Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de um casal não
ilustre
Érica Nascimento Silva
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Letras
Maio de 2012
Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de um casal não
ilustre
Érica Nascimento Silva
Dissertação de Mestrado submetida ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio
de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do
título de Mestre em Letras Vernáculas
(Língua Portuguesa).
Orientadora: Célia Regina dos Santos
Lopes
Volume I
Rio de Janeiro
Maio de 2012
2
Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de um casal não
ilustre
Érica Nascimento Silva
Orientadora: Célia Regina dos Santos Lopes
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas.
Examinada por:
______________________________________________________________________
Presidente, Professora Doutora Célia Regina dos Santos Lopes
______________________________________________________________________
Professor Doutor Afrânio Gonçalves Barbosa – UFRJ
______________________________________________________________________
Professora Doutora Márcia Cristina de Brito Rumeu – UFMG
______________________________________________________________________
Professora Doutora Sílvia Regina de Oliveira Cavalcante – UFRJ, Suplente
______________________________________________________________________
Doutora Juliana Barbosa de Segadas Vianna – UFRJ, Suplente
Rio de Janeiro
Maio de 2012
3
Silva, Érica Nascimento.
Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de um casal
não-ilustre / Érica Nascimento Silva. – Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2012.
xvi, 70f.:il.; 30 cm.
Orientador: Célia Regina dos Santos Lopes
Dissertação (mestrado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de Pósgraduação em Letras Vernáculas, 2012.
Referências bibliográficas: f. 68-70
1. Formas pronominais no português brasileiro. 2. Análise Filológica. 3.
Análise Linguística. II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras
Vernáculas. III. A variação entre as formas pronominais tu e você em cartas
amorosas dos anos de 1930.
4
Dedico esta dissertação à minha mãe Clézia pelo amor, doçura e carinho que sempre
derramou sobre mim.
5
Agradecimentos
Agradeço primeiramente a Deus, que foi quem me deu forças para continuar
escrevendo este trabalho mesmo diante das várias dificuldades inerentes ao nível do
curso. Ele que tem me acompanhado desde sempre zelando pelos meus caminhos a fim
de que eu possa colher bons frutos.
À Célia Lopes por ter dedicado muito tempo à produção desta pesquisa,
apontando sempre os problemas, sugerindo reflexões e contribuindo de forma positiva
para que se tornasse um trabalho relevante e com aspectos inovadores. E agradeço ainda
mais por ter sido mais do que uma orientadora, mas também uma mãe que soube cobrar
quando devia, mesmo que houvesse de utilizar a boa e infalível fórmula das broncas.
Não podia deixar de citar a minha maior incentivadora na continuidade dos meus
estudos, sendo a pessoa que mais me apoiou quando precisei de um pouco de aconchego
materno. É por essas razões e tantas outras, que certamente não caberiam aqui se eu
resolvesse discorrer sobre as mesmas, que agradeço à minha mãe Clézia, pelos tantos
momentos de carinho, amor e paciência. Foi, sem dúvidas, um importante elemento
para que eu não desistisse e continuasse persistindo ainda que houvesse dificuldades a
serem transpostas.
Ao meu pai Antonio Carlos que, embora não podendo estar perto fisicamente de
mim todo o tempo, sempre se mostrou interessado em saber como estava indo essa
etapa da minha vida e, o mais importante, questionando se era um caminho que me fazia
feliz.
Agradeço a todos os meus familiares, mas, cito nominalmente o meu irmão
Marcelo e a minha tia e madrinha Maria Auxiliadora por estarem sempre presentes na
minha vida e torcerem pela minha vitória. Meu irmão sempre me estendendo a mão
quando, por algum motivo, me sentia abatida e minha madrinha que desde que eu era
criança zelava para que eu prosseguisse estudando firme.
Trago-os no peito desde a graduação, mas pude perceber nesses dois anos de
mestrado que não eram só amigos acadêmicos, e sim companheiros que se leva por toda
a vida. Agradeço ao Caio, Criatura, por ser a minha alma-gêmea como amigo, sempre se
mostrando interessado em saber como estava indo a minha vida acadêmica e pessoal,
me socorrendo todas as vezes em que pedi socorro, seja através de palavras, ações, ou
levando um lenço para secar as minhas lágrimas. À Elaine, ou Michelaine para os
íntimos, por ter me dado o privilégio de ser minha amiga, preocupando-se com tudo o
que me ocorria, demonstrando ser uma boa e paciente ouvinte seja qual fosse o assunto,
e uma pessoa da qual cada gargalhada vale muito. À Ana, atendendo pelos nomes de
Cabeção ou Niña também, por ser essa pessoa maravilhosa que sempre foi,
compreensiva a ponto de entender comportamentos displicentes que me assombraram
em alguns momentos e participando, mesmo que com um pouco mais de ausência, de
todo esse processo, seja ouvindo ou incentivando.
A todos os meus amigos que me acompanharam durante essa jornada não só de
escritura da dissertação, mas ao longo de todo o curso do mestrado. Destaco aqueles
6
que, por terem estado comigo na mesma etapa acadêmica, puderam me ajudar
diretamente em qualquer dificuldade que surgia. Amigos, como a Rachel, Janaína e
Mayara, que foram pessoas que se tornaram bem mais que meras conhecids.
Aos professores que me deram importantes lições, acrescentando de maneira
significativa mais reflexão e conhecimento não só a este trabalho, mas a mim, como
pesquisadora linguista. Agradeço em especial àqueles que tive o prazer de fazer algum
curso durante o ano de 2011, como: Carlos Alexandre Gonçalves, Maria Eugênia
Lamoglia, Sílvia Regina Cavalcante, Dinah Callou, Filomena Varejão, Célia Lopes,
João Moraes e Afrânio Barbosa.
À Rachel pelo seu apoio, incentivo e carinho nos críticos momentos finais do
mestrado.
Às bolsistas de iniciação científica Karine e Stephanie pela paciência em me
ensinar, em tão pouco tempo, a mexer eficientemente no programa E-dictor, que foi de
suma importância para o desenvolvimento desta dissertação, e por terem editado parte
do corpus utilizado neste trabalho.
À Janaína por ter transcrito e editado metade da amostra utilizada na presente
pesquisa.
À CAPES pelo financiamento parcial deste trabalho, fato esse que me
possibilitou poder me dedicar mais à pesquisa e leitura pertinentes ao meu tema.
7
SILVA, Érica Nascimento. Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil
sociolinguístico de um casal não ilustre. Dissertação de Mestrado em Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ. 2012.
Resumo
O presente trabalho pretende estudar a variação entre tu e você na posição de sujeito em
cartas pessoais trocadas por um casal de noivos – Jayme S. e Maria C. – entre os anos
de 1936 e 1937 no Rio de Janeiro. O corpus é composto de 97 cartas, sendo 68 do
Jayme e 29 da Maria. As hipóteses levantadas para esse trabalho são formadas a partir
dos resultados de outros estudos, que mostram que o uso majoritário de tu – forma
recorrente no início do século XX (cf. Lopes, 2008; Duarte, 1993, entre outros) – será
suplantado por você por volta dos anos 30 sendo as mulheres as que mais utilizam esse
pronome (cf. Lopes e Machado, 2005; Rumeu, 2008). Observa-se também que nesse
mesmo período haverá uma maior tendência de preenchimento do sujeito no português
brasileiro. O trabalho levará em conta os pressupostos teóricos da teoria variacionista
quantitativa laboviana (Labov, 1994), visando a identificar os fatores linguísticos e
extralinguísticos que determinam o uso dos pronomes de tratamento de referência à
segunda pessoa no período em questão. Trabalhos como o de Marquilhas (1996) e
Barbosa (1999) serão considerados para a análise de cunho filológico, a fim de que se
possa identificar através da grafia aspectos que ajudem a traçar o perfil sociolinguístico
do casal de noivos – já que, por não serem pessoas ilustres, não há muitas informações
acerca dessas duas pessoas presentes nas cartas.
Palavras-chaves: formas pronominais tratamentais, variação, cartas amorosas.
8
SILVA, Érica Nascimento. Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil
sociolinguístico de um casal não ilustre. Dissertação de Mestrado em Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ. 2012.
Abstract
The present paper aims to study the variation between tu and você in the subject
position in personal letters exchanged by a couple of newlyweds - Jayme S. and
Maria C. - Between the years 1936 and 1937 in Rio de Janeiro. The corpus is composed
of 97 letters, 68 of Jayme and 29 of Maria. The hypotheses for this study are
formed from the results of other studies that show that the majority of tu use - a
recurring basisin the early twentieth century (cf. Lopes, 2008, Duarte, 1993, among
others) - will be supplanted by você around 30 years of women being the more use
that pronoun (cf. Lopes and Machado, 2005; Rumeu, 2008). It was also noted that in the
same period there will be a greater tendency to fill the subject in Brazilian Portuguese.
The study will take into account the theoretical quantitative laboviana
varionational theory (Labov, 1994), to identify the linguistic and extralinguistic factors
that determine the use of pronouns in reference to the treatment of second person in the
period in question. Works such as Marquilhas (1996) and Barbosa (1999) will be
considered
for the
analysis
of philological nature, so
that one
can
identify through spellings aspects that help to trace the sociolinguistic profile of
the engaged
couple since, by
not be distinguished
people,
there
is
little information about these two persons present in the letters. To verify that
occur frequently in the pronouns tu and você in letter and linguistic context for the
occurrence thereof, will be used methodological tool Goldvarb. A philological analysis
will be performed with the help of the E-dictor, whereby the survey will be done
graphematic traces of the authors.
Key words: pronoun forms treatments, change, love letters.
9
SINOPSE
Estudo de variação das formas
pronominais tu e você em posição de
sujeito.
Análise
linguística
e
filológica de cartas pessoas da década
de 1930. Edição de corpora
discrônicos.
10
Sumário
Volume I
Agradecimentos .............................................................................................................. 6
Número de cartas transcritas ...................................................................................... 15
Normas de edição .......................................................................................................... 15
Índice de Figuras, Gráficos, Esquemas, Quadros e Tabelas .................................... 16
Introdução ..................................................................................................................... 18
1. Descrição do objeto de estudo.................................................................................. 21
1.1. As formas pronominais: um breve percurso diacrônico ................................ 21
1.2. Os pronomes pessoais segundo as gramaticas tradicionais .............................. 23
1.3.
Alguns estudos diacrônicos acerca do tema ................................................ 26
1.3.1. A alternância entre tu e você ........................................................................... 26
2. Aparatos teóricos ...................................................................................................... 31
2.1. Teoria variacionista laboviana ........................................................................... 31
2.2. Estudos filológicos .............................................................................................. 34
2.3. O modelo epistolar .............................................................................................. 38
2.4. Corpus ................................................................................................................. 43
2.4.1. A constituição da amostra ............................................................................... 43
2.4.2. Quem foi Jayme e Mariquinhas? Breve perfil sociolinguístico dos autores
das cartas.................................................................................................................... 44
3.2. O conteúdo das missivas ..................................................................................... 49
11
3. A análise filológica das missivas ............................................................................... 51
3.1. Metodologia ........................................................................................................ 52
3.1.1. A edição de corpora diacrônicos ..................................................................... 52
3.1.2. O E-dictor ......................................................................................................... 53
3.2. Parâmetros relativos ao grau de letramento ...................................................... 69
3.3. Os critérios gerais de análise das missivas ...................................................... 70
3.4. A análise das formas linguísticas submetidas a critérios de edição ................. 73
3.4.1 Segmentação/Junção ........................................................................................ 75
3.4.2. Desvios grafemáticos ....................................................................................... 79
3.4.2.1. Monotongação e ditongação ........................................................................ 81
3.4.2.2. Alternância entre [e] e [i] e entre [o] e [u] ................................................... 82
3.4.2.3. Nasalização e desnasalização ....................................................................... 83
3.4.2.4. Síncope de vogais e consoantes .................................................................... 84
3.5. Etimologização.................................................................................................... 85
3.6. Abreviatura ......................................................................................................... 88
3.3. Resultados ........................................................................................................... 89
4. As estratégias em análise.......................................................................................... 93
4.1. Os grupos de fatores ........................................................................................... 93
4.2. A análise dos dados............................................................................................. 97
4.2.1. O preenchimento do sujeito ........................................................................... 101
4.2.2. A questão do gênero ...................................................................................... 108
4.2.3. A concordância .............................................................................................. 109
Considerações finais ................................................................................................... 114
12
Referências bibliográficas .......................................................................................... 118
Anexo............................................................................................................................117
Volume II
Cartas de Maria
10 de Setembro de 1936.........................................................................................18
12 de Setembro de 1936..........................................................................................20
14 de Setembro de 1936..........................................................................................22
21 de Setembro de 1936..........................................................................................24
22 de Setembro de 1936..........................................................................................26
23 de Setembro de 1936..........................................................................................29
26 de Setembro de 1936..........................................................................................32
28 de Setembro de 1936..........................................................................................35
29 de Setembro de 1936..........................................................................................38
1 de Outubro de 1936.............................................................................................41
5 de Outubro de 1936.............................................................................................43
6 de Outubro de 1936.............................................................................................44
7 de Outubro de 1936.............................................................................................47
11 de Outubro de 1936..........................................................................................49
13 de Outubro de 1936..........................................................................................51
Cartas de Jayme
27 de Junho de 1936..........................................................................................53
30 de Junho de 1936..........................................................................................54
20 de Agosto de 1936..........................................................................................56
22 de Agosto de 1936..........................................................................................58
25 de Agosto de 1936..........................................................................................61
13
9 de Setembro de 1936..........................................................................................62
10 de Setembro de 1936..........................................................................................65
11 de Setembro de 1936..........................................................................................67
13 de Setembro de 1936..........................................................................................69
15 de Setembro de 1936..........................................................................................72
21 de Setembro de 1936..........................................................................................75
21 de Setembro de 1936..........................................................................................78
22 de Setembro de 1936..........................................................................................80
23 de Setembro de 1936..........................................................................................83
21 de Setembro de 1936..........................................................................................85
25 de Setembro de 1936..........................................................................................87
26 de Setembro de 1936..........................................................................................89
28 de Setembro de 1936..........................................................................................92
29 de Setembro de 1936..........................................................................................95
30 de Setembro de 1936..........................................................................................97
1 de Outubro de 1936..........................................................................................100
5 de Outubro de 1936..........................................................................................102
6 de Outubro de 1936..........................................................................................104
7 de Outubro de 1936..........................................................................................106
8 de Outubro de 1936..........................................................................................108
9 de Outubro de 1936..........................................................................................110
10 de Outubro de 1936..........................................................................................112
11 de Outubro de 1936..........................................................................................114
12 de Outubro de 1936..........................................................................................116
13 de Outubro de 1936..........................................................................................118
14 de Outubro de 1936..........................................................................................120
15 de Outubro de 1936..........................................................................................122
14
29 de Outubro de 1936..........................................................................................124
19 de Outubro de 1936..........................................................................................125
19 de Dezembro de 1936..........................................................................................126
Anexos.....................................................................................................................127
Número de cartas transcritas
Normas de edição
Cartas transcritas em versão fac-símile: 30 cartas de Maria e 68 cartas de Jayme
15
Índice de Figuras, Gráficos, Esquemas, Quadros e Tabelas
Figuras
Figura 1: Expansão dos contextos pragmáticos de uso da forma Vossa mercê > você nos
........................................................................................................................................ 22
Figura 2: Tela de edição do E-dictor .............................................................................. 55
Figura 3: Tela léxico de edições do E-dictor .................................................................. 56
Figura 4: Trecho de carta com texto sobrescrito (Maria) ............................................... 60
Figura 5: Trecho de carta com texto sobrescrito (Jayme) .............................................. 60
Figura 6: Trecho de carta com texto ilegível .................................................................. 61
Figura 7: Trecho de carta com texto rasurado (Maria) ................................................... 62
Figura 8: Trecho de carta com texto rasurado (Jayme) .................................................. 63
Figura 9: Trecho de carta com texto subscrito (Maria) .................................................. 64
Figura 10: Trecho de carta com texto subscrito (Jayme)................................................ 65
Figura 11: Trecho de carta com texto tachado (Maria) .................................................. 65
Figura 12: Trecho de carta com texto tachado (Jayme).................................................. 66
Gráficos
Gráfico 1: O preenchimento do sujeito ao longo das décadas (SOUZA, 2012) ........... 104
Gráfico 2: Todos os sujeitos plenos das cartas ............................................................. 105
Gráfico 3: Tu e você plenos nas cartas de Jayme e Maria ............................................ 105
Gráfico 4: Dados percentuais das formas de segunda pessoa na posição de sujeito
conforme o gênero. ....................................................................................................... 108
Gráfico 5: A não concordância entre o pronome sujeito e o verbo .............................. 110
16
Esquemas
Esquema 1: Abreviatura ................................................................................................. 88
Esquema 2: Continuum sobre o grau de letramento dos missivistas .............................. 91
Tabelas
Tabela 1: Distribuição geral dos critérios nas cartas do Jayme e da Maria .................... 73
Tabela 2: Alternância entre e e i e entre o e u ................................................................ 83
Tabela 3: Nasalização ..................................................................................................... 84
Tabela 4: Síncope de vogais e consoantes ...................................................................... 85
Tabela 5: Quadro geral dos tipos de pronomes presentes nas cartas .............................. 97
Tabela 6: Preenchimento do sujeito nas cartas ............................................................. 102
17
Introdução
Esse trabalho tem como objetivo traçar o perfil sociolinguístico dos remetentes
de cartas amorosas datadas do final da década de 1930 para fundamentar uma análise de
cunho variacionista sobre a alternância entre as formas pronominais de segunda pessoa
– tu e você – na posição de sujeito.
Estudos como os de Rumeu (2008), Machado (2006), Lopes & Machado (2005),
Souza (2011), entre outros analisaram a variação das formas pronominais de segunda
pessoa do singular, buscando (i) evidenciar os contextos linguísticos e extralinguísticos
que atuam nessa alternância, e (i) identificar o período em que você teria suplantado tu.
Trabalhos como os de Duarte (1993, 1995) – feito com base em peças teatrais dos
séculos XIX-XX – apontam que a inserção de você no paradigma pronominal do
português brasileiro (PB) ocorreu por volta da década de 1930, implementando-se mais
rapidamente na posição de sujeito. Esse resultado também é atestado em Souza (2012),
cujo trabalho mapeou a entrada de você no PB a partir da análise de missivas
particulares do século XX, norteando-se pela hipótese levantada em Duarte (1995).
Outro aspecto hipótese que fundamenta a análise aqui proposta refere-se às
considerações de Labov (1994) sobre o papel do gênero nos processos de variação e
mudança linguísticas. Para o autor, a mulher assumiria um caráter inovador nos
processos de mudança linguística, sendo a precursora na inserção de novas formas na
língua. Nos processos de variação, entretanto, as mulheres seriam conservadoras,
tendendo a usar as formas não estigmatizadas socialmente e preferindo estratégias
próximas da norma padrão. Em vários estudos sobre o tema da alternância pronominal
de segunda pessoa, percebe-se que um comportamento inovador das mulheres quanto à
inserção da nova forma, embora o uso de você em documentação do século XIX ainda
sinalize certo distanciamento – advindo da sua forma originária – em relação ao
interlocutor (RUMEU, 2008; SOTO, 2001).
Tendo em vista esses aspectos que nos serviram como hipóteses básicas,
propõem-se a análise e a edição semidiplomática de um corpus constituído por 98 cartas
trocadas entre um casal de noivos – Jayme de Oliveira Saraiva e Maria Ribeiro da Costa
– escritas nos anos de 1936 e 1937, no Rio de Janeiro. Não há informações disponíveis
acerca de quem foram esses dois missivistas em arquivos públicos, pois se tratam de
18
pessoas não-ilustres, por isso houve a necessidade de buscar outra alternativa para traçar
o seu perfil social – aspecto imprescindível em uma análise sociolinguística.
Nesse sentido, para fazer essa incursão sobre o processo de variação pronominal,
primeiramente serão traçados os perfis sociais dos missivistas com base na análise das
cartas. O intuito da proposta era encontrar dados que revelassem, ao menos, o grau de
letramento dos informantes, observando aspectos grafemáticos que pudessem evidenciar
o nível de contato dos mesmos com a modalidade escrita. Foram utilizados estudos de
natureza filológica, para que fossem identificadas marcas de oralidade nos textos
escritos dos remetentes (desvios grafemáticos, etimologizações, abreviaturas e
segmentação/junção de parte de um mesmo segmento silábico). Levantaram-se, assim,
conforme fossem pertinentes, aspectos que contribuíssem com a descrição relativa à
habilidade de escritura dos indivíduos analisados. Tal proposta baseou-se em estudos de
Marquilhas (1996) e Barbosa (1999) com o objetivo de demonstrar o grau de letramento
e a habilidade dos escreventes.
A análise de natureza filológica está, desse modo, articulada ao estudo
qualitativo das formas de segunda pessoa – tu e você, pois se pretende observar a
influência do perfil social dos remetentes na análise variacionista.
Esta dissertação está dividida em quatro capítulos, além da introdução e das
considerações finais. No capítulo um, será apresentada a descrição do objeto de estudo –
no caso, dos pronomes tu e você – retomando acepções das gramáticas tradicionais
acerca das formas tratamentais (ROCHA LIMA (2003), LUFT (1991), BECHARA
(2004) e CUNHA & CINTRA (1985) relativas à segunda pessoa. Descrevemse,brevemente, as formas pronominais em questão a fim de discuti-las segundo as
descrições das gramática tradicional, e, em seguida, o percurso diacrônico de Vossa
Mercê (FARACO, 1988) até chegar a você. Na sequência, apresentam-se as análises
linguísticas e respectivos resultados sobre o tema (RUMEU, 2008, MACHADO, 2006).
No capítulo dois, constará o aporte teórico utilizado nesta análise. Levam-se em
conta os pressupostos labovianos (LABOV, 1994), discussões acerca do gênero
epistolar (MARCUSCHI, 2001, BLAS, 2003) e postulados filológicos baseados nos
trabalhos de Barbosa (1999) e Marquilhas (1996). Ao final desse capítulo será descrita a
amostra das cartas mais detalhadamente e serão apresentadas as questões norteadoras.
19
O capítulo três apresenta uma análise de cunho filológico partindo de evidências
grafemáticas para atentar o grau de letramento dos missivistas. Esta análise utiliza a
ferramenta metodológica E-dictor para quantificar as ocorrências de alterações
grafêmicas que possam dar indícios sobre o perfil social dos missivistas.
O capítulo quatro traz uma análise descritiva acerca do sujeito de segunda
pessoa – tu e você – nas missivas. Essa seção se apóia em diversos trabalhos sobre o
tema, a fim de tentar explicar os contextos linguísticos e discursivos que favorecem o
emprego das formas variantes.
As considerações finais vêm logo em seguida apresentando os resultados obtidos
e as questões que foram levantadas ao longo do trabalho. Serão retomadas questões
inicialmente propostas e as hipóteses que permearam a análise.
20
1. Descrição do objeto de estudo
Neste capítulo será apresentado um breve percurso histórico acerca dos
pronomes de segunda pessoa e das formas nominais de mesma referência, observando a
origem e inserção de você no português.
1.1. As formas pronominais: um breve percurso diacrônico
Do século XIII ao XIV, como aponta Cintra (1986), as únicas formas de
referência à segunda pessoa eram tu (singular) e vós (plural) – podendo esse, em alguns
casos, referir-se a um só interlocutor, como uma maneira de demonstrar polidez,
conforme aponta Cunha & Cintra (2001). A partir dos séculos XIV e XV, as formas
nominais de tratamento, como, por exemplo, Vossa Senhoria, Vossa Alteza e Vossa
Mercê passam a ser utilizadas para marcar a posição social dos referentes,
principalmente nas Crônicas de Fernão Lopes. Nesse caso, aparecem acompanhadas de
verbos flexionados na terceira pessoa do singular. A inserção dessas formas
pronominais de base nominal, como aponta Faraco (1996), foram decisivas para que
houvesse uma mudança no quadro pronominal do português, já que foi a partir desse
momento que formas de terceira pessoa passaram a ser utilizadas em um contexto de
referência à segunda pessoa.
De acordo com Faraco (1996), em meados dos anos de 1460, Vossa Mercê era
uma estratégia linguística para marcar hierarquicamente a posição do rei de Portugal em
relação aos seus súditos, pois era empregado exclusivamente em referência ao monarca.
Já no final desse mesmo século, a forma nominal Vossa Mercê tem seu uso estendido a
outros membros da nobreza, como duques e fidalgos, e passa a não ser mais uma
referência exclusiva do rei. A partir do século XVI, com advento da burguesia, foi
ficando mais evidente a necessidade de haver formas de tratamento para marcar o
distanciamento dos membros desse novo seguimento social em relação a outras pessoas
sem posses. Com isso, o uso da forma de tratamento Vossa Mercê, que primeiramente
(século XIII) referia-se somente ao rei, passou a ser utilizada também para demais
aristocratas e burgueses, o que ocasionou seu esvaziamento semântico resultando,
assim, numa forma pronominal (apud Menon, 1995). A partir desse momento, por volta
do século XVI, a forma Vossa Mercê vulgarizou-se e perdeu o seu caráter exclusivista,
21
passando a ser empregada largamente em diferentes contextos em que não havia
nenhuma demarcação hierárquica entre os indivíduos que a usavam.
Na proposta de Rumeu (2008), acerca do alargamento do uso de Vossa Mercê
em contextos em que inicialmente essa forma não era utilizada, pode-se observar tal
processo na figura a seguir retirada de Machado (2006).
± 1460
± 1490
± XVI
Figura 1: Expansão dos contextos pragmáticos de uso da forma Vossa mercê > você nos
século XV e XVI.
Na figura (1), tem-se a pirâmide social indicando a expansão no uso de Vossa
Mercê. No começo, conforme indica o topo da pirâmide, só era utilizada como
referência aos reis, mas, com o passar dos anos, passou a ser uma estratégia utilizada
também pela nobreza, alcançando a burguesia em meados do século XVI.
A forma nominal Vossa Mercê teve seu uso ampliado para diferentes
interlocutores e não só mais ao monarca, servindo para delimitar hierarquias sociais.
