras afins ao gênero autobiográfico, parece-me importante estudar as relações entre as duas expressividades e analisar a maneira como o sujeito, na revisão de si, manifesta a subjetividade, à medida que se permite avançar pelos labirintos da escrita. Pretendo me ocupar, portanto, da reflexão sobre o percurso do Eu, personagemnarrador, verificando de que maneira ele se encara no texto e como o mesmo texto funciona como uma espécie de espelho, ou lago narcísico, que devolve àquele que se mira uma imagem em constantes mutações: “Amanhã este espelho estará partido, hoje é o tempo dele e meu” (MPC, 1998c, p. 275). Cabe-me sublinhar ainda que, embora Saramago tenha escrito Os cadernos de Lanzarote 3, não iremos abordar com maior profundidade este conjunto de textos que divergem das obras citadas, uma vez que se trata de relatos postos ao lado da escritura de outros romances, seguindo a dinâmica de um diário para-profissional. O fato é que os Cadernos aparentemente aproximam-se mais dos diários e agendas, com menos profundidade existencial. Diferem-se, portanto, do Manual e das PM que parecem se equilibrar entre dados autobiográficos e imaginação. Nos Cadernos, Saramago enfatiza os relatos sobre seu cotidiano, como as inúmeras viagens a trabalho para 2 No caso das obras Manual de pintura e caligrafia e As pequenas memórias, a fim de evitarmos equívocos, usaremos desde já abreviações em vez do nome do autor: MPC e PM. 3 Cadernos de Lanzarote I (1994), II (1995), III (1996), IV (1997) e V (1998). Um tipo de diário de anotações de todo tipo, semelhante aos hypomnemata dos antigos, comentado por Foucault (1992) em O que é um autor. 2 promover os livros a pedido das editoras. Refere-se ainda às relações com pessoas anônimas que vão à sua casa, tudo isso paralelamente à produção dos romances, como, por exemplo, Todos os nomes ou Ensaio sobre a cegueira. Na dissertação, portanto, detenho-me nos dois extremos de sua obra: o primeiro romance, e as PM publicada em 2006, recorrendo a outras obras, quando necessário, para endossar os argumentos. Neste momento, é importante a referência à fortuna crítica selecionada para o desenvolvimento desta pesquisa. Apoiamo-nos sobre os textos Os rumos da ficção de José Saramago, de Luís de Sousa Rebelo, e O período formativo de Horácio Costa. Os dois teóricos detêm-se no MPC, embora acentuem que seja esta obra a sementeira das seguintes. Ambos os críticos compartilham a ideia de que o MPC é uma “ficção inaugural que demarca uma fase de passagem e amadurecimento de Saramago enquanto escritor, uma folha do diário do artista em construção” (CARMO, 1999, p. 41). Nele o autor afirma seus dotes de ficcionista, revelando uma maturidade estética em que germinam os romances posteriores, como aponta Horácio Costa: [...] pode afirmar-se que o livro que começamos a estudar guarda um primeiro, e importante, valor: o de ser uma obra de transição, já que nele Saramago se abre pela primeira vez na vida adulta, à prosa de ficção, linguagem a que se dedicara maiormente desde então (COSTA, 1997, p. 273). Tanto Costa quanto Rebelo assinalam que em H., protagonista do MPC, Saramago incute bastante de sua subjetividade, de modo que o conflito do personagem entre abandonar temporariamente a pintura para experimentar caminhos novos – seus novos pincéis: a escrita, no caso – guarda semelhanças com o conflito pessoal do próprio autor que, antes, transitara pelo território do verso, das crônicas literárias e políticas, e no MPC inicia um novo percurso. Como destaca Carlos Reis, na primeira edição desse romance, em 1977, Saramago dispõe o subtítulo Ensaio de romance (SARAMAGO, apud REIS, 1998a, p. 13), confirmando a concepção de que 3 esta obra anuncia uma nova postura sua no cenário literário. Além de Costa e Rebelo, Carlos Reis também afirma que, embora o Manual não tenha dado ao autor a projeção pública como os romances seguintes, merece especial atenção por se tratar de uma obra matriz de referência, como aponta o recorte: [...] outras questões para além do gênero – estão incritas logo em Manual de pintura e caligrafia, relato que é tentativa, aprendizagem e reflexão metaliterária sobre a narativa como modelo de representação; e nesse sentido Manual de pintura e caligrafia anuncia, como que inscritos no seu código genético, os rumos fundamentais de desenvolvimento da ficção de José Saramago (SARAMAGO, apud REIS, 1998a, p. 14). A autobiografia que narra a história do personagem H. parece corresponder a um mapeamento do sujeito perdido entre crises que tudo têm a ver com o experimento de Saramago enquanto romancista. Isso leva Rebelo a considerar que H. seria uma espécie de heterônimo: “O artista plástico tornado escritor tem muito de um heterônimo de José Saramago” (REBELO, 1983, p. 32). Rebelo refere-se à lógica interna no discurso romanesco de Saramago, dizendo que em cada uma de suas obras é retomada uma problemática anunciada em obras anteriores, sobretudo anunciadas no MPC. Ao considerar referências a romances como Levantado do chão e Memorial do convento, conforme ele afirma, podemos perceber que a matriz de onde eles vêm é o Manual de pintura e caligrafia, cuja publicação lhes é anterior. Como Horácio Costa – tal qual veremos adiante – Rebelo também analisa a H. como dramatização do próprio Saramago, enquanto escritor de poesia e contos que procura uma escrita diferente da que viera realizando até então. Da mesma forma que Saramago reconta a História de Portugal sob seu ponto de vista, o escritor parece também reproduzir criativamente a história particular de sua vida, como verificamos em determinados registros no MPC, partem de dados autobiográficos. Em se tratando de romance de 4 transição, a crise do personagem H. parece configurar a crise do próprio autor diante da nova escrita. É o que marca esta obra como período transicional, pois o Manual revela um Saramago romancista em pleno processo formativo. Nesse momento, o crítico detém-se num mergulho profundo do romance, designando-o como um exemplar do gênero autobiográfico que traz o questionamento sobre a obra de arte, tanto na forma literária quanto na pintura. Ele assinala que a vida vazia de H. preenche-se aos poucos em duas fases. A primeira, quando o personagem, consciente de suas limitações, decide experimentar a criar com a linguagem escrita como outro meio de simular o real, e a segunda, quando se mostra mais seguro tanto no manejo da pintura quanto no da caligrafia. Diante das inquietações existenciais, H. reconhece a necessidade de mudança em tom de desabafo: “Enquanto transporto meticulosamente as proporções do modelo, para a tela, ouço um certo murmúrio no meu interior a insistir que a pintura não é nada disso que eu faço” (MPC, 1998c, p. 7). Isso é o reflexo da crise de identidade de um Eu que, certamente, se esvaziou de criatividade e cedeu à inércia. É como se H. se encontrasse numa letargia intelectual que o leva a desprezar uma parcela importante de si. Em virtude disso, no MPC temos um sujeito que desperta, através da linguagem, do sono profundo do comodismo. Como ressalva Lopes: É necessário o contato com o texto, só a palavra, em cadeia formando o período, a página, o capítulo, a obra, leva o homem a raciocinar, a recriar sobre a mensagem nela contida, a ser co-autor da obra (LOPES, 1986, p. 10). Na fase inicial, a escrita de H. se caracteriza, conforme Rebelo, como um relatório superficial sobre o dia a dia, semelhante à produção do diário. Nessa altura da escrita, é possível encontrar uma interseção entre o MPC e os Cadernos de Lanzarote, dado ao caráter diarístico de ambos os textos. 5 Também H. primeiramente descreve as relações casuais, encomendas de quadros, viagens à Europa. Segundo Rebelo, à medida que H. pratica a escrita vai reconstruindo o imaginário, despojando-se do hábito das cópias pintadas nos quadros que vende. É início da fase mais voltada para autorreflexões e caminhadas solitárias, em meios às quais descobre a inanidade em procurar uma verdade absoluta sobre a representação. Ele começa a encarar a si próprio dentro da escrita e passa a construir o autorretrato em forma de palavras. Como sublinha Rebelo, no tocante à fase de conflitos, H. encontra-se enleado numa banal rede de banais relações humanas e de coisas casuais e previsíveis aventuras, H. sente a necessidade de pintar o segundo quadro de S., começando a interrogar-se sobre o sentido da sua arte, das relações com os seus amigos e com a amante, sobre o sentido da sua própria vida sem história no clima morno e ominoso da era marcelista (REBELO, 1983, p. 25). H. passa a interrogar as relações entre pintura e caligrafia trazendo a problemática da mimesis que está na origem da teoria da representação. O crítico indica que, por trás de toda expressividade que tenta captar a verdade sobre o real está uma intencionalidade fenomenológica comandada pelo critério de uma verdade. É principalmente isso que provoca a instabilidade em H., pois ele ainda não sabe como vivenciar a verdade sobre si e se deve ou não interromper as cópias de retratos ou se inicia um estilo particular, mais condizente com a sua interpretação pessoal acerca da realidade. Em relação a isso, para Rebelo “tudo está, de facto, em saber se existe uma verdade só, ou se ela é um somatório de um número variável de verdades, porventura ilimitado, que coexistem no mesmo objeto e são a sua essência”. (REBELO, 1983, p. 27). Em meio ao conflito entre pintar os dois quadros, H. descobre que seu desejo de representar não se restringe apenas ao ato da pintura, mas também à necessidade de escrever, revelando com isso outra face da mesma verdade de si. Mas as alterações no 6 personagem não são radicais. Entre a crise de pintar dois quadros distintos do cliente S., H. sucumbe à necessidade e pinta o retrato exatamente da maneira que S. deseja ser visto, para garantir a satisfação do cliente. Isso parece angustiá-lo e marcar o MPC como uma escrita de crise propriamente. Embora Saramago crie, na autobiografia ficcional, um sujeito que se considera medíocre enquanto autor, H. revela-se plenamente cônscio de que o movimento repetitivo anulou sua criatividade, conduzindo-o a um autoapagamento e distanciamento do mundo à sua volta. É contra esse suicídio social que H. explode na crise da escrita autobiográfica e revela uma nesga de consciência sobre as vozes que gritam em sua interioridade, vozes que buscam através da folha em branco sonorizar o silêncio que abafa a sua criatividade. Enquanto H. permanece infel a si e pinta o retrato de S., se confessa “assustado diante das forças invisíveis que vagarosas se enrolavam entre a superfície da tela e os” seus “olhos” (MPC, 2001, pp. 7-8). Rebelo acentua também que o incômodo de H. por não exercer a própria linguagem artística é responsável pelo não apagamento do sujeito e, consequentemente, pela conquista de si. A instatisfação culminando em debates interiores faz o personagem recorrer à memória individual e à coletiva. O desânimo inicial por não conseguir reagir contra o comodismo o conduz ao questionamento sobre as ligações vazias e sobre a vacuidade da própria arte, até então alienada. As alterações na escrita dão-se gradativamente e quando H. se incomoda com as reiterações na sua vida, ele apresenta alterações significativas deixando de anular sua expressividade, saindo do silêncio sufocante que a época ditatorial impõe ao sujeito. A mudança necessária vai então revelando outra fase para o sujeito, como cita Rebelo: No entanto, a repetição, que permeia a vida de H., é a mesma que afecta a sua arte. Esta verdade começa pouco a pouco a luzir nas páginas do seu diário, provocando uma busca do eu, que se traduz em reminiscências [...] que afloram agora nimbadas de uma aura estranha (REBELO, 1983, p. 28). 7 Há uma aura estranha talvez porque suas lembranças agora são alteradas pelo processo de reprodução na escrita. É quando H. descobre, pois, a importância do fingimento em arte como postura criativa; ele descobre que fingir não é imitar o real, mas imitá-lo e possivelmente desfigurando-o, ato que exige conhecimento e criatividade do artista em relação ao objeto que pretende captar. Rebelo atenta para o fato de que H. se modifica, reaprendendo a criar de forma particular tudo a sua volta. Nessa altura, a introspecção e os exercícios autobiográficos o envolvem de tal forma que H. se recusa aos antigos hábitos de se silenciar. Ao exercitando a capacidade linguística é como se H. tateasse, no escuro, o espaço textual erguendo-se com maior segurança diante desse novo processo. Abandonando a pintura “engessada” e optando por uma maneira de pintar e escrever particularmente sua, parece-nos que o personagem simula a conquista pela liberdade de expressão em todos os âmbitos da linguagem Quando decide fazer o quadro de Os Senhores da Lapa de forma particular, ele assume um novo estilo. No momento em que os clientes rejeitam o retrato e decidem comprá-lo para destruí-lo – antes mesmo do término – H. nega a entrega da obra e reivindica, com isso, a independência da arte contra as leis dos condicionalismos que regulam a natureza das encomendas dos retratos e aviltam o artista. Rebelo levanta a questão, portanto, de que nesse momento H. apresenta-se de maneira transgressora, visto que sua primeira revolta é abafada quando desiste de pintar o segundo quadro transfigurado de S. Rebelo alude à primeira fase de H. como “um lado nocturno” do MPC marcado por frustrações, por autorreflexões e por errâncias entre antigas lembranças de viagens. Por fim, Rebelo refere-se a uma terceira parte do livro povoado de meditações acerca de experiências pessoais e também sobre arte e literatura. 8 À inicial descrença em si do personagem contrapõe-se o seu desejo de ressuscitar a memória coletiva representada pelo reavivamento da história da arte quando narra as visitas à Itália e fala da necessidade de “levantar do chão os nossos mortos [...] e recomeçar a aprender a fraternidade por aí” (MPC, 1998c, p. 200), projeto que o autor Saramago desenvolveu com a escrita de Levantado do Chão. Para Rebelo, o MPC mostra, na preferência pelo real e pelo concreto, as marcas do neorealismo na obra o que posiciona o romance como fonte primeva de outras obras que surgiram na ficção saramaguiana. Nesse livro, todavia, não existe uma inclinação de Saramago ao neo-realismo como ressalva o teórico. As revoltas de H. em tentar copiar os clientes de forma mais autêntica revelam uma postura esquiva do escritor quanto ao neo-realismo tardio de sua época. Embora o Manual ainda não se aproxime do realismo fantástico, padrão ao qual Saramago adere posteriormente, nesta obra percebemos uma certa desvinculação da escrita do neo-realista. Como dissemos, Horácio Costa também atribui ao MPC “valor transicional” (COSTA, 1997, p. 277), porque com essa escrita Saramago retoma a narrtiva do romance suspenso em seu percurso textual, já que ele saiu de um período em que se direcionava mais à escrita de crônicas. Costa reforça a noção de valor transicional com o argumento de que, nas derivas narracionais do autor pelos caminhos da prosa (Terra do pecado), verso (Os poemas possíveis, Provavelmente alegria e O ano de 1993) e dos contos (Objeto quase/ Deste mundo e do outro e Bagagem do viajante), é com o MPC que Saramago estreia sua fase adulta como escritor, ao qual se dedica desde então com maior aprimoramento literário. Para Horácio Costa, o MPC representa uma espécie de “programa” (COSTA apud JITRIK, 1992, p. 29) dos romances que se desenvolverão a partir de então. A este romance o crítico confere o lugar de primeira obra com consistência ficcional, cujo personagem principal, ao 9 escrever em primeira pessoa, guarda inúmeras identidades com o autor. Conforme Costa, no MPC Saramago conquista – ou reconquista, por fim, tal gênero literário. Aqui, podemos apontar uma possível contradição na opinião de Horácio Costa quanto à definição do romance. Ao concordar que a obra confere uma espécie de “programa” do que o autor escreverá a partir de então, ele parece desconsiderar a própria definição de obra de “estreia”. Tal termo não parece condizente com a ideia de o Manual ser uma obra completa. Dessa forma, na verdade a definição mais pertinente deve ser a que Rebelo faz, quando a denomina “sementeira”, ou seja, como matriz dos romances que se seguem. Em seu texto sobre o período formativo da ficção saramaguiana, Costa acentua as características de H. encontrando, constantemente, semelhanças entre personagem e escritor. Ele descreve o personagem H. como uma espécie de desdobramento do próprio José Saramago, que alcança uma notoriedade tardia com a escrita romanesca cujo manejo vem coroar ou, como o crítico coloca, “romper a distância que o afastara da prosa de ficção por três décadas” (COSTA, 1997, p. 275). Ou seja, ao nascer o “personagem completo” nasce um novo autor Saramago junto com ele, como assinala: “Em MPC Saramago dá a sua primeira demonstração de habilidade sobre a linguagem” (COSTA, 1997, p. 275), semelhante a H. que também experimenta novos movimentos de intimidade com a caligrafia. O crítico ainda considera que a fase formativa de Saramago, conferida no MPC, é o traço que com mais acuidade confirma o desdobramento autoral em H., como sugere o recorte: H., pouco a pouco cura-se a si mesmo através das “vias”que inventa, e conjura seu deserto e volta a pintar, e destaca a acídia e descobre o amor. Em poucas palavras, H. sofre um desabrochar tardio, porém consistente, que emula, talvez não seja de mais dizêlo, o do romancista José Saramago, já cinqüentão e, entretanto, a ponto de começar sob novas bases a sua carreira literária (COSTA, 1997, p. 318-9). 10 Após colocar o MPC como obra de viragem, na qual se condensam e se debatem as ideias desenvolvidas nas obras posteriores, Horácio Costa segue, pois, com destaques às interseções entre Saramago e H., sublinha as feições que os assemelham. Dessa forma, ambos ensaiam e experimentam um novo percurso. O autor inicia no caminho da narrativa romanesca com o MPC, afirmando, aqui, os dotes romanescos, ao passo que H. experimenta a narrar sobre si. De fato, em H. parece conter muito do próprio Saramago seja nas demonstrações explícitas de ateísmo ou na expectativa do personagem de experimentar outro estilo artístico. Mas o próprio Saramago confessa muito obliquamente: “logo este primeiro exercício de autobiografia dissimulada me denuncia” (MPC, 1998c, p. 106). Portanto, é possível afirmar que existem influências autobiográficas indiretamente no Manual, pois Saramago revela-se muitas vezes sob disfarce do personagem, dramatizando a crise de ser escritor numa época marcada pelas escritas neo-realistas tardias em busca da recriação perfeita da realidade. Quase trinta anos depois, nas PM vemos, por seu turno, um Saramago homem que desnuda as emoções, retirando das profundezas das memórias o lado de sua face muito aquém do romance autobiográfico. Assim há disparidades entre as duas autobiografias – a inventada e aquela supostamente vivida –, dentro da escrita de H. existem dois tempos, dois tons discursivos. O que o personagem intitula de “exercícios autobiográficos” (MPC, 1998c, 127) traz uma dicção mais nostálgica e literária, saturada de lembranças de viagens que lhe marcaram, por meio das quais representa a recuperação inconsciente de sua produtividade imaginária. A fase não mais intitulada de Exercícios autobiográficos demonstra a prática de um ensaio textual dentro de outro ensaio, em que registra o tempo presente, cujo passado não se manifesta, mas é totalmente alijado de possíveis auto-interpretações. 11 Saramago delimita para o personagem dois tempos pelos quais percorre e simula a condição do sujeito atravessado por todas as questões temporais e existenciais, em busca de estruturar o tempo que é, na própria essência, composto por minutos que não se podem desgrudar uns dos outros. Mais consciente, como se estivesse segurando as rédeas da própria imaginação, a fase dupla da mesma escrita no Manual parece sucitar a ideia de que, se existe uma escrita memoralística interessante a si e aos outros, esta deve ser povoada de elementos imaginários e não apenas carimbadas de registros cotidianos que acabam por ser interessantes apenas para o indivíduo que os vive. Desta forma, a autobiografia em forma de programação diária é esvaziada de fantasia, porque comporta uma espécie de agenda pragmática do que se fez e do que se pretende fazer. Perde, pois, parte do encanto narrativo peculiar ao discurso da imaginação que na autobiografia se enleia à realidade, tornando-a aprazível para ser compartilhada. Há nas PM, portanto, um Saramago referindo-se à própria história explicitamente, embora a narrativa confirme o elemento da ficção em diversos momentos textuais, quando o autor se refere, por exemplo, à impossibilidade de reproduzir suas memórias de forma que não possa corromper a autenticidade do momento vivido. É esse caráter de ficção constatado na autobiografia, PM, bem como os aspectos autobiográficos percebidos de forma indireta no romance MPC, evidenciando a natureza literária mesmo em narrativas que se pretendem inteiramente autobiográficas. Do mesmo modo que, por vezes, é impossível desvincular dados autobiográficos dos romances. Por isso, Phillipe Lejeune inscreve a narrativa íntima numa perspectiva literária, como uma das variadas formas de expressividade, não sendo, portanto, apenas particularidade de escrita, mas também um ato de leitura e de crítica. Ao que parece, a importância autobiográfica do MPC está em retratar o 12 período formativo da ficção de Saramago, porque H. constitui, por assim dizer, o primeiro personagem completo, com perfil mais trabalhado e definido em meio à densidade do enredo extenso, diferente, pois, dos breves personagens de contos e mesmo de Terra do pecado, obra sobre a qual Costa afirma que Saramago não autoriza e, por isso, “não conta” (COSTA, 1997, p. 273). Segundo Costa, no romance autobiográfico, Saramago demonstra maior habilidade sobre a linguagem romanesca, ao mesmo tempo em que seu personagem H. experimenta também uma nova relação de intimidade, agora com a escrita autobiográfica, por meio da qual recupera o imaginário, num processo que marca o amadurecimento de ambos – H. enquanto pintor e escritor de si e do Outro, e Saramago enquanto escritor ficcional. No que concerne à autobiografia PM, convém destacar que a obra não assume toda ela o papel de confessionário. Vieses líricos e existenciais conferem ao texto um molde menos diarístico e mais literário. Embora Saramago tenha acabado de lançar um novo livro de caráter autobiográfico, já que discorre, em primeira pessoa, em opiniões acerca da atualidade, não iremos abordar tal obra. O novo Caderno de Saramago: o livro do blogue faz jus à nova versão dos diários que circulam pela Internet, forma abordada também por Philippe Lejeune na nova versão do Pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Sabemos que se trata de um livro de crônicas jornalísticas, no qual certamente o autor explora novamente os anos em que trabalhou como jornalista no Diário de Notícias. Saramago escreve sobre os meses de novembro a março, tecendo declarações à cidade de Lisboa com liberdade para se referir diretamente aos autores preferidos como também aos políticos. Aqui, o caráter notoriamente é menos literário e, por isso, de menor pertinência para nossa pesquisa. 13 Gostaria de mencionar que o presente trabalho possui um valor acadêmico e também uma importância particular, já que há alguns anos me habituei à leitura de blogs e desde criança costumo escrever em diários. Além disso, sempre me pareceu instigante procurar identificar, nos romances, influências autobiográficas que porventura tivessem estimulado o autor à escrita de determinada obra ou apenas de determinado momento textual. Parece claro pra mim que a relação entre ficção e realidade altera a representação das memórias e também elabora outras versões do real, tornando-o, por vezes, mais interessante que o fato ocorrido propriamente. Desta forma, posso afirmar que o desenvolvimento desta pesquisa me trouxe um amadurecimento tanto acadêmico quanto pessoal. Em relação à metodologia adotada no trabalho, gostaria de apontar por que a referência ao MPC é mais constante do que às PM. Isso se deu em vista de o Manual se apresentar como um texto mais denso, em que se concentram, com mais intensidade, as questões existenciais do sujeito; como o conflito entre ser pintor ou escritor, entre o retratar o mundo e as pessoas como elas desejam ser vistas, ou de representar a realidade como realmente o sujeito deseja. A narrativa de 2006 é um texto mais breve, com relatos íntimos de Saramago, muitos deles já conhecidos pelo público por meio de entrevistas. Embora também reúna a problemática da representação e o conflito do sujeito diante dela, é com menos profundidade e extensão. Mas não foi apenas devido à brevidade das PM que me inclinei mais sobre o Manual. Nessa obra, Saramago projeta na escrita a inquietude do sujeito em busca de sua individualidade, mediante uma forma não tradicional de se expressar artisticamente, contrapondo-se ao sujeito das PM, cuja busca de si se direciona mais no sentido do passado, já que ele pretende resgatar um Eu perdido no tempo, a partir da escrita de suas memórias. 14 A dinâmica destes Eus é, portanto distinta. Mas os dados autobiográficos explícitos nas PM me levaram à escolha pela análise simultânea ao Manual. A princípio, a ideia era analisar cada uma das obras em capítulos independentes. Mas na medida em que foram identificadas informações autobiográficas romanceadas no Manual, ficou inevitável não compará-las paralelamente. Feita a apresentação do corpus, importa dizer que este trabalho pretende analisar o processo de constituição identitária do sujeito literário na escrita em 1ª pessoa em MPC e nas PM, além de analisar as variadas representações do Outro durante este processo, seja na representação da figura feminina ou da escrita propriamente. Partimos da hipótese de que o surgimento deste ser literário na narrativa autobiográfica de Saramago nasce do cruzamento entre realidade e ficção, elementos indissociáveis que tornam as duas obras tanto autobiografias quanto romances simultaneamente. No capítulo que se segue, O ethos autobiográfico, detivemo-nos na descrição da escrita auto de si, verificando que somente com a teoria atual é possível apontar elementos de ficção e compará-la com a literatura propriamente dita. Recorremos, sobretudo, às teorias de Phillipe Lejeune, por ser um dos teóricos que mais contribuíram para os estudos autobiográficos, além de nos apoiar também nas definições de Loureiro bem como nas distinções que Marcelo Duarte Mathias faz entre as escritas íntimas (blogues, diários e correspondências). Em seguida, no capítulo As faces da autobiografia, procuraremos reconhecer os papeis da escrita e a suposta gênese da escrita de si com os cadernos denominados hypomnemata aludidos por Foucault em O que é um autor, seguidos das As confissões de Santo Agostinho até as narrativas íntimas atuais. Passando pela noção de escrita como guia, indicarei como os exercícios de caligrafia auxiliam o autobiógrafo a 15 alcançar um maior autoconhecimento, já que ele descobre serem tênues os limites entre ficção e realidade e que este cruzamento implica numa versão compacta que acaba desenvolvendo de si, à medida que resgata suas memórias. Nessa visita ao passado a fim de torná-lo novamente palpável e próximo, observamos o objetivo de se eternizar mediante as palavras daquele que se descreve. Para além disso, com base nas categorias de autor desenvolvidas por Booth, analisaremos os possíveis tipos de autores localizados tanto no MPC quanto nas PM. No quarto capítulo, Escrita como espelho, sob o enfoque teórico de Starobinski às autobiografias de Rousseau, vamos nos referir à função de espelho que a escrita desempenha para o autobiógrafo, pois a ele devolve uma imagem não una confirmando-lhe, com isso, as variadas possibilidades de ser e de perceber a realidade. Diante das leituras de outros romances de Saramago, localizaremos dados autobiográficos que se manifestam na ficção quando, muitas vezes, aparecem como ponto de partida para o desencadeamento do romance. Aqui se firma a presença de alter egos ou duplos de Saramago, cuja subjetividade latente pode denunciar a inviablidade de serem definitivamente apagados da ficção os vestígios pessoais. Nesse corpo extra em que se torna a escrita, fatores como as relações sociais influenciam o sujeito em seu processo de constituição identitária. Dessa forma, a referência ao Outro se destaca em diversas formas de representações, seja no papel da mulher, nas relações afetivas de amizade e mesmo no papel da escrita. Nesse sentido, citamos a alusão de Lacan à importância do Outro que se oferece como reflexo no qual o sujeito pode reconhecer as diferenças e confirmar as próprias identidades. Nessa parte final, a propósito das diferentes imagens de si, obervaremos que a criatividade do fingimento consuma-se na dramatização de um Eu que constitui, na verdade, outras prováveis versões de si. A este respeito, recorremos à 16 teoria de Rosenfeld acerca da personagem e de como esta pode ser intencional no sentido de que o sujeito cria impressões sobre o Outro e sobre si mesmo que podem não corresponder propriamente à realidade. Nesta pesquisa buscamos, portanto, rastrear os caminhos do sujeito pela escrita que ora parece lhe esclarecer mais sobre si, ora projeta a impossibilidade de ele se comprimir na autobiografia. Dada à inviabilidade de se colocar a história de uma vida inteira na narrativa, o projeto autobiográfico em Saramago parece equilibrar-se entre real e imaginário, entre a transparência da palavra e a nebulosidade que representa o processo de resgate das memórias. 17 2. O ETHOS AUTOBIOGRÁFICO Se os mundos ficcionais são tão confortáveis, por que não tentar ler o mundo real como se fosse uma obra de ficção? Ou, se os mundos ficcionais são tão pequenos e ilusoriamente confortáveis, por que não tentar criar mundos ficcionais tão complexos, contraditórios e provocantes quanto o mundo real? (ECO, 1994, p. 123). Como sabemos, escrita de primeira pessoa era notoriamente interdito em textos acadêmicos, basta-nos pensar no Eu reprimido que, por vezes, esconde-se por trás da impessoalidade do “se” ou se esquilibra na modéstia do “nós”. De uma maneira geral, a narrativa de si não era, há bem pouco tempo, considerada gênero literário, sobretudo por não se enquadrar nos parâmetros de ficção que poderiam, de alguma maneira, definir o conceito de arte. No entanto, os estudos de linguagem aplicados aos estudos de literatura (Barthes, Foucault) questionaram as fronteiras entre verdade e sua representação. Portanto, neste capítulo serão analisadas as características principais da autobiografia, bem como a sua gênese. Dentro da perspectiva do ethos autobiográfico, apontaremos ainda alguns equívocos que determinadas narrativas escritas em primeira pessoa já provocaram em leitores quando de suas publicações, como, por exemplo, A Divina Comédia. A referência ao poema épico se dará a fim de esclarecermos como narrativas que contêm, declaradamente, ficção e memórias autobiográficas podem conduzir o leitor desavisado a acreditar nelas, dando origem lendas como é o caso de Os Lusíadas, e seu mito do Sebastianismo. . 2. 