Fernando Pessoa - uma viagem pelo mito, pela história e pela criação literária Regina Célia da Silva O mito é o nada que é tudo A viagem sempre foi tema afim ao imaginário europeu e não poderia deixar de sê-lo para os portugueses que, encerrados em seu pequeno território contido ao norte pelo complexo montanhoso galaicoportuguês e a leste pela grande Espanha, restou a alternativa de lançarem-se ao mar. Assim, a viagem seria sempre um fado incontornável para um povo cuja principal cidade, Lisboa, foi miticamente fundada por Ulisses, que a nomeou. Luís de Camões, outro viajante impenitente, cantou-os na maior epopéia que o Renascimento legou à nossa cultura. Fernão Mendes Pinto vagou pelos novos mundos e deu à literatura a sua Peregrinação. Dos cantores medievais que vagavam de aldeia em aldeia, passando por Dom Sebastião e sua inglória viagem ao norte africano até os angustiados seres de Lobo Antunes, vagantes entre uma África perdida (talvez nunca conquistada) e uma Lisboa irrecuperável, a literatura portuguesa é uma literatura de viagens(1). Vasco da Gama, Fernão de Magalhães, Cabral são alguns dos nomes daqueles responsáveis pela ampliação da cartografia mundial, empreendendo viagens por “mares nunca dantes navegados”. Em sua epopéia enfrentaram perigos de um mar tenebroso, superando os próprios limites e temores. O tema da viagem também é uma constante na obra de Fernando Pessoa, grande expoente da literatura portuguesa e universal, mas no magnífico poema Navegar é Preciso, o poeta parece dialogar com toda a tradição ao evocar o percurso de errantes viajantes a partir da frase de encorajamento aos Argonautas, tripulantes da nau Argo que, segundo a lenda grega, foi até à Cólquida (actual Geórgia) em busca do Velo de Ouro. A frase título do poema "Navigare necesse; vivere non est necesse" é aliás atribuída a Pompeu, general romano, 106-48 aC., dita aos marinheiros, amedrontados, que recusavam viajar durante a guerra, cf. Plutarco, in Vida de Pompeu. Os argonautas Eis o poema de Pessoa: Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: "Navegar é preciso; viver não é preciso". Quero para mim o espírito [d]esta frase, transformada a forma para a casar como eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade. É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça. No conjunto de poemas intitulado Mensagem, há várias referências a uma espécie de encorajamento ou justificativa do porquê de lançar-se ao risco. Inserimos aqui dois grandes momentos. Deus ao mar o abismo deu mas nele é que espelhou o céu. (Mar português) E esta em homenagem a d. Sebastião desaparecido em uma batalha na costa da África. Louco, sim, louco, porque quis grandeza Qual a Sorte a não dá. Não coube em mim minha certeza; Por isso onde o areal está Ficou meu ser que houve, não o que há. Minha loucura, outros que me a tomem Com o que nela ia. Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia, Cadáver adiado que procria? Nestas poesias Pessoa parece relacionar simultaneamente três dimensões: o mito que fundamenta o imaginário da viagem; a história de Portugal como uma das grandes nações navegantes que protagonizou os grandes descobrimentos; e a criação literária (em especial a poética) como a grande e insuperável viagem pela linguagem... *** CURIOSIDADE: Essa frase que se tornou uma espécie de refrão aos argonautas - e por que não, a todos que se encontram nessa imensa nau que é a vida - ecoa na música brasileira numa bela canção de Caetano Veloso. No link abaixo há uma sequência em que Caetano faz a leitura da carta de Pero Vaz de Caminha, que relatou a chegada dos portugueses ao Brasil, seguida da interpretação do próprio Caetano Veloso da música “Os argonautas” (http://www.youtube.com/watch?v=dF8yQhzKvr4). Vale a pena conferir! Caetano Veloso A letra da música é esta: Os Argonautas Caetano Veloso O barco, meu coração não aguenta Tanta tormenta, alegria Meu coração não contenta O dia, o marco, meu coração, o porto, não Navegar é preciso, viver não é preciso O barco, noite no céu tão bonito Sorriso solto perdido Horizonte, madrugada O riso, o arco, da madrugada O porto, nada Navegar é preciso, viver não é preciso O barco, o automóvel brilhante O trilho solto, o barulho Do meu dente em tua veia O sangue, o charco, barulho lento O porto silêncio Navegar é preciso, viver não é preciso O barco, meu coração não aguenta Tanta tormenta, alegria Meu coração não contenta O dia, o marco, meu coração, o porto, não Navegar é preciso, viver não é preciso O barco, noite no céu tão bonito Sorriso solto perdido Horizonte, madrugada O riso, o arco, da madrugada O porto, nada Navegar é preciso, viver não é preciso O barco, o automóvel brilhante O trilho solto, o barulho Do meu dente em tua veia O sangue, o charco, barulho lento O porto silêncio Navegar é preciso, viver não é preciso Nota: Os argonautas viajavam num barco gigantesco cuja construção fora dirigida pela própria Atena. Seu nome se deve a Argos, seu construtor, que tinha cem olhos, dos quais cinqüenta permaneciam sempre abertos. Era um navio de cinqüenta remos. Nele, partiram Jasão e os Argonautas: cinqüenta heróis gregos dotados de dons especiais. O destino era Cólquida, onde buscavam o poderoso Velocino de Ouro. Com o apoio dos bravos Argonautas, Jasão reconquistou seu reinado, trazendo à bordo da nau o cobiçado Velocino, além de diversas riquezas e belas esposas. (1)JOSÉ QUINTÃO DE OLIVEIRA, Os eus viajantes: o tema da viagem em Fernando Pessoa Professor de Língua Portuguesa na Faculdade de Letras - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)