Uma das mudanças advindas dessa maior utilização de Vossa Mercê é verificada nos
processos fonético-fonológicos sofridos por essa forma nominal ao longo dos séculos,
resultando no pronome você no século XVII. Por volta do século seguinte, percebe-se
que você deixa de ter seu significado tão atrelado à posição social dos indivíduos e
passa a ter seu uso expandido sempre se referindo à segunda pessoa do discurso.
22
1.2. Os pronomes pessoais segundo as gramaticas tradicionais
Embora a forma Vossa Mercê tenha se transformado no pronome você, a
gramática tradicional ainda apresenta uma perspectiva controvertida e variada para a
nova forma pronominal: forma variante ao pronome tu que assume, muitas vezes, o seu
lugar.
Gramáticos como Luft (1990), Rocha Lima (1991), Cunha & Cintra (2001) e
Bechara (2004) são unânimes em afirmar que a função principal dos pronomes é a de
apontar as pessoas participantes do discurso. Dessa forma, as primeiras pessoas indicam
o indivíduo que fala – eu (singular) e nós (plural) –; as segundas, aquele com quem se
fala – tu (singular) e vós (plural) –; e as terceiras, aquele com quem se fala – ele(a) e
eles(as). Bechara (2004) afirma que no discurso há apenas duas pessoas determinadas
no discurso – referentes à primeira e segunda pessoas – e uma indeterminada – referente
à terceira pessoa – que apontam outro participante em relação ao discurso.
A tabela abaixo sintetiza as definições de pronomes pessoais retos das
gramáticas dos autores já citados, mostrando diferenças quanto à classificação de você:
Pronomes
pessoais retos
Bechara
(2004)
Designam as
duas pessoas
do discurso e a
não-pessoa
(não-eu, nãotu),
considerada,
pela tradição, a
3ª pessoa, com
a função de
sujeito.
Luft (1990)
São aqueles
que designam
os sujeitos
(“pessoas”) do
discurso – o
falante: eu, o
ouvinte: tu,
(você, o
senhor, etc.) –
e o assunto:
ele(s), elas(s).
Só este é “pro”
nome
substantivo no
sentido de
“substituir” um
nome
substantivo
(sintagma
substantivo).
Cunha &
Cintra (2001)
Caracterizamse:
1.°) por
denotarem as
três pessoas
gramaticais.
2.°)
por
poderem
representar,
quando na 3.ª
pessoa,
uma
forma nominal
anteriormente
expressa;
3.°) por
variarem de
forma:
a) a função que
desempenham
na oração;
b) a acentuação
que nela
recebem.
Rocha Lima
(2005)
São palavras
que
representam as
três pessoas do
discurso,
indicando-as
simplesmente,
sem nomeá-las.
Os pronomes
pessoais retos
são os que
assumem
a
função
de
sujeito
da
oração.
23
Observações
A forma você
de uso familiar
é arrolada entre
os pronomes de
tratamento.
O autor inclui
você entre as
formas
de
tratamento
e
evidencia que o
pronome veio
da de Vossa
Mercê.
Inclui
você
somente entre
as formas de
tratamento
____________
Quadro 1: Os pronomes pessoais retos segundo as gramáticas tradicionais
Como se vê no quadro-síntese, as gramáticas normativas tratam tu da mesma
maneira, ou seja, todas agrupam tal forma pronominal entre os pronomes pessoais retos.
Já você, por seu turno, é apontado como um pronome pessoal sem ressalvas somente na
gramática de Rocha Lima (2005), sendo arrolado entre as formas pronominais retas
referentes à segunda pessoa, embora a concordância se realize na terceira. Nas demais
gramáticas – Cunha & Cintra (2001), Bechara (2004) e Luft (1990), você é inserido
entre as formas de tratamento. Bechara (2004), no entanto, faz uma observação quanto
ao pronome você, pois reconhece que o mesmo, no plural, funciona como um substituto
da forma vós – que já não é mais utilizada na modalidade oral da língua – sendo o plural
(vocês) utilizado em contextos familiares.
Você, hoje usado familiarmente, é a redução da forma
reverência Vossa Mercê. Caindo o pronome vós em
desuso, só usado nas orações e estilo solene, emprega-se
vocês como plural de tu. (BECHARA, 2004, p. 166)
Cunha & Cintra (2001) fazem ainda um adendo acerca dos pronomes tu e você.
No português europeu normal, o pronome tu é empregado
como forma própria da intimidade. Usa-se de pais para
filhos, de avós ou tios para netos e sobrinhos, entre
irmãos ou amigos, entre marido e mulher, entre colegas
de faixa etária igual ou próxima. O seu emprego tem-se
alargado, nos últimos tempos, entre colegas de estudo o
da mesma profissão, entre membros de um partido
político e até, em certas famílias, de filhos para pais,
tendendo a ultrapassar os limites da intimidade
propriamente dita, em consonância com uma intenção
igualitária ou, simplesmente, aproximativa. No português
do Brasil, o uso do tu restringe-se ao extremo Sul do país
e a alguns pontos da região Norte, ainda não
suficientemente delimitados. Em quase todo o território
brasileiro, foi ele substituído por você como forma de
intimidade. Você também se emprega, fora do campo da
intimidade, como tratamento de igual para igual ou de
superior para inferior.
24
É este último valor, de tratamento igualitário ou de
superior para inferior (em idade, em classe social, em
hierarquia), e apenas este, o que você possui no português
normal europeu, onde só excepcionalmente – e em certas
camadas sociais altas – aparece usado como forma
carinhosa de intimidade. No português de Portugal não é
ainda possível, apesar de certo alargamento recente do
seu emprego, usar você de inferior para superior, em
idade, classe social ou hierarquia. 1
No fragmento acima retirado da gramática de Cunha & Cintra (2001), os autores
fazem referência à generalização do uso de você em contextos que normalmente a
preferência seria pelo pronome tu. Cunha & Cintra (2001) assumem que você, no
português europeu, não é utilizado em relações assimétricas ascendentes, ou seja, de
inferior para superior, pois ainda carrega em si a noção de indiretividade advinda da sua
origem Vossa Mercê. Os autores advertem que o uso de você como forma de intimidade
no português europeu não é comum, preferindo-se tu.
Pode-se ainda tecer um
comentário contrário sobre a afirmação dos autores de que no português brasileiro o
pronome você não é utilizado em relações assimétricas de inferior para superior, estando
de acordo com a norma lusitana. No português brasileiro, o uso de você se ampliou em
contextos que antes só se usava tu perdendo, dessa maneira, sua característica principal
de marcação de distanciamento hierárquico e passando a ser utilizado em relações
simétricas e assimétricas descendentes e ascendentes.
A forma pronominal você,
portanto, no português brasileiro entra em confluência com tu assumindo valor similar,
uma vez que passa a ser utilizado por diferentes interlocutores, tendo seu uso
generalizado.
Observando essa descrição das gramáticas tradicionais, à exceção do Rocha
Lima (2003), percebe-se que todas insistem em tratar você, como um pronome de
tratamento, embora usualmente o mesmo figure como um pronome reto. Além disso, a
mistura de tratamento, entre as formas de segunda pessoa, tu e você, demonstram uma
confluência de formas que podem assumir, em determinados contextos o mesmo
significado referencial. Para ilustrar melhor essa questão, na seção seguinte serão
apresentados trabalhos atuais acerca da alternância das formas pronominais de segunda
pessoa, a fim de que sejam mostradas algumas reflexões acerca do tema.
1
Bechara (2004), p. 291-292.
25
1.3. Alguns estudos diacrônicos acerca do tema
Para a análise da variação pronominal das formas de segunda pessoa em dados
diacrônicos, é preciso levar em conta os trabalhos específicos sobre a questão do
tratamento pronominal, como é o caso de Rumeu (2004, 2008), Barcia (2006),
Marcotulio (2008). No primeiro caso, serão levantados os estudos referentes,
principalmente, ao final do século XIX e início do XX com base em diferentes
amostras: cartas de leitores, cartas pessoais, peças teatrais. O objetivo desse
levantamento é identificar os pontos confluentes em diferentes materiais.
1.3.1. A alternância entre tu e você
Com relação a estudos acerca das formas pronominais de segunda pessoa – tu e
você – os estudos são unânimes em observar a expansão do uso da forma advinda do
pronome de tratamento – Vossa Mercê –, que, primeiramente era utilizado em contextos
em que houvesse marcação hierárquica entre os interlocutores. No fim do século XIX e
início do XX, no entanto, passa a ocupar os mesmos contextos funcionais do pronome
tu em sua forma contrata você.
Barcia (2006) fez um estudo com base em cartas de leitores do século XIX
publicadas em jornais brasileiros, com o objetivo de investigar as formas pronominais
de segunda pessoa, apontando em que momento ocorreu a pronominalização de Vossa
Mercê, dando origem a você.
No corpus utilizado pela autora são encontradas diferentes formas pronominais e
nominais de tratamento – tu, vós, você, Vossa Excelência, Vossa Senhoria, Vossa Mercê
– que se comportam de maneira diferente. As formas tratamentais Vossa Excelência e
Vossa Senhoria são utilizadas em situações cerimoniosas, ao passo que Vossa Mercê
tem um caráter menos cortês e mais solidário utilizado em relações sociais
transacionais. Conforme Barcia (2006), tal forma teria sofrido um processo de
26
dessemantização – Lehmann (1985), Hopper (1991) e Heine (2002) – com a expansão
do seu uso em contextos diversos.
Nessas cartas de leitores oitocentistas, a presença de tu é verificado em textos
em que o grau de formalidade entre os interlocutores é menor. A forma pronominal
você, ao sofrer perdas semânticas quanto ao seu caráter menos solidário, acaba
concorrendo com tu em contextos menos formais, o que demonstra uma expansão no
seu uso. Embora seja evidenciada nessas cartas a presença de você em situações em que
não prevalecem relações hierárquicas, essa forma ainda é encontrada em alguns
momentos denotando situações transacionais em que se aproxima do originário Vossa
Mercê de caráter mais cerimonioso. O uso de você nessas cartas, portanto, oscila entre o
cerimonioso e o solidário, sendo, por isso, uma forma híbrida em processo de
gramaticalização.
Lopes e Machado (2005), utilizando-se de cartas familiares datadas do final do
século XIX redigidas por um casal de brasileiros cultos – Christiano Benedicto Ottoni e
Barbara Balbina de Araújo Maia Ottoni – aos seus netos – Mizael e Christiano –,
observam as estratégias pronominais usadas pelos missivistas, constatando a presença
de formas referentes tanto a tu quanto a você. O avô Christiano era professor e prezava
pela escrita conforme ditava às normas gramaticais da época. Isso fica evidente nas
cartas dele, pois, ao contrário de sua mulher Barbara, que mesclava formas do
paradigma de tu com formas do paradigma de você, o avô preocupava-se em manter o
paralelismo pronominal, fazendo sempre as correspondências dentro do mesmo
paradigma (tu, teu, te, contigo). Ele utiliza muito mais tu que você – segundo o que é
previsto pela tradição gramatical.
Essa “mescla” de tratamento que Barbara Ottoni fazia nas cartas – alternando em
um mesmo contexto entre formas referentes aos dois paradigmas – fez as autoras
perceberem que havia posições em que persistiam os pronomes associados a tu:
possessivos e complementos não preposicionados. O fato de haver essa combinação
entre formas de relativas a tu e a você já evidenciava que, nos finais do século XIX, em
relações íntimas e solidárias, essas estavam disputando espaço dentro do paradigma
pronominal do português brasileiro.
Machado (2006), em conformidade com o alargamento do uso de você previsto
em Barcia (2006) e utilizando peças teatrais do século XIX, mostra que essa nova forma
27
passa a ser utilizada em diferentes situações, tanto em relações simétricas quanto
assimétricas.
A substituição de tu por você ocorreu nos domínios
funcionais que pertenciam ao pronome tu no século XIX
e princípio do XX — relações simétricas (entre iguais) e
assimétricas descendentes (de superior para inferior),
cabendo às formas nominais, o predomínio nas relações
assimétricas ascendentes (de inferior para superior).
(MACHADO, 2006, p. 99.)
Assim, as situações não solidárias e mais formais em que antes era utilizado o
pronome você passam a ser os contextos em que se prefere o uso de formas nominais
para marcar o caráter cortês do discurso, ao passo que você assume posições antes
ocupadas por tu.
Soto (2001) fez um estudo que mostra, com base em cartas brasileiras do século
XIX e XX, haver uma dinâmica instável no quadro pronominal do português brasileiro.
Essa dificuldade em demarcar o lugar do outro no discurso se deve à entrada de você
como segunda pessoa. Esse estudo evidenciou que, em meados do século XX, ocorreu
uma ruptura na semântica de Poder relacionada a essa nova forma pronominal, uma vez
que o pronome você passou a ocupar espaço em discursos informais em que os
interlocutores encontravam-se em posições sociais simétricas.
O trabalho de Soto (2001) reitera esse valor flutuante e híbrido da forma você
nas cartas do século XIX. Por um lado, tal forma era empregada nas cartas do imperador
D. Pedro II à Condessa de Barral, por outro, aparecia nas cartas bastante informais de
Bárbara Ottoni quando se referia aos netos, filha e criada. Como afirma Lopes (2009), a
forma inovadora você transitava por espaços discursivo-pragmáticos distintos. Era um
tratamento veiculado pela elite brasileira com caráter cerimonioso, ao mesmo tempo em
que circulava como variante pronominal de tu-íntimo.
Outro dado importante do trabalho de Soto (2001) e, principalmente, de Rumeu
(2008), é o uso expressivo de você presente em produções femininas no mesmo período.
Tal preferência poderia ser uma estratégia de preservação, já que essa forma ainda
herdara o caráter indireto e atenuante da estratégia nominal de tratamento Vossa Mercê.
Nesse sentido, seria menos invasivo, menos “ameaçante ao interlocutor”. O tratamento
direto com o pronome tu poderia não ser adequado à mulher oitocentista numa
sociedade patriarcal.
28
Rumeu (2008) levanta algumas questões acerca desse uso, mostrando que a
difusão de você em diferentes relações sociais – tanto simétrica quanto assimétrica –
evidencia uma vulgarização e generalização dessa nova forma, passando a atuar em
confluência com tu.
O que os diversos trabalhos sobre o tema têm mostrado é
que a partir do século XVIII a forma vulgar Você tornase produtiva nas relações assimétricas de superior para
inferior, podendo até assumir, em algumas situações
sócio-pragmáticas, “conteúdo negativo intrínseco”, em
oposição à sua contraparte desenvolvida “Vossa Mercê”.
Por outro lado, no Brasil do século XIX, a concorrência
passa a ser maior entre Tu e Você em relações solidárias
mais íntimas, não sendo tal estratégia negativamente
marcada. (RUMEU, 2008, p.56)
O pronome você, portanto, embora tenha expandido seus contextos de uso em
fins do século XIX e início do XX, ainda preservava um valor discursivo-pragmático
atrelado à sua origem, sendo essa uma das hipóteses em que Rumeu (2008) se baseou
para justificar o uso dessa forma pelas mulheres.
Todos os estudos diacrônicos citados corroboram com a visão de que o pronome
você foi perdendo seu caráter que marcava o distanciamento entre os interlocutores,
passando a ser usado nos mesmos contextos que tu a partir do século XX. Apesar desse
espraiamento semântico no uso de você, tal forma ainda apresentava resquícios de
formalidade na documentação descrita nos estudos apresentados. Algumas questões
ainda não foram, contudo, respondidas:
a) A entrada de você no paradigma pronominal, como apontam alguns trabalhos
com corpora diacrônicos – Duarte (1993, 1995), Lopes (2008) – ocorreu por
volta da década de 1930. A frequência de você, nesse período analisado, supera a
de tu?
b) Trabalhos como de Rumeu (2008), Lopes & Machado (2005) apontam as
mulheres como sendo as maiores responsáveis pela inserção de você no
português brasileiro. Em razão de você ter um caráter mais indireto referente a
sua origem Vossa Mercê, a mulher, utilizaria mais essa forma como uma
maneira de resguardar-se do seu interlocutor. Esse resultado também se
confirma neste trabalho ou haveria outras questões relativas ao perfil
29
sociolinguístico dos remetentes que influenciariam no uso dessas formas de
segunda pessoa?
c) As missivas utilizadas neste trabalho não são de pessoas ilustres, por isso, os
indivíduos que as escreveram possivelmente não possuem uma cultura letrada
elevada. Em função disso, questiona-se se o grau de letramento2 dos remetentes
e a habilidade de escritura3 dos mesmos têm relação com a ocorrência dos
pronomes tu ou de você e as formas a eles associadas nas cartas?
2
Entende-se como letramento a capacidade de ler e escrever segundo às necessidade sociais do ambiente
em que o indivíduo está inserido. Ao contrário da alfabetização, o letramento não é só a habilidade em
reproduzir um sistema de códigos da escrita, mas a capacidade de leitura e escrita, cujas funcionalidades
relacionam-se com a aprendizagem de todo o contexto social e histórico que cerca o indivíduo.
Letramento é palavra e conceito recentes, introduzidos na linguagem
da educação e das ciências linguísticas há pouco mais de duas
décadas; seu surgimento pode ser interpretado como decorrência
da necessidade de configurar e nomear comportamentos e práticas
sociais na área da leitura e da escrita que ultrapassem o domínio do
sistema alfabético e ortográfico, nível de aprendizagem da língua
escrita perseguido, tradicionalmente, pelo processo de alfabetização.
(SOARES, 2004)
Desse modo, saber elaborar textos mais ordenado, respeitando às normas da escrita e, sobretudo,
consciente quanto à função do discurso produzido é um indício de que o indivíduo possui um grau de
letramento elevado.
30
2. Aparatos teóricos
A investigação que se pretende fazer nesse trabalho, como já expresso
anteriormente, consiste em uma análise sociolinguística quantitativa laboviana
(LABOV, 1994) das formas pronominais de segunda pessoa – tu e você – em cartas
particulares trocadas entre um casal em fins dos anos 30 do século passado. Para tanto,
levantaram-se diferentes grupos de fatores linguístico-discursivos e sociais a fim de
verificar como se dava essa alternância pronominal nesses âmbitos.
Como o corpus é constituído por cartas de cunho amoroso, será necessário
discutir as propriedades típicas desse subgênero, como a sua estrutura fixa
(BAZERMAN, 2006; MARCUSCHI, 2001), e, mais do que isso, o lirismo poético
próprio de um discurso íntimo (WATTHIER, 2010).
Outro aspecto primordial para uma análise, que se propõe sociolinguística, é a
identificação do perfil social dos missivistas. Como não foi possível identificar os dados
sociais referentes aos autores das cartas do corpus, foi necessário elaborar uma proposta
metodológica alternativa para a caracterização do grau de letramento dos remetentes a
partir da análise de aspectos textuais e grafemáticos da documentação. Para tanto, foram
utilizados os trabalhos de Marquilhas (1996) e Barbosa (1999) na análise de natureza
filológica, a fim de evidenciar marcas de oralidade no texto escrito e transposição de
propriedades da fala para a modalidade escrita.
A seguir serão apresentados alguns princípios da teoria variacionista postulados
por Labov (1994) que nortearam este estudo. Na sequência, serão apresentados alguns
aspectos que orientaram a análise filológica e, por fim, discutem-se as vantagens e
desvantagens da análise do gênero epistolar em estudos de sincronias passadas.
2.1. Teoria variacionista laboviana
Um dos pontos de maior discussão no Estruturalismo Saussuriano refere-se ao
fato de a língua ser analisada como um sistema homogêneo, ou seja, como uma
31
construção estrutural cujo domínio não assume variações. Nesse sentido, o contexto
social que motivaria a interação e o uso da língua acabam sendo desconsiderados.
Assim, temos o paradoxo saussuriano: o aspecto social
da língua é estudado pela observação de qualquer
indivíduo, mas o aspecto individual somente pela
observação da língua em seu contexto social. (LABOV,
2008, p.218)
Em conformidade com essa proposição, Labov (2008) aponta que a linguística
não só saussuriana, como também a teoria gerativa levavam em conta o conceito de
língua abstrata excluindo o comportamento social e o estudo da fala, o que torna as
análises que não se pautem somente na estrutura interna da língua inconsistentes.
É nesse contexto que surge a Sociolinguística Variacionista tendo como
princípios norteadores os postulados de Labov (1994) ao considerar que a língua é um
sistema heterogêneo regido por aspectos sociais, sendo por isso imprescindível observar
questões extralinguísticas. Para Labov (1994), Variação e Mudança são características
inerentes às línguas humanas, dado o seu caráter heterogêneo, sendo resultado de
manifestações constantes. Dessa forma, para entender a língua hoje é necessário que se
considerem as mudanças e variações que estão em curso, entendendo que aquelas são
oriundas de transformações graduais.
Os procedimentos da linguística descritiva se
fundamentam na concepção de língua como um conjunto
estruturado de normas sociais. Foi útil no passado
considerar essas normas como invariantes, e
compartilhadas por todos os membros da comunidade de
fala. Entretanto, estudos mais acurados do contexto social
em que a língua é usada mostram que muitos elementos
da estrutura linguística estão envolvidos numa variação
sistemática que reflete tanto mudanças temporais quanto
processos sociais extralinguísticos (LABOV, 1968,
p.110)
A variação linguística seria condicionada por fatores internos e externos,
devendo ser analisada sob uma perspectiva social, observando as mudanças passadas na
língua através da percepção de comportamentos sistemáticos. É exatamente essa
questão que Lucchesi (2004) levanta ao apontar essa nova maneira de fazer uma análise
linguística dos dados:
Era preciso considerar a variação como parte integrante
do sistema linguístico para que ela constituísse objeto da
análise linguística sistemática; rompendo, assim, com a
32
visão estruturalista de que o sistema linguístico seria o
domínio da invariância. A tarefa de determinar a
sistematicidade da variação levantava a necessidade de se
considerar os chamados fatores externos na análise
linguística, pois o que era, no plano estritamente
estritamente linguístico, aleatório tornava-se sistemático
quando correlacionado com fatores sociais estilísticos.
(LUCCHESI, 2004, p.166)
A sociolinguística, grosso modo, à luz dos postulados labovianos tem como
principais objetivos: perceber se o fenômeno analisado estaria em variação estável ou se
configuraria como um processo de mudança em curso; e postular os fatores internos e
externos da língua que condicionam o fenômeno variável.
Os apontamentos apresentados anteriormente serão considerados na análise, pois
nosso estudo tem por finalidade correlacionar o estudo da alternância entre formas
pronominais de segunda pessoa ao perfil social dos missivistas. Por isso, faz-se
necessário observar a influência de fatores extralinguísticos, ou seja, os que estão
estritamente relacionadas ao contexto social – nesse caso, aspectos relativos aos autores
das cartas, tais como o grau de letramento e o gênero –, no fenômeno analisado.
No caso específico da análise proposta aqui em que se analisam cartas ativas e
passivas de um casal, além dessas questões teóricas gerais, serão consideradas algumas
postulações feitas por Labov (1994) acerca da influência do gênero na mudança
linguística. Para o autor a mulher assumiria um caráter inovador nos processos de
mudança linguística, sendo a precursora na inserção de novas formas na língua. Nos
processos de variação, entretanto, as mulheres tenderiam a usar as formas não
estigmatizadas socialmente, preferindo estratégias próximas da norma padrão.
Rumeu (2008), por exemplo, em estudo sobre o tratamento em cartas
oitocentistas e novecentistas, confirma as hipóteses de Labov (1994) sinalizando um
comportamento relativamente inovador das remetentes femininas em seus dados:
É interessante observar os resultados de alguns estudos
sobre processos de variação lingüística que permitem
evidenciar a influência da variável gênero (sexo) na
escolha de uma dada forma variante. Tais constatações
confirmam a hipótese laboviana (1990) de que, nos
processos de variação, as mulheres tendem a usar as
formas que refletem a norma padrão, desviando-se, pois,
das variantes linguísticas socialmente estigmatizadas.
(RUMEU, 2008, p.90)
33
É importante evidenciar que o fato de a mulher ser inovadora não faz com que
opte pela estratégia linguística não padrão. No caso da forma pronominal você, apesar
de seu uso ter se estendido aos contextos de tu, perdendo assim seu caráter inicial de
distanciamento, tal estratégia não pode ser considerada como uma variante marcada
negativamente e muito menos estigmatizada.
Em síntese, nossa proposta de análise adota duas perspectivas intrinsecamente
relacionadas. Propõe-se, por um lado, estudar o uso variável de tu e você em cartas
trocadas por um casal de noivos em fins dos anos 1930, a fim de verificar: i) a forma
variante mais produtiva nas cartas produzidas pela noiva (Maria) e pelo noivo (Jayme);
ii) os fatores que motivam o emprego das duas formas pronominais; iii) o valor mais ou
menos conservador da forma você em processo de implementação no quadro
pronominal do português brasileiro. Por outro lado, pretende-se traçar o grau de
letramento dos missivistas tanto em termos das propriedades linguísticas presentes na
documentação quanto pelo uso mais ou menos generalizado do pronome você.
Parte-se da hipótese de que a forma você empregada nessas cartas seria o
prenúncio do pronome que se generalizou no português brasileiro. Nesse sentido, os
traços de distanciamento ou indiretividade advindos de Vossa Mercê, ainda
identificados na documentação remanescente de fins do século XIX, não estariam mais
presentes na variante você utilizada em nossas cartas de amor.
Para caracterizar o perfil dos remetentes e descrever as propriedades da amostra
de cartas editadas, faz-se necessário ainda uma incursão filológica, a fim de evidenciar
grafematicamente aspectos pertinentes à escrita dos autores das missivas e mostrar o
nível de domínio da norma padrão que os mesmos possuíam.
2.2. Estudos filológicos
Como já expresso anteriormente, o corpus utilizado neste trabalho é composto
de missivas de pessoas não-ilustres. Apesar das diversas visitas feitas a cartórios, ao
endereço constante nos envelopes e aos arquivos históricos, não foi possível obter dados
sobre os informantes. Em função dessas limitações, optou-se por tentar captar na própria
documentação características sociais dos remetentes, observando na estrutura das cartas,
propriedades da escrita referentes à grafia e a organização do próprio texto. Para tanto,
partiu-se dos estudos de Marquilhas (1996) e de Barbosa (1999) com o intuito de
34
identificar os traços que apontem os autores das cartas em questão – Jayme e Maria –
como remetentes mais ou menos letrados.