1. A GÊNESE DA AUTOBIOGRAFIA É difícil precisar quando necerriamente se iniciaram os textos do Eu em referência a si. Em relação a essa suposta gênese da autobiografia, não sabemos, no 18 entanto, qual o marco zero dessa atuação mítica das confissões gráficas. É difícil determinar quando foi registrada a primeira concepção de discurso intimista. Sabemos que o Cristianismo instituiu aos fieis o ato de confissão com o Novo Testamento, todavia no que se refere à autobiografia costuma-se atribui-la ao surgimento oficial das memórias escritas de Rousseau que inauguram a noção de sujeito moderno e a manifestação íntima do Eu exposto a juízos de valores. Aqui, acontece o desenvolvimento do Eu/ Rousseau, através da imaginação, mecanismo ou dom do homem utilizado para suprir as lacunas da memória. Muito antes de Rousseau, Santo Agostinho também percorreu os caminhos da exposição pessoal em As Confissões. Ele inicia a busca angustiante por expurgar o sentimento de culpa e, num desnudamento profundo sobre suas inquietações, relata a experiência espiritual acompanhada da conversão à Fé cristã. Segundo Costa Lima, o próprio Santo Agostinho, contudo, parece não valorizar a narrativa sobre a história pessoal. Isso vem afirmar a concepção de que, na Antiguidade tardia, circula uma desvalorização quanto à autoria do texto, ainda mais sob as óticas psicológica, existencial e introspectiva, de onde Costa Lima anuncia que embora Agostinho “certamente estivesse consciente da idiossincrasia pessoal, não a via como algo de valor em si mesmo ou merecedora de cultivo” (LIMA, 1985, p. 257). Com uma ideia contrária, segundo Starobinski, Rousseau parte da concepção de que o autoconhecimento não é um problema que se resolve apenas numa autobiografia, mas um alvo simples desde que o sujeito avança com as escritas, cultivando-a durante sua vida, como adverte: “passando minha vida comigo, devo conhecer-me” (ROUSSEAU, apud STAROBINSKI, 1991, p. 187). Rousseau parece assumir uma posição distinta daquela de Santo Agostinho, pois valoriza a escrita pessoal considerando-a uma forma de autodefesa, embora a 19 autobiografia seja ao mesmo tempo insuficiente. Starobinsk afirma ainda que a verdade sobre si, em Rousseau, é perseguida constantemente, enquanto se dão as variadas experiências, modificando com frequência a verdade que o sujeito percebe em relação a si próprio. Isso, segundo o crítico, explica a multiplicação dos textos autobiográficos de Rousseau que se mostra sempre insatisfeito, em constante processo de autoanálise. Após as Confissões, como se já não houvesse escrito tudo, Rousseau empreende Devaneios seguidos dos Diálogos como se o conhecimento de si fosse um conjunto somatório de pequenas partículas cuja inteireza fosse inalcançável. Os três discursos de Rousseau escritos sobre e por ele mesmo revelam um processo de busca de autorreconhecimento que ocorre repetidas vezes de forma inaugural em cada circunstância, sempre por recomeçar, conduzindo o sujeito a se contemplar e, ao mesmo tempo, a ver lhe escapar a definição da autoimagem. Ao perceber as diferentes nuanças acerca da verdade sobre si, Rousseau parece descobrir a precariedade da escrita, porque não consegue desempenhar o papel de testemunha sobre tudo aquilo que o indivíduo é. Ele percebe a vanidade de tentar apreender uma verdade una e transparente acerca de si próprio, mesmo porque para alcançar este intento teria de reescrever cada segundo de sua existência para ser inteiramente sincero. Situando-se exatamente no meio entre a realidade do mundo das coisas e a da sua relação com elas, o Eu parece se deixar envolver pelo exercício do tecer com a linguagem, por este ludismo verbal que ilumina suas obscuridades pessoais e as organiza. O que se passa com Rousseau é o fato de não conseguir convencer os leitores sobre a imagem que cria em relação a si mesmo, uma vez que toda escrita pode suscitar interpretações distintas daquela intencionada pelo autor. Ele segue o encalço do próprio Santo Graal, simbolizado pela tentativa de se reproduzir textualmente com exatidão a fim de se defender de julgamentos alheios. 20 Acerca das verdades escorregadias aludidas por Starobinski, o personagem H. parece partilhar de semelhantes ideias. Isso se dá mais claramente quando H. tenta discorrer sobre os perfis psicológico, pessoal e social do cliente S., quando da feitura do quadro encomendado: Mas seria sempre uma imagem, nunca a verdade. E esse foi provavelmente o grande erro: julgar que a verdade é captável de fora, com os olhos só, supor que existe uma verdade apreensível num instante e daí para diante tranquilamente imóvel, como nem mesmo a estátua o é, ela que se contrai e dilata à mercê da temperatura, que se corrói com o tempo e que modifica não só o espaço que a envolve como, subtilmente, a composição do chão onde assenta, pelas ínfimas partículas de mármore que vai soltando de si, como nós os cabelos, as aparas de unhas, a saliva e as palavras que dizemos (MPC, 1998c, p. 78). Em meio às dificuldades de retratar S., H. descobre o desejo de se autorretratar na caligrafia: “Foi por me descobrir separado do conhecimento de S. que comecei a escrever [...], foi para me aproximar de mim próprio que continuei a escrever” (MPC, 1998c, p. 50). Neste sentido, a narrativa de H. compreende a noção da dupla função da escrita aludida por Foucault, quando ele explica a atuação das correspondências sobre o remetente e o destinatário M. quem lerá seus textos. A sua leitora aqui o faz concluir que “escrever é pois ‘mostrar-se’, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro” (FOUCAULT, 1992, p. 150). Segundo o filósofo, textos de primeira pessoa que são lidos pelo Outro, como as cartas, atuam tanto sobre aquele que escreve, dado ao gosto pela escrita, quanto sobre aquele que lê, porque em ambas as posições os sujeitos adestram a si mesmos por meio do texto. Convém apontar que, naturalmente, todos os textos desempenham esta dupla função, porque quem escreve o faz para, algum dia, ser lido, ainda que esse leitor seja aquele mesmo que escreve. Por outro lado, se pensarmos nas diferenças entre as autobiografias atuais e as dos séculos passados, vemos que as PM e também o Manual, mesmo ficticiamente, parecem desfazer a noção de que a narrativa íntima deve compreender o histórico 21 completo sobre o narrador, abrangendo todos os períodos de sua vida. Como o Zezinho da PM, H. também se refere apenas à parte de sua história. Mesmo após trinta anos, neste ponto Saramago parece permanecer com a mesma concepção quando escreve as sucintas pequenas memórias, como se, para ele, a inviabilidade de falar tudo sobre a vida de alguém fosse tão óbvio que, portanto, só lhe resta deixar apontar os fatos mais inquietantes de um ciclo da própria história, os que ele subjetivamente selecionou. De certa forma, PM é uma autobiografia inovadora, porque Saramago sacode desta escrita as noções temporais cristalizadas de começo, meio e fim. Esta mesma busca por não se render ao comodismo, à ditadura que repremia a expressividade do cidadão, podemos observar no personagem H., quando ele desiste de pintar para sobreviver e passa a praticar seu direito à palavra, à linguagem que pratica nos exercícios autobiográficos. Isso parece simbolizar, em outros moldes, a desistência de Saramago da profissão de serralheiro mecânico. É como se na imagem do personagem uma outra se manifestasse sobre relevo, relevando uma ligação clara e direta de criatura e criador. A reviravolta um tanto tardia de H. aparace, de fato, com uma informação biográfica. Em relação ao próprio Saramago, as inúmeras leituras noturnas que fazia na Bibioteca de Lisboa, as traduções de obras como as de Baudelaire e a direção do Diário de notícias contribuíram para a constituição de um novo Saramago depois dos cinquenta, quando substitui os dois primeiros empregos pela carreira de escritor de romances tardio semelhante a H. Não sabemos como Saramago se sentia diante dos antigos empregos, mas o fato é que a experiência com a escrita faz H. reconhecer outras possibilidades do seu ser. É como se as virtualidades abafadas pelo gesto repetitivo da pintura, antigo ofício, o encaminhava rumo ao apagamento da própria identidade, como sugere Reis: 22 A posição do artista, num tal contexto, é de apagamento. A ruptura a operar tratará, então, de recusar à estabilidade cómoda e esvaziada de ousadia que é daquela pintura figurativa e primeiramente realista, ao mesmo tempo em que será valorizada a representação da pluralidade (SARAMAGO, apud REIS, 1998a, p. 16). Situada a ação no período precedente ao 25 de abril, entre angústia e lucidez, H. tece reminiscências de leituras (Sócrates, Marx, Shakespeare, Cervantes etc.), de viagens e visitas a monumentos artísticos em passagens por museus, bem como de vivências cotidianas submetidas à análise da razão. Não há referências a familiares, salvaguardando o breve instante que nos leva a pensar num sujeito, sobretudo, o dos dias atuais, que vive na sociedade cujas referências diluíram-se. É possível que esta decadência dos modelos de representação bem como a secularização da História tragam a valorização das experiências pessoais e confiram a tais relatos uma densidade valorativa que a Antiguidade desconhecia. Naquele tempo não se pode falar em literatura da interioridade já que os modelos de representação religiosa, por exemplo, imperam sobre um eu carente na dimensão psicológica. As confissões, de Santo Agostinho e, muito depois, as de Rousseau são um passo considerável rumo ao lugar que a literatura dá atualmente à questão do sujeito. Contudo, apesar de a obra de Agostinho apresentar indícios de introspecção, ainda está muito voltada para as questões do divino, talvez devido à carência de uma secularização da experiência intelectual. O caminho autobiográfico daquela época se tornou impossível porque a experiência do Eu parece obedecer à ideia de integração, a um modelo de conduta geral e, por conseguinte, se torna impessoal. Em relação a este “início” da trajetória autobiográfica, Costa Lima defende que “a observação e a descrição do mundo externo desaparecem por completo atrás da representação de fatos e experiências espirituais” (LIMA, 1985, p. 250). Ao contrário, na atualidade os relatos como diários, biografias e autobiografias ganham destaque nas livrarias, entrando na lista 23 dos mais vendidos. Decerto isso ocorre devido ao sentimento de curiosidade, desejo inato do homem de conhecer, ou perscrutar, a vida de outra pessoa. E esta curiosidade parece movimentar o mercado, facilitando a venda dos livros autobiográficos, mormente aqueles que prometem um desnudamento total – e é fundamental dizer, impossível – do Eu. Historiadores, como Peter Gay, afirmam que esta supervalorização da privacidade, advinda com o crescimento da burguesia, é o que impulsiona o aparecimento de uma infinidade de novelas, reality shows, diários e autobiografias, conforme apontam suas reflexões: “Pense, por exemplo, como a ideia de privacidade era até fisicamente impensável em famílias cujos membros eram obrigados a dormir juntos num mesmo quarto, algo comum no século XVIII” (GAY, 1998, p. 23). É após certa conquista de privacidade que a literatura íntima passa a registrar o Eu e sua voz particular. Ainda, segundo, Gay: Foram meros detalhes como quartos privativos ou escrivaninhas com chaves, mas, no geral, serviram para que a classe média respondesse à nova intimidade com confissões, viciando-se em tudo o que a remetesse à busca do “eu” no cotidiano e nas artes (p. 24). Talvez a perda de utopias como crenças religiosas contribua, sobremaneira, para este suposto vazio de referências, exemplificado no perfil do pintor-escritor, como podemos conferir nas impressões abaixo de H.: Quando a imagem antropomórfica da divindade se perdeu, perdeuse tudo. Nenhuma tentativa depois feita para justificar a imaterialidade pôde realimentar ou ressuscitar as crenças. [...] mas, acabadas estas histórias, que eram histórias de gente com a sua gente, Deus passou a não ter lugar nem tempo. [...] Um Deus que não esteja majestosamente sentado nas nuvens, um Deus que não tenhamos a esperança de conhecer em pessoa una e trina, é um Robinson inventado, criador segundo de uma religião de medo que precisava de uma Sexta-Feira para ser igreja (MPC, 1998c, p. 107). No excerto acima, Saramago revela a concepção do autor quanto à extinção das utopias e da morte de Deus, o que nos leva a pensar sobre esse sujeito voltado, 24 sobretudo, para a própria constituição. No Manual isso aparece em imagens de solidão, em dados momentos quando vagueia pelas ruas de Lisboa. A noção de esvaziamento no recorte acima pode corresponder ao desaparecimento da figura divina, e mesmo das ideologias. Segundo Dufour, o vazio das ideologias coincide com o “advento da época pós-moderna” que “caracteriza-se como um fenômeno: o do esgotamento e de desaparecimento das grandes sagas da legitimação: especialmente as sagas da religião e da política”. E, portanto, “a falta de um enunciador coletivo confiável caracteriza a situação do sujeito pós-moderno, que sente ser-lhe imposto ‘fazer por si mesmo’” (DUFOUR, 2001, p. 2). Sendo assim, segundo ele, o sujeito está condenado a ser livre para criar o seu próprio projeto existencial. No texto As máscaras de Narciso, Clara Rocha associa a escrita memoralística à perda de uma perspectiva comunitária de salvação, num mundo secularizado. Ao falar sobre textos de Drummond, reflete que “a escrita do eu pode assim ser encarada como uma forma de salvação do individual num mundo que começa a descrer de sucessivos modelos ideológicos de salvação coletiva” (ROCHA, 1992, p. 19). Assim, o MPC mostra o sujeito em crise, fruto de uma sociedade que cultiva o individualismo ao mesmo tempo em que estabelece padrões de comportamentos e condutas de aparência. H. é aquele sujeito que se conscientiza sobre a repetição em seu cotidiano e consegue mudar seu destino. Ele se assemelha a outro personagem saramaguiano, Tertuliano Afonso de O Homem Duplicado, quando o professor de história tenta alterar o cotidiano, mudando a forma de ensinar porque aspira à originalidade em relação ao seu duplicado. Outro Eu duplicado de Tertuliano parece simbolozar a ideia de sociedade individualista em meio a padrões repetitivos de comportamentos. A atitude de ir contra as convenções do protagonista duplicado se assemelha com a de H. quando este também rejeita o método clássico de se autorretratar e afirma a 25 maneira particular de escrever sua autobiografia. Por mim tendo notado tão bem quanto sou capaz a inanidade do método clássico de (me) biografar, preferi lançar sobre a transparência do vidro que (me) sou os mil pedaços da circunstância, os sedimentos da poeira entre o ar e a narina [...] – para depois de tudo bem escondido, procurar os leves brilhos, os dedos que chamando se agitam, e que são, os primeiros, a minha resposta ao sol, e estes, a frustração de não serem raízes duplas que, firmadas no chão, prendessem também seguramente o espaço. Resumindo: esconder para descobrir (MPC, 1998c, pp. 105-6). Quando se convence de que não pode realizar a biografia de S. na pintura, H. também se apercebe de que apenas o cliente saberia evocar e registrar suas emoções, seja na escrita ou na pintura e mesmo assim seria uma autobiografia incompleta, já que lhe faltariam as versões de todos aqueles que o conheceram, bem como o resgate integral do tempo para tornar o relato mais fidedigno ao da realidade. Assim, é com o propósito de conquistar autonomia e fazer desabrochar a própria identidade que H. resolve escrever, após escurecer a tela do segundo quadro de S., por sua vez, emblema da própria condição de H., com sua expressividade abafada em épocas ditatoriais. Ao considerarmos a teoria do sinal e da significação que Herculano de Carvalho destaca, verificamos que a escrita intimista é apenas um sinal que designa o real, representando o Eu que se descreve. O exercício da escrita acende a paisagem interior do sujeito, manifestando o que nele se encontra, orientando-o ao conhecimento de si a partir de palavras, signos concretos, cuja subjetividade passa a adquirir um certo tipo de contorno visível. Segundo o linguista, “o sinal ou significativo é sempre diverso do objeto significado” (CARVALHO, 1979, p. 97). Desta forma, quando problematiza a representação da realidade, Saramago traz à tona a insuficiência de uma breve escrita memoralística veicular toda a história do ser, de modo que até mesmo a forma como o sujeito se vê é precária, sobretudo face à questão temporal constantemente limitada. Acerca da concepção de tempo romanesco, Saramago esclarece em entrevista a Carlos Reis que, 26 Em primeiro lugar, tomemos, se tal é possível conceber, o tempo. Não este em que estamos agora, não aquele outro que foi o do autor enquanto escrevia o seu livro, mas um tempo contido e encerrado no romance, e que tão-pouco é o das horas ou dias que levará ser lido, ou uma referência temporal implícita no discurso temporal (SARAMAGO, apud REIS, 1998a, p. 100). Com isso, podemos inferir que o projeto autobiográfico encontra dificuldades em se realizar plenamente, porquanto é condicionado pela segregação feita pelo autor que não pode reconstituir todos os minutos e dizê-los ininterruptamente. Logo a escrita intimista é comprometida pelo aleatório esmiuçar de fatos, separando, por vezes, eventos determinantes da vida de quem se descreve. H. explicita isso ao afirmar: Provavelmente, nenhuma vida pode ser contada, porque a vida são páginas de livro sobrepostas ou camadas de tinta que abertas ou descascadas para leitura e visão logo se desfazem em poeira, logo apodrecem: falta-lhes a invisível força que as ligava, o seu próprio peso, a sua aglutinação, a sua continuidade. A vida também são minutos que não podem desligar-se uns dos outros (MPC, 1998c, 91). Ocorre que a proposta autobiográfica – seja em blogues ou na obra editada – continua a mesma dos tempos de Rousseau e das confissões agostinianas. O autobiógrafo, em atos de confissão, parece se purificar durante a feitura da escrita, já que, no caso do MPC, seu autor revela amadurecimento após tratar dessas memórias fictícias. 2. 2. A AUTOBIOGRAFIA SOB O OLHAR DE LEJEUNE Modelando e remodelando o Cosmos de múltiplas maneiras, a linguagem permite ao falante perenizar o momentâneo, imobilizar o movediço, atribuir dinamicidade ao que é estático. (BITTENCOURT, 2003, p. 38). Durante muito tempo, dentro do estatuto da escrita literária, a vertente autobiográfica parecia resignada ao rótulo de “ruminação do eu tagarela que se 27 derrama e se consola” (BLANCHOT, 2005, p. 270). Desvinculada de uma possível realização estética, a autobiografia não era considerada por muitos como literatura, sob o argumento de que não atende a critérios de ficção, porque possuía uma construção textual pouco complexa, motivo que, em rigor, a impedia de fazer parte da cena literária. Mas muito antes das autobiografias, também as narrativas em prosa não não se destacavam se a compararmos com os poemas líricos e só adquiraram acentuada valoração a partir do século XVIII, como aponta o teórico Vítor Manuel: Verificou-se nas literaturas europeias, desde as primeiras décadas do século XVIII, uma acentuada valorização de textos literários em prosa, desde o romance ao ensaio [...]. Se o racionalismo neoclássico e o “espírito filosófico” iluminista desempenharam importante papel na valorização de uma prosa literária apta à comunicação e ao debate de ideais, o pré-romantismo rasgou novos horizontes à prosa literária, com o romance, a novela, as memórias, a biografia e a autobiografia – géneros literários que adquirem então estatuto estético e sociocultural de que não usufruíam nos séculos anteriores (SILVA, 2006, p. 11). Atualmente, na escrita de natureza memorialística, como autobiografias, biografias, blogues, diários e correspondências podem ser localizados elementos peculiares ao gênero literário. Estes textos de autonarrativas que antes circulam à margem daqueles consagrados, numa forma geral, parecem renovar as fronteiras literárias cuja nova delimitação promove um paradigma formal para tais escritas. Inicialmente, a escrita pessoal estava associada mais à necessidade de introspecção do sujeito em processo de autocompreensão e desabafos. Na verdade, a autobiografia é uma escrita mais remota no tempo que relatos sobre experiências espirituais praticados por Santo Agostinho. Parece ter se iniciado pelos pitagóricos e socráticos que entendiam a prática autobiográfica como exercício pessoal por meio dos quais meditavam sobre os livros e as experiências diárias. É o que Foucault denomina de hypomnemata, podendo ser livros ou cadernos pessoais que serviam de guia e “constituíam assim uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas, 28 oferecidas assim, qual tesouro acumulado, à releitura e à meditação ulterior” (FOUCAULT, 1992, p. 133). Estes hypomnemata circulavam entre amigos, mas não havia neles nada demasiadamente pessoal a ponto de não poder ser compartilhado, sobretudo, com fins pedagógicos. Depois, tais escritas de si passam a integrar a literatura cristã ulterior que, todavia, adquire um tom mais ascético, como As confissões de Santo Agostinho, diferindo-se assim dos hypomnemata que eram o exercício de reunir narrativas e meditar sobre estas, e não o de escrever para expurgar de si sentimentos nocivos. Entre os estudiosos que se lançaram na busca por princípios formais que enquadrassem a autobiografia dentro de uma estrutura reconhecível, o francês Philippe Lejeune é o pioneiro por levantar dados estruturais que, em sua opinião, definem em termos a escrita autobiográfica em prosa. Ele teoriza sobre um gênero até então banido do cânone, e em sua primeira abordagem define a autobiografia como “Récit rétrospectif en prose qu’une personne réelle fait de sa propre existence, lorsqu’elle met l’accent sur sa vie individuelle, en particulier sur l’histoire de sa personnalité”. (LEJEUNE, 1985, p. 14) 4. Com base em suas reflexões, a maior contribuição de Lejeune talvez seja a de considerar a autobiografia uma das variadas formas de leitura e crítica, e não apenas de escrita. Esta descreve a autobiografia como relatos retrospectivos em prosa que um sujeito civil faz sobre sua história particular, fazendo convergirem de tal forma as posições de autor, narrador e personagem que o leitor parece não possuir a liberdade de duvidar da autencidade incontestável do discurso. Para ele, o texto memoralístico que atender a tal critério é, pois, considerado como autobiografia, ao passo que as demais escritas afins, como diários e certas correspondências, só podem contribuir para um levantamento de informações 4 Tradução nossa: “Narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando ela incide sobre a sua vida individual, em particular sobre a história de sua personalidade”. 29 autobiográficas, não se inscrevendo, assim, neste gênero literário propriamente, devido à sua brevidade. A propósito das semelhanças entre as escritas do Eu, é-nos importante verificar suas semelhanças e disparidades. Tanto o diário quanto a autobiografia aproximam-se por privilegiar o olhar individual, centrando-se na figura do autor que lhes serve de elemento comum. Existem, contudo, distinções que merecem ser destacadas. A autobiografia visa a se situar nas perspectivas temporais, demarcando os limites entre passado, presente e futuro, diferente do diário que, por seu turno, não se ocupa de cindir tais linhas com tamanha precisão. Acerca destas dessemelhanças, o pesquisador português Marcelo Mathias esclarece: Linha visível a da autobiografia; linha descontínua a do diário. Diferenças estas patentes no próprio acto da leitura, já que a do diário, à semelhança da sua elaboração, é saltitante e irregular. Não assim com a autobiografia, que se lê de ponta a ponta, porque compõe um todo e aspira a um fio de coerência, inviável na prosa diarística. [...] A autobiografia resume uma totalidade, reconstituição de um passado morto. Quando no diário é sismografia do próprio tempo a passar, tempo presente a emergir e a sumir-se. [...] A autobiografia é uma retrospectiva, o diário um devir. O diário é um livro já feito e ainda por fazer. (MATHIAS, 1997, p. 46). Diante disso, a autobiografia, narrada à distância, traz lembranças condicionadas por um olhar constantemente modificado, que reinterpreta de forma individual o objeto rememorado antes submerso no passado. Mesmo sendo os momentos indissoluvelmente ligados, quem escreve pode separá-los e eleger certas recordações, estabelecendo uma coesão pessoal com a imensidão do tempo que nele vive e que ele, enquanto homem, representa. Ante tais cruzamentos, o autobiógrafo busca compor, aos poucos, esta coerência interna, ou apenas faz da escrita, além de um convite à sua intimidade, a busca por apreender o sentido global de uma existência concreta e particular. 30 Sendo a linguagem um espaço, como lhe confere Roland Barthes (BARTHES 1988, p. 207), ao se conjugar dentro da escrita o sujeito se desprende da própria identidade, porque sua prática é capaz de arrastá-lo para outros territórios desconhecidos do consciente, trazendo à letra outras marcas de subjetividade que se somam aos relatos empíricos. Apesar de se tratar de uma prática egocêntrica, a escrita de si pode, muitas vezes, desviar o sujeito dele próprio, uma vez que os movimentos da escrita e as curvas das lembranças podem conduzi-lo ao domínio da inconsciência, num sentido freudiano. Nesse estado, o autobiógrafo torna a escrita uma rede viva de subjetividade, na qual cabem os conhecimentos absorvidos da sua cultura ao longo de sua existência. Assim, podemos pensar que a impossibilidade de recriar o real com originalidade parece comprometer a ideia inicial do projeto autobiográfico que é confessar, cronologicamente, uma possibilidade de verdade do sujeito. Nesse ponto, o discurso íntimo se frustra, pois a exatidão dos fatos e datas bem como a demarcação de lugares são, ao fim e ao cabo, impossíveis de serem reorganizados, e na escrita isso torna a totalidade vivida inapreensível mesmo para quem a vivenciou. Como destaca Mathias, Nessa incessante recriação que pretende restituir, rectificar, ou recompor uma evidência perdida e morta, e com ela se identificar, estaria a essência do projeto autobiográfico. E o seu malogro (MATHIAS, 1997, p. 42). No que concerne à pretensão compacta de si ansiada pelo sujeito, Umberto Eco explica que toda narrativa possui uma função consoladora que também sempre foi a função suprema do mito “encontrar uma forma no tumulto da experiência humana” (ECO, 1994, p. 93), motivo pelo qual as pessoas contam histórias e têm contado histórias desde o início dos tempos, segundo ele. Todavia, não há como o sujeito compactar a sua história dentro da linguagem, como um comprimido bloco sólido que pudesse abraçar com inteireza. A natureza inacabada do sujeito que se 31 descreve corrobora para a falha na autobiografia pretensamente fiel aos fatos. Em virtude disso, na voz do personagem H., Saramago mostra esse sentimento de angústia por não reorganizar e retratar inteiramente as lembranças na escrita, como sugere o recorte: Tantas palavras escritas desde o princípio, tantos traços, tantos sinais, tantas pinturas, tanta necessidade de explicar e entender, e ao mesmo tempo tanta dificuldade porque ainda não acabamos de explicar e ainda não conseguimos entender. (MPC, 1998c, p. 99100). Por outro lado, Saramago parece se convencer de que a autobiografia está presente em tudo relacionado ao indivíduo, desde os gestos mais singelos como as expressões, os movimentos e as relações sociais. A autobiografia se inscreve, dessa forma, em tudo aquilo que o sujeito realiza, até mesmo em textos fictícios como um momento da história pessoal de quem escreve. Daí ser demasiado simplista a versão comprimida, na narrativa, sobre a história individual do autobiógrafo. Essa concepção de autobiografia em sentido global parece equivalente à particular perspectiva de Paul de Man sobre o tema, quando explica: “Autobiography, then, is not a genre or a mode, but a figure of reading or of understanding that occurs, to some degree, in all text” (MAN, 1979, p. 94) 5. Em entrevista ao espanhol Juan Arias, Saramago reforça a ideia, exposta no Manual, de que toda a vida do sujeito é autobiográfica. Acrescenta a ideia de sobre como deseja ser visto pelos leitores. O trecho é elucidativo e merece ser transcrito na íntegra: O que quero é que cada leitor, através dos livros que escrevo, tenha uma ideia da pessoa que escreve. Se quisesse e pudesse dizer quem sou, o que faria seria escrever um livro para dizer isso mesmo, quem sou, e provavelmente enganar-me-ia, devido às portas fechadas. Ou, ainda pior que enganar-me, poderia enganar os outros, porque, quando alguém está preocupado em dizer quem é está preocupado em dizer o melhor que tem de si mesmo (SARAMAGO, apud ARIAS, 2000, p 25). 5 Tradução nossa: “Autobiografia, então, não é um gênero ou uma modalidade, mas um valor de leitura ou de compreeensão que ocorre, em certo grau, em todo o texto”. 32 Como o empreendimento de rememoração não é plenamente bem sucedido, a escrita intimista fica comprometida, pois quem escreve pode eleger, por vezes, eventos determinantes da história, privilegiando experiências em detrimento de outras. Em um dos artigos de Românica – Revista de literatura, Paula Mourão capta este insucesso e afirma que “ao procurar o ‘eu’ no passado, o sujeito quer reorientar o porvir, se auto-corrigindo ou inflectindo no seu percurso, construindo uma utopia de si que espera poder cumprir” (MOURÃO, 1994, p. 28). Contudo, a intenção de se modelar na autoescrita, em Saramago, não parece ser, de todo, mal realizada. O que fica comprometido é a representação supostamente perfeita, uma vez que as intervenções imaginárias influenciam na integridade do real, à medida que adquire outra vida no nível da arte ou da realidade textual. A autobiografia, aqui, se enriquece com a criatividade, de modo que a ficção não vem empobrecer a escrita íntima, porque representa um momento autobiográfico que é o sujeito em busca de se reintegrar a lembranças de uma época passada. O sujeito cognoscente não apenas cria a linguagem, mas cria na e com a linguagem e este poder imaginativo que se relaciona com a realidade é criação e, portanto, ficção acrescentada aos relatos íntimos. Como sabemos, as lembranças constituem o mote inicial para o desenvolvimento de qualquer escrita, sobretudo, aquela em que o sujeito escreve sobre si. Como praticantes da língua, seja a falada, seja a escrita em diários, correspondências e autobiografias, o fato é que o autobiógrafo encontra-se inserido num duplo contexto. Para este tipo de posicionamento fronteiriço, Barthes utiliza o exemplo do touro que confunde a cor vermelha da capa com a própria cólera, situando-se assim “em plena analogia, isto é, em pleno imaginário” (BARTHES, 2003, p. 57). O sujeito parece, de fato, condenado à analogia, já que mesmo quando 33 não se apercebe disso, ele está todo o tempo captando imagens do mundo ao seu redor e realizando impressões particulares. Ao escrever, consequentemente o escritor mostra-se em meio à representação e aos objetos modelos, porquanto a ele é dado ao privilégio de coabitar um mundo reinventado continuamente pelo poder criativo da palavra, cerne este sobre o qual Bittencourt anuncia que: Imantada por um poder demiúrgico, a linguagem é capaz de irisar o mundo em cores e facetas sempre cambiantes, oferecendo ao sujeito que fala a possibilidade de uma visão caleidoscópia do real. Modelando e remodelando o Cosmos de múltiplas maneiras, a linguagem permite ao falante perenizar o momentâneo, imobilizar o movediço, atribuir dinamicidade ao que é estático. (BITTENCOURT, 2003, p. 38). Parece-nos que Fernando Pessoa também se apercebe disso ao afirmar no seu desassossego poético que “os campos são mais verdes no dizer do que no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.” (PESSOA, 1986, p. 398). Assim, na interpretação pessoana, o mundo dos homens e das coisas adquire mais vitalidade quando tocado pelo condão inventivo da palavra. 2. 