O grau de escolaridade (nível fundamental, médio e superior) tem sido um fator
importante na análise de certos fenômenos variáveis nos estudos baseados em dados da
oralidade. Isso se deve ao fato de os falantes com alto nível de escolarização
apresentarem maior sensibilidade às variantes prestigiosas, evitando as formas
socialmente estigmatizadas. Para sincronias passadas, contudo, os parâmetros de
escolarização devem ser mensurados por critérios de outra natureza seja por não se ter
informações sobre o nível de escolaridade do escrevente, seja pelo fato de os critérios
não serem comparáveis.
Atualmente é comum utilizar como critério para determinar falantes cultos, por
exemplo, o fato de o indivíduo possuir ensino superior completo. No entanto, percebese que o mesmo parâmetro não pode ser adotado para analisar corpora diacrônicos em
virtude da quase inexistência de cursos superiores no Brasil de fins do século XIX e
início do XX e dos parâmetros educacionais basearem-se em outros critérios. Barbosa
(2005) propõe que é necessário conhecer os valores de letramento da época em análise
para que seja possível traçar um parâmetro que vá guiar o estudo no que se refere ao
planejamento linguístico e à formalidade do texto.
Teoricamente, para sabermos o quão culto um dado
redator seria em uma determinada fase histórica, será
necessário, primeiro, vislumbrar os valores de letramento
da época que difiram dos da nossa; depois reconhecer os
modelos textuais de padrão culto objetivamente à
disposição. (BARBOSA, 2005, p. 30).
Utilizando-se de documentos oficiais e cartas de comércio do século XVIII,
Barbosa (1999), com base em critérios estipulados por Marquilhas (1996), analisou tais
textos a fim de evidenciar as características que permeavam os escritos de “mãos
hábeis” e “mãos inábeis”, procurando identificar aspectos fonético-fonológicos e
filológicos que evidenciassem o grau de letramento dos redatores dos mesmos.
Marquilhas (1996), em trabalho com manuscritos do Português Clássico do
século XVII, dispõe as cartas observando as características que essas apresentam, a fim
de observar uma manifestação física da escrita. Para tanto, a autora levanta algumas
características que seriam típicas das mãos inábeis, ou seja, de redatores com menos
35
habilidade com a escrita, estabelecendo um parâmetro para medir o grau de letramento
dos indivíduos.
A autora tenta traçar a letramento por meio da observância de alguns critérios
que qualifiquem indivíduos de mãos hábeis e inábeis, atestando que os primeiros seriam
aqueles que tivessem mais domínio do registro escrito e os outros, em contrapartida, os
que tivessem menos contato com esse registro. O quadro a seguir apresenta algumas das
características levantadas por Marquilhas (1996):
Características dos textos de mãos inábeis
1. Ausência de cursus
2. Uso de módulo grande
3. Ausência de regramento ideal
4. Traçado inseguro
5. Tendência às letras desenquadradas
6. Irregularidade da empaginação
7. Elenco limitado de abreviaturas
8. Falta de leveza ao conjunto
9. Uso de maiúsculas no interior das palavras
10. Hipersegmentação
Quadro 2: Critérios para caracterizar as mãos inábeis
Esses critérios funcionam como referência balizar que auxilia na identificação
dos autores com menos intimidade com o registro escrito, por isso, algumas dessas
características dizem respeito à qualidade da forma da letra do indivíduo. É de se
imaginar que pessoas com mais habilidade na escrita consigam ter traços mais firmes,
letras mais arredondadas e interligadas, mantendo uma cursividade homogênea.
Embora essas características já possam demonstrar que os remetentes dos
documentos têm ou não mais contato com textos escritos, essas não são suficientes para
provar o grau de letramento dos mesmos. Isso é verificado na própria análise de
Marquilhas (1996), pois, embora os indivíduos que apresentassem algumas das
características mostradas acima, linguisticamente, o conteúdo dos escritos transparecia
um nível de letramento mais elevado. Para tanto, a autora analisou a escrita tomando
como base à ortografia para que conseguisse uma descrição mais sólida acerca dos
escreventes em questão, agrupando os aspectos grafemáticos em dois grupos: o de
aquisição da escrita e o de marcas de oralidade na escrita.
36
Para o trabalho que é proposto aqui, não serão levados em conta todos os
aspectos levantados por Marquilhas (1996) e por Barbosa (1999). Foram necessárias
algumas adaptações e atualizações para que se dê conta da natureza da amostra
analisada. Diferentemente dos textos clássicos de Marquilhas (1996) e oitocentista de
Barbosa (1999), o corpus em análise é mais recente (século XX), sendo composto por
cartas de amor particulares.
O foco em nossa proposta se limita a aspectos que abrangem à presença de
oralidade no texto escrito e desvios grafemáticos. Para os manuscritos do Português
Clássico apontados por Marquilhas (1996), a autora levanta algumas marcas de
oralidade que estão apresentados de maneira sintetizada no quadro a seguir:
Monotongação / ditongação
Síncope de vogais pretônicas
Variação entre <e> e <i> / <o> e <u>
Alteamento das vogais [e] e [o] quando pretônicos
Variantes em [i] e [u] em monossílabos
Abaixamento das vogais [i] e [u]
Centralização
Epênteses
Nasalização
Variação entre [b] e [v]
Quadro 2: Marcas de oralidade
Na nossa amostra alguns aspectos, como a variação entre [b] e [v], por exemplo,
foram desprezados, visto que não são fenômenos recorrentes em textos contemporâneos
brasileiros ou tem baixa frequência no corpus.
Outro aspecto observado pelos dois autores refere-se à presença de formas
etimologizadas. Os manuscritos investigados por Marquilhas (1993) foram escritos no
chamado de período etimológico (ou pseudoetimológico). Nessa fase eram privilegiadas
as grafias mais antigas em função da sua origem grega e latina. Nesse sentindo, era
comum encontrar, em alguns documentos manuscritos do português clássico, termos
etimológicos como um subterfúgio do escrevente de se fazer passar por letrado.
37
No século XVIII, Barbosa (1999) também identifica a presença de formas
etimologizadas como vestígios de letramento:
Esses procedimentos por parte dos homens que
escrevem no Brasil do século XVIII configura-se,
pois, em um contraponto: ao invés de deixarem
passar, fosse por qualificação no domínio do sistema
escrito, fosse por cochilo, certos hábitos normais de
sua oralidade, as etimologizações, espelhadas nas
grafias dos impressos, representavam um esforço de
investir o texto manuscrito de qualidade.
(BARBOSA, 1999, p. 190).
Para Barbosa (1999) havia um esforço por parte das pessoas do período para
tentarem reproduzir as formas de origem latina, a fim de garantir um nível de letramento
maior aos textos que essas escreviam. Além disso, o autor afirma que a melhor maneira
de analisar os dois corpora setecentistas é fazer um balanço entre as formas
etimologizadas e os critérios que abarcam as questões fonéticas, pois, desta maneira,
seria possível medir o valor dos termos encontrados nos textos da época.
Tendo por base tais considerações e pela natureza de uma amostra de cartas dos
anos 30 do século passado, propõe-se quantificar aspectos relativos a desvios
grafemáticos, transposição da oralidade para a escrita e, em menor escala, a
etimologização das palavras. Será dada maior ênfase, contudo, na análise da frequência
dos desvios de grafia, visto que nossos missivistas eram indivíduos, aparentemente, sem
tanta letramento.
2.3. O modelo epistolar
O modelo epistolar, conforme aponta Souto Maior (2001), compõe um gênero
textual que abarca outros subgêneros, que seriam classificados de acordo com a sua
função discursiva – missivas comerciais, religiosas, tratados, particulares, etc. Vale
ressaltar, no entanto, que esses subgêneros seguem, no geral, o modelo de carta e a
variação do seu conteúdo está intimamente ligada à distância entre os interlocutores,
que atuam no texto, conforme aponta Bazerman (2006).
Do seu amplo uso no mundo clássico, podemos ver como
a carta, uma vez criada para mediar a distância entre dois
indivíduos, fornece um espaço transacional aberto, que
pode ser especificado, definido e regularizado de muitas
38
maneiras diferentes. As relações e transações em curso
são mostradas para o leitor e o escritor diretamente
através das saudações, das assinaturas e dos conteúdos da
carta. Além do mais, cartas podem descrever e comentar
– frequentemente de modo explícito – a relação entre os
indivíduos e a natureza da transação corrente [...] a
organização e as transações podem alcançar distâncias
maiores, como também os laços sociais entre os
indivíduos podem ser reforçados e até criados através de
relações indiretas com outras pessoas. (BAZERMAN,
2006c, p. 87-88).
Segundo Marcuschi (2001), a estrutura pré-fixada da carta (a datação, saudação
inicial, corpo do texto e saudação final) e as suas propriedades particulares fazem com
que seja reconhecido em qualquer língua histórica como um gênero textual.
Apesar de as cartas apresentarem uma estrutura relativamente fixa (como
saudações, assinaturas e conteúdos repetitivos), trata-se de um gênero que permite
identificar o nível de relação estabelecida entre remetente e destinatário naquele
contexto comunicativo e o grau de intimidade entre eles (BAZERMAN, 2006). Nesse
sentido, é um tipo de documento bastante vantajoso como fonte para estudos de
sincronias passadas por possibilitar a identificação da origem do remetente, do local e
época em que foi produzido, além de outras informações relevantes extraídas do próprio
texto como será discutido.
A seguir apresenta-se uma carta da Maria que servirá de exemplo para
demonstrar essa estrutura fixa da carta e a pertinência do gênero para o estudo proposto:
39
Paulo de Frontem 10 – 9 – 1936
Querido Jayme
Saudades
Desejo que já estejas passando melhor de saude que e
O meu deseijo eu e a Hilda chegamos bem grasas a Deus
mas com muita chuva a qui fais muito fro e
bom para que e casado a qui sotem mato tem
muito sapo grilo e gafanhoto sam os bichos do lugar
Jayme isto não entereça o que entereca e o nosso
a mor eu tenho chorado muito con saldades tuas
a qui e muito triste era bom sevoce estivese a
qui com migo.
Jayme manda-me dizer se tua mãe falou
alguma cousa com voce au meu respsito eu espero
voce no dia 27 sepoder vin no dia 20 era
bom por que estou com tantas saudades tuas
muitas lembranças da minha irma Imenia e dos meus
sobrinha e da Hilda e desta tambem te ama muitos
beijo e abraços
LOCAL / DATA
SAUDAÇÃO INICIAL
CAPTAÇÃO DA
BENEVOLÊNCIA
NÚCLEO
SAUDAÇÃO FINAL
Mariquinhas
ASSINATURA
Jayme não repare a minha carta por que eu
não sei escrever quando a cabar de ler voce
rasga a carta
vai uma rosinha por nome roso Mariquinhas
do quintal da minha Irma
OBSERVAÇÃO
Quadro 3: Estrutura de carta
A carta de Maria, apresentada no quadro 3, segue basicamente a estruturação do
gênero prevista em Marcotulio (2009), pois há a datação e indicação do lugar, saudação
inicial, o núcleo da carta, a saudação final – na qual está contida a despedida – e a
assinatura. Na saudação a Maria chama o noivo de “querido”, que é uma forma que
aparece muito em cartas, como forma de qualificar o vocativo a quem a missiva se
destina, estabelecendo uma relação [+ solidária, + íntima, - formal, - distante, + simétrica]
(BRAVO; BRIZ, 2004, p.80). Na seção destinada à saudação inicial, é comum aparecer
uma subseção intitulada de “captação da benevolência”. Trata-se de um trecho
repetitivo em todas as cartas do missivista e serve para captar a boa vontade do
destinatário para com o conteúdo da carta que vem em seguida. Como as cartas são
documentos em que estão explícitos ou subentendidos algum tipo de pedido,
reclamação ou solicitação, a captação da benevolência costuma ser bastante recorrente
40
para que haja uma atitude cooperativa entre remetente-destinatário. Dessa forma, a
captação de benevolência nessas cartas analisadas costuma apresentar desejos de boa
saúde para o remetente e os familiares dele (LOPES, 2011).
Após essa parte inicial da carta, há o núcleo constituído do assunto a ser tratado
na missiva. Essa é a parte mais criativa da carta, já que é mais livre para o remetente
utilizá-la como achar melhor. Nas cartas em questão, os assuntos tratados giram em
torno do sentimento que o casal de noivos sente um pelo outro, já que são missivas
amorosas. Nessa seção, contudo, há sempre referências sobre as cartas anteriormente
enviadas, bem como o as atividades que têm feito. Tal aspecto é bastante interessante e
peculiar nesse corpus, porque se tem a possibilidade de acompanhar o “diálogo” travado
entre os dois missivistas durante dois anos. Há as cartas enviadas e as respectivas
respostas de cada um deles (cartas ativas e passivas), o que permite controlar facilmente
a história de vida de cada um como um casal e o tratamento empregado entre eles.
Ao final da carta há a uma seção na qual o remetente despede-se enviando
abraços ou saudações ao destinatário e, muitas vezes, aos familiares. As cartas
amorosas, por terem um teor mais intimista, acabam tendo uma saudação final que
denota essa proximidade entre os missivistas, como pôde ser observado no quadro 3. A
noiva manda saudações de familiares, e beijos e abraços ao noivo, antepostos sempre de
um intensificador muitos, que atribui mais particularidade sentimental ao texto.
Em seguida há a assinatura da remetente que se identifica como “Mariquinhas”.
Trata-se de uma forma carinhosa pela qual a própria noiva se denomina. O noivo,
diferentemente de Maria, assina sempre o nome completo ao final da carta.
Em várias cartas de Maria há observações que constituem recados além do
conteúdo da carta e outros lembretes que servem de alerta ao noivo, como pode ser
observado também no quadro 3. Nesse trecho ela informa a Jayme como proceder ao ler
a missiva. Apesar de essa seção – mais denominada post scriptum (P.S.) – ter como
principal função avisar o remetente sobre algo, Maria utiliza-a como prolongação do
núcleo da carta, fazendo longos comentários. Já o noivo escreve poucas observações
(P.S.), utilizando tal seção de forma mais objetiva, como, por exemplo, o horário do
trem em que a noiva chegará para poder encontrá-lo.
41
As cartas de amor têm como principal característica o caráter íntimo e os
assuntos que permeiam a subjetividade sentimental dos remetentes, de forma que o
conteúdo das missivas são sempre poéticos e líricos. Esse é um aspecto que será
trabalhado nas cartas na análise linguística, já que se levantam, para esse trabalho,
questões pertinentes à influência do gênero textual na análise proposta acerca das
formas de tratamento de segunda pessoa.
As cartas de amor, embora não tenham um formato específico como os outros
gêneros epistolares, apresentam algumas particularidades temáticas, como aponta
Bastos (2003). O autor ressalta que o tom subjetivo e existencial da carta de amor são
aspectos característicos, embora, tais missivas não abandonem, conforme aponta Bastos
(2003), o “código de civilidade epistolar”. Nesse sentido, as cartas de amor abarcam o
conteúdo de caráter confidencial e intimista, mas obedecem ao formato previsto pelo
gênero. Watthier (2010) destaca que a carta de amor é um gênero utilizado nas relações
amorosas, tendo os remetentes e destinatários laços de grande proximidade que os
tornam íntimos.
Sob tal enfoque, caracterizada por uma certa intimidade
entre remetente e destinatário, respeitando, entretanto, os
costumes do grupo social a que pertencem, a carta de
amor pode ser empregada como veículo de expressão dos
sentimentos mais profundos, sejam eles causados pela
dor de um amor não correspondido ou por uma paixão
profunda e recíproca. (WATTHIER, 2010, p. 45)
O caráter particular das cartas, em especial as amorosas, é um dos aspectos que
favorece ao estudo das formas de tratamento de segunda pessoa, uma vez que se espera
que, nesse tipo de texto, haja uma interação dos interlocutores com maior proximidade,
observando as variáveis linguísticas e sociais que favorecem a manifestação de um ou
outro pronome. Watthier (2010), analisando tal subgênero, elenca as formas tu e você
dentre as mais íntimas:
Entre as expressões mais comuns, Jiménez (2000) aponta
tu ou você aos mais íntimos, aos amigos e aos parentes e
senhor ou senhora para os mais idosos, devido a uma
hierarquia, na qual os menores se dirigem com respeito
aos maiores e esses se dirigem com afeto àqueles. Nesse
último tratamento citado, podemos incluir, também, o
tratamento do aluno ao professor, ou do empregado ao
patrão. (WATTHIER, 2010, p. 59)
42
A utilização de cartas para esta análise dos pronomes de segunda pessoa – tu e
você – tem grande importância, dado o caráter bastante pessoal da documentação, o tipo
de relação estabelecida entre o remetente-destinatário, o gênero dos missivistas, o perfil
social de cada um e o papel assumido por eles nesse “diálogo escrito” travado em fins
de uma época bastante representativa para a história do Brasil.
2.4. Corpus
Nesta seção será descrito o corpus, sendo abordados os aspectos que parecerem
mais relevantes acerca do material utilizado na análise.
2.4.1. A constituição da amostra
O corpus deste trabalho, ao todo, é composto de noventa e sete cartas que foram
trocadas por um casal de noivos residentes no estado do Rio de Janeiro, Jayme de
Oliveira Saraiva e Maria Ribeiro da Costa, entre os anos de 1936 e 1937. Da Maria há
um total de vinte e nove cartas escritas, em sua maioria, na cidade de Petrópolis. Já do
Jayme há sessenta e oito cartas remetidas da cidade do Rio de Janeiro, sendo duas
dessas missivas, poemas.
Essa documentação que serviu de base para esta análise, ao contrário de outros
materiais utilizados em estudos linguístico-históricos, não foi localizado em nenhum
acervo ou arquivo de acesso público, e sim recolhido, ao acaso, no lixo, no bairro de
Ramos, subúrbio do Rio de Janeiro4. Por essa razão, todos os dados obtidos foram
retirados das próprias cartas a fim de que se fosse possível fazer uma descrição acerca
dos autores das mesmas.
4
As cartas foram encontradas por um estudante da Faculdade de Letras da UFRJ, Delano de Souza
Garcia, que gentilmente cedeu o material para o projeto de pesquisa coordenador pela Professora Célia
Regina dos Santos Lopes. Agradecemos muitíssimo ao estudante por sua importante colaboração dada a
originalidade e valor histórico do material para estudos linguísticos e histórico-sociais.
43
Apesar do esforço em tentar traçar o perfil dos remetentes dessas missivas,
informações sobre quem foram essas duas pessoas tornaram-se difíceis5 porque se
tratavam de indivíduos não-ilustres, por isso não há quaisquer materiais que descrevam
a genealogia familiar deles. Mesmo com tais limitações, a descrição sociolinguística dos
autores das cartas pode ser depreendida através do conteúdo das mesmas, já que o texto
é um produto social e cultural (MARCUSCHI, 2008, p.151), e, portanto, reflete as
interações histórico-sociais das pessoas em discursos proferidos em diferente meios,
incluindo os de modalidade escrita, como a carta.
Tendo os dados deste trabalho sido retirados de cartas particulares, faz-se
necessário uma descrição mais detalhada acerca dos remetentes e das missivas que
escreviam. Por essa razão, a seção seguinte trará informações obtidas através da leitura
das missivas e todo o contexto social que envolvia o casal, perpassando a
particularidade das relações familiares com as quais conviviam.
2.4.2. Quem foi Jayme e Mariquinhas? Breve perfil sociolinguístico
dos autores das cartas
Foram feitas diversas tentativas em busca de informações que identificassem os
missivistas das cartas analisadas – Jayme e Maria –, para que fosse possível traçar o
perfil social do casal de noivos. As buscas consistiram em idas a arquivos históricos e
religiosos, incursões a endereços e sedes administrativas, conforme estão enumeradas a
seguir:
a) Tentou-se, primeiramente, buscar informações acerca de Jayme, já que os dados
referenciais mostrados na maioria das missivas do noivo remetem a um endereço
situado no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro: Rua Diomedes Trota, Ramos, número
37. Não foi possível obter nenhum dado nesse endereço, pois a rua sofreu, ao longo de
várias décadas, sucessivas mudanças, que resultaram em exclusões de alguns números
(incluindo o que estava sendo procurado). Ao conversar com moradores da rua,
informaram-me de que naquela localidade era onde passava o bonde, sendo, atualmente,
apenas uma rua residencial.
44
b) Em função dessa tentativa frustrada em buscar informações no endereço indicado nas
cartas de Jayme, os moradores residentes dessa localidade indicaram uma sede
administrativa em que talvez pudessem ser conseguidos os dados buscados. Nessa
região administrativa, localizada no bairro de Ramos, funcionários informaram que
ainda não havia um sistema informatizado que permitissem buscas extensas. Além
disso, declararam que poderia ser difícil achar as informações que eram buscadas em
virtude de as regiões limítrofes dos bairros terem se modificados, e aquela sede
administrativa englobar outros bairros adjacentes, como Bonsucesso e Penha. Isso
significava que os dados antigos do bairro de Ramos poderiam estar em alguma região
administrativa próxima, e não necessariamente naquela. Com a impossibilidade de
busca de informações nas regiões administrativas do bairro de Ramos, procurou-se uma
alternativa para chegar a dados reais que identificasse os imóveis que apareciam nas
missivas.
c) As cartas possuem os dados dos endereços de onde foram remetidas, por isso buscouse informações no Registro de Imóveis, a fim de buscar dados da empresa onde Jayme
trabalhou – localizada na Rua Buenos Aires, Centro do Rio de Janeiro – e a residência
dele. Não foram obtidos dados da empresa que pudessem levar ao missivista, mas foi
possível saber que a empresa – especializada em importação e exportação de produtos
têxteis – não existe mais nem em um endereço diferente ao indicado na carta. As
informações residenciais também não puderam ser obtidas, já que não havia como
conseguir detalhamento quanto a Jayme ou a casa onde ele morou. Dessa forma, o passo
seguinte seria tentar buscar dados em arquivos históricos, que contivessem dados de
pessoas não ilustres.
d) Foram feitas incursões no Arquivo da Cúria, localizada na Catedral Metropolitana de
São Sebastião do Rio de Janeiro, na capital carioca, a fim de buscar dados históricos que
pudessem relevar o perfil social dos missivistas. Por se tratarem de indivíduos católicos,
levantou-se a hipótese de que haveria dados no Arquivo da Cúria referentes a
celebrações típicas do catolicismo, como batismo e comunhão. Na Cúria, a funcionária
informou que naquele arquivo havia apenas registros mais antigos – do século XIX para
trás – por isso, informações da década que eu procurava – 1930 – não podia ser
encontrada lá. Registros mais recentes são arquivados nas arquidioceses situadas nos
bairros em que ocorre a celebração. A fim de indicar a possível arquidiocese
responsável pelos registros dos missivistas, a funcionária da Cúria buscou igrejas
45
localizadas no bairro de Ramos, que já existiam na década de 1930. Embora tenha sido
encontrada uma só igreja na região por volta da década de 1930 – Nossa Senhora das
Mercês de Ramos –, a funcionária avisou que não seria possível a obtenção de dados
relativos às pessoas buscadas. Informações sobre os missivistas só poderiam ser obtidas
mediante autorização da família ou em caso de parentesco, já que não são pessoas, cujos
dados estão disponíveis em domínio público – período que corresponde a cem anos após
a morte da pessoa.
e) A funcionária do Arquivo da Cúria, apesar de não poder ajudar quanto às
informações que haveria nos registros da Igreja, indicou uma página eletrônica em que
poderia ser buscados dados genealógicos relativos a famílias e indivíduos que já haviam
falecidos. A página6 não foi suficiente para revelar nenhum dado dos missivistas, pois
não traz todos os registros de óbito. E por se tratarem de sobrenomes comuns – Oliveira
e Ribeiro da Costa – havia um grande volume de indivíduos com o mesmo nome.
f) Em função dessa busca por nome de família, tentou-se vasculhar através dos meios
virtuais o nome completo dos missivistas. Maria Ribeiro da Costa, por ser um nome
comum, não indicou nenhum endereço eletrônico que pudesse relevar informações
importantes. Já no caso de Jayme de Oliveira Saraiva, por não ser um nome comum,
apareceram dados referentes a um concurso – registro em Diário Oficial – em que ele
havia sido aprovado, na 1ª Região Militar, que fica no Centro do Rio, no Palácio Duque
de Caxias, datados de 1940. Devido a essas informações, houve idas ao Arquivo
Histórico do Palácio Duque de Caxias para que pudesse ser obtido qualquer dado sobre
Jayme. Os militares que trabalhavam no arquivo fizeram buscas entre os servidores
civis e militares que atuaram nesse período, mas não conseguiram encontrar nenhum
dado. Informaram que o registro dessa pessoa que era buscada poderia estar nas outras
regiões militares espalhadas pelo Brasil, já que era época em que estava ocorrendo a
Segunda Guerra Mundial, e havia convocação e alistamento em massa de homens.
Apesar de os funcionários desse arquivo terem se disposto a procurar dados sobre
Jayme, foram contundentes em afirmar que informações pessoais não poderiam ser
reveladas, já que se tratava de um registro que não era de domínio público.
6
http://pilot.familysearch.org/recordsearch/start.html#p=collectionDetails&c=fs%A1582573
46
Devido à impossibilidade de obter informações através de informações em
registros públicos e arquivos históricos, a descrição do perfil sociolinguístico dos
remetentes está respaldada somente nas missivas.
Por informações que constam das cartas, Maria tinha três irmãos: Ismênia,
Neuzinho e Antoninho. A primeira, juntamente com os seus filhos, vivia na mesma casa
que ela em Petrópolis e os dois rapazes moravam com os pais na capital, na Rua São
Francisco Xavier, Zona Norte do Rio. Além desses familiares, Maria tinha uma filha
chamada Hilda e era mãe solteira, pois em nenhum momento faz menção ao pai da
criança.
Jayme trabalhava em uma empresa de importação e exportação de produtos
têxtis situada na Rua Buenos Aires, 160, no Centro da então capital federal. Esses dados
puderam ser obtidos através dos envelopes ainda mantidos. Ao longo das cartas,
localizaram-se alguns endereços que sugerem ter ocorrido uma mudança de imóvel por
parte de Jayme. O noivo morava com os pais e irmãos, sendo que um deles chamava-se
Zezinho. Por morar em bairros localizados no subúrbio do Rio, Jayme costumava se
deslocar para o trabalho por meio de bonde e tinha como hábito ir à igreja da Penha.
A mãe de Jayme não parecia gostar da relação que ele mantinha com Maria e
isso fica evidente em vários momentos das cartas dele e dela:
1) “Minha mãe falou também, que não se metia em mais nada, porque | se fosse o
nosso destino nos casavamos mesmo e não adiantava estar se me- |tendo, ela
culpa somente a sua irmã, a sua irmã é que foi afronta-la.” (Jayme /Maria –
10/09/1936)
Maria solicitava em várias cartas que ele a avisasse caso a sua mãe falasse
alguma coisa a respeito dela, o que evidencia o quanto a noiva não era bem vista pela
família do rapaz. Outro fato curioso é que Maria sempre pedia ao noivo que ele rasgasse
as cartas para que ninguém na casa dele as visse e descobrisse os encontros secretos que
mantinham:
2) “Jayme manda-me dizer se tua mãe falou |alguma cousa com voce au meu
respsito [...] eu pesso-te para rasgares a |carta” (Maria – 12/01/1937)
3) “[...] estou e m- |uito triste e de saber que o ambiente em tua |casa e suportável
isto tudo e por minha cau- |as eu peco-te perdão e não fiques san- |gado com
migo, e não se esqueça da tua |noivinha que tanto te ama. | [...] Eu acho melho
que tu não deves vir na minha |casa tam sedo a te os teus pais ficarem cal- |mos
47
com você, se você não ficares sangado |eu posso-te esperar todos os sábados a
noite para |evitar de vires da minha casa” (Maria/Jayme – 14/02/1936)
Por causa da desaprovação dos pais do Jayme quanto ao relacionamento que ele
mantinha com Maria, muitas cartas dela eram enviadas à casa dos seus pais, cabendo ao
noivo, com a ajuda do irmão dela, pegá-las.
Jayme mostrava-se disposto a enfrentar os pais para manter a relação com Maria
e para assumir Hilda como filha. Esse talvez fosse um dos motivos do desgosto dos pais
de Jayme, já que ela tinha uma filha, fruto de um relacionamento com outra pessoa e,
para os padrões da época, isso não era bem visto. Por essa razão, muitos dos encontros
do casal se davam de maneira secreta, sendo necessário, algumas vezes o uso de
desculpas a fim de disfarçar desconfianças que pudessem surgir por parte da mãe de
Jayme. A igreja da Penha aparece na documentação, aliás, como um local onde Maria e
Jayme se encontravam. Os encontros ocorriam, na maioria das vezes, aos domingos, já
que a distância entre os dois impedia que pudessem se encontrar com muita frequência:
4) “[...] eu no Domingo de |carnaval eu vou a missa na Penha |ve se pode ir com
migo se pode man- |da-me dizer que eu te espero no por- |tam da Penha as 8 ½
horas” (Maria/Jayme – 28/01/1937)
Havia ocasiões em o casal combinava de se encontrar na estação de trem Barão
de Mauá, na região portuária da cidade:
5) “Amanhã nos encontraremos de manhã em |Barão de Mauá, a hora do costume e
combinaremos, |encontros.” (Jayme/Maria – 29/10/1936)
Por vezes, os noivos não utilizavam esse local de encontro porque o irmão do
Jayme, Zezinho, muitas vezes o acompanhava até a estação de trem. Essa é uma das
razões de o ponto de encontro do casal ser a igreja, já que não seria um lugar que
despertaria qualquer desconfiança por parte da família do Jayme. No fragmento, a
seguir, Maria marca um encontro na igreja da Penha:
6) “[...] eu no Domingo de |carnaval eu vou a missa na Penha |ve se pode ir com
migo se pode man- |da-me dizer que eu te espero no por- |tam da Penha as 8 ½
horas” (Maria/Jayme – 28/01/1937)
48
Além de contextualizar o casal em termos do bairro em que moravam, a atuação
ocupacional de um dos remetentes, o local de trabalho de Jayme, a descrição da família
e os problemas vividos pelo casal, faz-se necessário destacar, na próxima seção, a
temática que permeia a documentação produzida.
3.2. O conteúdo das missivas
As missivas trocadas por Jayme e Maria, por se tratarem de textos amorosos, são
repletas de versos e discursos repetidos que remetem ao gênero cartas amorosas. Dessa
forma, é fácil encontrar nas cartas, sobretudo nas de Jayme, trechos que mais parecem
versos, embora estejam em forma de prosa, e palavras e expressões de uso literário,
aproximando-se de textos poéticos. No exemplo (7) a seguir, há um trecho que foi
retirado de uma carta que o Jayme enviou à Maria:
7) Para mim tu es maior que toda | a riqueza que há neste mundo, | Tu és toda a
minha fortuna a minha | riqueza, e meu ser, a minha maior ventu- | ra neste
mundo é amar-te e querer-te cada | vez mais. | Sinto que em ti é que esta toda a |
minha existencia, por isso quero-te muito | para poder viver eternamente, sempre
em teus | braços recebendo as caricias tuas, que tanto me | acalentam e me dão
vida.” (Jayme/Maria – 02/03/1937)
Pode-se perceber no trecho (7) que Jayme utiliza-se de palavras não usuais em
discursos orais e de expressões que se aproximam de textos mais poéticos – “acalentam
e me dão vida”. Expressões que denotam o sentimento que o noivo sente por Maria e o
desejo de tê-la ao seu lado são frequentes nas cartas de Jayme, o que reflete nos textos
dele uma subjetividade lírica, como se observa nesse fragmento: “Para mim tu es maior
que toda a riqueza que há neste mundo, Tu és toda a minha fortuna [...]”. É importante
destacar que alguns desses trechos líricos que ocorrem na carta aparecem com mais
frequência em estruturas fomulaicas, repetindo-se em várias missivas: tu es.... tu és...
Através da leitura das cartas, percebe-se que há uma diferença quanto ao grau de
instrução dos missivistas. Embora se possa dizer que Jayme não dominava plenamente a
norma padrão em suas cartas pela presença de alguns desvios recorrentes, notou-se que,
em termos comparativos, ele apresentava maior contato com os modelos de escrita.
Maria, apesar de apresentar mais desvios grafemáticos e uma estruturação sintática das
49
sentenças bem simples, pode ser considerada como alfabetizada (sabia ler e escrever) e
possuidora de uma cultura mediana nos termos de Barbosa (2005).
8) “não repares a minha carta nei os meus eros, | eu não sei escrever cartas de amor
como voce eu quando | lei chego a chorar, voce sabe que eu sou uma burinha”.
(Maria/Jayme – 07/10/1936)
Maria tem consciência de que não possui tanta familiaridade com o texto escrito,
como se constata em (8), pois repete sistematicamente para o Jayme não reparar na falta
de domínio dessa modalidade.
9) “eu não queria te dizer eu fui aumedico | no dia 20 de manha por que eu passei |
mal de noite não pude dormir com | muita no meu coração e com falta | de ar o
medico de me deu calmante | elle me perguntou se eu tinha me a | borecido eu
dise que sim ella falou | que era por causa disso de meaborecer | que eu estava
muito nervosa mas | agora vou melho com a graça de | Deus. a pesar de voçe me
mandar | uma carta alegre a indanão estou | comformada eu veijo a carta | do dia
17 as minhas lagrima comesão | a cair.” (Maria/Jayme – 21/01/1937)
As cartas da Maria apresentam vários desvios ortográficos, como ausência de
sinais de pontuação e insegurança na escrita das palavras. No trecho (9), nota-se que não
há planejamento textual, o que evidencia a falta de contato da Maria com textos escritos.
Já as cartas do Jayme não apresentam muitos desvios grafemáticos e demonstram
conhecimento acerca da modalidade escrita. Isso fica evidente, principalmente, quando
comparamos as cartas dele e dela e observamos o quão diferente é a estruturação do
texto. Além disso, o texto do Jayme, em muitos momentos, tem um cunho poético,
denotando que ele, de alguma forma, domina, ou ao menos, tem contato com discursos
líricos tão comuns ao gênero carta de amor.
50
3. A análise filológica das missivas
Nesta seção, será feita uma incursão filológica utilizando-se alguns tópicos
levantados por Marquilhas (1996) e Barbosa (1999), a fim de que se possa traçar o perfil
sociolinguístico dos remetentes das missivas.
As hipóteses que nortearão esta análise filológica, dispostas em seguida,
baseiam-se nos trabalhos já citados7, e têm como objetivo propor uma metodologia
alternativa para identificação do grau de escolarização e/ou letramento dos remetentes a
partir de uma visão escalar: [+] ou [-] letramento:
1. A ausência ou presença desvios grafemáticos pode ser um indício do grau de
letramento dos remetentes, por isso espera-se que as taxas de frequência
desses desvios sejam mais altas na produção dos missivistas com pouco
domínio da norma escrita. A transposição da oralidade para a escrita é um
fator que contribui para que haja mais realizações de desvios grafemáticos,
portanto, é um indício de baixa letramento do missivista, uma vez que
evidenciaria pouca intimidade com textos escritos.
2. O uso de variadas palavras etimologizadas ou pseudo-etimologizadas pode
indicar que o missivista tenha tido mais contato com textos escritos e, por
isso, tenha maior letramento, conforme trabalho de Barbosa (2005).
3. A variabilidade de abreviaturas pode ser um indicativo de maior domínio por
parte do remetente desse artifício linguístico. Espera-se que o missivista que
detenha um maior aporte linguístico-cultural seja capaz de utilizar esse
recurso mais eficientemente – embora não seja esse o critério mais relevante
para o nivelamento da letramento dos remetentes.
7
Marquilhas (1996) e Barbosa (2005) e (1999).
51
4. A segmentação e junção silábica e/ou vocabular8 é um dos principais
aspectos para caracterização dos missivistas em mais ou menos letrados, pois
são questões que refletem o contato e domínio dos mesmos com textos
escritos, como aponta Marquilhas (1999).
Optou-se por esse viés de análise devido à impossibilidade de serem obtidas
informações acerca dos autores das cartas – Jayme e Maria – em repartições públicas,
dada à particularidade do corpus, como já foi explicitado em outra seção. Dessa forma,
tentou-se buscar um método que pudesse ser eficiente para levantar dados dos
remetentes através da sua própria produção escrita. Trata-se de uma tentativa de
identificar o perfil social dos missivistas a partir de características peculiares à sua
escrita de maneira a explicitar o seu grau de letramento. Para tal tarefa foi utilizada uma
ferramenta computacional auxiliar, o programa de edição eletrônica E-dictor (PAIXÃO
DE SOUZA; KEPLER, 2007), que será apresentado mais detalhadamente a seguir. A
proposta é apresentar alguns desdobramentos desse programa como um aparato
metodológico complementar na coleta automatizada de itens que possam evidenciar o
nível do domínio da escrita por parte dos autores das cartas.
3.1. Metodologia
3.1.1. A edição de corpora diacrônicos
Os estudos no âmbito da linguística histórica que fazem uso de macro corpora
diacrônicos sempre se depararam com dois problemas aparentemente insolúveis. Por um
lado, há a preocupação de uma edição o mais possível fidedigna do documento e, por
outro, existe o afã de se obter, por buscas automáticas, um número significativo de
textos de épocas passadas9. Dessa forma, uma ferramenta que confira a integridade do
texto e que, ao mesmo tempo, tenha a agilidade do sistema computacional torna-se cada
vez mais necessária, uma vez que cresce a demanda por mecanismos que possibilitem
8
Chama-se de segmentação neste trabalho vocábulos fragmentados, como: a qui, com migo e estaç-ão. A
junção, por sua vez, é o processo inverso no qual há a união de elementos que deveriam estar separados,
como em mezango e pramin.
9
Não serão discutidos aqui, os problemas advindos de análises baseadas em textos escritos para retratar a
língua de um dado momento no tempo
52
mais facilmente o acesso a textos antigos diversificados de vários gêneros e autores com
perfis distintos.
Uma das maneiras de se reproduzir um texto antigo é através do fac-símile, em
que são dispostas imagens dos escritos, seja por meio de foto ou de aparelhos de
obtenção de imagem digital. Embora o objetivo de estudos linguísticos diacrônicos leve
em consideração sempre a fidelidade da escrita, a transcrição é uma maneira de torná-lo
mais fácil de ser manuseado e trabalhado pelo pesquisador. Nesse ponto, podem-se
distinguir dois tipos de edições: Edição Diplomática e Edição Semi-Diplomática. A
Edição Diplomática consiste na reprodução do texto, com interferência mínima do
editor, por isso mantêm-se expressões e construções, por exemplo, que possam soar
estranhas a um falante atual da língua. Já a Edição Semi-Diplomática, que é a usada
com mais frequência em estudos de fenômenos linguísticos, sofre algumas
interferências por parte do editor como o desenvolvimento de abreviaturas e até mesmo
modernização de termos antigos. Esse tipo de edição facilita a preparação dos textos
para estudos linguísticos porque torna o texto mais acessível sem deixar, no entanto, de
mostrar a sua morfologia e sintaxe.
Para uma análise linguística com textos digitais, além de haver a necessidade de
o texto ser fiel ao seu original, é importante que haja mecanismos que facilitem a busca
dos fenômenos que são interessantes ao pesquisador e agilizem o trabalho de seleção de
dados pertinentes. Nesse sentido, o E-dictor é uma ferramenta criada para garantir essa
tarefa, pois é um editor que consegue resguardar informações do texto de interesse
linguístico e filológico e, ao mesmo tempo, gera a versão modernizada empregada nas
buscas automáticas.
3.1.2. O E-dictor
O programa E-dictor10 foi criado primeiramente para atender às necessidades do
Corpus Anotado Tycho Brahe, conforme ressalta Paixão de Sousa (2009) – que consiste
em um grande arquivo de textos de autores portugueses do século XIV ao XIX . A
finalidade era desenvolver uma ferramenta que pudesse auxiliar no processo de edição
10
O
E-dictor
pode
ser
obtido
gratuitamente
http://www.ime.usp.br/~tycho/corpus/manual/prep/index.html
através
do
endereço
eletrônico
53
de escritos antigos. Um dos aspectos de maior vantagem no uso do E-dictor refere-se ao
fato de ele dar agilidade a processos de busca e facilitar notações de expressões
editadas, tornando possível ver versões atualizadas e antigas de um mesmo documento.
O funcionamento do E-dictor consiste em gerar arquivos XML – responsáveis
por facilitar buscas e possibilitar notações diversas no texto editado. Há diversas opções
quanto à manipulação do texto editado, conforme aponta Paixão de Souza (2009)11.
Não interessa aos objetivos desse trabalho discutir todos os recursos,
possibilidades e vantagens que o programa disponibiliza ao usuário. O intuito é centrar
no processo de edição da versão original para a versão modernizada. Os mecanismos de
edição consistem em notações que são atribuídas ao programa conforme a necessidade
do texto. O E-dictor vem, inicialmente, com alguns mecanismos, como a junção e a
segmentação, além de outras indicações (ilegível, rasurado, tachado, sobrescrito).
Durante o processo de edição do texto informações são indicadas pelo usuário para que
seja possível, a qualquer tempo, comparar ou acessar a versão original e a modernizada.
O E-dictor atribui uma hierarquização dessas propriedades conforme a vontade do
editor, sendo essa característica que torna possível ver todos os níveis de mudança que
uma palavra pode sofrer. Dessa forma, mesmo que uma palavra seja marcada com as
notações de segmentação e junção, por exemplo, será possível recuperar todos os
processos feitos ao longo da edição. Essa função fica evidente no trecho a seguir:
Por padrão, o E-Dictor assume dois níveis básicos de
edição, a saber, junção e segmentação. O primeiro
permite a junção de segmentos de palavras eventualmente
separadas no original (por quebra de página, por
exemplo) e o segundo é utilizado para (des)segmentar
uma palavra. Estes são os níveis mínimos necessários à
ferramenta. A partir daí, os níveis são cadastrados pelo
usuário, com base nas necessidades de edição de seu
contexto. Os níveis de edição devem ser cadastrados e
ordenados, conforme a prioridade de aplicação. Este
sistema foi pensado para um contexto em que um nível
de edição não pode "conter" outro(s). Ou seja, o objetivo
do E-Dictor é manter a informação sobre cada nível
(inclusive o "nível" original). Assim, o usuário poderá,
11
As opções descritas por Paixão de Souza são: conversão do texto transcrito para XML, informações
dos mecanismos a serem utilizados no documento; edição de propriedades do texto (título, ano de
produção, autor, ano de nascimento e extensão do texto - parcial ou completo), bem como registro de
comentários gerais sobre este (comentários de edição/codificação); inserção de cabeçalho e rodapé; e
inserção de número de paginação;
54
num segundo momento, acessar o texto em diferentes
"versões", cada uma relativa a um dado nível de edição.
De acordo com a edição que se propõe, podem-se marcar
as palavras – selecionando-as e atribuindo uma notação –
do texto transcrito e transformado em XML de forma que
esse apresente as propriedades gráficas pertinentes.
(PAIXÃO DE SOUZA, 2009)
Os mecanismos ou processos de edição têm a função de caracterizar melhor o
documento antigo, conservando as informações originais. Na aba do programa de
edição podem ser marcados diversos aspectos gráficos presentes no texto como: junção,
segmentação, expressões e/ou palavras sobre e subscritas, caligrafia ilegível, rasuras,
termos que se encontram tachados com risco, expansão (palavras abreviadas) e
modernização (grafia atualizada dos itens marcados). Na figura a seguir, reproduz-se a
tela que aparece para o usuário durante a edição. A título de exemplificação marcou-se a
palavra “poçivel” para ser modernizada, acrescentando-se a acentuação gráfica ausente
no texto original:
Figura 2: Tela de edição do E-dictor
Essa marcação é feita em todas as palavras que apresentam algum aspecto das
notações indicadas. O objetivo é permitir o resgate, em caso de buscas automáticas
através de meios eletrônicos, de todos os processos de edição pelos quais o texto passou
55
desde a primeira edição até a última. Assim será possível, a quem acessar o texto,
identificar os itens originais e as atualizações.
O programa E-dictor permite ainda que sejam listadas todas as palavras
marcadas – através do comando ARQUIVO > EXPORTAR >LÉXICO DE EDIÇÕES –
de maneira ordenada e agrupada segundo a notação proposta. A partir desse recurso,
que permite uma visualização mais isolada de todos os itens selecionados na edição,
pode-se identificar, e até mesmo quantificar, o nível de atuação do usuário no processo
de edição. A reprodução da tela abaixo ilustra a tabela gerada pelo programa:
Figura 3: Tela léxico de edições do E-dictor
Na figura 3 há um quadro – chamado de léxico de edições – dividido em colunas
com diferentes notações. Na primeira coluna ficam os itens, ou seja, as palavras
marcadas no texto e nas demais, os aspectos referentes às notações. Para melhor
entendimento, serão detalhadas todas as notações arroladas:
a) Junção
O mecanismo de junção, como o próprio nome diz, serve para alinhar em um
mesmo vocábulo elementos que, pelas regras ortográficas atuais, aparecem separados
56
pelo espaço em branco. O parâmetro é sempre a forma modernizada da palavra. Essa
separação nos textos antigos pode ocorrer por vários motivos, entre eles: distração ou
equívoco do autor do texto; pouco contato com padrões de escrita vigentes na época da
escritura do documento, não delimitação precisa do vocábulo formal e fonológico, etc.
Os exemplos abaixo são ilustrativos:
1) “Jayme isto não entereça o que entereca e o nosso | a mor eu tenho chorado
muito con saldades tuas | a qui e muito triste era bom sevoce estivese a | qui
com migo.” (Maria/Jayme – 10/09/1936)
No exemplo (1) retirado da carta da Maria, há a separação da primeira sílaba da
palavra em relação ao restante do vocábulo como se fosse um vocábulo distinto. Os
itens amor, aqui e comigo aparecem segmentados e precisam ser unidos na edição
atualizada (junção de partes da palavra). No processo de edição através do E-dictor, o
comando “junção” une todos os vocábulos, sílabas ou letras que deveriam estar
contíguas, mas que, por alguma razão, aparecem separadas.
É preciso destacar que, nem de sempre, a ausência de “junção” espelharia o não
domínio dos modelos de escrita como ocorre no vocábulo, comigo, escrito com migo.
Nesse caso, bastante comum em textos mais antigos, ainda se registrava a separação da
preposição da parte que se refere ao pronome (migo).
Essa forma de escrita é bastante recorrente nas cartas da noiva, mas são raras nas
cartas de Jayme. Nas missivas de Jayme, exemplificado em (2) a necessidade da junção
deve-se a uma quebra de linhas. O remetente se vê obrigado a separar silabicamente a
palavra e continuar escrevendo na linha abaixo, como ocorre em mandado.
2) “Minha querida noivinha | Espero que não te zangues comigo, por ter man- |
dado este, mas se o fiz foi somente para te prevenir, | e para não ficares a minha
espera” (Jayme/Maria – 29/10/1936)
No caso do corpus em análise, tem-se como hipótese que a presença excessiva
de palavras que necessitam de “junções” do tipo (a mor por amor), durante o processo
de edição, evidenciaria que o autor do documento tinha pouco domínio com os modelos
de escrita e, possivelmente, menor escolarização. As junções advindas de mera
separação de sílaba por quebra de linha não teriam, obviamente, a mesma interpretação.
57
b) Segmentação
A segmentação é um processo oposto ao da junção, pois em vez de juntar
elementos, separam-se. Deve-se, no entanto, ressaltar que a junção consiste apenas em
desvios grafemáticos, como pode ser atestado nos exemplos observados anteriormente,
ao contrário da segmentação que, também inclui além das separações consideradas
como erros, aquelas em que houve de fato a separação silábica por conta da quebra de
linha (como pôde ser visto no exemplo (2)).
3) “A saudade começa a apoderarce se mim ja sinto que tua ausencia | é para mim
um martirio, [...]” (Jayme/Maria – 11/09/1936)
4) “Aminha distração sam são as tuas cartas |12 eu leio toda as noites antes de me
deitar | e olho para os teus retratos que tantas | saudades me dar” (Maria/Jayme –
26/01/1937)
Em (4) há o artigo a unido ao pronome minha como se houvesse apenas um
vocábulo. A missivista apresenta um grande número de vocábulos segmentados e
unidos equivocadamente. Embora Jaime apresente também alguns dados de elementos
que deveriam estar separados, mas que, em suas cartas aparecem juntos, seus desvios
ocorrem como mostrado em (3). A necessidade de segmentação, nas cartas do noivo,
ocorre basicamente com pronomes enclíticos ao verbo. Dessa forma, em vez de escrever
apoderar-se, o noivo grafou apoderarce. É preciso considerar ainda que houve, além da
junção, um outro desvio grafemático, uma vez que o remetente grafou com <c> no
lugar de <s>. Essa palavra, no processo de edição, sofreria tuas marcações: segmentação
e modernização.
5) [...] tua imagem, em tudo pareço ver os teus olhos | a me dizerem coisas
maravilhosas de nosso amor, | ou então pareço ouvir teus labios a dizer-me que
tam- | bem sentes saudades minhas ou pareços ouvil-os | suplicantes a pedirem
beijos, enquanto vou para bei- | jal-as. ho desilusão [...] (Jayme/Maria –
20/08/1936)
12
Todas as ocorrências de barra nos fragmentos de cartas indicam quebra de linha.
58
No exemplo (5) retirado da carta do Jayme, observam-se os processos de
segmentação e de junção atuando nas mesmas palavras. A maioria das ocorrências de
junção e segmentação do noivo apresenta-se dessa maneira: um pronome enclítico a(s) e
o(o) precedidos pela consoante l. Na escrita de Jayme é recorrente esse tipo de junção
comum também em textos mais antigos: o <l> de –lo(s)/la(s) fica anexado ao verbo
(ouvil-os em vez de ouvi-los). No processo de edição, nesse caso, tem-se,
primeiramente, a junção13 dos verbos com os pronomes enclíticos (ouvil-os  ouvilos),
depois há um processo de segmentação (ouvilos  ouvi-los). Vale ressaltar, como
apresentado anteriormente, que, se o item apresentar uma grafia que não condiz com a
atual, é necessário modernizar a palavra, como ocorre com beijá-la:
Junção
Segmentação
Modernização
ouvil-os
Ouvilos
ouvi-los
bei-jal-as
Beijalas
beija-las
_______
_______
beijá-las
b) Sobrescrito
É a marcação que evidencia os vocábulos que aparecem escritos acima do nível
da linha como uma forma de acréscimo ou correção do texto. A figura 3 a seguir mostra
um fragmento de carta enviada pela Maria ao noivo em que é possível observar uma
palavra sobrescrita à linha do texto.
13
Como a junção e segmentação são os únicos mecanismos que vêm no E-dictor, eles já estão
hierarquizados nessa ordem, sendo possível, no entanto, escalonar os demais grupos à maneira que o
editor achar conveniente.
59
Figura 4: Trecho de carta com texto sobrescrito (Maria)
6) “voce manda dizer a minha mãe que eu vou | neste trem, eu pesso-te para voce
marcares um | encontro para Domingo si Deus quiser, não repares | esta carta por
que quando estava escrevendo | estava [↑] passado [↑]14 um pouquinho mal mais
isto passa, eu [...]” (Maria/Jayme – 12/01/1937)
Neste trecho a Maria solicita ao Jayme que marque o encontro de domingo – dia
em que tradicionalmente costumam se ver – e justifica o fato de a carta não estar à
altura do que ela poderia escrever por estar se sentindo mal.
A palavra que aparece sobrescrita é um acréscimo feito pela autora a fim de
corrigir o texto ou atribuir-lhe uma ideia diferente. Costumeiramente a noiva tinha
alguns problemas de saúde e, para deixar claro no trecho destacado que se tratava de um
mal físico e não psicológico, ela escreveu “passado” 15.
Figura 5: Trecho de carta com texto sobrescrito (Jayme)
14
O símbolo [↑] foi adotado na edição semi-diplomática utilizada neste corpus para indicar termos que
aparecem sobrescritos à linha do texto.
15
Pela leitura da carta, percebe-se que a noiva queria usar a palavra “passando” em vez de “passado”.