3. AS VERSÕES DO PACTO LEJEUNIANO a autobiografia não é um caso particular de romance, nem o inverso, ambos são casos particulares de construção de narrativa (LEJEUNE, 2008, pp. 75-81). Estabelecidas as distinções entre diário e autobiografia, retomamos o texto - O pacto autobiográfico – de várias versões (como veremos adiante) – em que Philippe Lejeune descreve o autor como pessoa física que apresenta o pacto autobiográfico desde a capa do livro, sinalizando a presença de sua identidade coincidente com os papéis de narrador e de personagem dentro do texto. Diante desta perspectiva, o leitor – uma espécie de voyeur – também ocupa espaço porque é convidado a comungar 34 com esta tríade, assistindo aos desdobramentos do autor em narrador e em protagonista da narração. O leitor, segundo Lejeune, reforça o contrato relacionandose com o autor no momento em que o identifica como agente de tais posicionamentos textuais, selando, com isso, a aliança com a leitura autobiográfica. Conforme explica Lejeune, a autobiografia é o espaço de diálogo do narrador consigo próprio, com suas experiências ditas reais. Nesse sentido, o que distingue a autobiografia ficcional da que se pretende real é o fato de a primeira produzir declaradamente um “outro mundo” imaginário, ao passo que a última refere-se a uma “realidade” anterior e exterior ao texto vivida pelo autor. Mas até que ponto não existem experiências reais embutidas nos discursos fictícios, como é o caso do Manual? Em O nome da rosa, Eco mostra como ele pôde, enquanto escritor, incorporar e alterar a história do protagonista sobre quem escreve em primeira pessoa. No prólogo, ele narra, de forma que parece ser verdadeiramente real, como lhe chegaram às mãos os manuscritos do abade Vallet, em que conta a vida do monge Dom Adso de Melk. O mais relevante para esta pesquisa é o fato de que, com tal prólogo, Eco mostra que até o motivo da escrita pode partir de uma fantasia e corresponder à ficção, tanto quanto a narrativa em si. Observamos narrativas embutidas dentro das outras e a possibilidade de haver nelas incontáveis impressões particulares trespassando a obra. Tudo isso para nos levar a crer na possibilidade de qualquer escritor poder escrever como autênticas as memórias de outro. Isso pode se estender até os textos íntimos também, já que nada impede ao autobiógrafo de somar fantasia ao seu discurso, nem de incorporar, na escrita, experiências de outrem como suas. Em outro momento, Eco reforça com mais veemência a questão do real e imaginário, e é convincente quando afirma que o modo 35 como aceitamos a representação do mundo real pouco difere da forma como aceitamos a representação na ficção. Como exemplo, ele aponta que fingimos acreditar na existência de um personagem, da mesma forma em que fingimos acreditar num personagem histórico, cuja historicidade muitas vezes pode chegar a conhecimento público após sofrer influências dos meios que a veicularam. Considerando que a autobiografia corresponde a uma autorrepresentação, a insuficiência das palavras se dá devido à intervenção dos sentimentos durante o processo da escrita. A forma com a qual o sujeito interpreta os fatos compromete a representação daquilo que realmente ocorreu. Isso pode se dar em qualquer texto de natureza memoralística, sejam diários, sejam autobiografias. Em O pacto autobiográfico (Bis), Lejeune introduz algumas modificações e declara que as críticas à sistematização da sua obra o levaram a rever os conceitos sobre autobiografia. Ele reescreve essa versão justificando-se mediante o que chama de “estratégia idealista” (LEJEUNE, 1997, p. 426), pois se considera crente convicto na transparência da palavra e na existência de um sujeito pleno que se expresse através dela. Lejeune publica o primeiro ensaio sob uma perspectiva normativa, decerto influenciado pelo estruturalismo dos anos 60. No texto Bis, Lejeune diz reconhecer a improbabilidade de esquematizar as antigas definições e alarga o conceito de autobiografia, passando a redefini-la: Mais, largo sensu, “autobiographie” peut désigner aussi tout texte ou l’auteur semble exprimer sa vie ou ses sentiments, quelle que soit la forme du texte, quel que soit le contrat proposé par l’auteur. (LEJEUNE, Bis, p. 20) 6. Agora, a máxima da autobiografia vai além do pacto e se alarga a qualquer tipo de contrato que o autobiógrafo possa propor com seu leitor, e a isso podemos 6 Tradução nossa: “Mas, lato sensu, ‘autobiografia’ também pode referir-se a todo texto no qual o autor parece expressar sua vida ou seus sentimentos, seja pela forma de texto, seja pelo contrato proposto pelo autor”. 36 atribuir ao aspecto da fantasia relacionando-se com a memória. O teórico revê ainda as posições quanto ao autor, acrescentando que não se trata de uma pessoa reconhecidamente real, como antes definiu de maneira dogmática. Neste momento, o autor para Lejeune é o produtor de discurso com quem a intimidade apenas é possível na dimensão textual, já que, no lugar de leitores, nosso conhecimento sobre a pessoa dita real é limitado. Há caso de autobiografia em que o narrador assume nome diferente do autor, podendo com isso confundir o leitor que seria capaz de reconhecer semelhanças entre ambos. Lejeune problematiza ainda a questão, dizendo que, embora algumas evidências apontem a existência de um pseudônimo, se este não for assumido pelo autor a obra deve entrar na categoria de “romance autobiográfico” (LEJEUNE, 2008, p. 25), e não autobiografia. Não podemos concluir que o personagem H. do MPC seja um pseudônimo saramaguiano, mas o fato de conferirmos, em algumas entrevistas, traços reconhecíveis da identidade de Saramago talvez venha apontar a relação entre o elemento do real e a ficção. Neste sentido, MPC parece encontrar uma certa correspondência com a definição de “romance autobiográfico”. O teórico parece concluir que, enquanto o sujeito escreve sobre si, suas faces se confundem e se expressam simultaneamente, de tal forma que as ideias de narrador, autor e personagem podem causar confusão em quem lê a obra. Ou seja, o princípio da autobiografia baseado no compromisso, ou pacto com a verdade, no Bis, não é quesito fundamental na relação do autor-narrador-personagem com o leitor. O mérito da autobiografia está, agora, em transmitir a ilusão de que o leitor se encontra diante de um conjunto de fatos organizados, reais e concretos, lembrando que tais fatos podem estar sujeitos a transcrições e reelaborações por parte de quem se descreve. Parece-nos, portanto, que os gêneros de aspecto confessional são, assim, uma 37 produção humana entrecortada de ficção e realidade como qualquer outra produção textual. Na versão mais atualizada de O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet, traduzido em português, Lejeune revê mais uma vez suas ideias e se confessa arrependido pelas alterações realizadas no Bis, classificando o texto anterior de “fórmulas brutais sobre as relações entre autobiografia e romance” (LEJEUNE, 2008, p. 72). Discordando do que dissera acerca de a autobiografia ser uma ficção produzida em condições particulares, afirma que: Não, a autobiografia não é um caso particular de romance, nem o inverso, ambos são casos particulares de construção de narrativa. [...] para mim, o essencial continua sendo, confesso, o pacto, quaisquer que sejam as modalidades, a extensão, o objeto do discurso de verdade que se prometeu cumprir. (LEJEUNE, 2008, pp. 75-81). Embora, logo em seguida, chegue à conclusão de que “quase todas as ficções são lidas como autobiografia” (LEJEUNE, 2008, p. 81), nessa nova releitura, busca distinguir autobiografia do romance, ao passo que procura estreitar mais as relações entre autobiografia e diário. Na atual sociedade, em que o tributo à memória é cada vez menos praticado, para ele o diarista se destaca por exercer as recordações com a finalidade de compensar a pulverização do passado e do Eu. Talvez em face de tal evanescimento, Saramago afirme: “Insisto na importância da memória porque nós vivemos na memória, habitamos nela, e repara que não faço distinção entre viver e habitar” (SARAMAGO, apud ARIAS, 2000, p. 44). Mesmo que se mostre um tanto inclinado a discorrer sobre diário e blogue, Lejeune reafirma que etais tipos de textos não podem ser eleitos como literatura semelhante à autobiografia, porque “o diário não é, em primeiro lugar, um gênero literário, mas uma prática” (LEJEUNE, 2008, p. 85) já que, para ele, a proposta de cada um é distinta, no tocante principalmente à abordagem temporal. 38 Ao que nos parece, se o critério da similitude é o que caracteriza a literatura, o discurso confessional também deve ser entendido como literatura, sendo infrutífero separá-los, por meio de qualquer critério textual. Convém ressalvar que para quem investiga autobiografias não é de extrema relevância averiguar a fidelidade dos fatos. Compete-nos tentar compreender seu funcionamento, os pormenores e sondar como o sujeito, no trânsito pela escrita, descobre que a verdade é relativa, por vezes transfigurada, como a imagem de quem se mira no espelho deformador e não vê exatamente aquilo que é. Em virtude disso, Lejeune conclui ainda no Bis, em tom de defesa, ser impossível definir a autocrítica, ou qualquer escrita de si: [...] s'ils se trompent, dèforment, etc., par rapport à ce qu'on peut supposer être la réalité, cette déformation est leur vérité même! Et je dénie a ceux qui y voient clair la possibilité de dire quelque chose d'intéressant. J'ai eu tort - mais comme j'ai eu raison d'avoir tort! Sans doute l'autocritique, comme l'autobiographie, est-elle une entreprise impossible… (LEJEUNE, 1997, p. 429) 7. Lejeune batiza o território autobiográfico com o termo pacto o qual, normalmente, é usado com fins ritualísticos, porque se refere a uma espécie de contrato com regras obscuras e implícitas. É o que ocorre na relação entre leitor e narrador-escritor-personagem, em que a aliança implícita não é válida para todos os tipos de leitores, mas apenas para aqueles que reconhecem a obra como escrita em que o sujeito se refere a ele mesmo. A pouca informação sobre uma obra pode levar o leitor a não distinguir até onde uma narrativa refere-se à realidade ou não. 7 Lejeune defende sua ideias, referindo-se à teoria do pacto: “[...] se eles estão errados, distorcidos, etc., em comparação com aquilo que pode ser assumido como sendo realidade, esta deformação é a sua verdade! E eu nego àqueles que veem claramente a oportunidade de dizer alguma coisa interessante. Eu estava errado -, mas como eu tinha razão em estar errado! Sem dúvida, a autocrítica, como autobiografia, é uma empresa impossível...” 39 2. 4. SUJEITOS LITERÁRIOS O autor não desaparece mas se mascara constantemente, atrás de uma personagem ou de uma voz que representa (LEITE, 1991, p. 18). Levando em consideração o conceito de Booth no que concerne à autoria de textos literários, Lígia Leite alerta sobre a necessidade de não se confundir as categorias de autor, narrador e escritor, já que o deslocamento do ponto de vista pode provocar confusões, levando ao risco de cairmos em psicologismos, confundir personagens com pessoas ou, ainda, confundir autor real com autor ficcional. Segundo Leite, Booth toma os devidos cuidados ao considerar a obra em seus desdobramentos metalinguísticos, acrescentando ainda que O AUTOR IMPLÍCITO é uma imagem do autor real criada pela escrita, e é ele que comanda os movimentos do NARRADOR, das personagens, dos acontecimentos narrados, do tempo cronológico e psicológico, do espaço e da linguagem em que se narram indiretamente os fatos ou em que se expressam diretamente as personagens envolvidas na HISTÓRIA (LEITE, 1991, p. 19). Ao trabalhar com esta concepção na análise de A jangada de pedra, Oliveira também dá indícios de que podemos localizar momentos no MPC em que Saramago não está totalmente silenciado, se considerarmos, em princípio, que ele constitui um duplo de si mesmo em H. Assim, o alter ego de Saramago pode corresponder, em alguma medida, à noção de “autor implícito” que contribui para tal versão distinta, “não se confundindo com ele” (OLIVEIRA, 2004, p. 19). Contudo, a versão distinta pode não corresponder a uma intencionalidade autoral quando do ato inicial da escrita. Convém assinalar que nem todos os textos devem ser compreendidos como intencionais do início ao fim, ao mesmo tempo em que nem toda a narrativa pode ser explicada do único ponto de vista da inspiração. O fato é que, ao escrever, o autor 40 pode não premeditar inteiramente toda a escrita, tampouco fazer dela produto de completo acaso. Segundo Compagnon, O autor cede, pois, o lugar principal à escritura, ao texto, ou ainda, ao “escriptor”, que não é jamais senão um “sujeito” no sentido gramatical ou linguístico, um ser de papel, não uma pessoa no sentido psicológico, mas o sujeito da enunciação que não preexiste à sua enunciação mas se produz com ela (COMPAGNON, 2003, pp. 50-1). No que concerne aos sujeitos que se manifestam na escrita, conforme Both, “autor implícito” não equivale estritamente ao narrador que pode ser não-dramatizado – onisciente – ou dramatizado. Na concepção do crítico norte-americano, este último pode variar de “Observador” a “Agente narrador”. Diante disso, “os diferentes graus de consciência destes narradores produzirão, obviamente, efeitos diversos na obra, variando da ‘inconsciência’ à consciência de si como escritor” (OLIVEIRA, 2004, p. 19). Dentro desta perspectiva, H. corresponde à posição de “Narrador dramatizado” e “Agente narrador”, além de configurar uma espécie de Outro paralelo ao próprio autor Saramago. A despeito destas categorizações, Booth destaca: “Poderíamos dizer que, de certo modo, todas as falas, todos os gestos narram; muitas obras contêm narradores disfarçados que são usados para dizer à audiência aquilo que precisa saber, enquanto desempenhando ostensivamente os seus papéis” (BOOTH, 1980, p. 168). Em qualquer uma de tais categorias, a presença autoral é uma constante, apesar de ocorrer discretamente ou não. Booth parece afastar-se da concepção barthesiana quanto à “morte do autor”, porque alerta para uma consciência autoral que está presente todo o tempo no processo da escrita: “Até o romance que não tem um narrador dramatizado cria a imagem implícita de um narrador nos bastidores, seja ele diretor da cena [...] ou Deus indiferente que lima, silenciosamente, as unhas.” (BOOTH, 1980, p. 167). Observando as PM, a verdade do próprio Saramago, no tocante à sua posição como autor, parece se tornar escorregadia, porque nas memórias 41 infanto-juvenis a presença de um narrador do tipo “dramatizado” caminha entre ser “Observador” ou mesmo “Agente narrador”, com “diferentes graus de consciência” e “efeitos diversos na obra”. Como narrador, H enquanto sujeito personagem mostra-se em fases narrativas distintas que caracterizam tais matizes de grau de consciência: no início, quando se introduz na escrita, confessa a inexperiência enquanto narrador; no outro momento revela um envolvimento maior com a escrita a ponto de o percebermos sem consciência de si, como quando narra sobre a experiência amorosa com M. mediante uma fluência que parece obedecer à dinâmica do pensamento, mas com labor e cumprindo uma função emotiva e apelativa. Há momentos assim na vida: descobre inesperadamente que a perfeição existe, que é também ela uma pequena esfera que viaja no tempo, vazia, transparente, luminosa, e que às vezes (raras vezes) vem em nossa direcção, rodeia-nos por breves instantes e continua para outras paragens, outras gentes. A mim me parecia, no entanto, que esta esfera não se desprendera e que eu viajava dentro dela (MPC, 1998c, p. 257). Já a primeira fase difere-se em certa medida da inicial, sobretudo, porque se aproxima mais dos relatos confessionais, sem o tom de lirismo que envolve a parte final da narrativa, como revela o recorte: “Molho o pincel e aproximo-o da tela, dividido entre a segurança das regras aprendidas no manual e a hesitação do que escolherei para ser” (MPC, 1998c, p. 6). O personagem esclarece tais diferenças, ao afirmar: “ambos os exercícios estão ligados, tanto no tempo que descrevem como no tempo em que os escrevo, mas o primeiro é desprevenido, isento, inocente, e este agora se tornou literário” (MPC, 1998c, p. 127). No entanto, sabemos que, mesmo na fase da escrita menos elaborada, há uma mão que escreve o romance aquém da fictícia do narrador-personagem. Conforme cita Oliveira, “a imparcialidade e impassibilidade não existem de forma absoluta”, porque 42 [...] a noção de autor implícito, ou de alter ego do autor elimina a neutralidade em ficção, pois o autor não cria um homem em geral imune a valores. Ele constrói uma visão implícita de si mesmo, cambiante de obra para obra (OLIVEIRA, 2004, p. 18). Vemos que as linhas entre personagem, autor e escritor são bastante sutis. Contudo, embora exista uma intenção autoral que é permanentemente presente numa narrativa segundo Booth, de alguma forma, podemos cogitar também a ideia de um certo apagamento do autor. Se o texto é um tecido de citações subjetivas, espalhadas em fragmentos conforme a versão que se conta, somente no sujeito leitor tais fragmentos podem encontrar a inteireza desejada pelo ser que se descreve. O leitor esvazia-se em parte do seu próprio pensamento para receber o do autor e adentra a escrita, sendo atravessado pela sucessão de interpretações que a leitura pode lhe trazer. Segundo Barthes, no ato da leitura o leitor se torna um personagem silencioso, ele “é o sujeito inteiro” (BARTHES, 2004, p. 41) onde se encontram simultaneamente as vozes do narrador, personagem e escritor no contato íntimo com o livro. Na visão barthesiana, “o leitor é aquela personagem que está no palco (mesmo clandestinamente) e que sozinha ouve o que cada um dos parceiros de diálogo não ouve; sua escuta é dupla (e, portanto, virtualmente múltipla)” (BARTHES, 2004, p. 40-1). Assim se desvenda o ser total da escritura, atribuindo-se ao leitor a compreensão unilateral: [...] a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu destino, mas esse destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; ele é apenas esse alguém que mantém reunidos em um mesmo campo todos os traços de que é constituído o escrito. (BARTHES, 2004, p. 64) Em qualquer experiência de leitura há um diálogo subjacente entre autor, narrador, os personagens e o leitor. Todos se mantêm conectados pelo fio da narrativa que ganha nova existência com a presença daquele que lê. Mesmo que Barthes 43 defenda a concepção de que “o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do autor” (BARTHES, 2004, p. 64), já constatamos que essa morte não se dá por completo, antes parece assumir disfarces, cedendo o lugar para seu discurso ganhar foco e se iluminar. Segundo Chiappini Leite, [...] o autor não desaparece mas se mascara constantemente, atrás de uma personagem ou de uma voz narrativa que o representa. A ele [Booth] devemos a categoria de autor implícito, extremamente útil para dar conta do eterno recuo do narrador e do jogo de máscaras que se trava entre os vários níveis da narração (LEITE, 1991, p. 18). A esta distinção, a despeito do enfoque que vimos desenvolvendo quanto à autoria, será útil fazermos distinções entre os termos narrador, escritor e autor, para melhor conduzir a análise que adiante faremos do sujeito literário. Convirá, porém, levar em consideração a polissemia do vocábulo “autor” como se refere o dicionário on-line8 de termos literários: “A construção (desta noção) cruza (-se) com vários tópicos e domínios de reflexão, com as noções de causa, origem e finalidade, criação, consciência, sujeito, autoridade, liberdade e responsabilidade, etc.”. Como o termo “autor” pode variar de significados, a saber, inventor, descobridor, criador ou responsável, ao longo deste trabalho, ao nos referirmos ao escritor Saramago, consideraremos o conceito de “Autor empírico” reportado por Helena Carvalhão Buescu, no DTL: O autor processado ao longo de um paradigma histórico-biográfico e psicologista dos estudos literários é, claramente, o autor empírico, ou seja, o sujeito portador de uma identidade biográfica e psicológica factualmente reconhecível extratextualmente. Poderíamos chamá-lo também de autor-escritor, que se confunde com um sujeito civil, reconhecido como escritor no seio da cultura, proprietário exterior da obra. Aqui, a noção de autor confunde-se com a de escritores que “concentram as suas 8 Dicionário de termos literários: doravante representado pelas inicias DTL. 44 energias na acção sobre o objecto literário, no ‘como escrever’ a obra”, segundo o DTL. O escritor parece ser, portanto, aquele que nasce na página em branco que coloca a língua em prática. Para Lejeune, ainda na primeira versão do Pacto, a figura do autor não deve ser confundida com a pessoa que, após a escrita, publica a obra. Deste modo, por autor deve ser entendido o sujeito que produz e controla o discurso cuja manifestação dá-se no cenário textual. L’auteur se définet comme étant simultanéament une personne réele, socialement responsable, et le producteur d’un discours. Pour le lecteur, qui ne connait pas la personne réele, tout en croyant à son existence, l’auteur se définit comme la personne capable de produire ce discourse, et il l´imagine donc à partir de ce qu’elle produit (LEJEUNE, 1985, p. 23) 9. A outra acepção é a que já citamos, de autor implícito, como forma de referir à presença do autor em certa obra sua, concepção subjetiva que não se confunde com o autor-escritor, nem com o narrador de primeira pessoa. Além dessas dimensões que envolvem a escrita, uma extrínseca e outra a ela intrínseca, a figura do narrador corresponde à “instância da narrativa que transmite um conhecimento, narrando-o” (DTL). Pode-se divergir as três categorias nas narrativas de 3a ou de 1a pessoa, sendo mais problemáticas nestas do que naquelas. Na esteira de tais definições e distinções, achamos lícito considerar também a diferença que Barthes estabelece entre texto e obra, quando diz que: The difference is this: the work is fragment of substance, occupying a part of the space of books (in a library for example), the Text is a 9 Tradução nossa: “O autor é definido simultaneamente como uma pessoa real, socialmente responsável, bem como o produtor de um discurso. Para o leitor que não conhece a pessoa real, o autor é definido como a pessoa capaz de produzir este discurso e, por conseguinte, a sua imaginação a partir de produtos”. 45 methodological field. [...] The Text is experience only in as activity of production (BARTHES, 1984, pp. 156-7) 10. O próprio Saramago também distingue as funções entre autor e narrador considerando este último como aquele que filtra as reflexões do autor empírico acerca do que deve ser tratado ou não. O espaço que existe entre o autor e a narração por vezes é ocupado pelo narrador, que age como um intermediário, por vezes como um filtro, que existe para filtrar o que possa ser demasiado pessoal. Por vezes, o narrador está aí para ver se se pode dizer alguma coisa sem demasiado compromisso, sem que o autor se comprometa demasiado (SARAMAGO, apud ARIAS, 2000, p 26). Sendo assim, as diferenças entre narrador, escritor e autor sugerem que seja contemplada a performance do autor em plena experiência textual da narração. No que tange às duas obras saramaguianas escritas em primeira pessoa, decerto podemos verificar que ambas guardam distinções entre si. Na obra inaugural, o autor produz exercícios de como se representar e, na mais recente, põe em prática a representação das confissões assinadas por si. Certamente, aquilo que as distancia não é o fato dde as PM se referirem a uma “realidade” exterior e anterior ao texto, mas sim porque no MPC Saramago produz um “outro mundo”, um universo imaginário dramatizado cujo reconhecimento como ficção se faz declaradamente. Num viés pessoano, o personagem H. parece simbolizar o autor empírico que se porta por trás das cortinas do fingimento gerador da ficção, enquanto que, nas PM Saramago não aparece como personagem de forma assumida, embora o seja de alguma forma. Nas PM, ele aparentemente estaria percorrendo o caminho inverso ao Manual, valendo-se, a princípio, da realidade, e depois apelando ao imaginário para dar estrutura à narrativa, sem negar, com isso, a realidade inicial que lhe deu origem. 10 Tradução nossa: “A diferença é esta: o trabalho é fragmento de substância, que ocupa uma parte do espaço de livros (em uma biblioteca, por exemplo), o texto é um campo metodológico. [...] O texto é experiência apenas como atividade de produção”. 46 Ambos são narradores de 1a pessoa, mas no MPC o pacto inicial é ficcional, já que H. é um personagem-narrador que, naturalmente, pode encarnar o autor implícito, não o autor empírico. Nas PM, o pacto é autobiográfico, mas isso não impede o narrador de assumir ares de personagem e se afastar do papel de autor empírico, embora nesta obra também possamos identificar a presença do autor implícito. O fato é que, sob qualquer tipo de disfarce, o autor Saramago deixa marcas recorrentes, características de sua individualidade linguística que confirma a existência deste narrador ensimesmado movimentando-se por trás da ficção. Quanto a tais possíveis máscaras, Dal Farra afirma que o autor é uma espécie de manejador de disfarces encoberto pela ficção, que surge do interior da narrativa denunciando sua presença através das escolhas que cria para cristalizar as suas marcas: Para além da obra, na própria escolha do título, ele se trai, e mesmo no interior dela, a complexa eleição dos signos, a preferência por determinado narrador, a opção favorável por esta personagem, a distribuição da matéria e dos capítulos, a própria pontuação, denunciam a sua marca, a sua avaliação (DAL FARRA, apud LEITE, 1985, p. 18). Como as categorias de autor acabam, ao fim e ao cabo, se misturando, para simplificar usaremos apenas uma expressão, a de autor implícito sempre que nos referirmos à presença desta autoria da obra. E usaremos narrador em alusão ao sujeito da enunciação, aquele que narra, o que denominamos por ser um “corpo literário” (BARTHES, 2003, p. 74) que, no discurso, se manifesta textualmente como personagem. Assim sendo, o percurso do Eu na escrita revela-se repleto de meandros, todavia podemos pensar que a presença da subjetividade é capaz de concentrar, em certa medida, uma imagem identificável do sujeito, mesmo em meio à caoticidade do seu trânsito, diante do qual reconhece a própria multiplicidade. 47 3. AS FACES DA AUTOBIOGRAFIA a personagem é complexa e múltipla porque o romancista pode combinar com perícia os elementos de caracterização, cujo número é sempre limitado se os compararmos com o máximo de traços humanos que pululam, a cada instante, no modo-de-ser das pessoas (CANDIDO, 2005, p. 60). A escrita íntima parece compreender funções distintas e representar uma face alterada do sujeito autobiógrafo. Neste capítulo, será destacado o papel da autonarrativa em orientar o sujeito pelos meandros de si, esclarecendo suas dubiedades e opostos. Diante das possibilidades de tipos de narradores, apontaremos suas vozes e os matizes que os diferenciam textualmente. Para além disto, será sublinhado ainda como os textos íntimos parecem permeados por uma aspiração de eternização do sujeito mediante a escrita que lhe oferece a ideia de ser a memória aquela que constrói o homem e lhe assegura uma existência que ultrapassa os limites temporais. 3. 1. A DUPLA IMAGEM DO REAL Como sabemos, desde 1997, na entrevista a Arias, Saramago promete um texto oficial da sua vida, mas a história se limitaria apenas a uma parte do passado, abrangendo infância e adolescência somente. Essa interrupção contraria, de certo modo, o padrão comum de um texto intimista, cujo desenvolvimento deveria ir até a vida adulta, sem burlar a regra cronológica. Saramago percorre um caminho diferente, como ele mesmo afirma na entrevista: É tão forte a necessidade que tenho de escrever esse livro que se chamará O livro das tentações, que é uma autobiografia, como te disse, mas uma autobiografia um pouco estranha, porque irá só até aos catorze anos e aí pararei porque a idade adulta não me interessa, 48 ao contrário de outras autobiografias, que partem da vida actual e continua, para trás (SARAMAGO, apud ARIAS, 2000, p. 82). Como a Bíblia que faz referências à infância de Jesus deixando um vazio nos anos que se seguem até a idade adulta quando a narrativa é retomada, Saramago também deixa um vazio quando narra apenas sobre a infância seguida da adolescência. Mas ao que parece a sequência de diários Os Cadernos Lanzarote e o livro O caderno publicado aos moldes do blogue 11 vêm preencher esta lacuna deixada pelas suas breves memórias. A escolha por trabalhar com o Manual e com As Pequenas Memórias se deu em face de, nestas obras, se concentrar com maior acuidade a noção que vimos analisando acerca dos processos de representação na escrita de primeira pessoa, em que se fundem fantasia e experiências. Sendo assim, convém retomar a ideia de haver ficionalidade das memórias narrativas de 2006, cuja folha de rosto não faz antecipadamente, nenhuma referência paratextual quanto ao seu gênero: romance autobiográfico ou memórias efetivamente vividas? Talvez em função da descrença da palavra como capaz de representar precisamente a realidade, Saramago evita classificar o gênero da própria autonarrativa, definindo o livro, modestamente, como “memórias pequenas de quando fui pequeno, simplesmente”. (PM, 2006, p. 34). Prosseguindo na problematização do ethos autobiográfico e em relação às recriações feitas pelo sujeito, Rosenfeld assinala a existência particular de uma outra realidade além da que é compreendida pelo indivíduo. Segundo ele, estamos a todo o tempo mantendo de forma inconsciente uma dupla imagem do mundo real e das pessoas. Trata-se de uma realidade interior que encontra correspondência direta com a 11 Em maio de 2009, José Saramago publica o livro O caderno: textos escritos para o blogue. Setembro 2008 – Março de 2009 é um livro de crônicas jornalísticas, em que apresenta opiniões sobre políticos, sobre o Papa e poetas portugueses como Fernando Pessoa, mesclando a isso declarações à cidade de Lisboa. 49 que conhecemos do mundo das coisas e embora seja exterior a do texto de ficção, é imanente àquela. A autobiografia provavelmente retrata a visão ambivalente seja de si, seja do Outro e do mundo, ou das personagens que devem obedecer ao critério de verossimilhança, mantendo uma relação com a realidade mesmo que esta corresponda à interpretação particular do autor. É o que o Rosenfeld chama de personagens “intencionais”, personalidades artificiais projetadas pelo inconsciente de quem escreve sobre elas. Consequentemente, saltam para a escrita com aspecto alterado em relação à sua autenticidade. Segundo ele, “todo texto, artístico ou não, ficcional ou não, projeta tais contextos objectuais ‘puramente intencionais’, que podem referir-se ou não a objetos onticamente autônomos” (ROSENFELD, 2005, p. 15). Ou seja, mesmo que não correspondam a alguém do real, os personagens precisam ser verossímeis, parecidos, pois, com alguém da realidade, para assim trazer o elemento do real para a ficção. Rosenfeld acrescenta que, ao se basear em alguém real para composição de um personagem, a pessoa dramatizada se apresenta para o escritor sob dois enfoques distintos: a forma que ela verdadeiramente é, somada à forma como é percebida, ou seja, como ela se representa na consciência do observador. Contudo, isso se passaria de maneira discreta ou inconsciente apenas na concepção do observador que a descreve. Segundo Rosenfeld, esta segunda imagem habita um mundo puramente intencional e manipulado, ao passo que a outra é independente, sendo extraliterária. No entanto, é apenas pelas vias da representação, com toda a sua precariedade, que o acesso às memórias se torna possível. A autobiografia pode englobar tais imagens, tanto a do ser extraliterário, quanto à do ser literário que ofusca a presença da autoria em favor da projeção textual 50 onde o “ser da linguagem” (FOUCAULT, 1995, p. 58) constrói sua identidade. É como se não somente a figura narcísica acenasse para si mesmo no espelho da escrita, mas também se consolidasse na versão que habita o texto como autoduplicação, já que quando se contempla ele é o que vê e o que é visto ao mesmo tempo. Com isso, ao se constituir na narrativa, o sujeito é o que conta e o que é contado. É como se o ser extraliterário interpretasse a si próprio de uma forma que pode não necessariamente corresponder ao que é, gerando um ser literário não desprovido totalmente de intencionalidade. Rosenfeld explica ainda outro processo semelhante a esse, no caso da fotografia de identificação que representa “imagens puramente intencionais” as quais, por sua vez, “procuram omitir-se para franquear a visão da própria realidade” (ROSENFELD, 2005, p. 18). Em seguida, ele explica a diferença com o retrato artístico, cuja imagem puramente intencional adquire valor próprio e uma certa densidade que o distingue da pessoa retratada, adquirindo um quê de independência em relação ao ser copiado. O crítico completa ainda: Aliás, mesmo diante de um fotógrafo despretensioso, a pessoa tende a compor-se, tomar uma pose, tornar-se “personagem”; de certa forma passa a ser cópia antecipada da sua própria cópia. Chega a fingir a alegria que deveras sente (ROSENFELD, 2005, p. 18). Nesta perspectiva, relativizar a verdade sobre si próprio constitui o que Rosenfeld denomina por “problema lógico”, porque há em enunciados como diários, cartas e reportagens a intenção séria de verdade, embora o termo verdade possua significado diverso, quando aplicado com referências à obra literária. Para Rosenfeld, o termo verdade designa com freqüência qualquer coisa como a genuidade, sinceridade e autenticidade (termos que em geral visam à atitude subjetiva do autor); ou à verossimilhança, isto é, na expressão de Aristóteles, não a adequação àquilo que aconteceu, mas àquilo que poderia ter acontecido (ROSENFELD, 2005, p. 18). 