60
7) “[...] comigo por causa do que houve, só tu sabes | a extensão do nosso amor, e
podes avaliar | o quanto tenho sofrido, para mim nada mais | resta neste mundo a
não [↑] ser [↑] o teu amor,” (Jayme/Maria – 19/01/1937)
Na figura (5) percebe-se que na última linha desse trecho o noivo faz uma
pequena correção no texto inserindo a palavra “ser” em um nível acima das demais. É
evidente que se trata de uma correção, pois a frase sem o vocábulo que foi acrescido
teria seu significado incompleto. O uso de sobrescrito também dá indícios de releitura
do texto e ausência de rascunhos.
c) Ilegível
Nas cartas no corpus, tanto as de Jayme quanto da Maria, há poucas palavras
tomadas como ilegíveis. No geral, os vocábulos apontados como impossíveis de serem
lidos são aqueles escritos em algum papel que foi danificado pela ação do tempo e pela
falta de conservação, como pode ser observado na figura abaixo que representa um
fragmento de carta do Jayme.
Figura 6: Trecho de carta com texto ilegível
8) “[...] do meu viver, mas não me satisfazem ainda; porque estes instantes | tão
doces no sonambulismo da minha existencia não são mais que | essas chimeras
ilusorias, que o tempo caprichoso, no seu marchar | 16 faz desaparecer como
folhas mortas levadas pelo vento | á correnteza do rio...” (Jayme/Maria –
22/08/1936)
16
As palavras ilegíveis são marcadas com nota de rodapé.
61
No exemplo (8) há um trecho retirado da carta do Jayme para a Maria em que
ele escreve palavras pouco usuais e que denotam muito sentimentalismo pela noiva. A
carta é longa e escrita em um tipo de papel diferente dos demais. O documento acabou
sendo mais danificado por ter sido dobrado em várias partes. O dano no papel prejudica
a leitura da carta e torna algumas palavras ilegíveis. O amarelado por conta do tempo e
o fato de ser uma missiva escrita a lápis prejudicaram a leitura da carta, uma vez que a
dobradura foi feita em cima de uma das linhas do texto.
d) Rasurado
São consideradas rasuras vocábulos corrigidos com rabiscos, mas que possam
ser lidos sem dificuldade17. No trecho abaixo retirado de uma carta que a Maria enviou
ao Jayme mostrando a saudade que sente do noivo pode-se observar uma palavra
rasurada:
Figura 7: Trecho de carta com texto rasurado (Maria)
9) “[...] e combinamos tudo direitinho eu peco-te para não ficares sangado com
migo | que eu não sou culpada deu ficar a qui se eu 18 paça-se uma | vida a legre
em tão sim mais e paço uma vida tão trite e choran- | do so por causa do meu
noivinho Jayme.” (Maria/Jayme – 01/10/1936)
17
As edições feitas com os corpora que compõem a página eletrônica www.letras.ufrj.br/laborhistorico
seguem a mesma regra quanto a rasuras. Essas são apresentadas, por meio de nota embutida no próprio
XML do E-dictor e apontada nas edições em fac-símile semi-diplomáticas como rabiscos para fins de
correção. Diferencia-se do aspecto “ilegível” porque, no geral, caracteriza uma palavra que não foi
inteiramente inutilizada e que faz parte do conteúdo do texto.
18
As rasuras são indicadas com uma nota de rodapé, já que não é possível transcrevê-las.
62
Na figura (7) a palavra rasurada não pode ser resgatada, pois foi inteiramente
descartada através de rabiscos que tornaram a leitura impossível de ser realizada. É um
tipo de correção que ocorre, sobretudo, nas cartas da Maria, embora também haja alguns
dados nas cartas do noivo.
A figura (8) traz um trecho retirado da carta do Jayme em que ele mostra sua
insatisfação com a tristeza da noiva, pois não se conforma que ela se sinta infeliz por
causa da saudade, apesar de mostrar compreensão quanto ao porquê de a noiva
mencionar em várias cartas que passa o dia chorando.
Figura 8: Trecho de carta com texto rasurado (Jayme)
10) “[...] martirisar a ti e a mim, eu sei 19 que te perguntando tudo isso tú me dirias |
que é porque tú me amas, e bem sei minha querida, que teu amor é muito | as
tuas lagrimas, meu amor fica tão 20 amargurado com esses teus sentimento, que
[...]” (Jayme/Maria – 21/09/1936)
No trecho acima há duas palavras ou letras que foram rasuradas pelo autor da
missiva – no caso, o Jayme. Não é possível ler o que foi descartado do texto pelo
remetente.
e) Subscrito
Esse critério opõe-se ao sobrescrito, pois, em vez de estar posto acima da linha
do texto, encontra-se abaixo dela. Percebe-se, no entanto, que as correções dos
missivistas a partir desse recurso são menos frequentes que os sobrescritos. Tal recurso
19
20
Palavra rasurada.
Palavra rasurada.
63
é usual para dar um recado a mais ao remetente além do que foi tratado no conteúdo da
carta ou para continuar um assunto que não coube na pauta da folha de papel.
No fragmento a seguir, a noiva Maria alerta Jayme para que ele não repare na
carta dela porque contém inúmeros erros. Essa informação aparece na carta da Maria
sempre em forma de observação ao final da missiva. Tal alerta da autora quanto ao não
domínio da escrita é bem recorrente.
Figura 9: Trecho de carta com texto subscrito (Maria)
11) “[...] a minha irman esta te esperando no | dia 18. | não repares a minha carta nei
os meus eros, | [↓] eu não sei escrever cartas de amor como voce eu quando |
lei chego a chorar, voce sabe que eu sou uma burinha. [↓]21” (Maria/Jayme –
07/10/1936)
Na figura (9), uma carta da Maria, percebe-se que o texto, fora da linha, foi
escrito como se fosse uma informação a mais além do conteúdo da carta. Outro aspecto
importante a ser destacado se refere ao espaço para escrever esse pequeno trecho que,
como pode ser observado na imagem, é pequeno, sendo esse, possivelmente, um dos
motivos que leva a noiva a escrever várias palavras subscritas.
Jayme, a exemplo da Maria, também coloca alguns trechos e palavras subscritas,
embora a sua frequência seja bem menor que a da noiva. No trecho a seguir – figura
(10) – retirado de uma das cartas do Jayme, observa-se que o noivo questiona Maria
quanto a chamá-la de noivinha. Para tanto, coloca uma informação a mais – “respondame” – abaixo da linha, como se quisesse enfatizar que essa pergunta deve ser
respondida pela noiva.
21
Na edição em fac-símile semi-diplomática utilizada neste corpus fez-se o uso do símbolo [↓] para
indicar palavras ou trechos da carta que aparecem subescritas à linha do texto.
64
Figura 10: Trecho de carta com texto subscrito (Jayme)
12) “Minha querida Mariqunhas, é melhora chamar-te de minha querida noivinha:
consentes? [↓] responda-me [↓] | Espero que esta té vá encontrar um pouco
mais descansada do que eu assim | como as teus, eu sei que tú choraste muito, eu
te pedi tanto para que tú não” (Jayme/Maria – 21/09/1936)
f) Tachado
O tachado é outro critério que mostra a interferência da correção dos missivistas
em relação ao texto. Tachado, diferentemente do rasurado, não é um emaranhado de
rabiscos sobre a palavra, mas sim um ou mais riscos de forma que ainda é possível lê-la.
Na carta de Maria mostrada abaixo através da figura (10), a missivista comenta
sobre a expectativa de encontrar seu noivo e pede que ele avise caso não haja nenhum
imprevisto no horário em que pretende estar na estação para que ela possa esperá-lo.
Figura 11: Trecho de carta com texto tachado (Maria)
13) “é muito trite. Eu fiquei tam com temte saber que | voce vinha22 vem no dia 20
do corente voce manda-me | dizer a certesa sivem mesmo para eu ir esperarte |
com a Ismenia e manda dizer en que trem” (Maria/Jayme – 12/09/1936)
22
O recurso adotado na edição semi-diplomática para marcar indicar que uma palavra foi tachada é o
risco sobre a mesma.
65
A figura (11) mostra um exemplo de palavra que foi tachada pela noiva (vinha).
A missivista corrige o tempo do verbo – de pretérito para presente. Mesmo rabiscada,
ainda é possível a leitura da palavra sem grandes dificuldades.
A figura (12) a seguir apresenta a queixa de Jayme quanto ao fato de o irmão de
Maria ter reclamado de o casal de noivos sentirem muito falta um do outro. Jayme se
justifica afirmando que o irmão da noiva não vive longe da pessoa que ama como
acontece com eles – o noivo mora na cidade do Rio de Janeiro e Maria, em Petrópolis.
Figura 12: Trecho de carta com texto tachado (Jayme)
14) “[...] que ainda vaes ficar mais uns tempos, minha | flor, eu juro como nesse
momento pensei que o | teu irmão não sabia o quer era amor, mas | como ele
esta perto de quem gosta não avalia, o que [...]” (Jayme/Maria – 25/09/1936)
Jayme, como pode ser visto na figura (12), equivoca-se na escritura da
conjunção “que” colocando um “r” ao final da palavra – o que a transformaria em um
verbo. Apesar dos vários riscos sobre a palavra, a leitura ainda é possível.
g) Expansão
Esse critério refere-se a termos que foram abreviados ou escritos através de
abreviaturas. A expansão consiste em expandir a palavra, ou seja, transformá-la em um
item que não seja uma sigla ou abreviaturas.
66
15) “Lembranças a D.ona23 Marietta | E deste teu apaixonado noivinho recebe |
muitos beijos e abraços” (Jayme/Maria – 06/04/1937)
16) “Logo mais espero ficar sosinho em | casa, então te escrever uma carta maior |
mais agora não me é possível porque | tenho muita pressa, domingo de manhã
talvez | vá a S.ão João de Merity, e a tarde irei na | tua casa conforme prometi.”
(Jayme/Maria – 30/03/1937)
17) “A S.enhora Marietta manda-te lembranças e pedete | para não esqueceres de
rezares.” (Maria/Jayme – 22/02/1937)
18) “[...] eu vou muito triste e com muitas saudade | tuas, neta vai uma santinha que
e N.ossa S.enhora da | Penha para tu guardares com tigo e não | se esquesa de ir
3 vese a missa que tu | prometeste [...]” (Maria/Jayme – 05/10/1936)
Em todos os exemplos de expansão – do (15) ao (18) – tanto Jayme quanto
Maria abreviam as palavras que podem ser facilmente resgatadas pelo contexto, mesmo
que a abreviatura não seja a correspondente ao vocábulo, como é o caso de S. que
aparece referindo-se a senhor, senhora ou são.
h) Modernização
A modernização é o critério mais abrangente de todos, pois engloba todas as
palavras que atualmente são grafadas de maneira distinta da apresentada no documento
antigo. Essa marcação exigiu certo cuidado na hora da edição do texto, pois entre esses
estavam processos que não eram interessantes para esta análise – como a acentuação e
separação silábica. Nos exemplos a seguir, podem-se observar vocábulos que sofreram
processo de modernização por apresentarem uma grafia diferenciada da atual:
19) “Hoje e que o Nelzinho deve entregar-me a tua carta | registrada, porque hontem
não a fui buscar porque | são sahi de casa,” (Jayme/Maria – 13/10/1936)
23
Na edição em fac-símile semi-diplomática adotada para este corpus, os termos que estão abreviados ou
em forma de sigla são desenvolvidos em itálico. Como exemplo, pode-se citar D. que, no texto transcrito
vira Dona (somente a parte expandida aparece em itálico).
67
20) “Espero que esta te vá encontrar em perfeito estado | de saude assim como todos
os teus, [...]” (Jayme/Maria – 10/10/1936)
21) “não repares na carta porque foi feita no escretorio.” (Jayme/Maria –
08/03/1937)
22) “Eu chegei muito bem em petropolis mais estou | com muitas saudades tuas eu
sonhei muito | com voce na noite de Domingo para segun- | da feira, voce não
dis nada aus meus irmã(os) | que eu vou te espera no sabado por que | eu não
avizei a minha mãe. (Maria/Jayme – 15/03/1937)
O exemplo (19) retirado da carta de Jayme mostra os vocábulos hontem (por
ontem) e sahi (por sai) grafados de maneira diferente da atual. Esse é um recurso que
Jayme utiliza o tempo todo em suas cartas com muito mais frequência e variedade que a
noiva: uma suposta aproximação de alguns termos do português a formas latinas
(etimologização por termos latinizados). Na maior parte das vezes em que faz uso de
termos que tentam resgatar a etimologização da palavra, o noivo acerta, como foi o caso
de sahi. Percebe-se, no entanto, que há algumas ocorrências nas cartas dele de palavras
“falsamente” etimologizadas, pois não se assemelham a nenhuma forma etimológica do
vocábulo, como acontece com hontem (pseudoetimologização).
Tanto Jayme quanto Maria não costumam usar a acentuação gráfica com
frequência, mas todas essas ocorrências de ausência de acento são marcadas pelo
comando modernização. Dessa forma, a palavra saude, grafada conforme aparece no
exemplo 20, é atualizada em saúde.
Os exemplos (21) e (22) apresentam desvios grafemáticos influenciados pela
fonética das palavras e ausência de acentuação gráfica, falta de inicial maiúscula em
nomes próprios e hifenização. Dos vocábulos com ausência de acentuação gráfica
presentes nos exemplos estão: petropolis, voce, sabado e escretorio. A ausência de letra
inicial maiúscula é observada em Petrópolis. A falta de hifenização ocorre em: segunda
feira. Nas formas chegei e escretorio, nota-se a falta de domínio da representação
gráfica do dígrafo e possivelmente uma hipercorreção na flutuação das pretônicas. As
demais palavras – avizei, aus, dis, espera (em vez de esperar) – têm sua grafia
influenciada pela confusão entre fone e grafema.
Embora todos os mecanismos de edição listados tenham sido utilizados para fins
de edição, optou-se por fazer a análise baseada em apenas quatro deles: segmentação,
68
junção, expansão e modernização. Tais aspectos foram privilegiados por se
relacionarem aos critérios discutidos em trabalhos de cunho filológico, como é o caso de
Marquilhas (1996) e de Barbosa (1999). Esses autores buscam determinar aspectos
linguísticos que identifiquem mais facilmente os indivíduos com mãos hábeis e inábeis.
Como o objetivo dessa análise de natureza mais filológica é tentar resgatar um pouco do
perfil sociolinguístico dos remetentes observando o grau de letramento deles, traçaramse parâmetros relativos à norma culta da época, através de comparações de textos de
mesma natureza. Além disso, foram consideradas as propriedades – no caso, a
modernização, segmentação, junção e expansão – que mais auxiliariam no estudo
proposto, como será explicitado a seguir mais detalhadamente.
3.2. Parâmetros relativos ao grau de letramento
Em termos da caracterização social dos remetentes das cartas, um dos problemas
que o corpus utilizado neste trabalho ofereceu foi a ausência de informações sobre os
fatores externos tradicionalmente utilizados em estudos sociolinguísticos, tais como:
faixa etária, origem, escolarização. Para poder delinear os autores das missivas com
maior precisão, fez-se necessário propor parâmetros que servissem para mensurar o
nível de escolarização ou, mais precisamente, o maior ou menor contato dos missivistas
com a norma culta da época. Não foram utilizadas gramáticas vigentes no período,
porque, através da leitura dos textos, percebeu-se que o Jayme e a Maria diferenciavamse mais na estruturação do conteúdo da carta e na presença de vocábulos com desvios
grafemáticos. A análise, portanto, vai considerar não apenas a estruturação da carta
conforme o modelo epistolar, mas também questões que se referem à grafia das palavras
que aparecem no texto. Em seu texto, Barbosa (2005) é enfático quanto à importância
de se observar o modelo – que reflete à tradição discursiva – e o gênero ao qual o
discurso pertence. Assim seria possível determinar o quanto o domínio da norma culta
da época pelo indivíduo aparece em seu texto. Espera-se que uma pessoa com maior
contato com modelos de escrita (escrituralidadade) seja mais íntima da norma culta e,
consequentemente, siga mais rigidamente as regras do modelo do texto que adota.
Veja-se que um redator culto, mesmo quando escreve
sem a pressão de formalidades, sem preocupação de
vigiar seu próprio produto, sempre deixa, em algum nível
– e de alguma forma – em seu texto, alguma marca
69
daquilo que, no contexto de sua época, é considerado
padrão culto. (...) É o raciocínio inverso ao aplicado ao
redator tido como não culto, afastado dos ditames do
modelo padrão de comportamento linguístico (contado na
escola e/ou na leitura frequente de textos ao padrão). Esse
tipo de redator, mesmo que decida redigir um texto
formal, deixará evidente, pelos seus desvios, que ele não
convive com os gêneros discursivos modelares da cultura
erudita de sua comunidade. (BARBOSA, 2005, p.29)
O indivíduo mais culto, mesmo que não esteja sob pressões normativas, deixará
transparecer em sua produção escrita, em algum momento, reflexos do seu nível de
contato com textos escritos, conforme afirma Barbosa (2005).
A análise proposta nesta seção busca evidências filológicas e textuais para
comprovar qual dos remetentes – Jayme ou Maria – apresenta maior grau de letramento.
3.3. Os critérios gerais de análise das missivas
Considerando a dificuldade obter dados sobre os remetentes, buscou-se um
método de análise que captasse a diferença entre os missivistas. O objetivo, como
mencionado, era identificar um perfil sociolinguístico que vislumbrasse o grau de
letramento dos mesmos. A análise baseia-se nos critérios levantados por Marquilhas
(1996) e Barbosa (1999), mas com algumas adequações que foram consideradas
pertinentes em função da natureza do corpus e da proposta da pesquisa.
Dessa forma, foram levantados os seguintes critérios para a identificação do
perfil sociolinguístico dos missivistas:
Critérios gerais para análise
1)
2)
3)
4)
Segmentação
Junção
Modernização
Expansão
Quadro 1: Critérios gerais para análise
As cartas foram agrupadas de acordo com os remetentes e seguindo os quatro
aspectos de edição citados anteriormente: junção/segmentação, modernização e
expansão. Os critérios dispostos quadro 1 foram ordenados conforme o grau de
relevância na caracterização do perfil social dos missivistas. Levaram-se em
consideração as observações já feitas por Barbosa (1999) e Marquilhas (1996), que
70
atestam a segmentação e junção vocabular como um dos pontos que evidenciam as
mãos inábeis. Por isso, esses dois aspectos foram ordenados em primeiro lugar,
seguidos pela modernização e expansão como critérios complementares.
Para a segmentação e junção de vocábulos, observou-se o limite silábico e
vocabular das palavras selecionadas pelo E-dictor, a fim de salientar os contextos de
ocorrência das mesmas nas cartas do Jayme e da Maria. Segundo Marquilhas (1996), a
hipersegmentação é um critério que serve para demonstrar o grau de habilidade do
indivíduo com textos escritos, pois – conforme Barbosa (2005) – o fato de haver uma
segmentação que não corresponde à norma, pode apontar a familiaridade do sujeito com
a escrita.
O segundo critério adotado na análise foi a modernização, já que esse é um
aspecto que mostra as diferenças grafemáticas por parte dos missivistas. Apesar de o
programa E-dictor ter agrupado todas as manifestações gráficas no critério
modernização, preferiu-se nesse trabalho separar os vocábulos segundo duas
características: desvios grafemáticos e etimologização. Os desvios grafemáticos são
importantes indícios para traçar o grau de letramento de um indivíduo, pois é um fator
que pode indicar o contato que ele tem com textos escritos. Através da análise dos
traços gráficos que aludam a aspectos fonético-fonológicos da língua oral da época, é
possível identificar o nível de domínio da escrita por parte do autor do texto. Por essa
razão, tornou-se necessário observar os tipos de desvios de grafia presentes nas cartas
ressaltando as características que possam relevar a transposição da língua oral para a
escrita, o que já seria um indício de que o indivíduo que as realizasse com maior
frequência teria menos contato com a escrita, logo seu grau de letramento seria menor.
Ainda dentro desse grupo de palavras que foram modernizadas, encontram-se as
que são etimologizadas ou pseudo-etimologizadas. Na língua portuguesa, mesmo no
período medieval em que havia forte influência da oralidade na escrita e transcrições de
natureza grafo-fonética, encontravam-se termos que faziam alusão à etimologia helênica
ou latina da palavra. Já nos períodos mais recentes da língua, como atestam os dados de
Barbosa (1999) em análise feita com cartas comerciais, percebe-se que, mesmo com
manuais de escrita de diferentes tipos de textos, sobretudo epistolares, ainda havia
presença de termos que remetiam à etimologia das palavras – ou uma tentativa de
etimologização – presentes nos textos.
71
Até as bases da ortografia de 1885, de Gonçalves Viana
e Vasconcellos Abreu, e a efetiva comissão de 1911, as
grafias
etimológicas,
ou
pseudo-etimológicas,
imperaram na língua portuguesa. Barbosa (BARBOSA,
2005, p.30)
Como se vê no trecho acima, até o começo do século XX, vigoravam textos com
grafias
etimologizantes
ou
pseudo-etimologizantes
(tentativas
errôneas
de
etimologização) na língua portuguesa. É de se esperar que essa tradição gráfica se
estendesse por algumas décadas além da vigência de 1911, conforme atesta Barbosa
(1999) ao observar que a etimologização era um recurso utilizado por redatores do
século XIX para se mostrarem mais letrados. O conhecimento da origem da palavra
utilizada no texto demonstrava mais domínio estilístico que valorizava a escrita. Essa
afirmação está de acordo com a análise feita com base nas cartas da família Ottoni
trocada entre o casal Barbara e Cristiano no final do século XIX (BARBOSA, 2005).
Nessas missivas, observa-se que a esposa de Cristiano Ottoni, Barbara, recorre menos
ao uso de palavras de natureza etimologizada, não tendo, além disso, um arcabouço
variado de vocábulos desse tipo. O marido, em contrapartida, utilizava com mais
frequência uma gama maior de palavras de origem latina, cometendo, ainda, menos
equívocos. Em uma breve análise, Barbosa (2005) constatou que o marido Cristiano
Ottoni, através de evidências gráficas referentes não só a etimologização, como a
variação grafemática, tinha mais domínio da norma escrita, ou seja, apresentava um
grau de letramento maior que sua esposa. Ela, ao que parece, detinha uma cultura
mediana: sabia ler e escrever mais não tinha contato com textos formais.
Por essa razão, separaram-se as etimologizações, uma vez que essas trazem
consigo a informação de que o indivíduo que as utiliza, no mínimo, tem algum contato
com textos escritos, o que pode ser uma importante evidência para a caracterização do
perfil sociolinguístico dos missivistas.
Por fim, o último critério analisado foi a expansão, que se refere a termos que
precisaram ser desenvolvidos, ou seja, palavras que apareciam no texto em forma de
abreviaturas. Embora essa questão seja colocada em Marquilhas (1996) como um ponto
que pode não ser tão eficaz na identificação de mãos hábeis e inábeis, dada a repetição e
pouca variedade das abreviaturas, optou-se por fazer um levantamento de todas as
ocorrências desse tipo que ocorreram nas cartas. Por esse não ser um aspecto tão
72
relevante na descrição do grau de letramento dos remetentes, colocou-se em último
lugar na hierarquização dos critérios levantados para a análise.
A seguir os critérios serão dispostos de maneira geral e, nas seções seguintes,
serão apresentadas as análises de cada um deles acompanhados de exemplos.
3.4. A análise das formas linguísticas submetidas a critérios de
edição
Na tabela (3) a seguir consta o resultado da quantificação das formas linguísticas
que sofreram algum tipo de intervenção no processo de edição. Foram quantificados os
seguintes recursos: segmentação/junção, desvios grafemáticos, etimologização e
abreviatura. Foram selecionadas 1353 palavras correspondentes a esses critérios.
Na primeira coluna foram dispostos os parâmetros de medição utilizados para
apurar o grau de letramento dos missivistas, de forma que [-] domínio da escrita implica
em números mais elevados de segmentação/junção e desvios grafemáticos, ao passo que
[+] domínio da escrita resulta em frequência maior de etimologização e abreviatura.
Nas colunas seguintes são apresentados as ocorrência dos critérios nas cartas de
Jayme e Maria, como pode ser observado a seguir.
[-] domínio de
escrita
[+] domínio de
escrita
Critérios
Jayme
Maria
Total
Segmentação /
Junção
Modernização
(grafia)
Modernização
(etimologização)
Expansão
(abreviaturas)
Total
21
8%
126
14%
122
73%
21
58%
290 - 100%
255
92%
748
86%
45
27%
15
42%
994 - 100%
276
874
167
36
1353
Tabela 1: Distribuição geral dos critérios nas cartas do Jayme e da Maria
Na quantificação geral das intervenções feitas durante o processo edição,
verifica-se, na tabela 3, uma discrepância significativa no número de palavras analisadas
segundo esses critérios nas cartas do Jayme e da Maria. Foram localizados 290 dados
73
nas missivas do noivo e 994 nas da noiva. Esse resultado evidencia um número
significativo de intervenções no processo de modernização das cartas de Maria. Os
resultados da modernização da grafia demonstram que Maria apresenta mais desvios
grafemáticos do que o Jayme – 86% contra 14%. Foram encontrados, nas cartas da
Maria, 748 desvios de grafia e nas do Jayme, apenas 126.
Em relação à segmentação e junção das palavras encontradas nas missivas podese dizer que a Maria apresenta 255 dados referentes a esse critério – o que corresponde a
92% - enquanto que o Jayme, apenas 21 (8%).
Esses dois critérios analisados – segmentação/junção e desvios grafemáticos – já
apontam a Maria como sendo uma pessoa com menos domínio da escrita, já que a
frequência de dados correspondentes a esses aspectos são maiores do que as observadas
nas cartas do Jayme.
Outro resultado que reforça tal postulação está relacionado ao controle das
etimologizações. Nesse caso, ao contrário do observado na segmentação/junção e nos
desvios de grafia, quanto maior a presença de termos etimologizados maior o grau de
letramento do informante. Na tabela verifica-se que Jayme apresenta 73% de dados (122
palavras etimologizadas) e Maria apenas 27% (45 palavras). Tal aspecto será melhor
discutido mais adiante.
O número pouco expressivo de abreviaturas que foram expandidas no processo
de edição e a proximidade numérica entre os remetentes (21 dados de Jaime e 15 de
Maria) não nos pareceu relevante para referendar a hipótese da diferença entre a
habilidade com a escrita dos dois informantes.