51 Acerca deste tema sobre a verdade de si que foge ao sujeito, cabe evocar a teria de Starobinski sobre a perene busca do autobiógrafo que não consegue se definir dentro de uma imagem absoluta e cristalina sobre si mesmo. O conceito de Starobinski sobre a verdade transitória e escorregadia parece se colar à sombra da ideia de seres intencionais, porquanto eles não correspondem a uma representação falsa do sujeito mas outro de si mesmo, como faces extras. Para Starobinski, que estuda os textos autobiográficos de Rousseau, a noção de verdade vai além da que o autobiógrafo conhece a seu respeito e obedece a uma dinâmica que a faz ressurgir novamente no contato dele com outras experiências, de modo que sua unidade pode lhe aparecer, nitidamente, apenas por breves instantes. Logo em seguida, a mesma verdade continua em trânsito, embaçando, a espaços, a consciência que o sujeito faz de suas memórias, pois o que foi não pode ser relembrado exatamente da forma que sucedeu, como diz Rebelo, “Recordar é, no fundo, imaginar e sentir. E imaginar é deformar” (REBELO, 1983, p. 29). A autobusca em Rousseau segue, então, uma trajetória sem fim, porque, no momento em que o sujeito chega a alguma ideia de verdade de si, esta se evanesce e cede lugar a lacunas e a novas interrogações que o impulsionam a voltar ao caminho da busca novamente. O conhecimento é árduo, mas jamais a ponto de a verdade se esquivar, jamais a ponto de deixar a consciência sem recurso. A introspecção nunca deixa de ser possível, e, se a verdade não se impõe imediatamente, bastará um “exame de consciência” para o triunfar de todas as obscuridades, no intervalo de um passeio solitário (STAROBINSKI, 1991, p. 188). O jogo de “revelar e esconder” da verdade parece conduzir o sujeito (pensamos, no caso, em sujeitos literários de textos saramaguianos) à consciência de que a ignorância e a sabedoria corroboram a ideia de identidade fragmentada, e não 52 una e centrada como na concepção cartesiana, tal qual pretendia o projeto da Modernidade, marcado pelo individualismo e assumido, depois, pela burguesia. Apesar de a verdade, ou visão da realidade empírica, ser parcial e relativa, como diz Rosenfeld, seria errôneo atribuir a enunciados como o diário o critério de falsidade, porque tal critério só se enquadra a textos caricatos e incoerentes, como ele indica: “Falso seria ainda um prédio com portal e átrio de mármore que encobrisse apartamentos miseráveis. É esta incoerência que é ‘falsa’”. (ROSENFELD, 2005, p. 19). Segundo Candido, “convém notar que por vezes é ilusória a declaração de um criador a respeito de sua própria criação. Ele pode pensar que copiou quando inventou; que exprimiu a si mesmo, quando se confessou” (CANDIDO, 2005, p. 67). Diante disso, as lembranças não corresponderiam ao puro empirismo da realidade propriamente dita, como H. expressa no excerto abaixo: Biografamos tudo. Às vezes, contamos certo, mas o certo é muito maior quando inventamos. A invenção não pode ser confrontada com a realidade, logo, tem mais probabilidades de ser exacta. A realidade é o intraduzível porque é plástica, dinâmica. E dialética também. Sei disso um pouco, porque o aprendi em tempos, porque tenho pintado, porque estou a escrever. Agora mesmo o mundo transforma-se lá fora. Nenhuma imagem pode fixar: o instante não existe. A onda que vinha rolando já se quebrou, a folha deixou de ser asa e não tardará a estalar, resseca, debaixo dos pés (MPC, 1998c, p. 134). Como Pagliaro destaca, no momento em que nasceu a palavra nasceram também, concomitantemente, a verdade e a mentira, porquanto a mesma linguagem pode ser manipulada para uma e outra direções. O linguista alude, por exemplo, ao fato de o céu mostrar-se na cor azul, corresponder a uma sucessão de cores gradativas que, se fundidas com a luz solar, orientam-se para esta que, de forma aparente, se dá a ver. Várias nuanças vêm, portanto, contribuir para constituir uma verdade que, em sua essência, é uma mentira, pois o azul, em si, não é azul. Isso é apenas o resultado de 53 variadas verdades que constitui uma ilusão: a cor azul. Segundo ele, “assim nasceu a qualidade abstrata” (PAGLIARO, 1983, p. 17). Em textos como o romance, a proposta de reproduzir a realidade se manifesta mediante “o esforço de particularizar, concretizar e individualizar aspectos esquematizados e uma multiplicidade de pormenores circunstanciais, que visam a dar aparência real à situação imaginária” (ROSENFELD, 2005, p. 20). A aparência da realidade ou intenso desejo de conferir verossimilhança ao mundo imaginário revela, portanto, que textos intimistas não são falsos por ser a matéria bruta que o constitui a lembrança, a imaginação. Assim como nos romances, a narrativa íntima também tenta representar a realidade quando da sua descrição. Rosenfeld refere-se a inúmeras narrativas que se iniciam com a descrição de ambientes e paisagens, acrescidos de detalhes que podem revelar elaboração imaginária em processo de reanimação do passado. E assim “a ficção ou mimesis reveste-se de tal força que se substitui ou sobrepõe à realidade” (ROSENFELD, 2005, p. 29). No capítulo A personagem de romance, Candido põe em relevo que a criação literária repousa sobre o paradoxo entre ser e parecer real. Diante disso, podemos dizer, portanto, que o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização deste (CANDIDO, 2005, p. 55). Conforme elucida Candido, a força do personagem reside na impressão ilusória de unidade transmitida pela estrutura simplificada que o romancista lhe confere como recurso de caracterização. Assim, “a compreensão que nos vem do romance é mais precisa do que a que nos vem da existência. Daí, podemos dizer que a personagem é mais lógica, embora não mais simples, do que o ser vivo” (CANDIDO, 2005, p. 59). Talvez, devido a isso, os autobiógrafos acreditem na possibilidade de estabelecer uma coerência interna, a partir do personagem que fazem de si mesmos, 54 através do qual perseguem uma unidade que, na realidade exterior, não encontram para a própria existência. Candido infere ainda que a personagem é complexa e múltipla porque o romancista pode combinar com perícia os elementos de caracterização, cujo número é sempre limitado se os compararmos com o máximo de traços humanos que pululam, a cada instante, no modo-de-ser das pessoas (CANDIDO, 2005, p. 60). Em outro romance, Saramago também explicita a confiança que deposita na escrita, quando na História do cerco de Lisboa, de 1989, problematiza a questão da veracidade textual em livros históricos. Nessa obra, o revisor Raimundo, ao trabalhar nas provas de um livro sobre a história do cerco de Lisboa se sente compelido a alterar os registros oficiais relatados pelo historiador, inserindo um “Não” que nega a participação dos cruzados na conquista da cidade. Saramago simula a transgressão por meio da escrita de Raimundo Silva, oferece-nos, pois, um protagonista que se opõe a fatos do conhecimento histórico, mediante o singelo “Não” representante da “grande interrogação da escrita”, como analisa Márcia Gobbi (GOBBI, 1999, p. 41). No que tange ao privilégio da escrita, em Saramago, de tudo o que o autor empírico escreve deixa escapar feições pessoais, e mesmo que talvez a intenção não seja a de se recriar, ele dramatiza os pensamentos mais frequentes e tudo aquilo em que acredita, adaptando-os a outras versões. Somente conhecendo sua obra completa e somando-a a outros conhecimentos de ordem mais pessoal, é possível compor uma imagem mais definida dos “outros saramagos que, de forma direta ou mesmo ‘oblíqua’, percorreram os muitos atalhos e labirintos de uma escrita do eu” (SANTOS, 2007, p. 3). 12 Talvez a maior verdade sobre Saramago encontre-se na soma de suas obras, a mais completa idealização de unicidade que podemos conferir a ele por intermédio da 12 Texto apresentado no Congresso da ABRAPLIP/ 2007, que aguarda publicação em Anais do Encontro. 55 linguagem em sua variação escrita. No entanto, ainda assim o aspecto de inteireza apenas paira sobre o texto, porque, como o crítico assinala, só quando a vida do sujeito se finda é possível cogitar a tentativa de reconstituição biográfica de forma mais abrangente. Por isso, talvez o projeto da autobiografia esteja, de fato, malogrado, uma vez que a história de quem se descreve ainda não se findou. Em relação ao conhecimento que alguém faz sobre Outro – e podemos ler também como o conhecimento que o sujeito faz sobre si mesmo – Candido sugere que tal conhecimento só pode ser precisado com o fim da vida quando se fecham os tempos passado, presente e futuro. Porque a morte é um limite definitivo de seus atos e pensamentos, e depois dela é possível elaborar uma interpretação completa, provida de mais lógica, mediante a qual a pessoa nos aparece numa unidade satisfatória, embora as mais das vezes arbitrária. É como se chegássemos ao fim de um livro e apreendêssemos, no conjunto, todos os elementos que integram um ser (CANDIDO, 2005, p. 64). Como meio de acessar o passado, o termo memória se define por algo adquirido a partir de experiências próprias, e só pode ser narrada sob o único ponto de vista daquele que relembra, embora tais reminiscências possam ser compartilhadas com um Tu. As evocações passadas podem se alternar, ou se misturar, entre fantasias e experiências empíricas, tornando difícil a distinção do que seria realidade e ficção. O processo de entrelace, ou de fusão entre ficção e fatos, desdobra-se, multiplica-se, chegando ao leitor que, por sua vez, pode assimilá-la e interpretá-la em sua própria imaginação distintamente da intenção inicial. Aqui, uma nova subjetividade intervém ao criar uma versão da mesma narrativa, remodelando as descrições que, embora possam parecer similares, tornam-se apenas cópias, não idênticas, da narrativa que, por seu turno, já não corresponde também com autenticidade à realidade vivida. Cabe-nos lembrar a ideia de Eco quanto ao texto ser uma máquina de gerar interpretações: 56 Qualquer tentativa de ficção é necessária e fatalmente rápida, porque ao construir um mundo que inclui uma multiplicidade de personagens, não pode dizer tudo sobre esse mundo. Alude a ele e pede ao leitor que preencha uma série de lacunas. [...] todo texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte do seu trabalho. Que problema seria se um texto tivesse de dizer tudo que o receptor deve compreender – não terminaria nunca (ECO, 1994, p. 9). Quando o narrador expõe suas reminiscências, não conhecemos o limite entre verdade e mentira concernentes à mesma memória. Diante disso, não sabemos se são de todo memórias vividas, se são herança da subjetividade ou mesmo interpretação particular recriada pela imaginação de quem conta. O leitor é colocado, assim, na presença de uma leitura intencionalmente dirigida por uma escrita, porque como Candido analisa: “o autor é obrigado a construir uma explicação que não corresponde ao mistério da pessoa viva, mas que é uma interpretação deste mistério.” (CANDIDO, 2005, p. 64). Quanto à possibilidade de reformulação do texto narrativo, poderíamos encontrar, em Saramago, ecos do que afirma Starobinski, em seus estudos sobre Rousseau. No texto A transparência e o obstáculo, ele se refere à fecundidade das lembranças emotivas que vêm atuar em detrimento da recordação dos fatos em si. “A memória afetiva parece, então, infalível. É por ela apenas, e não por uma reflexão severa que uma verdadeira ressurreição do passado pode produzir-se” (STAROBINSKI, 1991, p. 204). Contudo, a memória afetiva também parece influenciar na recuperação de fatos anteriores. Esta seria, portanto, uma das razões de distorção das memórias, juntamente com a segunda razão que seria a precariedade da representação na linguagem, já que esta não confirma, apenas compensa como uma forma de substituição possível do real. Como Starobinski nos diz, o resgate das memórias nos remete a imagens distorcidas que, quando reconstituídas, emergem deformadas, porquanto já não são 57 representações autênticas do passado, mas a “verdade” como é compreendida pelo sujeito. Em outras palavras, olhar a vida através das lentes da memória, ou da imaginação, faz o sujeito encarar uma realidade alterada; porém, isso não significa que a alteração implique uma perspectiva falsa, é apenas outra realidade concorrendo com aquela que acontece a olho nu e uma não destrói a outra. Nas palavras do crítico sobre o Eu que tenta refazer os caminhos do passado, observamos que “ao deformar sua imagem, ele revela uma realidade mais essencial, que é o olhar que dirige a si mesmo, a impossibilidade em que está de apreender-se de outra maneira que não se deformando” (STAROBINSKI, 1991, p. 205). Em suma, o sujeito se apreende como objeto que sofre constantes alterações que só se tornam patentes a partir do desnudamento profundo do Eu na somatória do real e do imaginário. É como Seixo sinaliza em relação ao Manual: “são os caminhos da ficção os que mais justificadamente conduzem ao encontro da verdade” (SEIXO, 1987, p. 42). Na escrita intimista, o sujeito percebe que, apesar de dar continuidade e verossimilhança ao texto, a realidade é composta de múltiplas e ziguezagueantes dimensões, incompatíveis com o progressivo encadeamento dos fatos e com a sequência cronológica que se busca aplicar à autobiografia. Neste sentido, a verdade engessada acerca de sua personalidade e dos fatos reais é um empreendimento ilusório. A totalidade vivida, mesmo para quem a viveu, permanece inapreensível. As lembranças se ficcionalizam na autobiografia, diante da contradição insanável que representa a tentativa de conferir forma à vida que ainda está por se fazer. Ao adentrar no domínio da linguagem resplandece, portanto, outras faces do sujeito, porque já não é ali apenas uma voz, mas sim a do Eu subjacente, escondido nos meandros de outras tantas identidades textuais e que ganha existência sob a forma 58 de discurso. Podemos colher dado semelhante nos textos poéticos, conforme ressalva Rosenfeld: “O Eu-lírico não deve ser confundido com o Eu empírico do autor” (ROSENFELD, 2005, p. 20), mas é claro que não podemos comparar os perfis que os sujeitos assumem em enunciados distintos, como os do romance e da poesia, a saber, o fato de, no romance, o personagem adquirir contornos mais definidos do que na lírica. Podemos dizer, pois, que esse inevitável desligamento entre o indivíduo que escreve e o Eu subjetivo caracterizaria o que Roland Barthes define por “morte do autor”, no qual seu papel cede lugar à realidade do texto que o envolve e o coloca, de certa forma, a serviço da escrita. A escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo aonde foge o nosso sujeito, o branco-e-preto aonde vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve (BARTHES, 1988, p. 57). Não se trata, porém, de um auto-apagamento para a manifestação de outrem, como sucede à pitonisa do Templo de Delfos que cede o corpo para a voz de uma entidade mística. Os relatos autobiográficos encenam a apresentação do sujeito “adormecido” que acorda na feitura textual, oferecendo a leitura, antes silenciosa, que faz sobre si. É esta problemática sobre a inanidade da representação do homem e do mundo que Saramago traz à tona no percurso da leitura das duas obras aqui destacadas, não obstante possamos divisar estas questões também em outros romances, aos quais recorreremos quando necessário. No MPC, desde a capa, Saramago define claramente o gênero do livro “Romance”, simulando o discurso autobiográfico e, com isso, parece trazer à tona o questionamento sobre obras deste gênero. O Manual pode, em grande parte, ser lido como um livro de memórias que, na sua intensidade, encerra também o tema do amor, impressões de viagens e reflexões sobre a relação entre sociedade e indivíduo. Se pensarmos na teoria do pacto autobiográfico, parece-nos que o MPC não se enquadra 59 na definição de Lejeune para a escrita autobiográfica. O narrador H. (inicial vazia que o designa) não coincide com a pessoa física que publica o livro; antes é um personagem que, na escrita sobre si, transmite textualmente a ilusão de as palavras escritas serem testemunhas da sua história numa simulação de sinceridade absoluta. Mas essa intenção de sinceridade absoluta é inatingível. Na recepção dos livros MPC e PM, o leitor poderá equivocar-se quanto ao gênero de ambas se não fizer a leitura da folha de rosto, onde consta a palavra - ou sua ausência, que sela o pacto ficcional ou não. Isso se deve à semelhança dos conteúdos diegéticos de ambas que, por si próprias, não permitem uma distinção entre ficção e verdade, falácia e sinceridade. Torna-se um tanto difícil distinguir a autobiografia do romance autobiográfico, já que, se nos detivermos estritamente à análise textual, vemos que a primeira utiliza os mesmos recursos para convencer o leitor sobre a autenticidade do relato. Ainda que a omissão do gênero nas PM possa comprometer a convicção sobre os relatos, segundo Lejeune o critério identitário assegura a tal obra o posto de autobiografia. É o que ele define por “pacto referencial”, “implícito ou explícito” (LEJEUNE, 1985, p. 36) capaz de manter intacta a identificação entre autor/ narrador/ personagem. Com isso, o fato de Saramago assinar sem intermédio de pseudônimos as memórias como suas dissolve, portanto, a dúvida a despeito da veracidade dos fatos narrados e promove a confiança do leitor em relação ao testemunho escrito, apoiado na identidade entre sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado, conforme assinala o francês. Le pacte référentiel, dans le cas de l'autobiographie, est en général coextensif au pacte autobiográfico, difficile à dissocier, exactement, 60 comme le sujet de l'enonciation et celui de l'énoncé dans la premiére personne (LEJEUNE, 1985, p. 36) 13. Na composição desses critérios, Lejeune baseia-se decerto no princípio de mimese aristotélica, uma vez que a definição sobre autobiografia parece corresponder a dois sistemas distintos, um concreto e outro literário, cuja escrita não aspira à cópia transparente da realidade propriamente, mas a ultrapassa, recriando-a a fim de integrar os dois sistemas. O texto memorialístico, desta forma, não é um quadro estático, ou espaço hermético, porque quem escreve não hesita em expandir os fatos à imaginação, para conferir à narrativa o estatuto de literatura, porquanto é de sua competência também o critério da ficção que se nega ao puro empirismo da representação. Aqui, criatividade e objetividade fundem-se e, ao escrever em via dupla, o indivíduo emerge na narrativa já não sendo mais exatamente aquele que escreve e publica apenas. Ele se torna um sujeito literário e, podemos pensar ainda, uma identidade autoral alterada, pois se constitui noutro âmbito - o da simulação na linguagem, como sugere Antônio Candido. Autobiografias poéticas e ficcionais, na medida em que, mesmo quando não acrescentam elementos imaginários à realidade, apresentam-na no todo ou em parte como se fosse produto da imaginação, graça a recursos expressivos próprios da ficção e da poesia, de maneira a efetuar uma alteração no seu objeto específico (CANDIDO, 1989, p. 51). Ao que nos parece, o pacto autobiográfico lejeuniano prevê alterações mediante omissões e falhas de esquecimento que culminam na possibilidade natural de distorções na história contada. Cabe-nos destacar que o critério de deformidade aqui não provoca o apagamento da identidade na autodescrição, apenas modifica o ser empírico no terreno fictício. Essa modificação se dá em face de o sujeito narrar sobre ele apenas aquilo que lhe é permitido, em virtude, talvez, de questões pessoais ou a 13 Tradução nossa: “O pacto referencial, no caso da autobiografia, geralmente coexiste com o pacto autobiográfico, é difícil separar, assim como o sujeito da enunciação e do enunciado, em primeira pessoa”. 61 fim de preservar parte da própria memória. Compreendemos, com isso, que a autobiografia precisa obrigatoriamente provocar uma profunda impressão de verossimilhança no leitor, de modo que ele leia o texto como uma descrição verdadeira, um autorretrato fiel. Para que um pintor possa realizar o autorretrato é necessário que se olhe ao espelho. No caso do escritor, porém, a única instância sobre a qual pode se debruçar é a do passado, do conhecimento que ele pensa que tem de si mesmo, na relação consigo e com o Outro que pode lhe devolver a própria imagem, mesmo que esta imagem não seja, de todo, fiel à realidade propriamente dita. 3. 2. A ESCRITA COMO GUIA E estas folhas de papel que são outra tentativa, (...) como se percorresse o labirinto de Creta. (MPC, 1998c, p. 12). De maneira geral, a arte e, neste caso, a literatura pode construir suas alegorias da realidade e mapear os costumes de uma sociedade. Com esse poder de reconstituir o mundo real mediante a escrita, observamos que também a autobiografia pode ser palco onde se projeta uma versão do Eu que se descreve. Nessa perspectiva, enquanto atividade linguística, a linguagem escrita faz emergir o mundo sobterrâneo do sujeito e, muitas vezes, adquire papel de guia conduzindo o narrador a experimentar e reconhecer outras possibilidades de ser ele mesmo. A imagem de labirinto na escrita do MPC parece clara em dados momentos textuais. Inicialmente quando H. mostra-se demasiadamente envolvido pelos movimentos da caligrafia, deixando-se arrastar pelo prazer do texto, movimento sedutor que o leva a confessar: “é evidente que a partir de certa altura me deixei fascinar por um certo ludismo verbal” (MPC, 1998c, p. 177). É como se o novo Eu, ao se materializar na escrita, personificasse a Inspiração como um ser à parte do sujeito, 62 esta essência criativa que talvez seja o que distancie personagem do autor enquanto pessoa física e jurídica. Na voz de H., Saramago confessa que, não obstante quem escreve deseje narrar exatamente o que havia planejado, a escrita o envolve de maneira tal que o sujeito se esquece de si: “me deixei arrastar por não sei que tentação de virtuosismo tolo, contrariando a severa regra que me tinha imposto de contar o acontecido, e nada mais” (p. 177). Nessa revisão de si, o processo de se recriar leva H. a compreender sua natureza fragmentada, e a escrita começa, então, a iluminar o labirinto do sujeito, como quando em: “Há coisas que começam agora a se tornar claras, diria mesmo que me parecem óbvias, quando antigamente eram caos e confusão, eram outra forma de labirinto” (p. 194). Embora não seja o suficiente para retratar o real, a linguagem desempenha seu papel de Ariadne, cuja manifestação conduz o sujeito para fora do labirinto e, consequentemente, à contemplação de suas alternadas faces na escrita de si. Como Madruga assinala, H. “se procura por trás da escrita” e faz dela “elemento de treino de si” (MADRUGA, 1998, p. 23). A palavra aqui se coloca como aquela que organiza, como se dá na mitologia egípcia, segundo Eliade: “Thoth havia criado o mundo usando o poder de suas palavras” (ELIADE, 1992, p. 30). O mito cristão das origens depois continua esta ideia de que o mundo e todos os animais se formam após a enunciação de Deus que transmuta o Verbo em carne (João, cap. I. Vers. 14), atestando, então, a palavra como aquela que confere densidade existencial e psicológica ao homem: [...] e quando na criação do mundo tem-se a criação do céu e da terra, e vendo o Criador que esta era sem forma e vazia, começa então a aperfeiçoá-la dizendo Haja luz. E houve luz. (Gênese, cap. I, Versículos 1-31) (grifo nosso). Quando o personagem H. se inquieta um tanto tardiamente ante a repetição de seus atos, ele percebe que estava perdendo a autenticidade e a sua identidade lhe 63 parece cada vez mais fragmentada. Com o hábito de exercitar a linguagem, ele reaprende a praticar a própria identidade e, neste ponto, se aproxima de Rousseau, pois ambos mostram o potencial da escrita como “reveladora” do ser. No caso de Saramago, a escrita também é reveladora de um sujeito particular que nasce do ato de escrever. No entanto, H. parece viver a ambivalência entre crer ou não na linguagem como produtora de um novo Eu. O hábito de descrever sobre a própria vida e de, consequentemente, ler a si próprio, é o que possibilita a compreensão sobre a realidade de sua natureza complexa, propícia a dúvidas. Isso fica indicado quando H. se situa exatamente entre a convicção e a incerteza. Em análise sobre o movimento da caligrafia, H. parece comparar aquela à trajetória existencial do sujeito, com todas as suas possíveis curvas e paradas. E estas folhas de papel que são outra tentativa, para que vou de mãos nuas, sem tinta nem pincéis, apenas com esta caligrafia, este fio negro que se enrola e desenrola, que se detém em pontos, em vírgulas, que respira dentro das pequenas clareiras brancas e logo avança sinuosa, como se percorresse o labirinto de Creta (MPC, 1998c, p. 12). Aqui a linguagem organiza a caoticidade dos pensamentos, reordenando-os, dando-lhes um sentido novo. É nela que H. pode “separar, dividir, confrontar, compreender. Perceber. Exactamente o que não pude alcançar nunca enquanto pintava” (MPC, 1998c, p. 21). Nesse sentido, a escrita é colocada em pé de igualdade com o mundo real, cuja existência parece se dá apenas pelo intermédio da escrita, como quando afirma que “escrever é a tentativa de reconstruir tudo pelo lado de dentro” (MPC, 1998c, p. 19). De um lado, se o ser literário ancora sua verdade na concepção de as palavras serem elementos reconstrutores deste universo paralelo, por outro ele percebe a fragilidade das palavras, porque elas revelam as vias precárias da representação, até mesmo na escrita porque não podem dizer o mundo e o homem de forma perfeita e completa porque, no fundo, a escrita se trata de um artifício, embora 64 seja, de fato, a tecnologia mais humana criada. Aqui, visualizamos um contraste no texto saramaguiano, pois revela sua descrença no poder absoluto da palavra em reconstruir a realidade, ao mesmo tempo em que também elege a palavra como condão que torna, como num passe de mágica, tudo mais claro e iluminado. Isso faz Seixo apontar no romance o “paradoxo magnífico que faz com que o romance seja o gênero por excelência da mentira, do fingimento” (SEIXO, 1987, p. 43). Tal claridade projeta na escrita um novo ponto de vista de H. que passa a reparar em si sob uma pluralidade de imagens. O confronto do Eu com a possibilidade de outro Eu fica claro quando H. tenta realizar duas pinturas de S.: uma para ser entregue ao cliente conforme a sua expectativa; outra pintada às escondidas e experimenta o Eu livre e criativo que aponta o modelo exatamente como deseja. Mas o malogro desta segunda tentativa se dá em seguida, quando H. nota que não pode reunir numa imagem todas as informações que consegue sobre alguém, já que “ninguém é, sendo” (MPC, 1998c, p. 59). Aqui, subjaz um elogio oblíquo à palavra. E Saramago parece concordar com a distinção sobre pintura e, com as palavras, de Starobinski: A autobiografia tem acesso à verdade infinitamente melhor que qualquer pintura que observe seu modelo do exterior. Os pintores se contentam com o verossímil; constroem a realidade muito mais do que a imitam, e permanecem para sempre afastados da alma de que deveriam ter feito o retrato (STAROBINSKI, 1991, p. 193). Quando percebe que não poderia recriar em quadros a intimidade do cliente, H. infere que, em se tratando de reprodução do real, caberia à palavra o papel de testemunhá-la com mais precisão, como já dissemos. É o momento em que recorre à outra “alternativa de retrato que é o manuscrito” (MPC, 1998c, p. 80), apesar de reconhecer também a precariedade da escrita para a reprodução de realidade. Simultaneamente à pintura do autorretrato de S., H. também escreve sobre o cliente e 65 descobre que para mapear o interior de S. seria preciso investigar múltiplas opiniões e somá-las às impressões que poderiam desdobrar-se ao infinito: [...] nem sequer aproveitei a ajuda de quem talvez ma desse maior, como seria o caso da secretária Olga. Quero acreditar que obscuramente sabia que seria inútil: a secretária Olga dar-me-ia (e alguma coisa deu) a sua imagem de S., como igualmente me daria uma outra imagem o homem que o serve anotando fichas e carimbando papéis (MPC, 1998c, p. 78). Ao mesmo tempo em que admira o poder das palavras, o autor empírico deixa claro o caráter da dúvida colocando-se, constantemente, à espreita. No entanto, nos deixa entrever a valoração que dá às palavras quando analisa que seus limites são mais largos que o da pintura, pois esta última se encerra com uma pincelada a mais, diferente da escrita em cujo espaço uma palavra nunca é demasiada: Observo-me a escrever como me observei a pintar, e descubro o que há de fascinante neste acto: na pintura, vem sempre o momento em que o quadro não suporta nem mais uma pincelada [...], ao passo que estas linhas podem prolongar-se infinitamente [...]. É sobretudo a ideia do prolongamento infinito que me fascina (MPC, 1998c, p. 54). Podemos pensar que a narrativa do pintor, a priori, simula um discurso autobiográfico, cuja manifestação revela um personagem que, na curiosidade em relação a si e ao Outro, crê nas palavras como possibilidade de descrever a realidade com mais eloquência do que a pintura, mesmo que isso seja em apenas um momento da história, visto que ele continua depois pintando também. Esta noção de pintura representativa seguida da escrita remonta à época das cavernas quando os desenhos rupestres deságuam, posteriormente, na formulação das palavras escritas. A ideia de uma imagem valer mais que mil palavras é, momentaneamente, desconstruída no Manual, pois a escrita funciona como uma espécie de redentora que liberta o personagem das cópias e depois o prepara para retomar o ofício interrompido. Saramago se recria num personagem que se descobre sujeito inacabado que “vai-se construindo através de uma linguagem labiríntica ao interior de si próprio, 66 como forma única de salvação” (MADRUGA, 1998, p. 22); ou seja, ele se vai construindo diante da produção da linguagem e se salvando do jogo duplo que fazia. No que tange a esta salvação do sujeito pela (e na) escrita, H. confirma a urgência e a necessidade de se expressar compulsivamente valendo-se do recurso discursivo: Sempre virei dar a esta pequena mesa, a esta luz, a esta caligrafia, a este fio que constantemente se parte e ato debaixo da caneta e que, não obstante, é a minha única possibilidade de salvação e conhecimento (MPC, 1998c, p. 57). Diante da ditadura militar que reprimia e sufocava a voz dos cidadãos, a conquista por liberdade de expressão, nesse romance, promove o não apagamento do sujeito, que se encontrava em vias de um total apagamento identitário de H. enquanto artista. 3. 3. OS EQUÍVOCOS ENTRE VERDADE E FICÇÃO o plano da realidade penetra o jogo ficcional [...], o que nele está se mescla com o que poderia ter havido; o que nele há se combina com o desejo do que estivesse; e que por isso passa a haver e a estar (LIMA, 1984, p. 195). Ao que parece, não é recente a confusão entre ficção e realidade. Poemas como Os Lusíadas e A Divina Comédia, por exemplo, tiveram muitas de suas passagens creditadas como uma espécie profecia. Como vivemos no grande labirinto do mundo real e ainda não conseguimos descrever sua estrutura total, sobretudo em termos existenciais e psicológicos, todas as culturas procuram uma voz autoral, ou mais de uma, a fim de justificar a origem de sua própria história. A humanidade se pergunta sobre Deus ou sobre deuses, como autores empíricos e narradores. Acerca desta busca por uma autoria da realidade, no pós-escrito a O nome da rosa, Eco explica a necessidade dos leitores em identificar autores: “gostamos de histórias 67 policiais porque fazem a mesma pergunta formulada pela filosofia e pela religião: ‘quem fez isso?’”. (ECO, 1983, p. 121). O que se coloca no texto íntimo, além do desejo demiúrgico de se reconhecer como autor do próprio discurso, é a facilidade com que o sujeito mistura as dimensões para tentar compreender a própria história. Ele lê a vida e pode narrá-la de uma forma tão elaborada quanto ocorre na produção dos romances. A respeito da escrita sob uma única perspectiva do sujeito, o personagem H. defende que “a verdadeira mentira é o não sabido, não o que apenas foi formulado de acordo com aquela centésima das cem maneiras de formular a que é uso chamar mentira” (MPC, 1998c, p. 114). Podemos pensar que, para ele, a inverdade é a lacuna, a ignorância, as respostas interditas, e não a ficção que representa o que é, o que foi e o que poderia ser. Além dos enganos entre verdade e ficção que ocorreram quando da leitura das epopeias, outro exemplo relevante é o da transmissão de um programa radiofônico por Orson Welles. A simulação da invasão de marcianos levou os mais desavisados a projetar o conteúdo da narrativa para o mundo real, porque não compreenderam os sinais da ficção. É esse tipo de espectador ingênuo que Eco, em Os seis passeios pelos bosques da ficção, chama leitor-modelo no Nível I, para quem os sinais internos de ficcionalidade precisam ser claramente explicitados, como o lendário Era uma vez, marca que seleciona, de imediato, o seu leitor criança, ou uma pessoa disposta a aceitar os aspectos imaginário e psicológico de textos como nos contos de fadas. Segundo Eco, “O leitor-modelo é uma espécie de tipo ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar” (ECO, 1994, p. 15). Este é o leitormodelo no primeiro nível, já que no segundo nível ele é capaz de ler os significados alegóricos (p. 48). Este talvez seja o aspecto negativo ocasionado pela interseção entre verdade e ficção, quando do equívoco feito por espectadores/ leitores despreparados. 68 Somente os textos estritamente técnicos, como bulas de remédio, manuais e afins, parecem livres de tais cruzamentos, não obstante a sua interpretação possa ainda ser apreendida de maneira diferente. Numa obra como o MPC, em que um leitor-modelo no nível II, sugerido por Eco, lê as pistas indicadoras de que a obra é um romance, já sabe de antemão sobre a existência de um “acordo ficcional”. Quando Eco sinaliza como se deve percorrer os caminhos pelos bosques fictícios, ele faz alusão ao pacto de ficção que não necessariamente significa um acordo de caráter falso. Conforme alerta, “o leitor tem de saber que o que está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o escritor está contando mentiras” (ECO, 1994, p. 81). Diante disso, à descrição de Lejeune sobre a autobiografia ser a narrativa que uma pessoa faz da sua realidade particular pode se acrescentar a feita por Eco de que tal realidade pode ser imaginada e nem por isso deixa de ser verdade. O mundo ficcional, dessa forma, pode corresponder a uma espécie de universo paralelo, e por vezes é difícil determinar seus limites com a realidade, já que parece possuir, de certa maneira, a sua própria. Conforme explica Eco, Na verdade, os mundos ficcionais são parasitas do mundo real, porém são com efeito “pequenos mundos” que delimitam a maior parte de nossa competência do mundo real e permitem que nos concentremos num mundo finito, fechado, muito semelhante ao nosso, embora ontologicamente mais pobre (ECO, 1994, p. 91). Esta pobreza se inscreve, naturalmente, por força da questão do tempo, porquanto todos os minutos não conseguem ser, ininterruptamente, reescritos. Como Barthes aponta o texto consiste em uma utopia, porque funciona como representação de algo que declaramos impossível de se realizar nas artes. É como se para ele, o texto se confundisse até com o escritor, a quem denomina como aquele para quem “o mundo é uma medalha, uma moeda, uma dupla superfície de leitura, cujo avesso é 69 ocupado por sua própria realidade e cujo direito, pela utopia” (BARTHES, 2003, p. 91). Embora no MPC o acordo de ficção se estabeleça desde o início, As Pequenas Memórias não são mais verdadeiras por se referirem à vida pessoal do autor declaradamente. É certo que nestas o pacto autobiográfico, ou o que Eco chama de “narrativa natural” (ECO, 2006, p. 125) é selado com os que possuem algum tipo de conhecimento sobre a vida privada do autor José Saramago e sabem de sua promessa em escrever uma autobiografia. Ele permite que as relações de identidade se estabeleçam, conduzindo o leitor ao reconhecimento de dados pessoais coesos a ele no papel de escritor conhecido e consagrado. Contudo, no Manual também coexistem uma série de elementos que apontam identidades implícitas da vida pessoal de Saramago no romance. Aqui, podemos concluir que há um pacto autobiográfico subjacente, propiciando a coexistência da veracidade e da ficção no mesmo texto. A este propósito, é conveniente retomar a análise de Costa Lima sobre o termo ficção. Para ele, essa outra dimensão imaginativa não se opõe à realidade, pois a ficção não se define, simplesmente, como avesso ao real, ou mentira porque o plano da realidade penetra o jogo ficcional [...], o que nele está se mescla com o que poderia ter havido; o que nele há se combina com o desejo do que estivesse; e que por isso passa a haver e a estar (LIMA, 1984, p. 195). A escrita do MPC está repleta de alusões a um tipo de relação praticamente indissociável da vida de Saramago com a fantasia, como se, para compor o romance, ele precisasse partir de suas próprias experiências. Além da semelhança com H. que se recusa a continuar com as cópias canônicas dos quadros, a presença de Saramago também se faz reconhecível no momento em que o personagem passa a transcrever, em primeira pessoa, as autobiografias de Rousseau e de Robinson, com a finalidade de “adestrar a mão, como se estivesse a copiar um quadro. Transcrevendo, copiando, 70 aprendendo a contar uma vida, de mais na primeira pessoa” (MPC, 1998c, p. 94), treinando, assim, o que doravante escreverá sobre si. Assim como Saramago, que parece treinar a escrita de si através dessa autobiografia fictícia, seu personagem treina a autonarrativa ao escrever as histórias de outras pessoas até assumir a escrita de si mesmo: Não creio que alguém pudesse entender-se neste cruzar de fios, desenredá-los, distinguir os verdadeiros dos falsos e (trabalho ainda mais útil) definir e marcar o grau de falsidade na verdade e de verdade na falsidade. [..] Mas, ao copiar fielmente estas linhas, com honesta intenção de aprender, não noto qualquer diferença, salvo na escrita, entre esta realidade e aquela ficção (MPC, 1998c, pp 94-95). Aqui, a escrita do Outro é trançada com a escrita de si de tal forma a ponto de aquele que escreve se deixar arrastar pela ilusão criada por ele mesmo, se confundindo com o sujeito sobre quem narra em primeira pessoa. Talvez, isso ocorra com as escritas de biografias, pois o biógrafo, em certa medida, deve depositar muito de si próprio, infltrando-se na narrativa de forma não intencional propriamente. 3. 4. A ESCRITA COMO PERMANÊNCIA DA IDENTIDADE LITERÁRIA [...] somente nos labirintos da representação de si mesmo é que o homem pode realmente vislumbrar-se, a si e aos outros, driblando a passagem do tempo e, conseqüentemente, a morte (SANTOS, 2007, p. 4). Levando em consideração as diversas manifestações da linguagem, seja a oral, a escrita, a plástica ou as artes cênicas, vemos que em todas estas expressividades o sujeito se movimenta por trás delas, emprestando suas emoções para compor uma ou outra. Contudo, ao que parece a escrita demonstra com mais acuidade a necessidade do sujeito de tentar se eternizar por meio dela. 71 Em relação à escrita de si, podemos pensar que é este o maior objetivo dela: arquivar a passagem do tempo, gerando um Eu substituto que possa garantir ao sujeito que se escreve a não extinção de si e a sua imortalidade. A palavra torna-se a “fundadora do lugar e do eu que no seu seio o escreve” (CARMO, 1999, p. 41), conferindo a ele um lugar na eternidade, como se a obra alcançasse uma longevidade negada ao sujeito pelo limite temporal, “porque se neste instante em que estamos alguma coisa participa da eternidade, não é o pintor mas o quadro” (MPC, 1998c, p. 9). Como um laboratório de introspecção, segundo Lejeune a escrita se torna “apelo a uma leitura posterior: transmissão a algum alter ego perdido no futuro. [...] Garrafa lançada ao mar” (LEJEUNE, 2008, p. 262). É como se, no círculo mágico da autobiografia, o sujeito personalizasse o passado e o futuro para compensar algo de natureza impalpável que é a própria sobrevivência. Tal sentido de narrativa, que pode se oferecer a futuras leituras, remonta novamente aos hypomnemata aludidos por Foucault. Conforme explica ele, quem os escrevia “tratava de se constituir a si próprio como sujeito de acção racional pela apropriação, a unificação e a subjetivação de um ‘já dito’ fragmentário e escolhido” (FOUCAULT, 1992, p. 160). Como são narrativas de memórias diárias, de certa maneira os hypomnemata afastam-se da autobiografia, mas dela se aproximam no sentido de valorizar a memória mediante um arquivo pessoal que possa colocar novamente em movimento o passado. No caso das autobiografias, o destinatário do autobiógrafo pode ser ele próprio, embora seu único objetivo aparente seja o de reconstruir o passado para não perdê-lo totalmente nas mãos do tempo, enquanto os hypomnemata concentravam-se mais no objetivo da memorização, para que o sujeito se constituísse mediante as lições apreendidas das experiências, valorizando, portanto, a memória para se servir dela diariamente quando a ocasião se oferecesse. 72 Na autobiografia, a vida finita alcança a perenidade e doa um novo sentido ao indivíduo que se cola sobre a escrita, vivenciando o sentimento de leveza que o desabafo lhe oferece. De um lado, pois, existe a voz que resplandece no ato da escrita, ao mesmo tempo em que paira a visão platônica de o texto ser uma espécie de mundo das ideias, onde o sujeito, livre, resgata o que foi através da escrita, talhando tanto a elas quanto a si mesmo. Para Barthes, no entanto, a escrita íntima não aproxima o sujeito da eternidade, mas assinala a própria despersonalização, como adverte: “escrever sobre si pode parecer uma idéia pretensiosa; mas é também uma idéia simples como uma idéia de suicídio” (BARTHES, 2003, p. 71). Mas este suicídio do sujeito na escrita e, no caso da autobiografia, é voltado para a noção de ele se atirar ao escuro, lançando-se ao desconhecido, embora a intenção inicial tenha sido a de não fazer da sua narrativa uma ficção. Na crônica Borges y yo, há um ser literário em pleno processo de constituição identitária, em busca de se diferenciar em relação ao escritor-criador. Ele tenta se apoderar da sua existência, mas esta logo lhe escapa, porque seu outro Eu, Borges escritor, acaba por se apoderar de qualquer novo traço seu que se delineia na escrita, a ponto de o sujeito literário – o Outro Eu, em termos lacanianos – sentir-se constantemente impelido a se buscar, reinventando-se em novas escritas. A fim de conceder originalidade a si mesmo e se distanciar do criador, a criatura, aqui, aspira a uma unidade que lhe é impossível dada à coexistência de ambos: criador e criatura. Spinoza entendió que todas las cosas quieren perseverar en su ser; la piedra eternamente quiere ser piedra y el tigre un tigre. Yo he de quedar en Borges, no en mi (si es que alguien soy), pero me reconozco menos en sus libros que en muchos otros o que en el laborioso rasgueo de una guitarra. Hace años yo traté de librarme de él y pasé de las mitologias del arrabal a los juegos con el tiempo y con lo infinito, pero esos juegos son de Borges ahora y tendré que 73 idear otras cosas. Asi mi vida es una fuga y todo lo pierdo y todo es del olvido, o del otro (BORGES, 1972, p. 70) 14. O poder manifestativo da palavra aqui, por vezes, apodera-se do sujeito que se deixa envolver pela narrativa e pelo desejo de se comunicar, ainda que consigo apenas. O autobiógrafo parece remontar, em certa medida, o mito do oráculo de Delfos cujo corpo é emprestado para a expressividade de um Eu que se manifesta de maneira espontânea, inpensada. Levando em consideração o significado etimológico da palavra comunicação, sabemos que se refere ao adjetivo comum, que se relaciona aos substantivos comunidade e comunhão. O fato é que, enquanto escreve, o poder criativo da palavra possibilita ao sujeito a manifestação de uma ampla alteridade. Ele não só cria um tipo de linguagem própria, mas também se recria nela. A escrita, desta forma, é fecundamente composta de imaginário, uma tecnologia para recriar artificialmente a realidade que possibilita ao sujeito o não enclausuramento no interior de um autismo, pois com a língua ele pode criar e dialogar consigo e com outros, alargando os próprios limites. Em O homem duplicado também conferimos o cenário de introspecção do sujeito assumir papel relevante. O personagem solitário Tertuliano Máximo, em múltiplos diálogos com o seu Bom Senso, remete-nos à noção de monólogos, ou diálogos imperfeitos, segundo Herculano de Carvalho. O interlocutor muitas vezes assume formas inusitadas, como a da gadanha, companheira da imagem da morte caricaturada sob o capuz em As intermitências da morte (2005), ou o teto com o que Sr. José conversa em Todos os Nomes (1997). 14 Tradução nossa: “Espinoza entendeu que todas as coisas querem perseverar no seu ser, a pedra eternamente quer ser uma pedra, o tigre um tigre. Eu hei de permanecer em Borges, não em mim (se é que eu sou alguém), mas me reconheço menos nos seus livros do que em muitos outros ou no laborioso toque de uma viola. Há anos tratei de me livrar dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e terei de imaginar outras coisas. Assim, a minha vida é uma fuga e tudo perco, tudo é do esquecimento ou do outro.” 74 Desta forma, a comunicação, no MPC, parece ser o fator determinante no processo de constituição identitária de H., pois é a partir da interatividade, inicialmente consigo apenas, que ele alcança mais autoconhecimento. O ato da escrita o conduz a desencadear outras reflexões acerca de impressões pretéritas e presentes de maneira mais abrangente. Em outras palavras, à medida que o sujeito se apropria da linguagem para se expressar, adquire uma consciência mais fecunda de si e do Outro, já que, conforme Barthes “o sujeito não é anterior à linguagem” porque “só se torna sujeito na medida em que fala”. (BARTHES, 1988, p. 211). No caso da autobiografia, podemos refletir sobre o sujeito que, incomodado com o silêncio, decide entrar em contato consigo, com o Outro Eu que parece justificar a sua existência como indivíduo dentro de uma comunidade. Sabemos, todavia, que a comunicação não é única finalidade da palavra. Herculano de Carvalho descreve as possíveis funções da linguagem e, entre estas, além da necessidade de exteriorização do sujeito, destacamos a função catártica promovida por intermédio da linguagem. Neste caso, por vezes quando exercita a linguagem A finalidade essencial do sujeito não é nem a de actuar sobre outrem, nem a de fazer-lhe saber algo, mas a de dar vazão a conteúdos de consciência provavelmente emotivos, encontrando nela um alívio imediato para um estado de espírito caracterizadamente emocional (CARVALHO, 1979, p. 40). Podemos pensar no aspecto purificador da palavra, que areja a interioridade do sujeito e lhe concede o equilíbrio em meio à suposta caoticidade dos pensamentos, conseguindo ainda manter vivas figuras e lembranças veiculadas na escrita. Nas palavras de H., o ato da escrita confere ordem a tal caoticidade, já que o principal motivo de sua autobusca é ter “tempo de pensar e pensar com tempo”, pois “o tempo é este papel que escrevo” (MPC, 1998c, pp. 240-257). Ante a hipocrisia da qual se cerca em seu cotidiano, o personagem sugere, pois, que somente com o movimento da 75 escrita pode refazer o caminho do passado com mais exatidão. Aqui, a abordagem da comunicação vem coroar a escrita como o lugar da totalidade da unidade, ainda que tal totalidade se pluralize e seja fragmentada como é a própria realidade apreendida pelo sujeito que abstrai tudo. Como ressalva Anatol Rosenfeld, a nossa visão da realidade em geral, e em particular dos seres humanos individuais, é extremamente fragmentária e limitada. De certa forma, as orações de um texto projetam um mundo bem mais fragmentário do que a nossa visão já fragmentária da realidade (ROSENFELD, 2005, p. 32). Assim, numa cultura marcada pelo individualismo, mas que, ao mesmo tempo, promove o pluralismo, a literatura autobiográfica confere ao indivíduo, como ser único – mas não uno –, lugar especial de reconhecimento entre as várias máscaras do mesmo Eu que se descreve. Há, de fato, uma certa noção de privilégio da escrita sobre a visual, o que nos remete às reflexões de Foucault sobre a linguagem que, segundo ele, “deve ser estudada como uma coisa da natureza” (FOUCAULT, 1995, p. 51), da qual o homem faz parte e, portanto, seria a partir da linguagem e na linguagem que se desenvolve a identidade do ser humano. Assim, H. conclui: “pela primeira vez, venho repetir, ou tentar, escrevendo, um retrato que pelos meios da pintura definitivamente me escapou – a razão é o conhecimento” (MPC, 1998c, p. 13). Tal conhecimento é a visão que possui sobre si mesmo, divergindo do conhecimento superficial que retrata nos clientes. E mesmo sob a presença camuflada pela perspectiva do personagem, a prática autobiográfica de Saramago encenada no Manual repousa, mormente, na concepção da escrita como lugar de experimento e questionamentos do Eu que parte em peregrinações interiores. Exercitando a linguagem na caligrafia, H. se observa como quem acende uma lanterna por dentro, vendo-se melhor: Brinco com as palavras como se usasse as cores e as misturasse ainda na paleta. Mas em verdade direi que nenhum desenho ou pintura teria dito, por obras de minhas mãos, o que até este preciso instante fui capaz de escrever, e atrever. [...] Brinco com estas coisas acontecidas, ao procurar palavras que as relatem mesmo só 76 aproximadamente (MPC, 1998c, p. 51). A comparação entre escrever e pintar parece indicar que as palavras desvelam sentidos ocultos, levando H. a se reconhecer de maneira nova. Isso culmina numa espécie de autoestranhamento quando ele olha uma antiga fotografia: “É um retrato para onde algumas vezes olho (tenho-o pendurado no atelier) cheio de curiosidade, como se olhasse um estranho: não me reconheço nunca naquela altura. [...] Quem souaquele?” (MPC, 1998c, p. 31). O estranhamento existencial de H. muito se assemelha ao do próprio Saramago retratado numa crônica que antecede mesmo o Manual, Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, no livro Deste mundo e do outro, quando o sujeito contempla-se na água em confronto com o Eu do passado, numa relação efusiva que o leva a confundir quem é com quem foi: Desço até à água, mergulho nela as mãos, e não as reconheço. Vêmme da memória outras mãos mergulhadas noutro rio. As minhas mãos de há trinta anos, o rio antigo de águas que já se perderam no mar. Vejo passar o tempo. Tem a cor da água e vai carregado de detritos, de pétalas arrancadas de flores, de um toque vagaroso de sinos. Então uma ave cor de fogo passa como um relâmpago. O sino cala-se. E eu sacudo as mãos molhadas de tempo, levando-as até aos olhos – as minhas mãos de hoje, com que prendo a vida e a verdade desta hora (SARAMAGO, 1997, p. 37). A imagem do rio, verificada na crônica, pode ser confundida também com a própria escrita. O espelho d’água bem como a autobiografia estimula o gesto narcísico, e o sujeito de ambos os textos se depara com uma face diferente daquela refletida no momento em que se mira. O rio é o próprio tempo correndo ligeiramente, mais rápido que o fluxo do pensamento e da escrita com os quais o sujeito tenta reter, um pouco que seja, a velocidade temporal. Cabe precisar que a breve narrativa, embora autobiográfica, se distingue do Manual e das PM sobretudo devido à brevidade. Nas PM há um certo distanciamento entre Saramago e a narrativa, o que confere menos densidade à obra. Em relação ao recorte “Quem é-aquele?” (MPC, 77 1998c, p. 31), deparamo-nos com o cenário do espelho questionador em relação à própria imagem que reflete, no qual se espreita um estranhamento em relação a si mesmo. Isso parece suceder a variados romances, como, por exemplo, Milan Kundera que também enfrenta a própria pluralidade, outras formas de ser em si mesmo através de personagens: [...] os personagens não nascem de um corpo materno como os seres vivos, mas de uma situação, uma frase, uma metáfora que contém em embrião uma possibilidade humana fundamental que o autor imagina não ter sido ainda descoberta ou sobre a qual nada de essencial ainda foi dito. “Mas não se costuma dizer que o autor só pode falar de si mesmo?” [...]. Olhar o pátio, impotente, e não conseguir tomar uma decisão; ouvir o ruído obstinado do próprio ventre num momento de exaltação amorosa; trair e não saber parar na estrada tão bela das traições; [...] demonstrar humor diante dos microfones escondidos pela polícia: conheci e eu mesmo vivi todas essas situações; de nenhuma delas, no entanto, saiu o personagem que eu mesmo sou no meu curriculum vitae (KUNDERA, 1999, pp. 251- 2). O autor empírico corresponde àquele que flagra as múltiplas faces que se confundem no texto, mas ainda consegue se identificar naquilo que define superficialmente. É como se, na narrativa, o escritor pudesse ser todos os Eus, usar todas as máscaras sem comprometer a integridade, pois uma parte dele permanece concentrada em si mesmo, ainda que já compreenda suas outridades. O reconhecimento das outras possibilidades de ser também acomete H. à medida que adquire a consciência da instabilidade e do perene fazer a si mesmo que lhe viabilize maior conhecimento não apenas de si mesmo, mas de certos processos: Não tem sido fácil articular estas frases. A mim lembro que não tenho o hábito de escrever, que não domino certas habilidades de escrita [...] mas verifico que por este caminho vou chegando a certas conclusões que até agora me estavam inacessíveis (MPC, 1998c, p. 109). No texto já aludido Borges y yo encontramos ecos da consciência de outridade no discurso intimista, mas o enleamento se dá num nível em que o autor já não se reconhece sem a personalidade criada. Aqui, o narrador mistura o Eu e o Tu e medita 78 sobre sua outra face, retomando a questão do fingimento pessoano que, na crônica, transfigura o indivíduo em uma espécie de ator, personagem de si mesmo, mediante o qual ele contempla a impossibilidade de sacudir de si a outra versão e de admirar como imagem una e regular, em vista da pluralidade de sua essência. Num movimento contrário, o discurso acerca do fingimento pertence ao ser literário. Em tom de queixa à constante presença autoral, ele estabelece a literatura como seu espaço, realidade feita de palavras que acaba por, de fato, justificar a sua existência. [...] el otro comparte esas preferencias, pero de un modo vanidoso que las convierte en atributos de un actor. Seria exagerado afirmar que nuestra relación es hostil; yo vivo, yo me dejo vivir, para que Borges pueda tramar su literatura y esa literatura me justifica. Nada me cuesta confesar que ha logrado ciertas paginas válidas, pero esas paginas no me pueden salvar, quizá porque to bueno ya no es de nadie, ni siquiera del otro, sino del lenguaje o la tradición. Por to demás, yo estoy destinado a perderme, definitivamente, y sólo algún instante de mi podrá sobrevivir en el otro. Poco a poco voy cediéndole todo, aunque me consta su perversa costumbre de falsear y magnificar. [...] No sé cuál de los dos escribe esta página (BORGES, 1972, p. 70) 15. Retomando a perspectiva das memórias como espaço de perpetuação de uma identidade literária, na voz do personagem saramaguiano também se desconstrói a visão de sujeito fixo que, ao tentar obter uma visão global da sua individualidade, vêse inclinado a distinguir as cisões de si mesmo dependendo das variações de momento e circunstância, afirmando: “Por isso estou tão seguro desta simples verdade: o eu deste instante preciso é fundamentalmente diferente do que era um segundo antes, algumas vezes o contrário, mas sem dúvida, sempre, outro” (MPC, 1998c, p. 96). Em seguida, ao registrar as diferenças em si diante da passagem do tempo, H. repara que 15 “[...] o outro compartilha destas preferências, porém de um modo vaidoso que as converte em atributos de um ator. Seria exagerado afirmar que nossa relação é hostil; eu vivo, eu me deixo viver para que Borges possa tecer sua literatura e esta literatura me justifica. Nada me custa confessar que tenha conseguido produzir certas páginas valiosas, mas estas páginas não podem me salvar, porque já não me pertencem, nem sequer do outro, senão da linguagem ou da tradição. Quanto ao mais, estou destinado a me perder de mim mesmo, definitivamente, e somente algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou-lhe cedendo tudo, ainda que me conste o seu perverso hábito de falsificar e magnificar. [...] Não sei qual dos dois escreve esta página”. 79 as recentes lembranças parecem “facto doutra vida, ou mesmo de pessoa diferente” (pp. 445), momentos vividos e embutidos uns nos outros, refletindo para o personagem a própria figura essencialmente inacabada. Ele sequer é individualizado por um nome próprio, preenchido além da incógnita inicial. A singela letra designando-o é uma amostra das lacunas que acometem sua existência, de modo que o sujeito parece estar constantemente se compondo, como a história da sua vida constituída pelos momentos ziguezagueantes da existência. No texto de primeira pessoa de Barthes, ele também alude a um outro Eu que se evanesce como o minuto que se passou, fragmento memoralístico cujo título Lucidez faz referência ao aspecto inacabado do sujeito e suas incoerências. Para ele, Este livro não é um livro de “confissões”; não porque ele seja insincero, mas porque temos hoje um saber diferente do de ontem; esse saber pode ser assim resumido: o que escrevo de mim nunca é a última palavra; quanto mais sou “sincero”, mais sou impenetrável, sob o olhar de instâncias diferentes das dos antigos autores, que acreditavam dever submeter-se a uma única lei: a autenticidade (BARTHES, 2003, p. 137). No tocante a H., quando escreve sobre o conflito entre continuar ou não pintando, ele explora ao máximo a própria capacidade linguística pleiteando a autodescoberta, deparando-se com este novo Eu-si-mesmo, já que até então o personagem não gosta de seus quadros, porque se via neles e não gostava da imagem que a obra lhe dava de si: “Não gosto da minha pintura: porque não gosto de mim e sou obrigado a ver-me em cada retrato que pinto” (p 79). Mas a autorreflexão e isolamento doravante fazem com que H. perca o tom de frustração na narrativa no final do romance. Quando o autobiógrafo expõe as impressões de mundo e de si parece se tornar mais atento à própria solidão e à fecundidade desta. Se de um lado tais impressões lhe apontam a ausência de afeto e de ousadia, por outro lhe mostram a potencialidade de criar com ela, como sugere o recorte: Nenhum deserto meu (ou eu deserto) se povoou. Abordei a 80 consciência disto quando comecei a escrever: todo o meu esforço consistiu, afinal, em recuperar o deserto, para (tentar) compreender depois aquilo que ficasse, aquilo que ficou, aquilo que ficar. A solidão, decerto, mas talvez não a esterilidade. Desabitado, convenho, mas não inabitável. Seco, mas com água dentro (MPC, 1998c, pp. 156-7). No MPC, o desejo de permanecer vivo divide espaço com o sentido de solidão figurado na imagem do deserto e nas referências a vagações noturnas no automóvel, pelas ruas de Lisboa. As paisagens de solidão e evocações à imagem do deserto são traços marcantes da identidade do próprio autor empírico que, em seu primeiro romance propriamente dito, não consegue criar ainda um personagem totalmente descolado de sua imagem, como Horácio Costa analisa. Em entrevista a Arias, em setembro de 1997, Saramago confirma a necessidade de estar a sós que vemos nos personagens de seus romances. Este sentimento o acompanha até desde criança até a fase adulta, quando sente um desconforto diante de muitas pessoas, o que o leva a se refugiar em caminhadas solitárias para recuperar o equilíbrio interior. Como ele diz, “Essa solidão que para eles se confunde com o abandono, para mim é uma espécie de refúgio. Refugio-me nela como se estivesse num castelo, é como dizer: “Aqui estou, este é o meu terreno” (SARAMAGO, apud ARIAS, 2000, p. 33). A sensação de deserto interior aqui se refere à peregrinação subjetiva de H. e, à medida que escreve avança, página a página, consegue retomar as lembranças, como as das visitas aos museus italianos e vai aos poucos preenchendo o vazio de sua solidão. No tocante ao termo deserto, Costa o associa à cena de Cristo no Monte das Oliveiras, à qual o próprio H. se refere afirmando a densidade mitológica da palavra, como explica o crítico, pois isso garante “o seu lugar e função na escrita do ‘manual’, como metáfora válida para exprimir a condição vivencial do homem em crise” (COSTA, 1997, p. 301). É esse conflito que caracteriza, segundo Costa, o período crítico em que Saramago dá os primeiros passos rumo ao autor que conhecemos hoje, 81 enquanto leitores de sua obra. Assim, ao lado da autodescoberta que o aprendizado da escrita oferece a H., seu percurso pelas vias da linguagem simboliza a intenção de continuar a viver como sujeito para além do que lhe é possibilitado pela sua natureza. É o antigo desejo humano de tentar salvar da morte, nem que seja apenas uma parte, a sua existência. Também nas PM, o regresso ao passado da infância não confronta apenas as lembranças das paisagens do campo e de Lisboa com seus aspectos modificados na atualidade. O regresso ao Tejo, onde cresceu, projeta com maior intensidade as mudanças ocorridas entre passado e presente no próprio autobiógrafo distinto do que fora. Mudanças forçadas, já que o vasto campo de oliveiras, às quais Saramago se refere com melancolia, encontra-se devastado, restando pouco do ambiente bucólico onde viveu. Tais