No geral, esses resultados quantitativos preliminares já são claros em mostrar
que em termos escalares Jayme apresenta em sua escrita mais evidências do seu maior
contato com variados textos e modelos de escrita e, consequentemente, o seu maior grau
de letramento se comparado com o perfil de escrita de sua noiva. Maria, por sua vez,
não demonstra ter muito domínio da norma escrita, visto que comete mais desvios
referentes à segmentação e à grafia das palavras. A presença significativa de palavras
latinizantes nas cartas de Jayme, mesmo que nem sempre o missivista seja feliz nessa
tentativa de se aproximar dos vocábulos mais próximos dos originais gregos e latinos,
74
demonstra grande contato de Jaime com o texto escrito e sua preocupação em parecer
mais letrado.
A seguir, será analisada de maneira pormenorizada cada um dos critérios
adotados para mensurar o grau de letramento e suposta escolarização dos remetentes.
3.4.1 Segmentação/Junção24
Observando o número de dados retirados das cartas da Maria e comparando-os
com os encontrados nas cartas de Jayme, percebe-se que as missivas de Maria
apresentam maior incidência de vocábulos que sofreram algum tipo de segmentação
e/ou junção de sílabas ou palavras. Esse resultado, como mostrado anteriormente, já
indicaria, que a noiva possuía um grau de letramento menor que seu companheiro,
embora o Jayme também apresente esses processos. Nesses casos, como afirma Oliveira
(2009, p. 163), o escrevente tem uma percepção da fala como um contínuo fônico que se
reflete na escrita. Há, no entanto, diferenças significativas relacionadas à frequência das
junções e segmentações identificadas nas cartas do noivo e da noiva e ao tipo de
vocábulos envolvidos nesses processos. Os exemplos a seguir apresentados na tabela
ilustram a diferença apontada entre os missivistas nesse quesito.
A tabela a seguir apresenta todos os casos de junção e segmentação encontrados
nas cartas de Jaime, indicando-se o dado na versão original, seguido por todas as etapas
da edição (junção, segmentação e modernização). Na última coluna da tabela, tem-se o
número total de ocorrências da forma editada:
Dado
Junção
Segmentação
1
ati
________
a ti
2
sentil-o
________
senti lo
Modernização
Frequência
2
senti-lo
2
3
a onde
aonde
________
4
bei- jal-as
bei-jal-as
________
beijá-las
1
1
5
conhecela
________
conhece la
conhecê-la
1
5
demolil-o ,
demolil-o,
demoli-l-o,
demoli-lo,
1
6
dizerte
________
dizer-te
7
enalteceme
________
enaltecer me
1
enaltece-me
1
24
Estão sendo considerados segmentação e junção quaisquer desvios quanto à separação silábica do
vocábulo segundo a grafia moderna.
75
8
extasiarte
________
extasiar te
extasiar-te
1
9
falarte-ei
________
falar te ei
falar-te-ei
1
10
fazme
________
faz me
faz-me
1
11
guardal-a
________
guarda-la
guardá-la
1
12
informarte
________
informar te
informar-te
1
13
ouvil-os
________
ouvi los
ouvi-los
1
14
pagal- as
pagal-as
paga-l-as
pagá-las
1
15
resta-se
restase
________
Restasse
1
16
vel-a
________
ve la
vê-la
1
17
vel-as ,
vel-as,
ve-l-as,
vê-las,
1
18
se quer
sequer
________
1
É possível perceber na análise da tabela que todas as ocorrências de
segmentação e junção nas cartas do Jayme aconteceram sempre em função do pronome
objeto em posição de ênclise ou mesóclise – à exceção de ati e a onde. O noivo
sistematicamente junta o pronome ao verbo. O remetente, portanto, alterna entre a
junção e a separação do pronome clítico ao verbo talvez influenciado pela característica
dessa partícula que é um clítico que pode se deslocar de posição (CAMARA JR, 1970,
[2006]).
23) “voce sabe perfeitamente que | só ati é que eu amo, tú sabes que só ati | é que
pertenço” (Jayme/Maria – 19/01/1937)
24) “sinto-me feliz, meu amor só a ti | pertence” (Jayme/Maria – 19/01/1937)
25) “ou então pareço ouvir teus labios a dizer-me que tam- | bem sentes saudades
minhas ou pareço ouvil-os | suplicantes a pedirem beijos [...]” (Jayme/Maria –
20/08/1936)
26) “Não posso informarte quando podemois | conversar. mais farei o possível para
| ser o mais breve” (Jayme/Maria – 19/01/1937)
27) “Espero dentro em breve ver-te novamente ao meu | lado [...]” (Jayme/Maria –
25/08/1936)
Destaca-se ainda que Jayme, embora tenha poucos dados referentes à
segmentação e junção (21 dados apenas), apresenta em suas missivas duas maneiras de
grafar a preposição – a – seguida pelo pronome de segunda pessoa ti: ati e a ti. Foram
76
localizadas duas ocorrências de ati em uma única missiva, como pode ser observado nos
exemplos (23) e (24). No caso de me e te foram identificados também usos variáveis:
presença de hífen e junção do clítico ao verbo – ouvil-os – e ausência de segmentação
do pronome com a forma verbal – fazme. Vale ressaltar que as segmentações/junções
indevidas nas cartas de Jaime com os clíticos me e te ocorrem em poucos vocábulos,
sendo observados em verbos pouco usuais nas cartas, como enalteceme e informate. Já
o pronome -lo e suas variantes sempre aparecem segmentados equivocadamente.
Nas cartas de Maria, por outro lado, foi identificado um número bastante
significativo de junções/segmentações no processo de modernização (255 ocorrências).
A tabela a seguir reproduz apenas os 50 primeiros dados tendo em vista o número de
ocorrências25:
1
5
10
15
20
25
25
Dado
Junção
Segmentação
Modernização
Frequência
tam bem
tambem
________
também
11
com migo
commigo
________
comigo
10
de pois
depois
________
10
a qui
aqui
________
8
a sim
asim
a te
ate
au- guma
assim
6
________
até
5
au-guma
________
alguma
5
a mor
amor
________
4
a quele
aquele
________
4
a té
até
________
4
aminha
________
a minha
com tigo
comtigo
________
4
a braços
abraços
________
3
a cabar
acabar
________
3
a quela
aquela
________
3
atua
________
a tua
3
com binar
combinar
________
3
com- formar
com-formar
________
contigo
conformar
4
3
deu
________
de eu
Domi- ngo
Domi-ngo
________
Domingo
3
3
m- uito
m-uito
________
muito
3
medar
________
me dar
3
melevantei
________
me levantei
3
a borecido
aborecido
________
a cabado
acabado
________
aborrecido
2
2
A tabela completa encontra-se em anexo.
77
a cabares
30
35
40
50
acabares
________
2
a inda
ainda
________
2
a legria
alegria
________
2
a onde
aonde
________
2
aumedico
________
au medico
chora- ndo
chora-ndo
________
com tente
comtente
________
contente
2
com verça
comverça
________
conversa
2
da quela
daquela
________
em velope
emvelope
________
envelope
2
madeitar
________
ma deitar
me deitar
2
memandace
________
me mandace
2
memandou
________
me mandou
2
na quele
naquele
________
2
o fendeu
ofendeu
________
2
orecado
________
o recado
2
pa- ssando
pa-ssando
________
sem pre
sempre
________
sevoce
________
se voce
se você
2
sieu
________
si eu
se eu
2
tepesso
________
te pesso
te peço
2
vou menbora
voumenbora
voume enbora
vou-me embora
2
a indanão
aindanão
ainda não
1
a legre
alegre
________
1
a legrou
alegrou
________
1
ao médico
2
2
2
passando
2
2
Nessa listagem, mesmo que parcial, percebe-se que Maria, diferentemente de
Jaime, apresenta diferentes tipos de junções e segmentações. Um uso bastante
recorrente da missivista é a separação do resto da palavra da vogal inicial de vocábulos
iniciados por “a” e “o”: alegria por a legria, aquele por a quele e ofendeu por o fendeu.
Aparentemente, Maria hesita no reconhecimento do limite vocabular de palavras
iniciadas por vogal, segmentando como se houvesse um artigo definido. A mesma
incerteza ocorre quando há semelhança entre parte da palavra e certas preposições como
em, com, na, etc Isso ocorreu em: em com tra, com tinua, sieu e na quele. Há casos,
entretanto, como em pramin, em que a missivista une o que deveria estar separado. Tais
incertezas constantes quanto ao limite vocabular na escrita evidenciam que Maria tinha
pouco domínio da escrita, uma vez que transpõe para escrita traços de oralidade o que é
notável também em vou menbora. Outro aspecto que ratifica tal comportamento da
remetente é a separação silábica que faz das palavras, desvio que, Jayme não comete.
78
Há dados em que a noiva isola consoantes, como em m-uitos e gr-aças, por não ter
noção da segmentação das palavras e por não estar em constante acesso com textos
escritos.
Nas missivas de Maria há muitas ocorrências de junção e segmentação e, ao
contrário do que ocorre nas cartas do Jayme, esse tipo de desvio relativo ao domínio nas
fronteiras silábicas e vocabular é frequente nas correspondências da noiva – o que já
pode indicar o menor grau de letramento dela em relação ao noivo.
Outro diferencial entre as missivas da Maria e do Jayme, no que diz respeito à
segmentação e junção, é o fato de ela juntar o pronome enclítico e proclítico ao verbo
com frequência. Nas cartas do Jayme, como foi visto anteriormente, a junção só ocorre
com o pronome posposto ao verbo e, mesmo assim, com baixa frequência em vocábulos
menos usuais. Nas cartas da Maria esses dois processos são recorrentes seja qual for a
posição do pronome, como se pode ver nos exemplos (28) e (29), respectivamente,
pergunto-me e mezango. Vale destacar que, no exemplo (28), pouco antes do dado
selecionado como um exemplo de junção, vê-se em mandou-me o verbo devidamente
separado do clítico pelo hífen. Isso parece demonstrar que a noiva não tinha segurança
quanto à segmentação das palavras e a escrita formal, o que a levava a alternar grafias
similares.
28) “[...] levei o | dia inteirinho chorando muito | que a D. Carmen mandou-me | eu
madeitar ella perguntome [...] (Maria/Jayme – 12/01/1937)
29) “Eu não mezango com | voçe [...]” (Maria/Jayme12/01/1937)
30) “Que esta te vá encontrar um pouco melhor | do resfriado que e que todos os teus
estejão pa- | ssando bem, eu os meus vamos bem graças a Deus.” (Maria/Jayme
– 13/10/1936)
3.4.2. Desvios grafemáticos26
26
Para fins de sistematização, neste trabalho estão sendo considerados desvios grafemáticos as variações
na escrita que difiram da grafia moderna, excetuando-se os casos relativos à acentuação. Além disso,
foram abarcadas neste grupo as palavras cuja variação é meramente fonética – correspondendo a uma
transposição da língua oral para a escrita, como, por exemplo, “quzer”.
79
Os desvios grafemáticos foram contabilizados separadamente, ou seja, não
foram incluídos os casos de segmentação e junção. A ausência do acento gráfico não foi
considerada como desvios grafemáticos, uma vez que ambos os remetentes não
costumam usá-la com rigidez, sendo, por isso seria desnecessário analisar esse aspecto
para fins de diferenciação dos remetentes.
A maior parte dos desvios grafemáticos encontrada nas cartas do Jayme parecem
provenientes de certa insegurança quanto ao sistema ortográfico vigente com uma
escrita um tanto fonética. Os desvios ocorrem principalmente por uma tentativa, comum
na fase de alfabetização, de criar uma biunivocidade grafema-fone, como se pode
observar em: dansei, fantazia, durmi e constitue. Embora essa questão revele algo sobre
o perfil sociolinguístico dos noivos, a sua presença na escrita não é o fator mais
eficiente para mensurar o grau de letramento dos missivistas, mas sim os tipos de
fenômenos observados e a frequência com que os mesmos ocorrem.
Quando se faz análise de qualquer material grafemático
pretende-se averiguar a relação entre o respectivo sistema
grafemático e o sistema fonológico ou, se possível, o grau
de correspondência entre as unidades das formas escrita e
falada da língua nessa época. (MAIA, 1986)
As cartas de Maria apresentam aspectos que evidenciam uma aquisição irregular
da escrita, pois há dados – como o deslocamento de /r/ na posição de coda – que,
segundo Marquilhas (1996), é uma característica de mãos inábeis:
31) “voçe pregunta | au neuzinho o que elle falou com | elle.” (Maria/Jayme –
12/02/1937)
Nesse trecho do exemplo (31), percebe-se que a Maria troca a consoante r de
posição – que originalmente deveria aparecer na coda – ficando, em vez CVC, CCV.
Isso ocorre também com a forma prefeita por perfeita.
A insegurança da missivista se mostra por um processo inverso que ocorre em
registar por registrar, desfazendo o encontro consonantal de CCVC para CVC:
(...) a ortografia irregular de formas com cadeias de
consoantes que incluam /r/ constituem a característica
mais recorrente das mãos inábeis seiscentistas. O traço
não é histórico, nem específico da escrita do português.
Entre inábeis franceses de 10 anos dos séculos XIX e XX
observou-se igual comportamento, descrito como
80
“fenômeno de deslocação na ordem das letras,
especialmente do r, deslocado (...)”. Por outro lado, o
traço não é específico da aprendizagem da escrita, porque
entre crianças que adquirem o português como primeira
língua, há “trilhões de problemas” relacionados com a
produção da vibrante simples na posição silábica.
(MARQUILHAS, 1996, p. 238-239)
Embora o corpus utilizado por Marquilhas seja do português setecentista (mais
antigo que o material em análise), o noivo não apresenta tal fenômeno em sua escrita.
Nesse sentido, comete menos desvios e alternâncias grafemáticas em seu texto, como já
foi atestado pelas frequências brutas apontadas na tabela 2.
A seguir, serão descritos alguns fenômenos grafo-fonéticos que podem
evidenciar a transposição para a escrita de aspectos da pronúncia dos sons da fala. A
forte presença dos desvios mostra a falta de conhecimento do sistema ortográfico do
português e pouco contato dos remetentes com textos escritos. A proposta ainda é
identificar do grau de letramento dos remetentes por meio da análise desses desvios
encontrados nas suas cartas. Marquilhas (1996) aponta esse reflexo da fala na escrita:
O domínio da escrita alfabética implica a captação de um
princípio fonográfico segundo o qual as realizações orais
são sucessões lineares de segmentos consonânticos e
vocálicos. Pelo mesmo princípio, a língua escrita oferece
uma possibilidade de espelhamento dessa organização
fonológica, porque para segmentos individuais, há sinais
gráficos equivalentes os quais também se traçam numa
sequência linear. A aquisição da escrita alfabética exige
assim, junto dos iniciados, a emergência daquilo a que se
chama uma “consciência fonológica”, que lhes permite
segmentar as unidades da língua em consoantes e vogais.
Dessa forma, analisar os aspectos fonético-fonológicos é importante para
verificar o grau de familiaridade dos remetentes com a escrita, por isso foram dispostos
alguns pontos que serão discutidos a seguir.
3.4.2.1. Monotongação e ditongação
No corpus analisado, é possível identificar outros fenômenos fônicos que foram
transpostos da fala para a escrita fornecendo indícios do português popular brasileiro no
início do século XX. A tabela abaixo mostra que tanto a Maria quanto o Jayme
81
apresentam dados de monotongação e ditongação, tendo a noiva uma ligeira
superioridade no número de ocorrência desses processos.
Maria
Jayme
Ditongação
dezeijo
desejo
esteije
esteje
veijo
vejo
obrigado
ou brigado
passeiando
passeando
Monotongação
perguntome
perguntou-me
troçe
Trouxe
queras
Queiras
troçe
Trouxe
Nesse fragmento a seguir, destaca-se a palavra em negrito passeiando porque o
Jayme coloca um ditongo onde não há.
32) “[...] eu | gosto de sonhar contigo, mais é quando estamos juntos | passeiando,
sentindo o calor de teus braços nos meus, | ouvir a tua voz sublime, colher de
teus labios o néctar | de meus desejos em teus beijos [...]” (Jayme/Maria –
20/04/1937)
No exemplo (33), percebe-se que a remetente faz uma ditongação no verbo,
deixando-o na forma esteije (por esteje). Além disso, chama a atenção nesse fragmento
a variação de formas no mesmo trecho. Nota-se a presença do mesmo verbo escrito sem
a ditongação – esteje – o que mais uma vez corrobora com a hipótese de que Maria é
mais insegura quanto a grafia das palavras do que seu noivo.
33) “Espero que ao receberes esta estejes passando bem | de saúde e que os teus pais
esteije mais cal- | mos com você” (Maria/Jayme – 14/02/1937)
3.4.2.2. Alternância entre [e] e [i] e entre [o] e [u]
Essa flutuação entre as variantes [e] e [i], [o] e [u] é resultado de transformações
fonéticas em posição átona e de restaurações eruditas ou semi-eruditas. Teyssier (1980),
sobre o português europeu, afirma que essas vogais átonas [e] e [o] em variação com [i]
e [u] datam do século XVIII, e foram influenciados pela ausência de uma ortografia
oficial.
Esse tipo de desvio grafemático reflete a oralidade, pois as variantes gráficas
entram em conflito com as representações fonético-fonológicos, gerando essa flutuação
na escrita. É o que pode ser observado na tabela abaixo:
82
Maria
Defiçel
Devi
Duer
Estante
Intrega
Iscondido
Podece
Recibí
Peor
Jayme
difícil
deve
doer
instante
entrega
escondido
pudesse
recebi
pior
irrevugavel
Constitue
durmente
durmi
enesquecível
escretorio
irrevogável
Constitui
Dormente
Dormi
inesquecível
Escritório
Tabela 2: Alternância entre e e i e entre o e u
Nas cartas do casal, percebe-se que ambos fazem essa variação das vogais átonas
pretônicas e postônicas, sendo, no entanto, tal flutuação mais recorrente nas da Maria27
– com 9 ocorrências – do que nas do Jayme – com 6 ocorrências.
Dentre os vocábulos coletados nas missivas do Jayme, a exceção de constitue –
que apresenta uma vogal átona final – todos possuem uma variação na posição
pretônica. As palavras irrevugavel, durmente e durmi apresentam alteamento da vogal
[o] para [u] e as demais, abaixamento de [i] para [e].
As cartas da Maria apresentam dois dados de palavras cujas vogais que variam
são as postônicas de [e] para [i], sofrendo um alteamento: devi e defiçel, destacando-se
que, no primeiro vocábulo (devi), a vogal que apresenta essa flutuação é a final. Nas
outras palavras, a variação ocorre em posições pretônicas (ocorrendo também em
defiçel), com abaixamento da vogal – estante, peor ([i] > [e]) e em podece ([u] > [o]) e
alteamento em duer, intrega, iscondido e recibí.
3.4.2.3. Nasalização e desnasalização
A nasalização ocorre em apenas um dado nas cartas do Jayme – mendigo >
mendingo –, mas nas cartas da Maria todos os vocábulos coletados sofreram processo
inverso de desnasalização com uma tentativa de representar o ditongo que se realiza
nesses casos com inserção de semivogais representadas pelos grafemas <i> e <o>, como
pode ser observado na tabela abaixo.
Maria
Jayme
27
É importante ressaltar que a Maria apresenta mais dados de desvios referente à flutuação das variantes
[e]>[i] e [o]>[u] do que o Jayme, embora tenha bem menos cartas.
83
bou
ei quato
maisinha
nei
peissei
quei
tam bei
teis
belicois
mendingo
Tabela 3: Nasalização
34) “[...] voçe nei presizavas pedir pela | carta o meu amor e sego [...]” (Maria/Jayme –
12/01/1937)
35) “Tu telembras da queles belicois no Do- | mingo, eu estou toda marcada
chega-me | duer [...]” (Maria/Jayme – 07/10/1936)
Nos exemplos (34) e (35) retirados das cartas da Maria, percebe-se que ela
representa grafematicamente os ditongos sem a presença da marca de nasalidade. Em
vez de usar a palavra nem, a noiva escreve nei. No segundo exemplo, a Maria fala de
uns beliscões
(escrito por ela como beliscois). Nesses dados, Maria não marca a
nasalidade seja com a ausência do til seja com a ausência da consoante nasal de
travamento representada por <m> ou <n>.
Jayme, por outro lado, não apresenta nenhum dado referente a esses que ocorrem
nas cartas de Maria, tendo somente uma palavra que demonstra a transposição da
oralidade para o texto escrito pertinente a esse processo fonético-fonológico em todo o
corpus – mendingo.
3.4.2.4. Síncope de vogais e consoantes
Nesse corpus, no entanto, não só as vogais átonas como também algumas
tônicas e consoantes acabam desaparecendo de alguns vocábulos – sobretudo nas cartas
de Maria. As síncopes são mais frequentes em consoantes nas cartas dos noivos, como
pode ser observado na tabela a seguir:
Maria
atrite_za
com p_ar
fr_o
Jayme
a tristeza
comprar
frio
camo
emora
idal
Calmo
Embora
Ideal
84
lo_ge
ma_do-te
ne_ta
tri_te
longe
mando-te
nesta
triste
netar
istante
Néctar
Instante
Tabela 4: Síncope de vogais e consoantes
Nas cartas da noiva percebe-se que a síncope ocorre de diferentes maneiras,
desde em consoantes pretônicas átonas (trite), tônicas (neta em vez de nesta) até a
supressão da nasalização (loge, mado-te). Pode-se perceber que a noiva realiza mais
síncopes em consoantes na posição de coda. Já nos dados presentes nas cartas de Jayme,
os dados não apresentam simetria com a forma de escrita dele, sobretudo por tais
palavras aparecerem em outros momentos sem que apresentem tal processo fonético.
No exemplo idal (ideal) retirado da carta do Jayme, percebe-se que o noivo
realizou uma síncope da vogal pretônica /e/. A explicação disso, como aponta
Marquilhas (1996) é de que a vogal átona antes realizava-se como /Ɛ/, mas, sofreu uma
elevação, fator que favorece a queda da vogal pretônica.
Em posição tônica, há um exemplo de síncope da vogal /i/ na carta de Maria
(frio em vez de frio) e da semivogal /w/ na de Jayme (camo em vez de calmo). A queda
de vogais tônicas, contrariam a tendência do português, já que o enfraquecimento, e
possível síncope, são comuns em vogais átonas.
36) “Aceita desta que loucamente te | ama muitos beijos e abraços da | tua
noivinha trite” (Maria/Jayme – 12/02/1937)
Nesse exemplo (36) a palavra destacada no fragmento da carta ilustra bem o
processo da síncope – trite em vez de triste – que, como pode ser visto no quadro, é
mais recorrente nas cartas da Maria, apesar de ser encontrada também nas do Jayme.
3.5. Etimologização28
28
As etimologizações, neste trabalho, consiste em todas as manifestações que remetam à origem latina do
vocábulo. Grafias que demonstrem uma tentativa de se aproximar da etimologia da palavra – com a
inserção de “h” ou consoantes geminadas – são contabilizadas como pseudo-etimologizações.
85
A etimologização é um processo em que se recorre à origem do vocábulo, a fim
de tornar o texto mais pomposo e que faça com que o redator pareça mais letrado. Esse
fenômeno está presente nas cartas de ambos os remetentes analisados, mas observa-se
uma gama maior de vocábulos nas missivas do Jayme, como já mostrou a tabela (1).
Apesar de a etimologização não poder por si só identificar indivíduos mais ou menos
letrados – assim como a abreviatura, muitos casos são mantidos por força do
tradicionalismo – já indica um pouco do perfil social de quem usa. Deve-se atentar, no
entanto, para o fato de que nem todas as palavras grafadas com duplas vogais
remeterem de fato a vocábulos helênicos ou latinos, constituindo uma tentativa de
etimologizar termos aleatoriamente. Em algumas situações, o indivíduo que utilizou
algum desses equivocadamente, na verdade, não é letrado – Barbosa (1999) e
Marquilhas (1996).
Nas cartas de Maria podem-se encontrar três vocábulos que aparentam estar de
acordo com a etimologia dos mesmos: elle (e variações, como ella, pellos), cousa e hia.
Dessas três palavras, o vocábulo hia não está de acordo com a etimologia dela, sendo,
portanto, uma falsa latinização.
Já nas cartas de Jayme, encontram-se inúmeros vocábulos que remetem à origem
latina deles. Embora o noivo também acabe cometendo faltas etimologizações, percebese que ele, além de acertar a maioria, ainda utiliza uma variedade de vocábulos muito
mais ampla que a Maria, como ahi (aí), assumpto (assunto), contacto (contato), estrela
(estrela), ceo (céu), logar (lugar), comprehendes (compreendes), egreja (igreja), etc. É
importante salientar que, dos 46 lexemas, apenas 3 não estão de acordo com a
etimologia das mesmas, por isso esse processo, para esta análise, mostrou-se eficiente,
já que conseguiu, através da observância dos dados, trazer mais indícios sobre o perfil
sociolinguístico dos remetentes.
A seguir estão postos alguns trechos com exemplos retirados das cartas do
Jayme e da Maria:
37) “Só quero tu crêa em mim, porque | não te esqueço se quer um um minuto [...]”
(Jayme/Maria – 12/01/1937)
38) “Meu amor cresce tanto | Que já parece um trophéo | Pois de tanto crescer,
já...” (Maria/Jayme – 30/06/1936)
86
39) “Cada vez comprehendo melhor, o que seria o | mundo para mim sem você
[...]” (Jayme/Maria – 25/08/1936)
40) “fais mal. as fotografias ainda não estão prontas nois fizemos | mal de deichar
as chapas com elle por que elle e muito m- | ole. (Maria/Jayme – 23/09/1936)
41) “Apesar de ter te visto hontem de manhã não queiras | saber a saudade que
invade meu peito.” (Jayme/Maria – 27/06/1936)
O emprego da etimologização nas cartas de Jaime mostra que ele tem um
contato maior com textos escritos do que a Maria que, no geral, apresenta mais dados de
termos etimologizados relativos ao pronome ele. Jayme, além de apresentar esses
pronomes com as consoantes laterais geminadas, utiliza vocábulos mais refinados e de
menos domínio público29. É o que se pode observar no exemplo (39) em que Jayme
utiliza a palavra trophéo para se referir ao amor que sente pela noiva. Essa escolha
vocabular por parte do noivo não só indica que ele conhece um maior número de termos
etimologizados, como também tem maior domínio do gênero textual carta de amor, pois
se propõe a selecionar de maneira mais cuidadosa as palavras nas cartas.
Jayme, embora apresente maior frequência de termos etimologizados, também
comete alguns equívocos associados às tentativas de usar palavras conforme suas
origens. Para Marquilhas (1996) e Barbosa (1999, 2005), o uso de termos pseudoetimologizantes, ou seja, que não passam de tentativas equivocadas de uso de palavras
que parecem ser etimologizadas, mas não são, é um forte indício de que as pessoas que
os utilizam não possuem mãos hábeis. Neste trabalho, no entanto, leva-se em
consideração a frequência de ocorrências não usuais de termos etimologizados
corretamente, portanto, observar só os vocábulos pseudo-etimologizados – que
correspondem a dois dados nas cartas do Jayme iha e hontem – não daria todo o suporte
para evidenciar a diferenciação dos missivistas quanto a esse aspecto. Vale ressaltar que
Maria apresenta um dado de palavra pseudo-etimologizada, hia, e 7 tipos diferentes de
29
Algumas cartas datadas do final do século XIX e início do XX – família Afonso Pena (Pereira, 2012),
família Pedreira Ferraz Magalhães (Rumeu, 2008) e família Ottoni (Barbosa, 2005) – que já foram objeto
de estudo, também apresentam dados de etimologização com consoantes geminadas nos pronomes, o que
pode indicar que tal vocábulo – ele e suas variantes – talvez fosse de conhecimento geral.
87
palavras etimologizadas, enquanto o noivo contabiliza nas cartas, nesse último grupo,
um total de 46 dados.
Pode-se observar diante dos dados que há uma diferença entre os remetentes das
cartas em relação ao grau de letramento, pois o Jayme demonstra ter mais conhecimento
vocabular no que remete à etimologia da palavra, fazendo uso, por isso, de um leque
maior de lexemas. Maria, por sua vez, utiliza um número restrito de palavras
etimologizadas, fato esse que já evidencia o menor contato da noiva com textos escritos.
Portanto, a hipótese levantada de que o missivista com maior variedade e ocorrência de
termos etimologizados teria maior domínio da norma escrita está de acordo com os
resultados obtidos com a análise e coleta de dados pertinentes a essa questão,
demonstrando, assim, que o noivo era uma pessoa de cultura mais erudita que a
companheira.
3.6. Abreviatura
As abreviaturas foram elencadas na análise, embora não tenham tido uma
contribuição efetiva para os resultados, visto que ambos – Jayme e Maria – utilizam
esse recurso e os tipos não variam. A frequência de uso de abreviaturas por Maria é
maior, mas com repetição das mesmas mudando apenas seus referentes, como se vê nos
exemplos a seguir:
São
S.
Santa
Senhor
D.
Dona
Snr.
Senhor
Esquema 1: Abreviatura
42) “Lembranças a D. Marieta” (Jayme/Maria – 13/04/1937)
88
43) “a Thereza sabe que | a jente mora na rua | S. Francisco Xavier (Maria/Jayme –
12/02/1937)
Nos exemplos (43) e (44) aparecem duas abreviaturas, uma retirada da carta do
Jayme em que ele manda lembranças à Marieta tratando-a como dona – nas cartas não
fica claro quem é essa pessoa, mas ao que tudo indica, é alguém que vive próxima à
Maria. No exemplo seguinte, Maria alerta Jayme sobre a Thereza, alguém da família
dele, que residia na rua São Francisco Xavier (que nesse trecho aparece em forma de
abreviatura), no bairro da Tijuca.
3.3. Resultados
As minuciosas descrições acerca das características gráficas presentes nas cartas
dos missivistas já mostram que há uma diferença entre o grau de habilidade dos
missivistas no que concerne às normas da escrita. Apesar disso, não se pode dizer que
os redatores das cartas ocupam posições extremas quanto ao domínio da escrita, já que
ambos apresentam evidências de transposição de aspectos fonético-fonológicos em seus
textos.
Barbosa (2005), para atestar a habilidade dos redatores das cartas da família
Ottoni, fez uso de outros textos da mesma época para que servissem de parâmetros de
avaliação. Neste trabalho, entretanto, não será levado em conta outros textos para
apresentar de maneira sintética como os missivistas podem ser enquadrados no que se
refere ao nível de contato com a escritura textual. Tendo em vista isso, propõe-se um
contiuum, a fim de apresentar as diferenças grafemáticas nos textos dos missivistas
através de uma escala que vai abarcar os seguintes critérios filológicos analisados:
a) Etimologização
Serão observadas as frequências dos termos etimologizados e a variabilidade de
palavras. Além disso, será considerado o grau de acerto na utilização desse aspecto nos
vocábulos.
b) Desvios grafemáticos
89
Segundo este critério, serão considerados o número de ocorrência e o tipo de
desvios grafemáticos apresentados pelo missivista, conforme descrito na seção 3.4.2.
c) Junção/Segmentação
Além de serem observadas a frequência dessas ocorrências, serão considerados,
para fins de escalonamento, o tipo de desvio cometido. Separar fragmentos de
vocábulos que não sejam fronteiras silábicas, por exemplo, é um desvio que evidencia
que o indivíduo é menos letrado do que o que apresenta segmentações ou junções
indevidas em formas presas.
90
Maria
Jayme
Alta frequência de palavras etimologizadas corretamente;
Ausência de pseudo-etimologizações;
Baixa frequência de desvios grafemáticos
Ausência de segmentação/junção de sílabas ou palavras.
Presença de desvios grafemáticos em baixa ocorrência motivados pela
oralidade a palavras pouco usuais.
Presença de falsas etimologizações em baixa frequência;
Ausência de segmentação/junção de sílabas ou palavras.
Frequência mediana de palavras etimologizadas;
Média frequência de desvios grafemáticos, apresentando algumas oscilações
na grafia de uma mesma palavra;
Média frequência de segmentação/junção de formas presas;
Repetição e pouca variabilidade de etimologizações e presença de pseudoetimologizações;
Segmentação/junção de palavras de maneira sistemática tanto em formas
presas quanto em fronteiras silábicas .
Desvios motivados pela oralidade, apresentando muitas oscilações na grafia
de uma mesma palavra;
Baixa frequência de palavras etimologizadas e falsas etimologizações em
grande incidência;
Alta ocorrência de desvios grafemáticos motivados ou não pela oralidade,
com muitas oscilações na escrita de uma mesma palavra;
Alta ocorrência de segmentação/junção de sílabas e palavras
Esquema 2: Continuum sobre o grau de letramento dos missivistas
Com base no continuum proposto, pode-se dizer que Jayme, embora apresente
menos desvios grafemáticos e uma gama de vocábulos de origem latina em seus textos,
não é um indivíduo com domínio pleno da norma padrão. Se comparado à Maria, no
entanto, pode-se dizer que o noivo detém um nível de conhecimento relativo a textos
escritos e um maior contato com a norma padrão que a noiva, já que ela apresenta mais
ocorrências de desvios grafemáticos e segmentação/ junção de palavras.
Após resultados da análise, observando os aspectos grafemáticos dos dois
missivistas, é possível chegar a algumas conclusões sobre o perfil sociolinguístico dos
remetentes em questão.
91
Embora os dois transponham para a escrita marcas de oralidade, percebe-se que
texto de Maria, como afirma Oliveira (2009, p. 152), apresenta “precário conhecimento
formal da escrita”. Nele tem-se uma rica fonte para o estudo do português popular do
início do século XX. Os resultados mostraram que Maria tinha pouca familiaridade com
a escrita, pois se notam erros constantes na grafia de palavras, problemas de
junção/segmentação (ausência/presença de espaço em branco entre palavras), uso
escasso de etimologizações, etc. O uso indevido de vocábulos desnasalizados,
monotongados e ditongados traz para sua escrita fenômenos fônicos como indícios da
norma popular brasileira.
Jayme, comparativamente, utiliza mais termos etimologizados e suas escolhas
lexicais são bastante diversificadas. O que parece demonstrar que ele não só conhecia os
vocábulos, mas sabia do seu peso na escrita formal da época. Pode-se dizer, portanto,
em virtude do maior uso de palavras etimologizadas, que Jayme tinha um relativo
domínio de modelos de escrita, logo mais conhecimento da norma padrão.
Além disso, destaca-se nessa investigação – a fim de identificar o grau de
letramento dos remetentes um em relação ao outro – o aspecto referente à segmentação
e junção de vocábulos. Como já apostou Marquilhas (1996), essa é uma questão
relevante para provar o quão hábil é um indivíduo: o quanto menor o contato com textos
escritos em um registro formal mais equívocos relacionados a esses dois processos são
cometidos pelo escrevente.
Embora abreviatura tenha sido analisada, não foi possível encontrar dados que
pudessem demarcar a diferença cultural entre os remetentes, já que ambos faziam uso
das mesmas formas e com frequência similar.
Dessa forma, conclui-se que a Maria era uma moça com cultura mediana, nos
termos de Barbosa (2005), pois sabia ler e escrever, mas tinha pouco domínio das regras
de escrita. As cartas de Maria seriam uma fonte preciosa para o conhecimento da norma
popular do português brasileiro da primeira metade do século XX. Jayme, por outro
lado, demonstra ter um grau de letramento um pouco maior que a noiva. Não se trata de
um informante completamente escolarizado por também apresentar certos desvios de
grafia e marcas de oralidade em seu texto, mas certamente teve mais acesso aos bancos
escolares que sua noiva.
92
4. As estratégias em análise
Nesta seção serão apresentados descritivamente os resultados da análise da
variação dos pronomes tu e você nas cartas editadas. Levam-se em consideração, em
termos teóricos e na formulação das hipóteses, o aporte variacionista laboviano (WLH,
1968) e os trabalhos anteriores acerca da alternância de formas pronominais de segunda
pessoa, como Marcotulio (2008), Rumeu (2008) e Machado (2006), Lopes & Machado
(2005). O objetivo é descrever o total das ocorrências das formas de segunda pessoa
tendo em vista os diferentes contextos morfossintáticos, privilegiando, contudo, a
posição de sujeito.
Para esta análise linguística, os dados foram submetidos, ao programa estatístico
Goldvarb X, a fim de observar as frequências brutas das formas de 2ª pessoa nas cartas.
A seguir, serão apresentados descritivamente os grupos de fatores postulados e a
estratégias linguísticas analisadas neste estudo, exemplificando com fragmentos
retirados das missivas.
4.1. Os grupos de fatores
a) Estratégias de segunda pessoa analisadas
Embora a ênfase da análise linguista esteja na variação entre os pronomes tu e
você na posição de sujeito, foram levantadas as formas verbo-pronominais relativas a
cada um dos dois paradigmas. Nesse sentido, consideraram-se no paradigma de tu: o
pronome pessoal do caso reto que exerce função de sujeito (tu), os pronomes
complementos não preposicionados (te), os pronomes oblíquos preposicionados (de ti,
para ti, contigo, entre outros), os pronomes possessivos (teu(s)/tua(s)) e as desinências
verbais correspondentes à segunda pessoa do singular, excluindo os casos de
imperativo. Para o controle do paradigma de você e de formas a ele relacionados, foram
levantadas, do mesmo modo: o pronome pessoal na função de sujeito (você), os
pronomes complementos não preposicionados (você, lhe, o), os pronomes
complementos preposicionados (para você, com você, entre outros) e as desinências
verbais correspondentes à terceira pessoa do singular, excluídos os casos de imperativo.
93
Seguem alguns exemplos das formas analisadas tendo em vista o contexto
morfossintático controlado:
I – Pronome reto
1) “eu acho que voce não a recebeu si voce ti | vece a recebido voce merespondia”
(Maria/Jayme – 13/10/1936)
2) “tú tambem comprehendes, que te amo muito, [...]” (Jayme/Maria – 20/04/1937)
II – Pronome possessivo
3) “eu | quando recebi as tuas cartas fiquei tan contemte que [...]” (Maria/Jayme –
12/09/1936)
4) “Deste que jamais lhe esquecerá, e que viverá somente para o seu amor”
(Jayme/Maria – 19/06/1936)
III – Pronome complemento preposicionado
5) “[...] Eu tenho sonhado todas as noites com voce” (Maria/Jayme – 12/09/1936)
6) “Sinto que em ti é que esta toda a minha existencia, por isso quero-te muito
para poder viver eternamente, sempre em teus braços recebendo as caricias tuas,
que tanto me acalentam e me dão vida.” (Maria/Jayme, 2-03-1937)
IV – Pronome complemento sem preposição
7) “eu estou | muito triste com isto, eu pesso-te para [...]” (Maria/Jayme –
13/10/1936)
8) “a luz de teu olhar e que ilumina a estrada por aonde sigo para encontrar voce”
(Jayme/Maria – 22/09/1936)
V – Forma verbal não imperativa
9) “[...] e grande o nosso sofrimento, mais ainda maior | é o nosso amor, sei
perfeitamente que me Ø amas” (Jayme/Maria – 20/04/1937)
10) “voce manda dizer em que trem Ø vem para eu ir [...]” (Maria/Jayme –
29/09/1936)
A hipótese para o controle dos diferentes subtipos verbo-pronominais de 2ª
pessoa foi formulada a partir de alguns estudos sobre o tema com base em cartas
pessoais. Os trabalhos de Lopes (2011) Marcotulio (2008), Rumeu (2008) Machado
94
(2006), Barcia (2006) mostraram que a inserção da nova forma (você) no sistema
pronominal do português brasileiro não se deu de maneira regular e simétrica em todos
os contextos morfossintáticos. Há contextos em que houve maior resistência à entrada
de formas do paradigma de você, persistindo as formas associadas a tu. Estão, nesse
caso, os pronomes complementos sem preposição, os verbos não imperativos e
pronomes possessivos. Por outro lado, os complementos regidos por preposição e o
pronome sujeito pleno foram os contextos que mais favoreceram à implemenntação de
você e suas respectivas formas. Em virtude dessa postulação, faz-se necessário mapear
os pronomes presentes nas cartas, observando as frequências de uso das estratégias ao
interlocutor utilizadas.
c) Realização plena ou nula do pronome sujeito
Diversos estudos anteriores, como os de Lopes e Machado (2005), apontam que
a nova forma pronomial você adentrou no paradigma pronominal do português
brasileiro inicialmente na posição de sujeito. Duarte (1993) mostra que o preenchimento
do sujeito está relacionado com a expansão do uso de você nessa posição, tendo um
crescimento acentuado na sua frquência em finais da década de 1930. Conforme
análises de Machado (2006), Rumeu (2008) e Souza (2011), esse você ocorre
preferencialmente pleno.
A hipótese que norteia esse grupo é a de que a expressão de você está
relacionada à posição preenchida do sujeito, sendo por volta da década de 1930 que o
uso da nova forma teria suplantado o pronome tu.
Nos exemplos a seguir retirados das cartas dos missivistas, observam-se
sentenças em que o sujeito aparece nulo – representado pelo símbolo Ø – e preenchido
(ambos destacados em negrito):
11) “Espero que ja Ø estejas um pouco refeita do golpe por | Ø que passaste.”
(Jayme/Maria – 27/06/1936)
12) “[...] tu melhor do que | ninguém Ø comprehendes a nossa dor, a saudade que
invade | nossos corações é imensa, [...]” (Jayme/Maria – 29/09/1936)
13) “[...] voce dise para eu não te esperar na Estação mais eu quero te esperar | voce
manda dizer em que trem Ø vem para eu ir [...]” (Maria/Jayme – 29/09/1936)
95
d) Gênero do missivista
Soto (2001) e Rumeu (2008) mostraram, com base em cartas pessoais dos
séculos XIX e XX, que as mulheres utilizavam com mais frequência a forma você do
que os homens. As autoras defendem, pois, que a inserção desse novo pronome teria
ocorrido, sobretudo, em virtude do seu uso por parte do gênero feminino. Esse fato vai
ao encontro do postulado de Labov (1990) acerca do gênero. Como discutido
anteriormente, o autor defende que a mulher tende a utilizar as formas padrão em
detrimento das estratégias estigmatizadas, por isso atuariam diretamente na manutenção
ou inclusão de novos itens na língua.
A hipótese para o controle do gênero, no nosso caso, é a de que a mulher –
Maria – utilizava preferencialmente você não só por ser uma estratégia menos invasiva,
mas também pelo fato de tal forma estar se implementando, no período das cartas, como
a estratégia de 2ª pessoa preferida no português popular brasileiro.
e) Concordância verbal
A alternância das formas de tratamento tu e você já é verificada em trabalhos
com corpora epistolares diacrônicos do final do século XIX (LOPES E MACHADO,
2005; MARCOTULIO, 2008; RUMEU, 2008, entre outros tantos). São raros,
entretanto, os estudos que analisam a concordância verbal entre sujeito e verbo nesses
materiais de sincronias passadas, pois, como a maior parte da documentação foi
produzida por pessoas ilustres, a concordância é quase sempre categórica. Os casos de
ausência de marca desinencial no verbo, principalmente com o pronome tu, começam a
aparecer na documentação escrita, ainda timidamente, na segunda metade do século XX
(MACHADO, 2011). A eventualidade da ausência de marcas com as formas tu e você
em cartas do início do século XX poderia estar relacionada à instabilidade do sistema
pronominal em formação e o nível de escolarização dos nossos remetentes. A hipótese
norteadora, nesse sentido, é a de que a forma tu seguida de marca desinencial zero (tu
está) e o pronome você acompanhado de verbo com desinência de 2ª pessoa (você estás)
seriam bastante raros em textos escritos de pessoas que tinham grande contato com
modelos de escrita no início do século XX.
96
O exemplo retirado da carta do Jayme, a seguir, apresenta o pronome tu diante
de um verbo não marcado morfologicamente:
14) “Minha querida, tú não pode avaliar quanto me faz bem este nosso encontro
[...]” (Jayme/Maria – 25/01/1937)
4.2. A análise dos dados
Nesta seção será apresentada a análise descritiva dos resultados referentes ao
paradigma de tu e de você de acordo com os grupos de fatores já citados. O objetivo é
mostrar com os dados e exemplos os contextos de ocorrência dos pronomes estudados.
A tabela a seguir apresenta a distribuição geral das formas de segunda pessoa
nas cartas de Maria e de Jayme separadas pelo contexto morfossintático:
Categoria
gramatical
Pronome Reto
Pronome
Possessivo
Pronome
complemento
Preposicionado
Pronome
complemento sem
Preposição
Forma verbal
(não imperativa)
Total
Maria
Tu
Você
19/94
75/94
20%
80%
Jayme
Tu
Você
147/168
21/168
88%
12%
Total
Tu
166/262
63%
Você
96/262
37%
134/135
99%
1/135
1%
322/360
89%
38/360
11%
456/495
92%
39/495
8%
12/78
15%
66/78
85%
103/132
78%
29/132
22%
115/210
55%
95/210
45%
148/159
93%
11/159
7%
195/210
93%
15/210
7%
343/369
93%
26/369
7%
89/102 13/102 144/160
16/160
233/262
29/262
87%
13%
90%
10%
89%
11%
402/568 166/568 911/1030 119/1030 1313/1598 285/1598
71%
29%
88%
12%
82%
18%
Tabela 5: Quadro geral dos tipos de pronomes presentes nas cartas 30
30
Nas colunas referentes aos missivistas – Jayme e Maria – somaram se, primeiramente, as formas
pronominais tu e você que ocorriam nas cartas de cada um dos remetentes. Na coluna de total foram
somados os valores globais de tu e você presente nas cartas – nas linhas tem-se a frequência total de cada
categoria gramatical. Na última linha “total” apresentam-se os valores totais de tu e você de cada
missivista e, na última coluna, os de todas as cartas.
97
Em termos dos resultados globais na amostra de cartas, como se vê na tabela (7),
foram levantados 1858 dados no total, com predomínio de 80% das formas relativas ao
paradigma de tu (1313 ocorrências – 82%) e apenas 285 dados (18%) do paradigma de
você.
Observando as últimas duas colunas da tabela que apresenta o número total de
dados em função de cada subtipo pronominal, nota-se que as formas do paradigma de tu
são as mais produtivas em todos os contextos morfossintáticos controlados com índices
de: 63% contra 37% como pronome reto; 92% contra 8% como pronome possessivo;
55% contra 45% de pronome-complemento preposicionado; 97% contra 3% de
pronome-complemento não preposicionado; e 89% contra 11% de verbos não
imperativos. Como já apontavam trabalhos anteriores – Machado (2006), Rumeu
(2008), Lopes (2011), entre outros – os pronomes possessivos e os pronomes
complementos não preposicionados constituem grupos de resistência à entrada de você
no quadro pronominal brasileiro, sendo, por isso os contextos em que formas do
paradigma de tu são mais altos: 92% no primeiro caso e 93% no segundo.
Com base nesses resultados gerais, levando-se em conta os dados dos dois
remetentes globalmente, não houve diferenças significativas em relação a outros estudos
sobre o tema: as formas relacionadas ao pronome tu mostraram-se ainda bastante
produtivas nas cartas analisadas de fins da década de 30. Ressalte-se que os únicos
contextos em que as taxas de frequência de formas de você apresentaram índices mais
próximos aos de tu foram os pronomes complementos preposicionados: 45% para o
primeiro e 55% para o segundo. Tal comportamento linguístico também reitera o
observado em outros estudos realizados com base em cartas pessoais (cf. RUMEU,
2008; PEREIRA, 2012, entre outros).
Os resultados mais relevantes nesse estudo, contudo, referem-se a diferenças
quanto ao uso das formas pronominais tu e você pelo casal de noivos. Apesar de nos
valores globais, Maria e Jayme apresentarem o emprego mais frequente de formas do
paradigma de tu (64% para a noiva e 88% para o noivo), Maria utiliza muito mais
formas relacionadas ao novo pronome você do que Jayme. O noivo apresenta valores
acima de 70% quando a referência é ao pronome tu em todos os contextos
morfossintáticos controlados. Nas cartas da noiva, por sua vez, os índices de formas
relativas ao paradigma de você superam os de tu nos seguintes contextos: pronome
98
sujeito com 80% e pronome complemento preposicionado com 85%. Seguem alguns
exemplos retirados das cartas de Jayme, ilustrando alguns contextos mencionados:
15) “Não posso durmir vivo só pensando em | ti e no nosso amor que tantas lagrimas
tem | nos custado, nas minhas horas de insonia fico | meditando o infinito que
tantas ilusões guardo | pareço ver-te numa imagem a chamar-me | e eu na minha
triste ilusão quero alcançar-te | mas tú desapareces” (Jayme/Maria –
24/01/1937)
16) “Tú não deves pensar em bobagens | pense unicamente em nosso amor, descansa
| bem, alivia o teu cérebro [...]” (Jayme/Maria – 19/01/1937)
17) “Mariquinhas... meu amor é todo teu eu pertenço, | somente a ti, é a voce
somente que eu amo, que dedico | toda a minha afeição, quero que tú me queiras
confor- | me eu te quero a ti. (Jayme/Maria – 30/06/1936)
18) “O mundo para mim sem voce, não é um pa- | raiso, e sim um inferno [...]”
(Jayme/Maria – 20/08/1936)
19) “Se voce não matar da saudade | A saudade vae me matar.” (Jayme/Maria –
22/08/1936)
Os exemplos de (15) a (19) já mostram que Jayme tem preferência pelas formas
relacionadas a tu em diferentes posições: pronome reto em (15) “Tú não deves pensar
em bobagens”; pronome-complemento preposicionado em (17); pronome-complemento
não preposicionado em (15) “pareço ver-te”; e possessivo em (16) “meu amor é todo
teu”.
Interessante observar os contextos discursivos que favorecem o emprego do
complemento preposicionado nas cartas de Jaime. Em estudo anterior, Oliveira et alii
(2011), analisando exclusivamente as formas alternantes oblíquas no mesmo corpus,
estabeleceram uma relação do emprego de complementos preposicionados à
proeminência discursiva típica dos objetos indiretos de 2ª pessoa. Os autores mostraram
que o remetente masculino do corpus analisado empregava a preposição +ti
preferencialmente em posição de foco, encabeçando as orações em as estruturas
clivadas, como se sê a seguir:
20) “De ti minha adorada é que eu espero todo o meu ideal, possuindo-te considerome o homem mais feliz do mundo” (Jayme/Maria, 23-09-1936)
21) “Sinto que em ti é que esta toda a minha existencia, por isso quero-te muito para
poder viver eternamente, sempre em teus braços recebendo as caricias tuas, que
tanto me acalentam e me dão vida.” (Jayme/Maria, -2-03-1937)
99
22) “a ti é que depositei | toda a minha confiança, em ti é que vi que estava | preso o
meu futuro” (Jayme/Maria, 06-10-1936)
Na interpretação dos autores o significativo aparecimento dessas estruturas
nas cartas estudadas deu-se pelo fato de que “o emissor visa a dar maior destaque, maior
ênfase ao destinatário, individualizando-o e reforçando sua importância para o sujeito
remetente”. Por essa razão houve forte uso OI-V no gênero epistolar, particularmente,
no subgênero cartas de amor em que o objeto indireto costuma ser o destinatário da
missiva. A anteposição da ordem de V-OI para OI-V e o emprego do objeto indireto no
início da oração seriam motivados por ênfase discursiva.
As cartas de Maria, embora sejam em menor número do que as de Jayme,
apresentam um número maior de ocorrências do pronome você e das formas a ele
associadas. Os exemplos a seguir foram retirados das cartas da noiva:
23) “Eu te espero no Domingo | que e dia 4 na estacão e acho que voce devi vir no
trem das | 8 horas para tua mães não desconfiar voce dis que vai a um passeio
com | um colega e sair as 7 horas de casa que da muito tempo sem vindo [...]”
(Maria/Jayme – 28/09/1936)
24) “manda-me dizer se tua mãe falou au guma cou | sa com voçe do passeio |
Jayme se tua mãe falar com voçe au meu respeito | manda-me dizer.
(Maria/Jayme – 21/09/1936)
25) “Tu telembras da queles belicois no Do- | mingo, eu estou toda marcada [...]”