alterações no espaço físico são comparadas às que Saramago reconhece em si, como sugere o fragmento: Olho de cima da ribanceira a corrente que mal se move, a água quase estagnada, e absurdamente imagino que tudo voltaria a ser o que foi se nela pudesse voltar a mergulhar a minha nudez da infância, se pudesse retomar nas mãos que tenho hoje a longa e húmida vara ou os sonoros remos de antanho, e impelir, sobre a lisa pele da água, o barco rústico que conduziu até às fronteiras do sonho um certo ser que fui e que deixei encalhado algures no tempo (PM, 2006, p. 15). Desde o período em que Saramago se dedica mais às crônicas do que aos romances, ele se mostra saudoso em relação ao passado e à inocência que paira deste tempo, seja das paisagens naturais e intocadas, seja das pessoas como personagens desta época. Há um texto, sobretudo, que merece maior destaque dada à similitude com o excerto acima, extraído do livro Deste mundo e do outro. Muito alto, duas garças brancas (ou talvez não sejam garças, não importa) desenham um bailado sem princípio nem fim: vieram inscrever-se no meu tempo, irão depois continuar o seu, sem mim. [...] Olho agora o rio que conheço tão bem. A cor das águas, a maneira como escorregam ao longo das margens, as espadanas 82 verdes, as plataformas de limos onde encontram chão as rãs, onde as libélulas (também chamadas tira-olhos) pousam a extremidade das pequenas garras - este rio é qualquer coisa que me corre no sangue, a que estou preso desde sempre e para sempre. Naveguei nele, aprendi nele a nadar, conheço-lhe os fundões e as locas onde os barbos pairam imóveis. É mais do que um rio, é talvez um segredo. E, contudo, estas águas já não são as minhas águas. O tempo flui nelas, arrasta-as e vai arrastando na corrente líquida, devagar, à velocidade (aqui, na terra) de sessenta segundos por minuto (SARAMAGO, 1997, p. 36). Às voltas com a tentativa de se autobiografar muitos antes do Manual, verificamos nestas narrativas, seja a do MPC seja a das PM, terreno propício e fecundo de um Eu que aspira à permanência de suas memórias, como quando H. declara: “é sobretudo a ideia de prolongamento infinito que me fascina” (MPC, 1998c, p. 54). Neste ponto a palavra revela-se como meio de o sujeito atingir a eternidade, e o personagem busca contrariar o efeito corrosivo do tempo sobre suas memórias, como Saramago desabafa sobre sua obra na entrevista a Reis: “a impressão que tenho é que, morrendo amanhã ou daqui por dois dias, deixo qualquer coisa sólida” (SARAMAGO, apud REIS, 1998a, p. 33). A escrita representa a própria vida em oposição à ideia de desaparecimento absoluto do indivíduo. Se esse desejo de transcendência é um movimento consciente, ou inconsciente, de fuga ou de repúdio ao apagamento de suas recordações, Souza infere, em sua pesquisa sobre a autobiografia drummoniana que [...] a autobiografia é um jogo em que um dos objetivos é o desejo, muitas vezes inconsciente, de transcender a morte. Escrever-se, que implica manifestação da linguagem escrita, significa plasmar a vida, tornando-a imune às corrosões temporais do esquecimento (SOUZA, 2002, p. 63). No que tange à aparente luta contra a diluição temporal, convém sublinhar as três configurações de tempo que Eco aponta, sobre as quais se debruça uma obra de ficção: os tempos da história, do curso e da leitura (ECO, 1994, p. 60). A primeira se refere à parte do conteúdo da história. Já os tempos do curso e da leitura, ou da 83 expressão linguística, e o tempo de escrever (e ler) a frase são demasiado curtos em relação ao que realmente transcorreu para o sujeito. Se o tempo empírico esvaece de forma mais lenta, se comparada ao da escrita e da leitura, o sujeito que se constrói na narrativa não é mais aquele exatamente de antes, de durante, e mesmo de depois da escrita. É como se a autobiografia correspondesse a ideia de fatiamento do sujeito que, como uma ilusão de ótica, imagina estar reunindo seus fragmentos, seus tempos e compondo uma identidade que lhe parece mais coesa. A linguagem se apresenta, assim, como espaço em que a perenidade cumpre de alguma forma. No entanto, embora a pretensão de eternidade perpasse o texto, H. chega ao final do romance aparentemente cônscio de que apenas parte de si ficará registrada, como somente ficarão os rastros da autobusca do sujeito, como diz Starobinski: “O auto-retrato não será, portanto, a cópia mais ou menos fiel de um euobjeto, mas o rastro vivo dessa ação que é a busca de si” (STAROBINSKI, 1991, p. 205). H. sugere ainda a impossibilidade de apreender toda a verdade sobre si, porque a história da identidade do sujeito encontra-se de forma geral em suas atitudes, gestos e impressões. Com isso, é difícil precisar onde está o sujeito, pois que ele está em tudo, como explica num outro momento: Creio que a nossa biografia está em tudo o que fazemos e dizemos, em todos os gestos, na maneira como nos sentamos, como andamos e olhamos, como viramos a cabeça ou apanhamos um objeto no chão. É isso que a pintura [ou a escrita] quer fazer. Não falo da minha, claro está (MPC, 1998c, p. 115). Ao final do romance, H. conclui o autorretrato em palavras, certo de que estas não tornariam a realidade integralmente visível e que a parte de si, deixada na escrita, deve ser demasiadamente diminuta em relação às minúcias cotidianas somadas às percepções de si que o próprio sujeito desconhece. Daí nenhuma das duas perspectivas de simulacro (pintura ou caligrafia) promoveria um manual de como se deve representar uma verdade absoluta e arbitrária em relação a sua personalidade ou 84 sobre a de outrem. Se há autobiografia saramaguiana, ela não pode se limitar apenas às PM, mas deve ser compreendida em toda a extensão de sua obra, este largo palco onde as ideologias do autor se organizam e funcionam como objeto de preservação de sua memória na escrita. 85 4. ESCRITA COMO ESPELHO Seja como for, que os leitores se tranquilizem: este Narciso que hoje se contempla na água desfará amanhã com a sua própria mão a imagem que o contempla. (SARAMAGO, 1997, p. 10). A narrativa de ficção, a priori, não costuma referir-se a fatos pessoais da vida do autor, senão da história sob um enfoque político e social. Contudo, diante de uma obra vasta como a de Saramago, suas marcas são muitas e reconhecíveis com facilidade, delineando, uma a uma, o perfil do autor. As marcas recorrentes deixam escapar os vestígios autorais nos desdobramentos de personagens que reaparecem sob outros aspectos em outros romances. A noção de alter ego também corrobora este processo de identificação de um perfil uno que se fragmenta e aparece num e outro romance, contribuindo como elemento capaz de confirmar a presença do autor. Desta forma, ao recolher tais traços, podemos tentar compor as faces de Saramago mesmo que de maneira precária, dado ao caráter de incompletude da representação escrita. A ideia aqui, no entanto, não é a de esmiuçar a história pessoal do autor, mas a de verificar que também na ficção podemos observar suas variadas faces, modificando-se e se movimentando por trás de todo o aparato fictício. 4. 1. ALTER EGOS E DUPLOS COMO SUBJETIVIDADE AUTORAL Sabemos que o mito do duplo remonta a épocas bem mais recuadas no tempo e tanto O banquete de Platão quanto o Livro do Gênese exprimem-se a partir da noção da duplicidade. Nos mitos narrados em tais textos, o homem é interpretado como possuidor de uma natureza retalhada e seu destino se converte em uma busca pela parte que, supostamente, lhe falta. Segundo Brunel “o homem desdobrado representa 86 a união primitiva, o estado de perfeição” (BRUNEL, 1998, p. 263). Em Saramago, no entanto, embora o alter ego seja superior, como considera Booth, o duplo está ligado ainda à questão da morte ou ao desejo de sobreviver, e mediante o alter ego na escrita “o eu se protege da destruição completa” (BRUNEL, 1998, p. 263). No que tange à questão desse possível desdobramento do autor entre seus personagens, verificamos que, no MPC, como usualmente o faz, Saramago, desenvolve vários duplos, como endossa Seixo ao exemplificar os paralelos no romance. Logo à partida: a relação literatura/ pintura, já patente no título, que dá origem à exposição dessa crucial problemática que é a da representação em arte; a relação objectual especular (dois quadros partindo do mesmo modelo e prosseguindo fins diferenciados), repartida entre a mentira e a verdade, a convenção e a autenticidade; a relação (decorrente da anterior) entre a ficção e a realidade, entre a escrita e a vida (SEIXO, 1987, p. 30). Na obra Homem Duplicado, de 2002, Saramago explora com maior acuidade o aspecto da duplicidade de modo a problematizar a originalidade. O protagonista que, ao contrário de H., possui nome e sobrenomes preenchidos (Tertuliano Máximo Afonso) surge como afirmação do personagem que prima pela originalidade num mundo de réplicas. Ao se deparar com o sósia perfeito num filme, ele inicia a investigação sobre a identidade do seu duplicado, buscando encontrar nele algum ponto que os diferenciasse diante de tamanha semelhança. Usando as palavras de Brunel, vemos que “o mito do duplo torna-se aqui a metáfora ou o símbolo de uma busca de identidade” (BRUNEL, 1998, p. 269). Ou seja, ele procura pela individualidade, enquanto no MPC H. se ocupa de expandir os limites do autoconhecimento. Podemos conferir, seja no HD, seja em Levantado do chão (1980), um Saramago capaz de criar personages mais independentes após o MPC. São personagens diferentes de H., que parece se aliar mais a um alter ego do autor. Ainda na entrevista a Carlos Reis, Saramago ressalva que não encontraremos 87 em seus livros referências ao mundo das discotecas e dos bares, porque nada disso lhe interessa. Daí, podemos depreender o que ele pretende dizer ao afirmar que sua autobiografia está em tudo, mormente em seus romances, porque nestes imprime pensamentos, ideais, crenças sutis e descrenças, questionamentos acerca da vida e das relações entre os homens. Aí está, portanto, José Saramago, o menino Zezinho das PM ou o personagem H. sobre o qual podemos concordar com Sousa Rebelo quando o considera uma espécie de heterônimo. O aspecto de heteronímia, ou alter ego, também pode estar relacionado a personagens de outros romances, como é o caso do revisor Raimundo Silva, de HCL, em cujo perfil é possível mencionar a característica peculiar a Saramago: recontar histórias canônicas a partir do critério imaginário, como vemos também no Memorial do Convento, quando reescreve relatos sobre a construção do convento em Mafra e mesmo em O ano da morte de Ricardo Reis, quando romanceia a história do único heterônimo pessoano que permanece vivo após a morte de seu criador. Diante disso, também o personagem Raimundo parece constituir, de forma indireta, uma espécie de alter ego saramaguiano. O fato é que desde o Manual, Saramago declara lançar questionamentos tais como o “que é a verdade? o que é o outro?” (SARAMAGO, apud REIS, 1998a, p. 31) “Como falam realmente de nós os outros? Que somos para os outros? Quem somos para nós?” (MPC, 1998c, p. 41). Isso torna viável que, a espaços, reconheçamos sua presença na composição de um e outro personagem. Igualmente o personagem ascritor do Ensaio sobre a cegueira, negando-se à mesmice, resolve registrar na escrita o caos criado pela epidemia e se soma aos outros duplos, levando-nos a reconhecer a identidade autoral espalhada nas suas obras. Assim sendo, as marcas autobiográficas, de fato, parecem-nos espargidas pelos livros, mas de forma reelaborada em relação ao que de fato ocorreu. São marcas 88 confirmáveis que qualificam a individualidade do autor como produtor do seu discurso. Na composição de H., Saramago parece desencadear esta sucessão de duplos seus possivelmente identificáveis em determinadas obras, já que conforme Costa, no MPC inicia-se o momento em que Saramago, através da objectivação implícita na narração de um relato extenso e do necessário desdobramento que significa a concepção de um personagem – ainda mais um narrador, dá forma de “programa inconsciente” àquilo que a sua subjectivação viera tentando corporificar, sob forma de um produto avaliável. [...] De modo muito significativo, no romance este esforço de objectivação veicula-se através do discurso autobiográfico do narrador personagem, cuja primeira avaliação interpretativa será, não surpreendentemente, como veremos mais adiante, representar alegoricamente o próprio autor (COSTA, 1997, p. 276). Como sabemos, o tema da duplicidade é recorrente em Saramago, assim como é comum também a autobusca do sujeito que, ao final de alguns romances, alcança aquilo que inicialmente sequer pretendia. Esse parece ser o caso dos protagonistas em HCL, RR e no MPC que trazem personagens, a princípio, alienados de si bem como da situação do país. Ricardo Reis desembarca em Lisboa com o objetivo único de visitar o túmulo de Fernando Pessoa, mas mediante a leitura de jornais e por meio do envolvimento com o personagem Lídia, a figura de Ricardo Reis chega alterada ao final do romance. Aos poucos, ele parece se distanciar do mero espectador do mundo, adquirindo uma certa densidade em seu perfil de sujeito alheio a tudo à sua volta. Esse mesmo alheamento em H. se desdobra também até o personagem Raimundo Silva cujo perfil também é alterada a partir de sua aceitação em escrever um romance que dessacralizasse o discurso oficial da história de Lisboa. Aqui, novamente, a escrita se coloca como aquela que garante maior clareza e nova existência ao sujeito, capaz de modificar a realidade, materializando em significantes e significados a imaginação do ser linguístico. É uma perspectiva que contrasta com a ideia de as palavras serem insuficientes. 89 Se pensarmos nos romances saramaguianos como galerias, percebemos que ele transita entre elas numa peregrinação que temos acompanhado a cada novo livro. É uma “identidade narrativa” (RICOEUR, 1997, p. 424) que se tece e marca sua presença na apropriação da palavra e tal identidade reconhecível constitui parte da autobiografia que não cabe dentro das singelas pequenas memórias, daí a busca por reconstituir seus passos autobiográficos a partir de uma visão mais abrangente da sua obra. Afinal, como o próprio afirma acerca de sua presença nos livros [...] o que há ali são livros que eu, como cidadão, como pessoa que sou, diante do tempo, diante da morte, diante do amor, diante da ideia de um Deus existente ou não, diante das coisas que são fundamentais (e que continuarão a ser fundamentais), procuro colocar ali o conjunto de dúvidas, de inquietações, de interrogações que me acompanham (SARAMAGO, apud REIS, 1998a, pp. 30-1). Também o caráter descontextualizador de Saramago, frequentemente em posição de defesa em relação aos indivíduos marginalizados pela cultura, parecem revelar a sua preocupação com os sinais que possam identificá-lo. Ao mesmo tempo, há a consciência de que pode mostrar o inverso de si ao desejar descrever suas ideias, como aponta no primeiro diário da sequência Cadernos de Lanzarote: Queria eu dizer então que, vivendo rodeado de sinais, nós próprios somos um sistema de sinais. Ora, trazido pelas circunstâncias a viver longe, tornado de algum modo invisível aos olhos de quantos se habituaram a ver-me e a encontrar-me onde me viam, senti (sempre começamos por sentir, depois é que passamos ao raciocínio) a necessidade de juntar aos sinais que me identificam um certo olhar sobre mim mesmo. O olhar do espelho. Sujeito-me portanto ao risco de insinceridade por buscar o seu contrário (SARAMAGO, 1997, pp. 9-10). No entanto, como o próprio não se escusa de legitimar, a mesma face conferida em seus registros autobiográficos romanceados, ou não, encontra-se sujeita a alterações, já que sua identidade está eternamente em processo de autoconstituição, sensível e suscetível a desfazimento, como quando cita nos Cadernos de Lanzarote, fragmento que já aludimos. “Seja como for, que os leitores se tranquilizem: este 90 Narciso que hoje se contempla na água desfará amanhã com a sua própria mão a imagem que o contempla”. (SARAMAGO, 1997, p. 10). Como vimos falando, no MPC vemos Saramago recriar a feitura da autobiografia, inventado memórias que atribui ao protagonista H. Muitos dos elementos característicos do pacto autobiográfico aparecem no romance, como, por exemplo, a escrita em primeira pessoa e os relatos com aparência de realidade. Os critérios, segundo Lejeune, dão-se no nível do discurso, apesar de a história narrada não guardar, declaradamente, nenhum tipo de identidade com o escritor Saramago fora do texto. O Manual corresponde ao que consideraríamos por contrato ou “pacto romanesco” (LEJEUNE, 1996, p. 29), no qual se nega a identidade entre José Saramago e o personagem principal mantendo, com isso, o valor ficcional. Contudo, cabe-nos questionar sobre a pureza desta ficcionalidade. Até que ponto, nestas memórias inventadas, não está presente uma forte dose da subjetividade do escritor Saramago? Como sabermos se as descrições de viagens e as demonstrações de sensibilidade diante das obras plásticas em museus na Europa não pertencem à experiência do próprio Saramago? Por outro lado, os autores de romances, a espaços, não emprestam emoções íntimas aos seus personagens? Se de uma parte, no Manual, Saramago encena a produção de uma escrita autobiográfica – selecionando “confissões”, imaginando-as – nas PM as experiências não estariam também, em parte talvez, condimentadas pela imaginação? É-nos pertinente lembrar a afirmação na entrevista de Saramago a Reis, quando afirma “Todos nós somos seres de ficção” (SARAMAGO, apud REIS, 1998a, p. 63). Diante disso, os limites entre verdade e sua versão problematizam-se, como Madruga elucida a propósito do pacto autobiográfico selado por Saramago no MPC: “Ao chamar-lhe 91 autobiografia, coloca-se, e coloca-nos, perante a questão, sempre irresolúvel, de saber qual a verdadeira relação entre realidade e ficção” (MADRUGA, 1998, p. 22). Nas PM, Saramago também evidencia a consciência de ser fruto de uma civilização que, por sua vez, se constitui a partir de heranças de subjetividade apreendida em outras culturas, formando o que Carl Jung denomina, numa visão psicanalista, como inconsciente coletivo, tal qual aponta a passagem das PM: Às vezes pergunto-me se certas recordações são realmente minhas, se não serão mais do que lembranças alheias de episódios de que eu tivesse sido actor inconsciente por me terem sido narrados por pessoas que neles houvessem estado presentes, se é que não falariam, também elas, por terem ouvido contar a outras pessoas (PM, 2006, p. 58). Afinal, como afirmava Eco “os livros falam sempre de outros livros e toda história conta uma história já contada” (ECO, 1983, p. 20). Assim que expressa a herança cultural, o Eu a compreende, a torna sua, passando a habitar em seu inconsciente, como diz Symkowiak. Assim que eu compreendo realmente o pensamento de um filósofo, este pensamento se torna meu; ele não é mais de Kant ou de Descartes, mas sim isto que eu pressinto, sem o reconhecer e que, na formulação do outro, me permite isolar e determinar. E a leitura não é, neste sentido, diferente de uma forma de diálogo onde eu ajusto sem cessar meu pensamento sobre o de meu interlocutor. Meu pensamento na conversação não é outra coisa que minha palavra; ele não é senão esta palavra e sua abertura, suas variações infinitas e sua adaptação ao sentido do que se diz (SYMKOWIAK, 1999, p. 11)16. Incorporando interpretações alheias, tudo o que H. lê adquire conotação pessoal, porque filtra em sua rede subjetiva, como quando confessa que se apodera de pensamentos impessoais que se tornam seus e personalíssimos à medida que os 16 “J'ai donc bien comprendre la pensée d'un philosophe, c'est ma façon de penser, il n'est pas plus de Kant ou de Descartes, mais ce que je pressinto sans la reconnaissance, et que, dans la formulation de l'autre, me permet d'isoler et de déterminer . Et de la lecture n'est pas, dans ce sens, différents d'une forme de dialogue où j’e ajuste sans ma réflexion sur la fin de mon interlocuteur. Ma pensée dans la conversation n'est pas une chose que ma parole, ce n'est que ce mot et de son ouverture, ses infinies variations et leur adaptation à l'idée de ce qu'ils disent” (SYMKOWIAK, 1999, p. 11). 92 absorve: Estas coisas que escrevo, se alguma vez as li antes, estarei agora imitando-as, mas não é de propósito que o faço. Se nunca as li, estou-as inventando, e se pelo contrário li, então é porque aprendera e tenho direito de me servir delas como se minhas fossem e inventadas agora mesmo (MPC, 1998c, pp. 91-2). No MPC, em meio à crise de identidade, H. reflete sobre o meio social que molda a consciência do homem que se transforma no resultado de subjetividades anteriores construídas ao longo do tempo, como aponta: “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência” (p. 195). É possível identificar marcas de certa subjetividade contemporânea espargidas nos romances quando o pintor-escritor revela-se fruto da sua civilização que, em sua própria constituição, também se forma por intermédio e influência de outras. Embora a escrita fermente um novo ser de natureza literária, ou o “homem triplo” (p. 13), mesmo ela possui dupla face por se colidir, a espaços, com a presença do subjetivismo formado e cristalizado na identidade do autor empírico. O autor parece movimentar-se sutilmente para dentro da ficção, deixando, assim, honradas as assinaturas de um Eu taciturno que revela a impossibilidade de isolamento definitivo diante daquilo que escreve. O complexo de Narciso aqui está na reatualização de memórias personificadas pelo poder demiúrgico da escrita que lhe dá uma certa corporeidade, algo palpável do passado que o sujeito deseja reencontrar. O fato é que tais duplos e as marcas de subjetividade confirmam a realização de uma identidade narrativa que, apenas no texto, consegue reunir os estilhaços de si e compor algo para além do que conhece a seu respeito. Como se, de forma inocente, estivesse juntando todas as folhas que caíram de si próprio. Pelo lado de dentro do discurso, atrás da criação de H., o autor Saramago pulsa, e, embora a sua voz ceda lugar à do personagem, a narrativa em 1ª pessoa não 93 revela nem silencia definitivamente a presença autoral. Aqui, localizamos a presença do “autor implícito”, segundo a concepção de Booth quando diz que “é sempre distinto do ‘homem sério’ – seja o que for que pensemos dele – que cria uma versão superior de si próprio, um alter ego, tal como cria a obra” (BOOTH, 1980, p. 167). Mas tal jogo entre autor implícito, narrador e personagens só pode se tornar concreto por intermédio do leitor, já que na leitura tais posicionamentos convergem, direcionando-se a este fim. 4. 2. O OUTRO E SUAS REPRESENTAÇÕES [...] todo o sentido deste livro parece concentrar-se na passagem do duplo [...] para a duplicidade coincidente que é o encontro perfeito do outro e do mesmo (SEIXO, 1987, p. 31). No MPC, variadas manifestações do Outro se revelam, ainda que este Outro seja um dos Eus do mesmo autobiógrafo. Como sublinha Lacan, o sujeito desenvolve a subjetividade no campo do Outro (podemos ler esse Outro no campo da linguagem e no campo da representação). Assim, “o Outro é o lugar em que se situa a cadeia de significante que comanda tudo que vai poder se presentificar do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer” (LACAN, 1985, pp. 193-4). Em análise sobre a questão da outridade, Barthes explica a existência do Eu condicionada à existência de um Tu. A interlocução justifica o sujeito que intenta falar de si: “A linguagem, e, portanto, o mundo inteiro articula-se sobre essa forma: eu/ tu” (BARTHES, 2004, p. 212), ainda que esse Tu seja o próprio sujeito, ou um desdobramento seu que aparece somente no decorrer da escrita. Afinal, segundo Terezinha Bittencourt, Pelo ato de comunicação, o sujeito rompe as barreiras do seu isolamento existencial; abandona a mera condição de ser para si e se 94 transforma em ser com outros e para outros (BITTENCOURT, 1003, p. 43). Ao mencionarmos o termo Outro, supomos, necessariamente, um ser na presença de outros sujeitos, ao menos intencionalmente. Ele se serve, portanto, da linguagem para satisfazer a necessidade de se relacionar com outros indivíduos e com o mundo. Contudo, no MPC, o personagem autobiógrafo problematiza não apenas a escrita do Eu, ou de um Tu na representação desse mesmo Eu como um ser literário. A outridade aqui também ocorre de outra maneira, como quando H. tenta realizar a pintura extra do cliente S. Há ainda o Outro sob o enfoque da figura feminina que parece vir arejar a escrita com uma densidade mais poética, sinalizando, assim, mais uma nova dimensão de outridade. No MPC, a partir de dado momento, a mulher também se torna uma espécie de guia que auxilia o sujeito na trajetória de autobusca, marcando a nova fase da escrita de H. não mais intitulada de “exercícios autobiográficos” (MPC, 1998c, p. 127). No tocante à presença feminina, Oliveira destaca o papel mítico dos personagens, e a mulher parece assumir também o papel de guia, alternando-se com o Outro quando da reprentação escrita Neste romance seminal de Saramago, estão presentes as imagens de Teseu – um primeiro H. -, de Ariadne – a mulher designada por M. – e a de Dionísio – o segundo H., um Teseu já transformado que é capaz de completar sem medo o próprio eu sob a forma do autoretrato (OLIVEIRA, 2001, p. 2). Desta forma, nas obras do autor, “o perfil de herói parece envolver três actantes: o protagonista pré-iniciático, a mulher adjuvante e, finalmente, o personagem pós-iniciado, transformado pela experiência” (OLIVEIRA, 2001, p. 2). Aqui, a escrita faz presente o que está ausente e, assim, escrevendo a mundividência pessoal, o Eu clandestino sai da caverna para ser visto e sugere a mulher ideal, como uma espécie de novo ser, já que Saramago procura, com isso, “acrescentar à 95 população mundial umas quantas pessoas mais, que são diferentes das que costumam aparecer noutros romances” (SARAMAGO, apud ARIAS, 2000, p. 48). A partir da projeção que a escrita leva aos recônditos do sujeito, fica visível que sua evolução como ser humano acontece mediante o poder expressivo e cognoscível da língua. M. é o Outro no sentido de próximo, semelhante e companhia necessária para o sujeito se construir, porque se o deserto é importante, também o é a interatividade do sujeito com o Outro. É com ela que H. pratica a atividade linguística mais diretamente. É hora de o monólogo ceder lugar ao diálogo, uma vez que nenhum ser se constitui em absoluta solidão. Graças à presença de M., militante política que, com o perfil atuante, H. reconhece a própria inércia frente às questões políticas de Portugal na década de 70. Aqui, a escrita funciona como um dos espelhos onde o sujeito se mira e focaliza suas diferenças, de modo que o monólogo de H. salta até o diálogo com M. e promove alterações no pintor, daí Maria Alzira Seixo concluir que [...] todo o sentido deste livro parece concentrar-se na passagem do duplo descoincidente [e por isso alheado, insatisfeito, insituado] para a duplicidade coincidente que é o encontro perfeito do outro e do mesmo (SEIXO, 1987, p. 31). Segundo Horácio Costa, o papel da mulher M. surge como um personagem concebido, providencialmente, em termos pedagógicos, para acentuar a importância do Outro no processo identitário do sujeito. Contudo, segundo ele, a figura de M. parece chegar tardiamente ao romance. Isso vem sugerir “a dificuldade do autor no seu primeiro romance ‘adulto’, para construir um enredo tão completo, em termos de economia de relato” (COSTA, 1997, p. 317), já que nos romances seguintes a figura feminina não aparece ao final da narrativa, mas faz parte de todo o processo textual, constituindo, assim “as espinhas dorsais dos enredos” (COSTA, 1997, p. 316). O surgimento de M. apenas nas páginas mediais do romance também vem indicar mais um momento que marca o Manual como uma obra de transição em que a veia 96 romancista de Saramago está desabrochando, se considerarmos que nas obras seguintes as personagens femininas são concebidas desde os primeiros parágrafos. Nas PM, no entanto, não há uma presença com tal perfil, embora exista referência a primeiros contatos de Saramago com uma mulher, num sentido mais voltado para o erotismo juvenil do que para um relacionamento mais maduro. Segundo Dufour, o Outro se apresenta de variadas formas ao longo da história, na imagem de Deus, da natureza, da família, O ser humano é uma substância que não recebe a própria existência de si, mas de um outro, a que sucessivas ontologias atribuíram nomes diversos: a Natureza, As idéias, Deus, ou... o ser (DUFOUR, 2001, p. 2). ou da que vemos em Saramago, quando se dá sob o enfoque feminino e do ato da escrita. Na entrevista a Arias bem como a Reis, Saramago responde a perguntas sobre política, sociedade contemporânea, suas obras e personagens em particular, e também se pronuncia sobre temas consideravelmente pessoais, como o amor e a figura de Deus. Em ambas, a questão de si e do Outro atravessa o autor nas suas reflexões extraliterárias e, por isso, iremos destacar alguns diálogos como contribuição para esta pesquisa, dada à relevância de determinadas respostas em caráter confessional e, poderíamos dizer, autobiográficas, já que Saramago acaba por redigi-las, traduzindoas, em seguida, do espanhol para o português. Ao ser questionado se não se arrepende de afirmar a frase “Vivemos para dizer quem somos”, Saramago declara que ainda concorda com o que disse, mas acrescenta que a disse em face à impossibilidade de alguém dizer absolutamente quem é, pois há mistérios e obscuridades que o sujeito não desvendará sobre si mesmo e sobre o outro que ficam aquém do seu conhecimento. “Vivemos para dizer quem somos”, e disse-o com toda sinceridade do mundo, mas também é certo que, provavelmente, tratava-se 97 afinal de uma tentativa de disfarçar a impossibilidade de dizer quem somos e para que vivemos. [...] estamos sempre a procurar conhecer o outro. E se procurarmos conhecer o outro de uma forma directa ou indirecta, voluntariamente, também estamos a procurar dizer quem somos. Mas o que é que significa dizer realmente quem somos? Provavelmente muito menos do que prometi nessa frase, porque a verdade é que há portas nossas que estão e que continuarão fechadas (SARAMAGO, apud ARIAS, 2000, p 21). Quando Arias lhe pergunta acerca de tais portas, Saramago alude ao MPC, endossando o processo de mudanças comum ao indivíduo como vemos no seguinte momento da entrevista: É que, afinal, certamente não sabemos quem somos e tudo o que vamos dizendo não são mais que reflexos, a prova é que não somos os mesmos em cada momento da nossa vida. [...] O que é que muda? É como se fossemos dois: um que muda e outro que assiste à mudança (SARAMAGO, apud ARIAS, 2000, p. 22). Na perspectiva de crença no semelhante como apoio para que a construção da identidade do sujeito se dê continuamente, Arias lhe pergunta se se vê repetindo palavras que outros lhe disseram, sobre as quais sequer se dá conta como algo que já lhe seja intrínseco. Saramago responde, sublinhando a importância do Outro – no sentido lacaniano que vimos falando – ou interlocutor barthesiano, capaz de influenciar sobremaneira o indivíduo. Sim, e repito coisas que de uma forma passiva ficaram coladas e impregnadas dentro de mim. Estou a dizer coisas que não são minhas. Bom, mas na verdade, que coisas são minhas? Por isso digo que nós somos feitos de papel, porque o ser humano cultivado é feito de papel. O que é verdadeiramente nosso? Muito pouco, quase nada. Provavelmente, somos todos os outros (SARAMAGO, apud ARIAS, 2000, p. 84). A interatividade linguística e as noções de cumplicidade entre o sujeito e o Outro perpassam todo o MPC, e é evidente a concepção de que o sujeito depende do Outro para a realização das mínimas necessidades como afirma Szymkowiak: Sans doute la division croissant du travail et l’interdepéndance économique qui caractérisent l’époque contemporaine nous permettent-elles de percevoir de maniére particulièrment sensible ce lien étrot qui fait de nous, que nous le voulions ou non, les membres d’un, les membres d’un organisme gigantesque dont la survie est 98 conditionnée para l’activité (SZYMKOWIAK, 1999, p. 11)17. de chacun des membres O Outro, mesmo o sujeito literário que se revela no ato da narrativa, é parte essencial para a comunicação. Conforme o autor ressalta, o fato de o sujeito conhecer pouco a respeito de si o leva, muitas vezes, a se surpreender consigo diante de circunstâncias que falam por si mesmas. E mesmo quando Reis questiona Saramago sobre a sua possível evolução enquanto escritor, ele responde que a prática o conduziu a um aperfeiçoamento, de modo que isso somente se deu em vista da presença dos leitores, o Outro cativado. Em cada momento que eu estava a escrever um livro ou em que o publicava, eu tinha sido um escritor ou estava a ser um escritor. Mas isso não me transformava em escritor. Encontro-me escritor quando, de repente, a partir do Levantado do chão, mas sobretudo a partir do Memorial do convento, descubro que tenho leitores. E foi a existências dos leitores [...] que me levou a continuar a escrever (SARAMAGO, apud REIS, 1998a, p. 30). Parecem instigantes ainda as variadas manifestações do Outro nas obras saramaguianas. Conforme coloca Lacan, o primeiro Outro com o qual o sujeito tem de lidar é a figura materna (LACAN, 1985, p. 207); em seguida, o Outro pode incorporar o sentido da subjetividade/ inconsciente e adquire a representação de um Tu social, pessoa física para além do sujeito. Diante disso, a figura feminina adquire papel significativo auxiliando no autoconhecimento do personagem masculino, impulsionando-o, tal como sugere Madruga, conduzindo a atingir “a maioridade, a individualidade, a plenitude, o conhecimento de si próprio, que ele concretizará no seu auto-retrato, tantas vezes perseguido, outras tantas adiado” (MADRUGA, 1998, p. 25). H. atira-se para dentro da escrita e narra a dupla aventura iniciática: transformar 17 “Sem dúvida, a divisão do trabalho e a interdependência econômica que caracterizam a época contemporânea nos permitem perceber de maneira particularmente sensível este estreito liame que faz de nós, queiramos ou não, membros de um gigantesco organismo no qual a sobrevivência é condicionada pela atividade de cada um dos membros”. 99 em códigos linguísticos tanto as experiências de viagem à Arte na Itália, quanto à prática da autorreflexão, por meio de exercícios de caligrafia. A ela também é conferida a função de leitor que se envolve pela leitura dos exercícios autobigráficos de H.: “‘Amanhã vamos buscar o António.’ M. apertou-se muito contra mim. ‘E um dia destes dar-te-ei uns papéis que aí tenho. Para leres’. ‘Segredos?’ ‘Não. Papéis. Coisas escritas’” (MPC, 1998c, p. 277). Segundo Rebelo, “M. traz à vida de H. o alvoroço e as preocupações graves de um mundo muito diferente do seu [...]. O seu aparecimento inaugura o lado solar da narrativa, sendo precedido de uma aura antecipatória de mal indefinidas mudanças”. (REBELO, 1983, p. 35). Agora, inicia-se a fase dos longos diálogos interiores e a narrativa ganha uma claridade e natureza filosófica diferentes dos cinco exercícios de autobiografia, em forma de narrativa de viagem, e se torna menos superficial indo além dos meros relatos diários. São distinções sobre as quais H. reflete, explicando o novo momento do seu texto: Há nele (pelo menos é o que me parece) um outro e melhor fôlego narrativo, mais cuidado no estilo e aquele ar composto de quem já se sabe observado. Ambos os exercícios estão ligados, tanto no tempo que descrevem como no tempo em que os escrevo, mas o primeiro é desprevenido, isento, inocente, e este agora tornou-se literário (MPC, 1998c, p. 127). Passado esse “tempo de espera”, como coloca Madruga (MADRUGA, 1998, p. 25), assoma o tempo em que o Outro se torna importante no caminho do indivíduo. É a fase da atmosfera luminosa em que H. parece encontrar, finalmente, a firmeza do traço que o leva a planejar a feitura do autorretrato seu e de M., ainda que esta realização não venha a lume, porquanto, como destaca Rebelo, “Saramago abomina as simplificações e o Manual não propõe soluções fáceis ou de compromisso” (REBELO, 1983, p. 36). De certa forma, M. alegoriza a relevância do externo sobre a interioridade do 100 indivíduo. Correspondendo à noção de Outro, M., imagem completamente distinta de H exerce certa influência sobre o escritor-pintor-narrador servindo, talvez, de exemplo para H. iniciar uma relação mais atuante na sociedade portuguesa da época, uma vez que ele se apresenta indiferente aos acontecimentos em Portugal às vésperas da Revolução dos Cravos. Ela é um espelho a mais fazendo H. enxergar as disparidades entre o que é e o que deseja se tornar. Diante do ensimesmamento de H. sempre alheio, M. vem despertá-lo da condição de escritor solitário, voltado para as questões de ordem pessoal, sob as quais estivera soterrado. Podemos dizer que a mulher representa a influência do Outro, já que é importante para que o sujeito continue constituindo a sua identidade. O reencontro consigo ou a recuperação do espaço esvaziado pela perda de referências parece ocorrer com a presença do Outro-mulher, o que se revela no equilíbrio que encontra entre pintar e escrever. Não se trata, porém, de pensarmos na mulher como transformadora do sujeito H. Observamos apenas que o relacionamento entre ambos também provoca mudanças em H., a saber, o fato de que, até então, suas relações afetivas até então marcadas por situações meramente superficiais, diante das quais H. mostra-se arredio e distante. Para tanto, vencido o desafio de conseguir escrever, a linguagem revela-se como aquela que dá sentido ao mundo e o escrepintor evidencia as modificações em si em relação ao início da narrativa. Neste ponto, a escrita se dá como transformadora e reveladora, como declara Madruga (MADRUGA, 1998, p. 25), e H., assim, está pronto para fazer o caminho rumo à pintura do autorretrato: Esta escrita vai terminar. Durou o tempo que era necessário para se acabar um homem e começar outro. Importava que ficasse registado o rosto que ainda é, e se apontassem as primeiras feições do rosto que nasce. Foi um desafio a escrita. Outro desafio faço ainda, mas no meu terreno verdadeiro: que seja capaz de pôr nesta tela o mesmo que ficou nestas páginas (MPC, 1998c, p. 274). 101 H. reconhece que o autoconhecimento, a escrita e a realidade estarão constantemente por se constituir, desdobrando-se ao infinito, ao passo que tanto o sujeito quanto os modos de representações simulam momentos irrepetíveis: “Um homem avança por espaços, por salas povoadas de rostos e figuras – e certamente não sai sendo o que era, ou mais lhe valera ter passado de largo” (MPC, 1998c, p. 108). A ideia de que a escrita poderia representar de maneira transparente o real aqui se dilui, não obstante tenha promovido a certeza de que homem e linguagem participam, pois, da mesma natureza, como assinala Foucault (FOUCAULT 1995, p. 51). São indissociáveis e, enquanto expressividade, inacabados, deslizantes, impalpáveis porque “a identidade é realmente algo formado ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento” (HALL, 2006, p. 38). Desta forma, o sujeito ficcional de Saramago traz seu testemunho de que a arte é apenas parte do autor e de que ele não conseguirá jamais solidificar na arte a individualidade. A escrita viabiliza a expressividade do Outro, do Eu subjacente, bem como torna patente a importância da interação do Eu com Outros, para afirmar sua própria existência. O Eu precisa de um Tu e a escrita é aqui a ponte até o Outro, mesmo que este Outro se trate muitas vezes dele próprio. O locutor precisa de um interlocutor, de modo que o contato possa se estabelecer. Tudo isso nos leva a pensar na autobiografia – ficcional ou não – como o lugar do Eu em plena necessidade de entrar em comunhão, sobretudo, consigo mesmo. 102 4. 3. O FINGIMENTO NA DRAMATIZAÇÃO DE PRIMEIRA PESSOA [...] só há uma maneira de retardar o tempo: é viver o tempo de outrem (MPC, 1998c, p. 128). Ao longo desta pesquisa, as diferenças e os pontos de contato entre MPC e PM vêm sendo apontados, embora exista uma maior inclinação em verificar o personagem H. como um heterônimo do que analisar o pequeno Zezinho assumidamente autobiográfico das PM. Isso se dá, certamente, devido à densidade textual do Manual que reflete as questões existenciais do pintor em crise, buscando uma linguagem mais pessoal de expressar sua arte, bem como a problematização da própria representação, seja de si, ou do mundo ao seu redor. Daí ser importante dedicar um único capítulo às possíveis dramatizações de Saramago tanto personagem H. quanto no pequeno José de Sousa Saramago propriamente e, com isso, identificar as nuanças do fingimento na dramatização de primeira pessoa. Como explicamos no decorrer deste trabalho, refletir sobre As Pequenas Memórias é ter de recuar, amiúde, até a tessitura de escrita memoralística do Manual, em virtude de localizarmos, no romance, rastros autobiográficos disponibilizados por Saramago, perseguidos por nós desde então. Recorremos com maior frequência às memórias imaginárias do Manual, por considerarmos o romance com mais densidade e riqueza de reflexões sobre as questões autobiográficas. Como já nos referimos, entes das PM Saramago se dedicou ao conjunto de diários Cadernos de Lanzarote. No entanto, esta narrativa é mais restrita aos bastidores dos romances, os arredores da ficção que compõem, uma espécie de making off da produção literária, retratando a metalinguagem que aflora o lado mais vaidoso do escritor. Nas PM, “outrando-se, pela escrita, no Zezinho que foi” (SANTOS, 2007, p. 6) no entanto, Saramago detém- 103 se a narrar mais sobre a infância, não problematizando o ritual da escrita literária como ocorre no Manual. Neste romance o personagem H. também se refere à infância, mas apenas evocando lembraças infantis, medos de figuras monstruosas, o mesmo medo que, por vezes, o acomete na vida adulta. Assim, se “só há uma maneira de retardar o tempo: é viver o tempo de outrem”, como confessa no Manual (MPC, 1998c, p. 128), não seria errôneo se pensássemos no pequeno Zezinho, das PM, como uma versão sua que José de Sousa Saramago, amadurecido, busca reviver. Ele resgata sentimentos pretéritos de outra parte de si, adormecida. O conceito de “versão” também é utilizado por Antonio Candido quando ressalta a precariedade no ato de reconstituir o real em sentido absoluto: Primeiro, porque é impossível captar a totalidade do modo de ser duma pessoa, ou sequer conhecê-la; segundo, porque neste caso se dispensaria a criação artística; terceiro, porque, mesmo se fosse possível, uma cópia dessas não permitiria aquele conhecimento específico, diferente e mais completo, que é a razão de ser, a justificativa e o encanto da ficção (CANDIDO, 2005, p. 65). Nas PM um Eu literário, saído das sombras no ato da escrita, aparentemente confronta-se com o autor Saramago, à medida que levanta dúvidas sobre os fatos narrados, como quando relembra a morte do irmão caçula: “É falsa a única memória que guardo do Francisco? Talvez seja, mas a verdade é que já levo oitenta e três anos tendo-a por autêntica...” (PM, 2006, p. 110). O fato é que aqui Saramago menciona que mesmo as recordações de experiências vividas podem se tornar inverdades, coexistindo no mesmo espaço com a verdade, pois a credibilidade depositada nelas as torna reais. É como se, por trás das cortinas da ficção, o MPC não se distanciasse demasiado das PM, pois também na autobiografia podem existir inúmeros traços ficcionais envolvidos no resgate de memórias. A própria essência do termo memória remonta à ideia de recriar, inventar e fingir, elementos componentes de toda obra de 104 ficção. Afinal, como conclui Iser: “há no texto ficcional muita realidade que não só deve ser identificável como realidade social, mas que também pode ser de ordem sentimental ou emocional” (ISER, 2002, p. 960). Na entrevista a Reis, Saramago, de certa forma, confirma essa noção de heteronímia: “Pode-se dizer que o pintor do Manual de pintura e caligrafia se aproxima muito de mim” (SARAMAGO, apud REIS, 1998a, p. 100). Assim, se o ancoramento do indivíduo, na escrita de si, destaca-se, em princípio, numa autobiografia homônima, nesta heteronímia também vemos, no processo de criação da narrativa, o autor-escritor movendo-se continuamente entre aquilo que “é” e o que poderia “ser”. Desta forma, é possível identificar uma certa semelhança entre o pintor de MPC e o próprio Saramago, porque ele parece repetir H. nas PM. Afinal, depois de inúmeros “outros” (personagens), Saramago mostra-se tentado a escrever sobre si mesmo, como H. quando começa a escrever autobiografias alheias em primeira pessoa. Tanto MPC quanto às PM, de um modo amplo, parecem promover um espaço particularizado onde o sujeito cultua a si e ao Outro em suas relações à medida que avança pelo terreno da escrita. Como esclarece Conceição Madruga em relação ao MPC, aqui “escrever é mostrar-se, dar-se a ver. É um olhar que se volve para o Outro. No ritual invocatório da escrita, este romance é o espaço de pura afirmação do ser” (MADRUGA, 1998, p. 23). Enquanto exercita a autorreflexão, H. sai de uma espécie de cela solitária, onde tudo na sua realidade é vazio e caótico e, então, a partir da escrita, este outro Eu passa a existir. Em outras palavras, para H. escrever torna-se “um vício de míope que para ver bem tem de olhar de perto, graças ao que lhe acontece, sem o merecer por outras razões, descobrir o que só de perto se pode ver” (MPC, 1998c, p. 24). Tais exercícios que o preparam para uma autossegurança, aflorada na parte final da escrita, 105 aparentemente são também para o escritor Saramago que se lança ao desafio de criar não só um novo personagem, mas também de expressar sua potencialidade como escritor de romance. A renovação que H. busca dar a sua existência advém do poder criativo que pressupõe todo o processo imaginativo do qual esteve apartado na primeira fase, quando apenas decalca a realidade, repetindo comportamentos, sem interferir de forma mais pessoal, menos decorativa. A posição do artista, num tal contexto, é de apagamento. A ruptura a operar tratará, então, de recusar à estabilidade cómoda e esvaziada de ousadia que é daquela pintura figurativa e primeiramente realista, ao mesmo tempo que será valorizada a representação da pluralidade (SARAMAGO, apud REIS, 1998a, p. 16). Desta forma, ao exercitar experimentar a escrita em 1ª pessoa por meio do personagem H., Saramago aprimora a veia romanesca e revela as mudanças talhadas em si próprio, que o levou a renascer numa fase de novo desvendamento profissional, longe da edição de jornais e da serralheira mecânica. No MPC ele experimenta uma nova possibilidade de ser ele mesmo e, por isso, o romance corresponde, segundo Costa, como um “campo de experimentação” (COSTA, 1997, p. 287). H. como dramatização do Eu saramaguiano manifesta o anseio de Saramago por uma forma de expressividade na qual possa se reconhecer – e se fazer reconhecer – que o edifique nas posições de escritor, narrador e autor. Nas PM esta tríade manifesta-se de forma clara, contrastando com o Manual em que apenas é possível captar, nas experiências pessoais, a sustentação de capítulos importantes que remontam à trajetória da sua formação como escritor. No Manual, fatos da vida de Saramago estão presentes no texto literário conferindo mais densidade à narrativa, como o episódio em que o personagem H. segura o crânio do pai, dramatização de um fato ocorrido com Saramago (SARAMAGO, apud ARIAS, 2000, p. 64). A narrativa sobre H., um homem maduro que, aos cinquenta anos, encontra-se em crise diante do seu trabalho, também representa o próprio Saramago que aflora como romancista 106 depois desta idade, como sublinha: [...] aos cinqüenta e oito anos, quando ninguém espera que esse senhor escreva algo (porque se não o escreveu antes, já não o vai escrever) publica Levantado do chão [...]. Eu tinha chegado a uma idade em que se começa a dizer adeus, não se chega, despede-se (SARAMAGO, apud ARIAS, 2000, pp. 66-7). O vazio diante da mesmice no campo afetivo, o conflito existencial entre pintar ou não obecendo as regras somados à própria crise histórica de Portugal, que sai do regime salazarista, todas estas circunstâncias romanceadas dão profundidade histórico-ética ao enredo e afetam a escrita do romance, valorizando sua importância como um romance pontilhado de fatos pessoais da vida do autor, além de seu caráter como obra de estreia. Assim, recuperando as reflexões de Costa, se somarmos o facto de que Manual de pintura e caligrafia corresponde exemplarmente a uma fase de transição na obra e na vida de seu autor, provavelmente vivida por ele mesmo como uma etapa eminentemente crítica, teremos a dimensão não apenas da vinculação entre criador e criatura como também uma melhor compreensão das importâncias do romance no contexto evolutivo geral da sua obra (COSTA, 1997, p. 278). É por perceber as características desta evolução de Saramago no MPC que podemos pensar que, no romance, desenham-se muitas feições pessoais do autor, e sobre as circunstâncias que rodeiam o momento histórico desta escrita que é parte fundamental da identidade saramaguiana, na condição de sujeito cidadão português. Podemos pensar ainda que a luta do personagem em relação ao próprio silêncio seja, de fato, uma crítica do autor em relação à ditadura de Salazar que reprimia a expressevidade das pessoas. Horácio Costa aponta mais outra questão emblemática por trás das trangressões do personagem quando da recusa às cópias e à repressão por comodismo. Segundo ele, é possível que o personagem H. encene o desejo de Saramago de escrever sem sinalizações. E assim o retiro para dentro de si, levando a escrita como companhia, pode neste sentido representar o processo de maturação dos dois sujeitos – autor empírico e personagem. Conforme explica Costa: “o personagem 107 recupera, mergulhando na sua experiência existencial, o seu discurso subjetivo. [...] ao optar por uma linguagem artística contra a convencional que lhe dera nomeada no restrito círculo social”. Desta forma, parece “recuperada a sua dignidade, o seu autorespeito e não é demais dizê-lo, a sua identidade como artista” (COSTA, 1997, p. 305). Convém lembrar que o Manual é o primeiro e último romance em que Saramago obedece às sinalizações convencionais, já que desde então o autor opta pelo discurso que mais se aproxima da oralidade, algo inovador na literatura. H deseja uma liberdade para pintar os retratos de forma mais original, sugerindo que também Saramago aspira pela liberdade de produzir romances da maneira nova, sem que tenha de repetir as ortodoxas regras narrativas de ficções anteriores no panorama da literatura. Outra interseção entre Saramago e H. pode ser detectada quando, em entrevista a Arias, ele fala sobre sua recusa em incluir o primeiro livro publicado na bibliografia. Como H., que interrompe a pintura por se considerar incapacitado de alçar maiores voos, Saramago também, em dado momento de sua vida, para de escrever após a escrita deste primeiro livro, porque reconhece sua imaturidade como escritor: “com aquele romance e com o seguinte, o que ficou inédito, foi evidente para mim que não tinha muitas coisas para dizer e que, portanto, o melhor era parar de escrever” (SARAMAGO, apud ARIAS, 2000, pp. 80-1). Os dois empreendem caminhos estéticos mais audaciosos e é a partir desse ponto de interseção que podemos, na posição de leitores, fazer as colagens, ou emendas entre H. e Saramago, levando-nos a intuir que, no MPC, há decerto muito de autobiografia saramaguiana de forma ficcionalizada. Contudo, a identidade entre criatura e criador que, verdadeiramente, interessa a no sentido de Saramago deixar rastros biográficos seus naquilo que 108 escreve, fazendo de sua obra um depósito de suas ideias e de tudo o que acredita e repudia. Nesse sentido, sobretudo, H. reune traços particulares do autor. A escrita torna-se espaço profícuo para que uma nova construção de identidade de H. – e de Saramago também – ocorra efetivamente, propiciando-lhe que se redescubra, se reinvente, como ocorre quando alude à escrita como local de nascimento, ou, podermos pensar, de renascimento: “O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que, pela primeira vez, lançamos um olhar inteligente sobre nós mesmos”. (MPC, 1998c, p. 96). A folha em branco é o lugar de nascimento, renascimento, de preenchimento de um vazio, de um autoconhecimento inesperado capaz de gerar um novo ser que se forma na escrita, já que no início do romance a escrita de H. se mostra consideravelmente caótica mas que se encaminha doravante a uma maior coesão interna. Se não for lugar de nascimento, o MPC parece corresponder a um manual de sobrevivência, mediante o qual aquele que se descreve edifica-se e encontra a redenção em meio à peregrinação de sua narrativa. Com efeito, o local de origem do romance autobiográfico é o do indivíduo em sua solidão, no comprometimento de criar na linguagem, ouvindo apenas a própria voz que o orienta a mapear seu deserto e a trabalhar de forma quase artesanal sobre si mesmo, como endossa o recorte de H.: “Aparece por trás de mim um perfil talhado a enxó, e ouço a voz dizer-me, uma vez mais, que não nasci ainda” (pp. 6-7). Assumindo-se como eterno aprendiz – “Haverá também o retrato de mostrar esse rosto de homem aprendiz?” (p. 274) – H. coloca o autorretrato como autópsia ou contemplação de si mesmo, em que a personalidade do indivíduo é permanentemente talhada, esculpida, construída: “Torno a dizer que o pincel é assim como um bisturi. Será também uma navalha, um raspador, e por que não uma picareta? Isso é também um trabalho de arqueologia” (p. 275). Tais vocábulos criam no MPC um palco onde 109 Saramago faz de H. um duplicado seu dramatizado. Remodelar-se mediante a recuperação de experiências passadas, nascer novamente, parece-nos que é assim que o autor se mantém equilibrado entre estas duas perspectivas. Levando em consideração a possibilidade de haver fatos romanceados nas PM, vemos a literatura como aquela que confere ao indivíduo um espaço de autonomia para a expressão de sua unidade na diversidade, capaz de concentrar as atenções apenas nas questões do sujeito, como vemos em produções autobiográficas, em que a escrita é o lugar onde o sujeito revela as interpretações que ele faz acerca de tudo. Nessas escritas o Eu se constitui na escrita de maneira fragmentada, pois não é a figura cartesianamente centrada que poderia se mirar num espelho comum. A visão insuficiente de si é criativa e traz à tona acontecimentos particulares sob um enfoque literário. A escrita facilita a manifestação de tais estilhaços, enquanto o sujeito contempla sua figura embaçada por trás das desordenadas recordações, que compreendem desvios repentinos no tempo e rápidos retornos no presente. Se em relação à autobiografia Lejeune esclarece a importância do pacto autobiográfico, no que tange ao romance autobiográfico elucida a presença de um “pacto fantasmagórico” em que o fingimento paira suscitando verdades, antes, encobertas. Um e outro coabitam a órbita da autobiografia onde tudo gira em torno do Eu gramatical mas que ocupam lugares hierárquicos e diferentes graus, nuanças dentro do mesmo espaço autobiográfico. O fato é que, para escritores como André Gide, o projeto memorialístico exibe apenas meias verdades: Les Mémoires ne sont jamais qu’a demi sincères, si grand que soit le souci de vérité: tout est toujours plus compliqué qu’on ne le dit. Peut-être même approche-t-on de plus près la vérité dans le roman (GIDE, 1972, p. 278) 18. 18 “As memórias não são mais que sinceridade pela metade, por maior que seja a inquietação pela verdade: tudo é sempre mais complicado quando não se diz. Talvez mesmo aproximamo-nos mais perto da verdade no romance”. 110 O recorte aponta a ideia de que o romance tende a ser mais verdadeiro que a autobiografia, não obstante o projeto desta última seja o de autêntica sinceridade. Segundo Gide, o romance é múltiplo, ambíguo e mais profundo em contraposição à suposta superficialidade esquemática da autobiografia. Tal glorificação de um em detrimento do outro, leva Lejeune a considerar a ideia de um “pacto fantasmagórico”, já que considera o romance um espaço povoado de fantasmas que podem ser reveladores em aspectos da personalidade do indivíduo. Em outras palavras, o romance autobiográfico pode ser considerado como uma forma indireta de autobiografia. Todavia, se existem considerações que apontam para a eficácia do romance em detrimento da escrita de primeira pessoa, não sabemos o porquê de inúmeros autores, em dado momento de suas vidas, inclinarem-se ao registro memoralístico. Talvez para escapar do rótulo de egocentrismo, um autor como André Gide declare a preferência pela complexidade do romance. Dentro desta perspectiva, o romance autobiográfico, ao fim e ao cabo, visa ao mesmo objetivo da autobiografia propriamente: revelar o suposto ponto de vista do autor em relação à sociedade e com isso revela sua forma pessoal de compreender a sociedade. Toda a mundividência tenta se condensar, seja numa escrita seja em outra. E é enquanto autobiografia que o romance autobiográfico pode se considerar mais verdadeiro, pois ficção e realidade estão embaralhadas, em menor ou maior grau. Isso leva Lejeune, na versão mais recente das suas pesquisas, O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet, a reconsiderar que os limites entre os registros encontram-se cada vez mais imprecisos: “da ‘mentira verdadeira’ à ‘autoficção’, o romance autobiográfico literário aproximou-se da autobiografia a ponto de tornar mais indecisa do que nunca a fronteira entre esses dois campos” (LEJEUNE, 2008, p. 59). 111 O tema acerca do fingimento pessoano parece perpassar a escrita do Manual de uma forma mais explícita e fácil de ser identificada, porquanto existem fatos disfarçados e misturados à ficção. Saramago confessa que experiências particulares são determinantes para a composição de outros mundos imaginários, e com isso é plenamente possível flagrá-los em recriações romanceadas. Aqui, o fingimento criativo reconstrói imagens e sensações do passado, de modo que sua importância inicial pode ganhar mais intensidade no futuro, embora não sejam como aponta o autor nas PM: Como consequência, as minhas capturas sempre se reduziram a uns poucos pampos, barbos uma raridade e pequenos, e muitas horas passadas em vão (em vão, a bem dizer, nenhuma, porque, sem que me desse conta, ia “pescando” coisas que no futuro não viriam a ser menos importantes para mim, imagens, cheiros, rumores, aragens, sensações). Ao sol, se não castigava demasiado, ou à sombra de algum salgueiro chorão, à espera de que o peixe picasse. Em geral, sentado à beira de água, operava no “rio da minha aldeia”, o Almonda, ao fim da tarde, porque com os grandes calores já se sabia que os peixes se metiam nas locas e não vinham ao isco (PM, 2006, pp. 76-7) (grifo nosso). O autor desloca-se para seus romances, revelando na construção marcas biográficas de experiências sensoriais – “imagens, cheiros, rumores, aragens, sensação” vividas em torno do rio aldeão onde o menino Zezinho cresce. São rumores que podemos reencontrar quando da obsessão do personagem H. por sons de pisadas ao chão, inúmeras vezes, referida no Manual: “descubro que me interessam os sons produzidos por quem desce uma escada, registo-os num arquivo sem utilidade” (MPC, 1998c, p. 70). O tema do fingimento relaciona-se com a ideia de dramatização pessoal. Convém destacar que quando H. problematiza o fingimento doentio – o parecer ser quem não é a ponto de se autoapagar – esse pensamento parece determinante para ele obter uma certa imagem irregular de si. Por outro lado, o fingimento criativo, aquele 112 que se explica pela precariedade da representação, corresponde em certa medida a uma imagem plural. São, portanto, dois tipos, duas perspectivas de autoimagem que se problematizam e se debatem no texto: fingimento doentio e criativo. Na escrita de si das PM, é certo que exista dramatização pessoal nos contornos e achatamentos que o autor faz na própria história, a fim de que caiba dentro de poucas linhas todo o trajeto da infância à adolescência. Saramago registra apenas a gênese da sua personalidade, os primeiros 15 anos de sua vida, do nascimento, em 1922, na aldeia da Azinhaga no Ribatejo, aos estudos na escola industrial de Lisboa, onde, estranhamente, conheceu mais sobre literatura quando frequentava o curso de serralheiro mecânico. Nos relatos acerca da infância e juventude de um humilde menino português que vive entre a cidade natal e Lisboa, o leitor toma conhecimento de uma série de peripécias em que se confessam os bens e males da infância. É como se a velhice possibilitasse uma tardia e complementar compreensão da fase dos primeiros anos, unindo as pontas de um mesmo fio. A idade adulta é alijada das referências nas memórias pequenas, na medida em que esta escrita parece ser justamente local de fuga, um meio que encontra para burlar o tempo, praticando o aviso no O livro dos conselhos: “Deixa-te levar pela criança que foste” (PM, 2006, p. 8). A criatividade e o labor da escrita são as chaves que levam o sujeito a abrir as portas do imaginário e ele se reconecta à infância, fase cuja lembrança, aparentemente, nunca se desvaneceu completamente. Entre Azinhaga e Lisboa, no ir e vir das férias escolares à aldeia, ele confessa ser aquele lugar simples onde, de fato, gostava de estar. A narrativa inicia-se com a paisagem verde dos campos da aldeia, onde busca imagens de si mesmo e do mundo onde vivia, bastante diferente daquele manicômio de seres alienados descrito no Ensaio sobre a cegueira. 113 O regresso à vasta região de oliveiras foi necessário para que parte de si pudesse ressurgir com mais intensidade, já que pretendia falar sobre ela, e daí poder renascer, como cita: “nos cegos meandros do acaso havia sido escrito que ainda teria de voltar a Azinhaga para acabar de nascer” (PM, 2006, p. 11). Os verdes olivais pintados com todas as cores que sua imaginação faz reacender, aos poucos, porém, vai se escurecendo e o autor manifesta a angústia diante das possíveis mudanças hoje ocorridas no lugar que antes chegava a se confundir com ele próprio: A criança que eu fui não viu a paisagem tal como o adulto em que se tornou seria tentado a imaginá-la desde a sua altura de homem. A criança, durante o tempo que o foi, estava simplesmente na paisagem, fazia parte dela, não a interrogava (PM, 2006, p. 13). Como de costume, na função de amigo do ambiente, Saramago apresenta o lado mais humano e sensível do homem público em que se tornou. Da secura da mãe à perda do irmão aos dois anos, a narrativa é toda de reavivamento, sobretudo, a presença dos avós referidos de forma bastante semelhante às relatadas em A bagagem do viajante. Se em tal livro, de 1985, assistimos à precoce introspecção do escritor, nas PM o movimento de volver para si emerge e o desejo de escrever as memórias chega ao destino que vinha percorrendo, por vezes sutilmente, rumo à autobiografia assumida. É como se há muito ele ensaiasse esta escrita, sob a forma de discretas manifestações. Em entrevista a Carlos Reis, Saramago afirma o que o Manual significa para ele. Além de uma espécie de objeto de aprendizagem “é também (e já o disse várias vezes) talvez o meu livro mais autobiográfico” (SARAMAGO, apud REIS, 1998a, p. 25). Talvez no auge do autoconhecimento, Saramago tenha resolvido abrir a caixa do passado, reunir os estilhaços de suas recordações, deixados em entrevista ou em passagens de livros de forma romanceada. É o caso, por exemplo, da referência nas PM ao amigo pintor que porventura lhe tenha inspirado encontramos na composição 114 do personagem H. Este amigo aparece de forma bastante diferente no MPC, mas trazendo marcas que evidenciam o cruzamento entre verdade e ficção. O contato de Saramago com o pintor aparentemente não foi superficial, pois mesmo depois de mudar de residência fazia constantes visitas ao amigo que lhe pintou um poema em porcelana, o qual mais tarde Saramago presenteou à então futura esposa, Ilda Reis. O amigo, a quem não nomeia, é caracterizado nas PM como solitário: “Embora eu fosse novo e a minha experiência da vida a que se pode imaginar, intuía que aquele homem sensível e delicado se sentia só. Hoje tenho certeza disso” (PM, 2006, p. 48). Também nas PM, o autor declara um dado autobiográfico como o principal motivo da escrita do livro Todos os nomes. Mais uma vez, as recordações de experiências particulares atuam como auxiliar na construção da ficção, pois ele se inspira na trágica morte do irmão quando eram crianças para a composição daquele romance. O fato de não existir a certidão registrando o nome do pequeno Francisco foi o ponto de partida para a confecção do livro, como Saramago confirma: Sinceramente, penso que o romance Todos os nomes talvez não tivesse chegado a existir tal como o podemos ler, se eu, em 1996, não tivesse andado tão enfronhado no que se passava dentro das conservatórias de registro civil... (PM, 2006, p. 115) 4. 4. AS PRIMEIRAS TENTAÇÕES AUTOBIOGRÁFICAS A criatividade, portanto, é um processo que trinca, fratura e fragmenta a face espelhada da mesmice, abrindo brechas e alargando frestas por onde escorem o inédito, o inaudito e o inusitado (BITTENCOURT, 2003, p. 38). Saramago prometia escrever relatos retrospectivos de si numa obra, inicialmente intitulada o Livro das Tentações (SARAMAGO, apud ARIAS, 2000, p. 81), nome sugestivo para quem, em outros momentos textuais, levanta elementos que 115 apontam para a tentação da escrita autobiográfica ficcional. Já no prólogo dos Cadernos de Lanzarote paira a noção de uma necessidade de se expressar e tecer explicações a respeito das produções de seus romances. Saramago menciona ser efetivamente autobiográfico tudo aquilo que diz respeito ao sujeito: Um dia escrevi que tudo é autobiografia, que a vida de cada um de nós a estamos contando em tudo quanto fazemos e dizemos, nos gestos, na maneira como nos sentamos, como andamos e olhamos, como viramos a cabeça ou apanhamos um objecto do chão (SARAMAGO, 1997, pp. 9-10). Separados em blocos, à moda de capítulos, ou contos que se conectam, nas PM Saramago se refere ao menino que foi sob o crítico olhar de décadas de distância. Em alguns momentos um tom de profunda mágoa, que talvez o tenha transformado em escritor, subjaz a voz narrativa melancólica e irônica. Sem obedecer a uma cronologia, já que são capítulos de memórias dispersas, ele não alude de maneira crítica à origem humilde da sua formação intelectual nem à ditadura salazarista que dava seus primeiros passos àquela altura. Questionamos, no entanto, por que o autor se entregara à escrita memorialística após tantas entrevistas, como aquelas aos jornalistas e à televisão? O que leva o sujeito a desejar escrever sobre a sua intimidade para o grande público perscrutar a “integridade” de um passado que só a ele pertence? O fato é que nas PM, Saramago decide voltar às raízes ou, no caso, à memória de tais raízes, aparentemente para revelar de onde saiu o homem que é. Esta escrita surge, portanto, como uma espécie de autoavaliação, quando o Eu em sua intimidade se toma como objeto de reflexão. Como sabemos, não são recentes as aventuras do autor pelos meandros de textos em referências pessoais. Nas PM Saramago narra a relação com a figura dos avós maternos, sobretudo, com a avó. Mas muito antes, o autor já havia lhe dedicado uma crônica em Deste mundo e do outro (1971.). No texto Carta para Josefa, minha avó, Saramago dirige 116 agradecimentos à avó materna, que lhe apresentou o mundo da narrativa quando criança, recriando fábulas infantis e antigos fatos familiares, lembranças que lhe fazem questionar-se no texto: “Contaste-mo tu, ou terei sonhado que o contavas?”. (SARAMAGO, 1996, p. 28). Novamente, o autor parece levantar dúvida à narrativa de suas lembranças e, enquanto resgata minuciosamente aspectos físicos e emotivos da avó, desabafa: “O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito tudo um ao outro o que mais importava”; em seguida, traz à tona a incerteza: “Não teremos realmente?” (SARAMAGO, 1996, p. 28). No texto O meu avô, também, já com menos riqueza de detalhes físicos e emotivos, Saramago recria o cenário do quarto opondo o espaço aquecido sobre o qual escreve ao dia chuvoso que lhe traz a lembrança do avô. Misturando poeticamente a chuva real com a tempestade imaginária, o autor revela o empenho de não permitir que o tempo esvazie a antiga lembrança: “o homem que assim se aproxima, vago, entre as cordas de chuva que parecem diluir o que na memória não se perdeu, é meu avô” (p. 29). Nesta curta narrativa cheia de lirismo, enquanto pereniza a despedida do avô, a voz do então presente e a do futuro parecem unir-se para que o sujeito Narciso possa, algum dia, se observar novamente e comparar as alterações ao longo do tempo: “Parece uma esfinge, direi eu mais tarde, quando as leituras eruditas me ajudarem nestas comparações tão abonatórias de uma fácil cultura. Hoje digo que [o avô] parecia um homem” (p. 30). Em diversos momentos da entrevista a Arias, Saramago responde com dados particulares que ressurgem transcritos em sua prosa, como quando, por exemplo, indica o porquê da importância dos avós maternos, nas crônicas em suas homenagens. Ele justifica que isso se deveu à proximidade que mantinha com eles, laços afetivos aparentemente mais estreitados do que aqueles mantidos com os pais, ou com qualquer outro parente. 117 No que tange a tais crônicas, estes dois textos parecem se aproximar da escrita diarística, porque não existe nelas a intenção de reconciliar totalmente os tempos – passado, presente e futuro, pois o sujeito traz à tona uma sucessão de imagens que o foram habitando, com as quais parece conviver, mas sem a necessidade de encaixotar sua história e condicioná-la às linhas do tempo. As crônicas assemelham-se mais a diários do que à autobiografia, porque segundo a definição de Mathias o diário corresponde à “narração irregular, constituída por fragmentos autónomos, o diário é um livro já feito e ainda por fazer” (MATHIAS, 1997, p. 47). As crônicas, como o diário e os blogues, são escritas interrompidas e não seguem a dinâmica que se pretende numa autobiografia. Mas esta divisória entre os textos memorialísticos não os separa demasiadamente, porque tanto num quanto no outro, o autobiógrafo se revela como resultado de um processo, simultaneamente, de introspecção e de modelação de autoimagem. Ambas as narrativas trabalham as memórias de maneira semelhante, ainda que a estrutura seja distinta. Em Roland Barthes por Roland Barthes o autor também escreve sobre si de uma forma semelhante às crônicas e aos blogues, de modo que é difícil situar em qual destas dimensões a escrita faz parte propriamente. Barthes admite que a escrita fragmentada “se desliza para o ‘diário’” (BARTHES, 2003, p. 110), embora ele pretenda atenuar o discurso sobre si com a proposta dos “pedaços de diários”. Todo o seu livro é composto por temas / fragmentos que vão se articulando, podendo ser lidos separadamente, nos quais discorre sobre opiniões, leituras e alguns fatos dispersos, sem se deixar levar pelo curso das datas. Conforme ele diz, “os fragmentos são então pedras sobre o contorno do círculo: espalho-me à roda: todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê?” (p. 108). Mas o sujeito da escrita, em Barthes, não se 118 mostra preocupado em resgatar o passado. Ele se apresenta como alguém que deseja escrever sobre variados temas e o parece fazer isso quase compulsivamente. Depois de oito anos da escrita das crônicas familiares, Saramago ensaia novamente a escrita de si no MPC, retomando a temática com mais intencionalidade autoral nos Cadernos de Lanzarote – diários do Escritor, publicados de 1993 a 1997, e mais recentemente nas atuais memórias de 2006. É como se há anos se sentisse tentado a escrever uma autobiografia, sendo que nas PM encontra o passado contrastando com o presente dos Cadernos. Mas a dramatização das experiências já fervilhava nas crônicas até desguarem de forma mais romanceada em H. No que tange às PM, atentamos novamente para o fato de não haver definição quanto ao gênero na capa das PM, embora no mesmo livro, a editora coloque a advertência de que: “Os personagens e situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se refere a pessoas e fatos concretos, e sobre eles não emitem opinião” (PM, 2006, p. 4). Se em todas as obras anteriores o autor se preocupa em registrá-las como “Romance”, parece lógico que suas pequenas memórias, ou “simples repositório de recordações” (PM, 2006, p.32) também se encontrem no limite entre real e imaginação. Essa ausência quanto à definição do gênero parece contribui para a ideia de caráter fictício mesmo numa narrativa que pretende retratar criticamente a realidade exterior. Como para o autor a vida inteira do sujeito compreende uma autobiografia, ele coloca o que pensa sobre este tipo de texto desde o Manual defendendo-se com mais precisão de futuras impressões de narcisismo sobre Os cadernos de Lanzarote, que começara a publicar: Gente maliciosa vê-lo-á como um exercício de narcisismo a frio, e não serei eu quem vá negar a parte de verdade que haja no sumário juízo, se o mesmo tenho pensado algumas vezes perante outros exemplos, ilustres esses, dessa forma particular de comprazimento próprio que é o diário. Escrever um diário é como olhar-se num espelho de confiança, adestrado a transformar em beleza a simples boa aparência ou, no pior dos casos, a tornar suportável a máxima 119 fealdade. Ninguém escreve um diário para dizer quem é. Por outras palavras, um diário é um romance com um só personagem (SARAMAGO, 1997, p. 9). Espelho ficcional ou não ficcional, dramatização em 1ª pessoa ou não, o fato é que neste fragmento Saramago defende a ficção em relatos memorialísticos, sendo que esta se dá de maneira muito particular e concordando direta e pessoalmente com a necessidade do sujeito. Talvez seja nesse processo de cruzamentos entre realidade e ficção, fingimento e sinceridade, que se encontre a verdade do autobiógrafo pois se trata de algo que só poderia ser efetivado, individualmente, pelo sujeito. Isso nos leva a pensar que, mesmo deixando pistas pessoais, rápidas aparições de suas próprias experiências, se todos os traços espalhados pelos textos pudessem ser recolhidos haveria, então, uma tentativa de recomposição identitária e, de certo modo, um retrato precário do autor que escreve apenas parte do que é e do que poderia ter sido juntamente com o que foi. É visível o reconhecimento de Saramago quanto à noção de verdade absoluta que se pretende nas autobiografias, ao mesmo tempo em que admite não existirem falsas memórias, mesmo que sejam heranças de subjetividades ou fragmentos ocorridos pelos efeitos corrosivos do tempo. Em rigor, em rigor, penso que as chamadas falsas memórias não existem, que a diferença entre elas e as que consideramos certas e seguras se limita a uma simples questão de confiança, a confiança que em cada situação tivermos sobre essa incorrigível vaguidade a que chamamos certeza (PM, 2006, p. 110). Nas PM, e mesmo antes desta obra, há o desejo de revelar como se deram as primeiras impressões de mundo para cruzá-las no campo da memória. Isso tudo se dá, aparentemente, a fim de que possa compartilhar o passado com algo, com a solidão escolhida no momento da escrita que parece justificar sua própria existência como escritor. Para confirmar que toda a sua obra também é sua autobiografia, na orelha da edição brasileira do Manual, datada de 2001, há uma alusão ao livro como uma 120 espécie de autobiografia indireta, tal como caracteriza Madruga. Inúmeras vezes, Saramago revela pela voz de H. a consciência de que tudo é biografia. O que ainda não está, o que veio e transita, o que já não está. O lugar só espaço e não lugar, o lugar ocupado e, portanto, nomeado, o lugar outra vez espaço e depósito do que fica. Esta é a mais simples biografia de um homem, de um mundo e talvez também de um quadro. Ou de um livro. Insisto que tudo é biografia. Tudo é vida vivida, pintada, escrita: o estar vivendo, o estar pintando, o estar escrevendo: o ter vivido, o ter escrito, o ter pintado (MPC, 2001, p. 132). As alusões feitas por H. revelam que Saramago já vinha deixando rastros de sua autobiografia como uma espécie de “entidade autoral imaginária” (SANTOS, 2007, p. 2). Como dissemos, a escrita das PM não obedece a uma cronologia fixa, pois as recordações se concentram no texto como ilhas de lembranças que, editadas, tentam se ligar umas as outras. Ilhas de edições, pedaços da sua vida, a obra parece querer juntar traços memorialísticos espalhados nos inúmeros textos escritos pelo autor e que, agora, surgem nesta escrita assumidamente autobiográfica, demonstrando a influência que as experiências do autor exercem no seu trabalho estético. Somente em idade avançada, pois, Saramago rende-se à autobiografia, talvez para cumprir a antiga promessa ou pela vontade de narrar sobre sua vida diante da passagem irreversível do tempo. É como se, após tantas escritas impessoais, fulgurasse nele o desejo de reunir, por ele mesmo, lembranças que juntas lhe possam devolver uma coesão pessoal de sua personalidade no passado, uma espécie de unidade da própria memória. Mas as lembranças – que o habilitam a acessar o passado e relatar sobre sua vida – não são apenas individuais, porque às recordações misturam-se também a memória coletiva dentro da qual ele já nasce submerso. Nas duas obras, a verdade particular, referida por Starobinski, parece circular pelos fatos rememorados, atravessando-os e revelando sua transitoriedade. Diferente das PM, nas quais verificamos apenas a presença de um narrador ulterior e consciente 121 de si, o MPC encena duas posturas do narrador. A primeira, levada pela necessidade de exercer a linguagem, se revela mediante uma narrativa que parece obedecer ao fluxo do pensamento. Ele escreve os fatos no tempo presente, misturando-os à narrativa de antigas viagens, seguindo a dinâmica do diário de memórias ao qual H. se refere como exercício autobiográfico: A isto que escrevi, chamei (primeiro) exercício de autobiografia, e creio não me ter enganado nem enganar. Afinal, as confissões de Rousseau não passam de dóceis acatamentos às regras de um gênero: todas começam num ponto comum, a que se dá o nome de nascimento, e são, se bem repararmos, outras transpostas histórias que igualmente podiam começar, ainda mais obedientes à tradição, por “Era uma vez” (MPC, 1998c, p. 105). Na segunda postura, por sua vez, se mostra visivelmente cônscio de si e da relação edificante com a linguagem: “Não passou mais de um mês desde que comecei a escrever este manuscrito, e não me parece que seja hoje quem era então. Por ter somado mais trinta dias ao meu tempo de vida? Não. Por ter escrito” (MPC, 1998c, p. 80). Ao mesmo tempo em que H. aponta a insuficiência da palavra, ele a revela como a forma representativa que mais pode se aproximar da realidade do sujeito em sua intimidade. Neste impasse, as considerações de H. nos levam às reflexões de Carvalho, em seus estudos sobre a teoria da linguagem: É através do exercício da linguagem que o homem, por assim dizer, vai procurar à penumbra da sua consciência determinados conteúdos que aí se encontram, para os trazer para a plena luz de um conhecer mais perfeito (CARVALHO, 1979, p. 26). Dito isso, cabe-nos assinalar que a diferença entre os diários escritos em Lanzarote e suas memórias infanto-juvenis é marcada pelo tempo, no caso, o tempo presente de um e o tempo passado, longínquo, do segundo. Nas anotações diarísticas encontramos o escritor José Saramago propriamente dito, a personalidade famosa por trás das cortinas do cotidiano e muito solicitado pela curiosidade de seu público. Narrando sobre sessões de autógrafos e visitas a países estrangeiros, ele constrói a 122 imagem do escritor em seu dia a dia; nas memórias recentes, todavia, entre outras circunstâncias, ele se mostra mais preocupado em recuperar a essência dessa imagem, olhando-se por trás do nome de escritor já consagrado. Desta forma, o verdadeiro personagem da atual autobiografia não é o menino – escritor em formação – mas o amadurecido escritor que se encontra recolhendo paisagens interiores para compor, ao fim, a ilha de edições que talvez se tenham tornado as memórias. Tendo vivido toda a sua vida de portas fechadas, na escrita sobre si, Saramago abre suas lembranças e fala sobre os primeiros amores, algumas malévolas criancices, o contato com a pesca, inúmeras mudanças caseiras, fatos sobre a escola e suas relações sociais, situações já reveladas em entrevistas. Nas memórias há um Saramago preocupado em mostrar algo além da imagem do escritor consagrado pela comunidade acadêmica internacional e para isso não faz referências aos compromissos diários, como ocorre nos Cadernos. Há, ali, portanto, um autor que após tantas escritas do Outro, se volve para si criando por ele mesmo a representação de sua personalidade, já que ninguém melhor que o próprio sujeito para reanimar suas vivências, como cita Rousseau: “Ninguém pode escrever a vida de um homem a não ser ele próprio. Sua maneira de ser inferior, sua verdadeira vida é conhecida apenas por ele” (ROUSSEAU, apud STAROBINSKI, 1991, p. 194). Se nem mesmo o dono das memória narradas consegue resgatar tudo o que de fato ocorreu, a autobiografia é incompleta em sua natureza. Quanto ao posicionamento do narrador frente ao narrado, há diferenças entre as duas escritas de si. Em H. de MPC, Saramago cria um sujeito narrador que empreende a autobusca por meio da escrita, isolado quanto às figuras do seu passado, que parecem diluídas. Ele faz referência apenas à infância pobre da casa dos pais já falecidos, o que também se assemelha à natureza nostálgica das PM. Nestas, o autor 123 escreve do presente distante dos fatos, reunindo, no tecido textual, apenas as esparsas e longínquas recordações que não ultrapassam os quinze anos do escritor. Já que se autorretrata somente até adolescência, como dissemos, parece que Saramago se mostra cônscio de que, apesar do efeito catártico que podem produzir as palavras, como instrumento linguístico, não consegue repetir rigorosamente as emoções passadas, porque cada momento revela sua singularidade, além de existirem particularidades do sujeito esquecidas de si próprias que, nem mesmo numa narrativa pessoal, ele consegue expor. O juramento tácito do autor em dizer apenas a verdade é freado pelas deformações involuntárias ou voluntárias, já que a insuficiência das palavras é apontada em diversos momentos da escrita. Tudo isso nos leva a crer que a ficção parece ser mais interessante do que a realidade, se esta pudesse ser narrada na íntegra. É o labor da imaginação que confere à escrita a magia capaz de despertar a curiosidade e o interesse do leitor, e talvez também de quem escreve. Desta forma, a linguagem torna-se guardiã preciosa apenas de parte da sua memória. Na obra de 1977, portanto, localizamos os primeiros passos de temas que continuam seu percurso nos livros posteriores, como, por exemplo, a problemática do sujeito em sua constituição identitária, a sua inserção em meios sociais e artísticos, bem como sua relação com a História do país. Ao tomarmos como parâmetros actuais do seu discurso de ficção, veremos que a matriz donde estes promanam é o Manual de pintura e caligrafia, que lhes é anterior em data de composição e de publicação (REBELO, 1983, p. 24). Todas as lembranças mescladas de realismo e lirismo apontam para a noção de que o vivido adquire novas formas quando ficção e experiência fundem-se para tornar presente uma unidade narrativa do Eu que se escreve. Em seu mergulho ao interior de sua subjetividade, o sujeito atravessa os limites entre presente e passado e se esquece de si no mundo de recordações. A escrita cristaliza os personagens da história pessoal 124 do sujeito que preserva e conserva a própria memória. Sabemos, pois, que os momentos são indissoluvelmente ligados, mas quem escreve faz a cisão diante da impossibilidade de reconstruir, através de uma peregrinação semântica, a experiência empírica simultaneamente com o tempo. E isto parece ser um dos maiores objetivos constituintes de uma autobiografia: a tentativa de reviver os segundos, reconstruindoos com a tenacidade da imaginação. Pela via da fantasia ou não, a memória apresentase como presença dominadora e infinitamente elástica que cruza os horizontes dos episódios reais e os inventados pelo poder imaginativo. Ultrapassados todos estes limites, H. personifica o característico desejo do homem de lançar ao desconhecido, de criar e recriar o real. E com o personagem de si, Saramago exercita a liberdade de escrever um texto mais extenso, indo além das breves linhas dos contos, crônicas e poemas. Seja nas crônicas ou com o MPC, o fato é que até chegar às PM Saramago parecia às voltas com escritas autobiográficas, experimentando-a de variadas maneiras, enquanto paralelamente escrevia crônicas políticas e contos. Mas a noção de se poder forjar uma versão compacta de si no projeto autobiográfico se dá apenas na estrutura do texto, cuja expressividade parece tornar nítido um Narciso plurifacetado, numa reunião linguística de Eus promovida pelo mapeamento interior que H. esboça acerca de si: “Esta escrita vai terminar, durou o tempo que era necessário para se acabar um e começar outro” (MPC, 1998c, p. 312). Mas acrescentamos que as imagens de espelho não podem se desvincular de seu antecessor, ou seja, do corpo refletido. Mesmo numa reprodução precária, a aliança com a matriz é indissolúvel. A primeira imagem refletida se multiplica em personagens, como um espelho dentro do outro. Se de um lado a mistura entre realidade e ficção corrompe a proposta inicial da autobiografia em Dizer a verdade nada mais que a verdade, é justamente neste 125 momento que a natureza literária se faz presente. De onde se pode concluir que a escrita memorialística não é um projeto malogrado, porque à sua essência se acresce o princípio da representação o mais próximo e perfeitamente possível do real (a mimese aristotélica). O texto íntimo (sejam os diários, as correspondências, blogues ou autobiografias), embora aspire à cópia transparente de um momento concreto propriamente dito, ultrapassa a realidade, recriando-a, concentrando os elementos que compõem a literatura, elementos discursivos (próprios da escrita) inerentes à criação literária. Diante disso, percebe-se que, mesmo que o Manual utilize um discurso em primeira pessoa declaradamente fictício, estão presentes todos os requisitos peculiares a uma autobiografia. As noções de desejo de permanência, de renascimento e de necessidade de introspecção atravessam a escrita com ares de perfeita veracidade pessoal como ecos da voz particular de Saramago enquanto sujeito em sua intimidade. Com tantos tributos prestados à liberdade de expressão da atualidade, a autobiografia vem ocupando um lugar cada vez mais importante no âmbito dos estudos literários, como descreve o especialista, Ángel Loureiro: La autobiografía trata de articular mundo, texto y yo, y por esta razón ocupa un lugar privilegiado, ya que em ella tenemos que vérnoslas con los temas más importantes de las humanidades hoy em día: historia, poder, yo, temporalidad, memoria, imaginación, representación, lenguaje y retórica (LOUREIRO, 1993, p. 33) 19. Sendo assim, podemos pensar que diante da ditadura de Salazar, em Portugal, e após sua saída do Diário de Notícias, para Saramago a autobiografia indireta do MPC torna-se a salvação não só do personagem em crise, experimentando outra forma de se expressar e de não ceder ao interdito de si. Aqui, a narração também se manifesta como salvação do autor Saramago, em busca de um meio de poder 19 Tradução nossa: “A autobiografia trata de articular mundo, texto e eu, e por esta razão ocupa um lugar privilegiado, já que diante desta nos deparamos com os temas mais importantes da humanidade hoje em dia: história, poder, eu, temporalidade, memória, imaginação, representação, linguagem e retórica”. 126 expressar verbalmente, ainda que de forma alegórica, sua opinião sobre o comodismo, sobre a alienação do país e, sobretudo, acerca da sufocante censura que mutilava a voz do sujeito, por vezes, esvaziando sua potencialidade como ser de linguagem e apagando sua identidade pessoal e artística. Com isso, as PM podem ser consideradas o avivamento do Eu pretérito que também se encontrava em vias de um total apagamento, mas que renasce a fim de reintegrar ao atual 127 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo desta dissertação, analisamos como a escrita de Saramago manifesta a improbabilidade de separar inteiramente as memórias inventadas daquelas supostamente vividas. Como num espelho em que o sujeito cumprimenta a si mesmo, a narrativa sobre sua intimidade lhe devolve uma imagem pouco nítida, já que o ato de lembrar corrompe as memórias do passado, ao qual o autobiógrafo se reporta. Inicialmente, referimo-nos a textos como os de Santo Agostinho e de Rousseau considerados precursores do gênero autobiográfico, numa época em que a autoria das narrativas ainda é pouco creditada, se comparadas aos romances e epopeias. Em outro momento me detive em apontar as características da autobiografia, confrontando suas particularidades em relação a outras escritas íntimas, a partir da visão do especialista Philippe Lejeune. Aludimos ao pacto autobiográfico analisado por Lejeune, que acredita na existência prévia de uma tríade – autor/ narrador/ personagem – capaz de promover a aliança com o leitor a partir do contrato estabelecido desde a capa do livro, quando da assinatura do autor empírico. A partir de então, foi necessário identificar os limites entre as categorias de autor empírico, narradores dramatizados e não dramatizados aludidos por Booth, sem as quais ficaria impossibilitado o entendimento quanto à concepção de morte do autor cunhada por Barthes. Se o a voz do autor empírico é silenciada em favor da manifestação de um ser literário parecia importante delimitar as fronteiras entre um e outro, como também o ponto em que tais vozes se envolvem uma na outra, por meio das revelações de uma subjetividade latente. Isso ocorre, geralmente, nos momentos em que Saramago, ora por meio de H., ora por si mesmo nas PM, deixa emergir suas crenças e ideias interiorizadas, incorporadas às suas 128 experiências pessoais, quando são, na verdade, concepções a ele legadas pela cultura em que está submerso. Busquei analisar ainda os limites entre a realidade e a ficção, e sua delimitação sutil nos textos em que realidades, aparentemente díspares, se cruzam e se confundem tornando-se ambas parte do mesmo sujeito. Observamos também como a narrativa do Manual parece, em certa medida, hesitar entre a as memórias reais e as inventadas, entre a representação do mundo e do autobiógrafo. Procuramos indicar como a escrita revela a hesitação do Eu que visita o passado para buscar resgatar parte de si e se recriar simultaneamente pela via da memória. A partir de então, as impressões tardias influenciam o fazimento da narrativa, já que se trata de fatos revistos a um período, às vezes, de longa distância temporal. Com isso, chequei à questão de que tanto biografias quanto autobiografias, ou ainda textos romanescos, podem conter muito de ficção e de realidade concomitantemente, pois as histórias são vistas apenas sob uma ótica, uma perspectiva que excluiu outras prováveis. Diante disso, verificamosi que ao retomar o exercício de escrita memorialística de Robinson e de Rousseau, este ato de H. parece estar diretamente relacionado à prática que o próprio Saramago realiza, ao narrar em primeira pessoa a autobiografia de um personagem em quem coloca muitas impressões de si mesmo. Dessa forma, a escrita de Saramago parece afirmar que somente nos labirintos da representação de si mesmo o sujeito pode realmente vislumbrar a si de maneira mais ampla. Neste processo de autoconhecimento, sugeri a importância do Outro, pois à medida que dirige para um Outro, as diferenças ou as identidades entre si se acentuam. Analisamos também que, além da necessidade de autodescobrimento, a escrita autobiográfica é atravessada por outras necessidades do sujeito, como a aspiração do sujeito à eternidade por meio da narrativa, seja a de si ou não. O texto em que o 129 sujeito se refere a ele próprio se torna, assim, uma forma de garantir a perpetuação literária do escritor. Ele dribla a passagem do tempo e, consequentemente, a morte, eternizando-se na feitura textual. É como se além da construção identitária de um sujeito literário houvesse também a constituição de sua permanência, mesmo que a escrita desta perenização represente alguém de múltiplas vozes e faces incompletas. Esta revelação inacabada de si revela os passos que fez o sujeito em plena busca de si, que não finda ao término da escrita. Ressaltamos a problemática da representação simbolizada pela recusa de H. seja quando desiste de biografar o cliente S., ou de pintar o quadro de Os Senhores da Lapa quando percebe a impossibilidade de apreender tudo sobre alguém e sobre si próprio. No percurso, foram indicadas as atuações de alter egos de Saramago em outros romances além do MPC. Procuramos iluminar ainda a relevância do Outro no processo de constituição identitária do sujeito literário, entre eles a escrita e o Outro sob o enfoque da mulher que vem arejar a escrita do Manual com uma perspectiva mais poética. Buscamos destacar a escrita como aquela que desvela o segredo da autodescoberta do sujeito no trânsito pelas obras, cuja estrutura e temáticas revelam uma forte e identificável presença autoral, seja na autobusca (MPC), na luta por provar a individualidade (HD) ou na forma descontextualizadora de contrariar a aparente estabilidade das coisas, como o “Não”, de HCL, seja no regresso às memórias infanto-juvenis nas PM. Por fim, é preciso esclarecer também o reconhecimento de que a obra de um autor, seu retrato literário, não pode ser considerado a própria autobiografia, já que ele, no ato da escrita, cede lugar a um ser de papel, a um sujeito da enunciação que, por vezes, pode não corresponder à intencionalidade inicial da escritura. Podemos 130 reconhecer, no entanto, que os aspectos abordados nesta pesquisa não foram inteiramente esgotados e as leituras das duas obras merecem maior aprofundamento. Pretendo futuramente ampliar o presente estudo, analisando as obras do autor mais voltadas para a escrita diarística. Neste possível percurso, nosso desejo foi verificar pontos consideravelmente relevantes, tais como a circulação de Saramago entre outros estilos estéticos, como o barroco e o lirismo romântico percebido em certos momentos textuais de suas obras. 131 6. REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. From Work to Text. In Image- Music – Text. Trans. Stephen Heath. New York: Hill and Wang, 1984, pp 155-164 ------. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988. ------. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 2004. BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla PerroneMoisés. Ed. Estação Liberdade. São Paulo, 2003. BERRINI, Beatriz. José Saramago: uma homenagem. São Paulo: Educ, 1999. BITTENCOURT, Terezinha. As propriedades essenciais da linguagem. Rev. Confluência. Instituto de Língua Portuguesa do Liceu Literário Português. 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