(Maria/Jayme – 07/10/1936)
Observando os exemplos anteriores – de (23) a (25) –, percebe-se o uso
constante das formas relacionadas a você e a presente variação entre as formas dos dois
paradigmas. Em (23), ilustra-se você como pronome reto: “voce devi vir” e “voce dis
que vai”. Em (24), têm-se casos de pronome-complemento preposicionado: “au guma
cousa com voçe” e “Jayme se tua mãe falar com voçe”. Houve poucos dados de formas
associadas a tu antepostos pela preposição “com” (contigo) nas cartas da Maria, sendo,
no total, só três ocorrências – “vai uma santinha que e Nossa Senhora da Penha para tu
guardares com tigo”. Em relação aos pronomes-complementos não preposicionados, a
100
exemplo de Jayme, Maria utiliza frequentemente de formas advindas do paradigma de
tu (te), como mostra o exemplo 23 – “Eu te espero”.
Como houve uma relevante diferença entre o comportamento linguístico de
Maria e Jaime no que se refere, principalmente, aos pronomes na posição de sujeito
(pronome reto), serão apresentados a seguir os resultados relativos a essa função
distinguindo os casos de preenchimento e não preenchimento.
4.2.1. O preenchimento do sujeito
Alguns trabalhos – como os de Duarte (1993, 1995), Lopes (2005) e Machado
(2006, 2011) – evidenciam que houve uma mudança de comportamento no
preenchimento do sujeito a partir dos anos 30: a sua realização plena começa a superar o
uso como sujeito nulo. A entrada de você no paradigma pronominal brasileiro ocorreu
por volta desse período segundo esses estudos com base em peças teatrais e cartas
pessoais.
Para mostrar de que maneira a alternância entre as formas pronominais de
segunda pessoa ocorreram nas cartas do casal de noivos na posição de sujeito,
levantaram-se todos os dados referentes ao preenchimento e o não preenchimento do
mesmo, como ilustra a tabela a seguir:
101
TU
Jayme/Maria
Casal 1936-37
VOCÊ
Nulo
Pleno
Nulo
Pleno
Mulher
Maria-Jayme
89/233
38%
19/166
12%
13/29
45%
75/96
78%
Homem
Jayme-Maria
144/233
62%
147/166
88%
16/29
55%
21/96
22%
233/399
58%
166/399
42%
29/125
23%
96/125
77%
Sub-total31
Total32
399/524
76%
125/524
24%
Tabela 6: Preenchimento do sujeito nas cartas
A tabela (6) mostra os resultados do preenchimento do sujeito de segunda pessoa
– tu e você – nas cartas do Jayme e da Maria. Em termos dos valores totais, percebe-se
que a ocorrência de tu (pleno ou nulo) é muito maior do que você: 76% contra 24%.
Com relação especificamente ao preenchimento dessa posição, nota-se que o
casal de noivos utiliza tu muito mais nulo do que pleno – 58% contra 42%. O emprego
da forma você apresenta comportamento oposto, pois essa forma aparece
preferencialmente preenchida – 77% contra 23%. Confirmando-se o que se observa em
outros trabalhos, nossos resultados reiteram que você, na posição de sujeito, aparecia
mais preenchido do que nulo. O pronome tu, por sua vez, em razão de ser marcado
morfologicamente, ocorria mais nulo do que pleno.
Em relação ao emprego de tu na amostra, tanto nulo quanto pleno, Jayme utiliza
mais que a Maria – 62% contra 38% e 88% contra 12%, respectivamente. Por outro
lado, o comportamento de Maria em relação a você é o inverso ao que ocorre com o
noivo nos dados que se referem ao pronome tu preenchido, pois ela apresenta uma
maior frequência dessa forma – 78% contra 22%. No que se refere a você nulo, Maria
apresenta valores próximos aos do Jayme, tendo 45% de frequência contra 55% do
noivo. Vale ressaltar que essa diferença entre os missivistas também está relacionada à
31
Foram somados os valores correspondentes aos pronomes tu e você conforme o preenchimento do
sujeito nas cartas do casal de noivos: tu nulo nas cartas de Maria + tu nulo nas cartas de Jayme; tu pleno
nas cartas de Maria + tu pleno nas cartas de Jayme; você nulo nas cartas de Maria + você nulo nas cartas
de Jayme; e você pleno nas cartas de Maria + você pleno nas cartas de Jayme.
32
Foram somados os valores seguintes valores: tu nulo e pleno e você nulo e pleno.
102
frequência menor de tu na posição de sujeito nas cartas da noiva e, sobretudo, de você
nas de Jayme – como se pode observar nas missivas dele, o número de dados da nova
não ultrapassa 30 ocorrências em suas 62 cartas.
Nos exemplos (26)-(28) retirados das cartas de Jayme, há alguns dados
referentes tanto ao preenchimento do sujeito com tu quanto com você. Em (26),
percebe-se que Jayme utiliza muito a forma pronominal conservadora, aparecendo
recorrentemente nula, como em: “se Ø desceres” e “se não Ø estiveres”. Em (27), há
um exemplo de tu pleno: “Tú não deves pensar em bobagens”. Com relação a você,
pouco produtivo nas cartas do noivo, tem-se um dado de sujeito preenchido no exemplo
(28) – “Se você não matar da saudade” na carta de Jayme.
26) “Se Ø desceres na quinta-feira, vae me | esperar no nosso ponto, agora se Ø
desceres outro | dia quaquer [...] Ø não estiveres irei embora sosi- | nho.”
(Jayme/Maria – 03/05/1937)
27) “Tú não deves pensar em bobagens | pense unicamente em nosso amor, descansa
| bem, alivia o teu cérebro [...]” (Jayme/Maria – 19/01/1937)
28) “Se voce não matar da saudade | A saudade vae me matar.” (Jayme/Maria –
22/08/1936)
Os exemplos 29-31 foram retirados das cartas da Maria. Interessante observar
nesses dados da noiva, a forte alternância entre tu e você na mesma carta como se vê em
(29) e (30): “se voçe não puder vir... para Ø marcares”, “voce não se esqueça... Ø
podes rasgar”. Os dados de tu ora aparecem nulo ora preenchidos: “se tu queres ir com
elle” , “para Ø marcares um emcontro”:
29) “Jayme se voçe não puder vir no Domingo em minha casa | eu te pesso para Ø
marcares um emcontro no sábado [...]” (Maria/Jayme – 21/02/1937)
30) “[...] voce não se esqueça desta | tua noivinha que tamto te ama | Mariquinha |
não se esqueça de mandar as cartas Ø podes rasgar (Maria/Jayme – 07/03/1937)
31) “O meu irmão Antoninho manda-te comvidar- | te se tu queres ir com elle em
Paulo de | Frontem no dia 21 no trem das 8 horas [...]” (Maria/Jayme –
14/02/1937)
103
Em um levantamento das cartas com uso categórico das formas variantes (só tu
ou só você) e variação entre tu e você na mesma carta (tu e você), verificou-se que
Jayme teve em 36 cartas do total de 62 (58%) o emprego categórico de tu na posição de
sujeito. Em apenas 26 missivas (42%), houve alternância de tratamento nessa posição.
Maria, por outro lado, assume outro comportamento. Em suas cartas, houve variação
entre as formas alternantes em todas as suas 25 missivas (100%). Esse aspecto pode
revelar que Jayme tinha um comportamento mais regular e sistemático quanto ao
emprego tratamental em sua documentação, o que poderia reiterar, mais uma vez, um
domínio maior da norma padrão em relação à Maria.
Com relação ao aumento do preenchimento do sujeito apontado, desde Duarte
(1993) e observada por Souza (2012), os autores têm demonstrado que é entre os anos
de 1930 e 1940 que o sujeito pleno passa a ser mais frequente no português brasileiro.
Em nossos dados, houve um comportamento semelhante, já que foi identificado um
índice percentual equivalente entre sujeitos plenos e nulos: 50% para cada um.
Souza (2012), analisando o percurso da implementação de você com base em
cartas pessoais – que vão desde o século XIX à segunda metade do XX –, chega a
resultados quase idênticos quanto ao preenchimento. No gráfico da autora a seguir,
nota-se que o índice de sujeito pleno (tu ou você) não ultrapassa 50% de frequência:
Gráfico 1: O preenchimento do sujeito ao longo das décadas (SOUZA, 2012)
104
O ano que de fato é pertinente para esta análise é o de 1937 que evidencia o
comportamento do sujeito pleno você no período em que foram escritas as cartas de
Jayme e Maria. No gráfico a seguir apresenta-se o resultado obtido para cada um dos
missivistas:
100%
80%
60%
51%
49%
Sujeito pleno
40%
20%
0%
Jayme
Maria
Gráfico 2: Todos os sujeitos plenos das cartas
No gráfico (2), os missivistas Jayme e Maria aparecem com frequências
equilibradas no que diz respeito ao preenchimento do sujeito, apresentando,
respectivamente 51% (168 dados) contra 49% (94 dados). Embora esses valores já
estejam próximos do que seria esperado para o período, ainda faz-se necessário fazer
uma incursão nas formas pronominais de maneira discriminada, observando-se,
primeiramente, o sujeito pleno tu e você no gráfico a seguir:
100%
80%
22%
78%
60%
Você pleno
Tu pleno
40%
62%
20%
38%
0%
Jayme
Maria
Gráfico 3: Tu e você plenos nas cartas de Jayme e Maria
105
Jayme apresenta mais dados de preenchimento com tu do que Maria, tendo 62%
e sua noiva, 38%. Esse comportamento não é esperado – visto que o preenchimento da
forma conservadora não era usual na época (a marca desinencial da forma tu favorecia o
sujeito nulo).
O que poderia ter inflacionando o uso de sujeito preenchido com tu nas cartas de
Jayme? Como se viu em outros estudos, a década de 30-40 ainda é um período de
transição do parâmetro do sujeito nulo ao pleno. Os resultados relativos ao noivo não
evidenciam tal transição, mas apontam para um valor acentuado com mais de 60% de
frequência no sujeito pleno para tu. Em virtude desses altos índices de tu-pleno nas
cartas de Jayme, buscou-se observar os dados para identificar se havia alguma
motivação discursiva que o levasse a preencher o sujeito tantas vezes em suas nas
cartas. Os exemplos a seguir ilustram alguns desses contextos:
32) “A saudade começa a apoderarce se mim ja sinto que tua ausencia | é para mim
um martirio, só tú minha flor é que podes trazer a alegria | no meu viver, só tu
com o teu sincero amor é que poderá ilumi- | nasr a minha vida, tú és o meu
tezouro [...]”
33) “Embora eu saiba que tú me amas, e que perten- | ces só a mim, e que está
dentro do meu cora- | cão [...]”
34) “Para aliviar um pouco este meu coração | que é teu (porque o meu tú o levaste)
[...]”
Observando os exemplos de tu pleno nas cartas de Jayme, notam-se alguns
elementos e contextos discursivos que atuam na expressão desse sujeito. No exemplo
(32), todos os sujeitos tu destacados estão preenchidos devido ao discurso em que estão
inseridos, não podendo, dessa forma, aparecerem nulo. Em “só tú minha flor”, “só tu
com teu sincero amor” e “tú és”, a posição do sujeito aparece preenchida para enfatizar
o pronome. É um recurso usual para garantir o contraste e a individualização da pessoa
com quem se fala, não podendo, de maneira alguma aparecer nulo, pois a presença do
advérbio “só” impede que essa posição não seja preenchida.
106
Em (33), há a mudança do referente do discurso da primeira oração, que começa
com eu e passa a ser “tu” na segunda, por isso o preenchimento, nesse caso, acaba sendo
favorecido.
No exemplo (34), o sujeito tu destacado também não pode aparecer nulo, visto
que se trata de uma inversão na sentença em que é preciso marcar o referente. Vale
lembrar, que a referência também mudou – de eu para tu – sendo por isso, necessário
que essa posição esteja preenchida.
Esse resultado acerca do preenchimento de tu por parte de Jayme fez com que
fosse necessário levantar a frequência em que os recursos discursivos de
ênfase/contraste e mudança de referente ocorriam nas cartas a fim de trazer uma análise
mais condizente com o missivista. Verificando os dados, observou-se que o noivo
apresenta 54 dados dentre os 147 (em torno de 26% do seu preenchimento de tu) em
que a forma pronominal conservadora aparece inserida em contextos discursivos que
motivam a sua expressão. Se fossem retirados esses dados, os percentuais de sujeito
pleno com a forma tu tanto de Jayme quanto de Maria seriam similares.
A explicação para essa manifestação de tantos dados referentes de sujeito
preenchido com motivação discursiva está relacionada ao tipo de texto de que se trata
nesta análise: cartas amorosas. Jayme escreve de maneira lírica e sempre tenta dar
destaque a sua noiva a fim de evidenciar o sentimento que tem por ela, por isso o
recurso da ênfase e contraste ocorre em vários momentos nas missivas do noivo. Maria,
por outro lado, não apresenta nenhum dado de ênfase no discurso dela, fato esse que
pode ter enviesado a análise. Ao que tudo indica, o noivo tinha mais conhecimento de
textos escritos e mais familiaridade com o modelo epistolar, demonstrando ter um nível
de letramento maior que o da noiva.
Em relação a você pleno, Maria apresentou frequências de uso bem maiores que
as de Jayme – 78% contra 22%, correspondendo, respectivamente a 75 e 21 dados.
Maria utilizava mais você que Jayme e, consequentemente, apresentava mais dados
relativos ao preenchimento do sujeito, já que essa forma pronominal, conforme já
mostravam outros estudos, aparecia de maneira expressa na posição de sujeito.
Ademais, as mulheres, como já apontado, utilizavam mais você que tu, como será
abordado a seguir.
107
4.2.2. A questão do gênero
Nas cartas analisadas, retomando os resultados apresentados nos gráficos (2) e
(3), é possível perceber que a noiva utiliza mais você que tu, enquanto Jayme possui
comportamento contrário, preferindo tu a você. Uma das hipóteses levantadas para
justificar o uso da nova forma pronominal pelas mulheres, nessa época, é a de que você
guardava consigo um resquício de indiretividade originária da forma tratamental Vossa
Mercê (cf. RUMEU, 2008). Por essa razão, a mulher utilizaria uma estratégia menos
invasiva e direta que manteria ainda certo distanciamento entre ela e o interlocutor.
Cabe lembrar que você, apesar de ser a variante mais inovadora em relação ao pronome
tu de segunda pessoa, não era uma forma estigmatizada no português brasileiro.
Para ilustrar de maneira geral como se apresentam as formas pronominais
analisadas segundo o gênero, segue abaixo um gráfico referente aos missivistas:
80%
73%
71%
70%
60%
50%
40%
29%
30%
Tu
27%
Você
20%
10%
0%
Jayme
Maria
Gráfico 4: Dados percentuais das formas de segunda pessoa na posição de sujeito conforme o gênero.
O gráfico 4 mostra que o uso de tu e você nas cartas de Jayme e de Maria
apresentam valores praticamente inversos. O noivo apresenta a maior parte das
ocorrências de sujeito tendo como referente tu de 73% dos casos contra 27% da Maria
(291 e 108 dados, respectivamente). Já em relação a você, a noiva apresenta uma
frequência muito maior que Jayme, com 71% (88 dados) contra 29% do noivo (37
dados). É importante observar os valores absolutos, pois Jayme apresenta menos
variação entre tu e você em suas cartas e uso majoritário de uma das formas variantes
108
(79% de tu – 147 dados de tu contra 37 de você). Isso corrobora com a visão de que o
noivo alterna menos entre as formas pronominais, sendo, por isso, mais homogêneo no
tratamento utilizado nas cartas. Maria apresenta um número de dados de você e de tu
bem próximos, evidenciando que a noiva ora utiliza o sujeito com a forma
conservadora, ora com a inovadora. Esse aspecto pode ser um indício a mais que faz de
Jayme um indivíduo mais letrado que Maria.
Trabalhos como o de Lopes & Machado (2006), que estudaram cartas trocadas
entre um casal de idosos – o senhor e a senhora Ottoni – a seus netos no começo do
século XX, mostram que Barbara Ottoni empregava a forma você mais do que o marido,
alternando mais entre os pronomes. Isso ocorre não só pelo fato de a senhora, por ser
mulher, preferir uma estratégia não estigmatizada (LABOV, 1994) ou querer se
preservar mantendo distância do interlocutor (RUMEU, 2008, SOTO, 2001), mas
também por não possuir um grau de letramento muito elevado. Dito de outra forma, a
senhora Ottoni seria uma pessoa com cultura mediana (nos termos de BARBOSA,
2005), já que sabia ler e escrever, mas não possuía plenos domínios de modelos de
escrita mais elaboradas e, por consequência, da norma padrão.
A Maria, conforme a vovó Ottoni, teria as mesmas limitações com a escrita por
não possuir pleno domínio dessa modalidade, sendo nitidamente uma informante
representativa do português brasileiro popular, da fala cotidiana. A forte alternância
entre você e tu nas mesmas missivas seria mais uma evidência para confirmar tal
hipótese.
4.2.3. A concordância
Apesar do pouco número de dados de ausência de marca na concordância verbal
entre sujeito e verbo, a análise desse aspecto mostrou-se relevante por ser bastante raro
localizar tal fenômeno em textos escritos de sincronias passadas. A existência do
pronome sujeito tu sem a presença da desinência verbal correspondente é um importante
indício de que, conforme Lopes & Machado (2005), poderia estar havendo um
sincretismo entre as duas formais pronominais e a transição entre dois subsistemas de
tratamento em competição: o de tu e o de você. A insegurança do falante/informante
diante desses subsistemas em formação pode ter influenciado nessa concordância
variável tanto com o pronome tu como com o pronome você, gerando tal “confusão” no
109
uso das formas de cada um dos paradigmas. Interessante ressaltar que também foram
localizados dados do pronome sujeito você associados a formas verbais de segunda
pessoa do singular do tipo (você sabes). Dessa forma, você, que teria adentrado no
paradigma pronominal do português brasileiro primeiramente, conforme estudos
apontam – Duarte (1993), Rumeu (2008), entre outros –, na posição de sujeito, passou a
competir com tu, sendo utilizado nos mesmos contextos formais.
O gráfico abaixo ilustra as ocorrências de pronomes junto a formas verbais sem
a marcação morfológica de concordância referente ao pronome:
Não concordância
36%
Jayme (5 dados)
64%
Maria (9 dados)
Gráfico 5: A não concordância entre o pronome sujeito e o verbo
O gráfico (5) apresenta os dados de não concordância nas cartas do casal de
noivos, tendo Maria 64% de frequência (9 dados), enquanto Jayme soma um total de 5
ocorrências, correspondendo a 36%. Os cinco exemplos a seguir foram retirados das
cartas de Jayme:
35) “Só quero “tu” crêa em mim, porque não te esqueço se quer um minuto”
(12/01/1937, Jaime para Maria)
36) “tú é a dona do meu coração” (19/01/1937, Jaime para Maria)
37) “eu sei que tú choraste muito, eu te pedi tanto para que “tu” não chorasse e não
me atendeste, porque tú fazes isso?” (21/09/1936, Jaime para Maria)
38) “Junto a esta mandas-te 20c000 (vinte mil reis) para pagares| as fotografias |
espero que tú mas mande com brevidade, se não chegar | o dinheiro manda
pedir mais” (Jayme/Maria – 22/09/1936)
39) “Minha querida, tú não pode avaliar quanto | me fez bem este nosso encontro”
(Jayme/Maria – 28/09/1936)
110
Como mostram os cinco exemplos de Jayme, a ausência da concordância
canônica dá-se apenas com a forma tu que é predominante na documentação do noivo.
Embora sejam poucos dados, foram localizados três dados no subjuntivo (quero tu crêa,
tu mas mande, tu não chorasse) e dois no presente do indicativo (tu é a dona, tu não
pode).
Outro aspecto a destacar é o fato de a ausência da concordância nesses dados de
Jayme aparecer sempre quando há um elemento interveniente entre o verbo e o sujeito
tu (tu não chorasse, tú mas mande). No primeiro caso, tem-se uma partícula de negação
entre o pronome tu e o verbo “pode” não marcado. Embora não se possa considerar que
haja uma significativa distância entre sujeito e verbo, a intercalação de elementos é um
dos aspectos que dificultam a realização da concordância, conforme aponta o trabalho
de Scherre & Naro (1997). No segundo caso (“tú mas mande”), tem-se um exemplo
interessante de contração de dois pronomes átonos (me + as). Tal emprego ocorre
quando uma forma de objeto indireto (dativo), no caso o átono me, junta-se a um
pronome átono funcionando como objeto direto (as) em uma mesma oração. Como
afirmam Cunha e Cintra (1985, p. 300):
“No Brasil, quase não se usam as combinações mo, to, lho, nolo, vo-lo, etc. Da língua corrente estão de todo banidas e,
mesmo na linguagem literária, só aparecem em escritores um
tanto artificiais”
O emprego nas cartas de Jayme de uma contração pouco usual no português
brasileiro seria mais um indício de que o noivo de Maria tinha mais contato com
diferentes modelos de escrita. Trata-se, como afirmam os gramáticos, de um uso
bastante artificial e raro no português brasileiro, comum apenas no português europeu.
Seguem os exemplos identificados nas cartas de Maria:
40) “voce manda-me | dizer a certesa sivem mesmo para eu ir esperarte | com
Ismenia [...]” (Maria/Jayme – 12/09/1936)
41) “voce estas piora- | ndo muito não se e esquesa de ir au medico” (Maria/Jayme –
28/09/1936)
42) “voce já sabes como eu passei muito | resfriada e sozinha” (Maria/Jayme –
29/09/1936)
111
43) “pesso-te pelo a mor de Deus para não Ø acabares com o nosso a mor eu nunca
peissei que “tu” memandace uma carta dessas” (19/01/1937, Maria para Jaime)
Enquanto Jayme apresenta dados de concordância não canônica com tu, nas
cartas de Maria, prevalecem dados com você. No exemplo (40) (voce manda-me |
dizer), teve-se uma dupla interpretação quanto ao tempo-modo verbal empregado. Por
um lado, pode-se assumir que “manda” está no presente do indicativo e, nesse caso, não
haveria falta de concordância verbal. Por outro, pode-se considerar como um imperativo
afirmativo e, nesse caso, não haveria concordância, uma vez que o verbo estaria
flexionado na segunda pessoa (tu) frente ao pronome você. Pela recorrência dessa forma
verbal (manda) em várias cartas de Maria, tal dado está sendo tomado como imperativo.
Há outros exemplos similares e frequentes nas missivas da noiva em que ela omite o
pronome, ficando mais evidente a ordem ou pedido emitido na sentença, como nos
exemplos a seguir:
a)
“manda-me dizer se a tua maisinha | falou au guma cousa com voce do
passeio | mais beijinhos para voçe [...] não repare a minha carta nei os
eros | rasga” (Maria/Jayme – 05/10/1936)
b)
“voce rasga | ou manda para mim” (Maria/Jayme – 12/01/1937)
Todas as ocorrências verbais expostas em (a) e (b) encontram-se na seção de
despedida ou P.S, que são as partes das cartas em que Maria costuma fazer pedidos e
solicitações ao noivo. Destaca-se que a dupla interpretação da sentença (Você mandame) está associada ao fato de as formas imperativas não virem comumente precedidas
de sujeito explícito.
Outro aspecto que pode referendar essa interpretação é a
conjugação verbal da forma em questão. Estudos (cf. SCHERRE, 2007) indicam que
verbos de 1ª conjugação são contextos favorecedores do imperativo indicativo. Esse
uso variável de você com a forma indicativa do imperativo é hoje bastante comum no
português brasileiro, principalmente, na fala do Rio de Janeiro. Exemplos do tipo “Vem
pra Caixa você também” são veiculados até mesmo na imprensa oficial. De qualquer
forma que a estrutura seja interpretada, confirma-se a nossa hipótese inicial de que a
documentação de Maria é representativa da norma popular brasileira do início do século
XX.
112
Em suma, mesmo que a frequência de tu sem concordância nessas cartas de
amor ainda seja baixa, esses resultados do início do século XX delineiam o que se
configurará estruturalmente no século XXI: a combinação entre tu com desinência zero.
Tal característica é atualmente vislumbrada em vários centros urbanos, incluindo o Rio
de Janeiro, conforme discutido por Lopes ET alli (2009). A falta das marcas de
concordância na produção escrita do casal de noivos evidencia que i) esse uso era
certamente bastante produtivo na fala da época ii) o nível de escolarização de nossos
informantes, principalmente o de Maria, não era tão alto.
113
Considerações finais
A partir de uma proposta que pressupunha a articulação entre uma análise de
cunho filológico e o estudo da variação entre – tu e você – em cartas de dois missivistas,
foi possível comprovar algumas hipóteses e ratificar a influência do perfil social dos
remetentes na análise variacionista.
Alguns resultados mostraram-se relevantes no que diz respeito à tentativa de
traçar as características sociolinguísticas dos missivistas, levando-se em conta
propriedades depreendidas em suas produções escritas. O apoio da ferramenta
computacional – E-dictor – também mostrou-se eficaz para o levantamento e
quantificação de aspectos grafemáticos.
Considerando a análise de cunho filológico, foram levantadas as seguintes
questões que foram discutidas nessa dissertação:
5. A ausência ou presença desvios grafemáticos pode ser um indício do grau de
letramento dos remetentes, por isso as taxas de frequência desses desvios são
mais altas na produção dos missivistas com pouco domínio da norma escrita.
A transposição de traços da oralidade para a escrita também é um indício de
baixa letramento dos missivistas.
Os missivistas, tanto Jayme quanto Maria, apresentaram desvios grafemáticos. A
habilidade com a escrita não se mostrou idêntica para ambos. Nas cartas de Jayme,
identificou-se menor número de desvios grafemáticos e, no geral, seus equívocos
demonstraram a transposição da fala para a escrita. Esse aspecto deveria enquadrá-lo
como uma pessoa com um grau de letramento mediano. Tais dados, contudo, não foram
tão numerosos quanto os observados na produção escrita da noiva. A maioria deles
consiste em desvios aceitáveis, por serem termos com grafemas distintos para o mesmo
fone. Maria apresenta, por sua vez, uma grafia mais fonética e apresenta um índice alto
de desvios grafemáticos. Se for levada em conta a quantidade de cartas produzidas por
cada um, as taxas de Maria seriam proporcionalmente ainda maiores. Nesse sentido,
notou-se grande diferença quanto ao domínio da escrita por parte de Maria em relação
ao seu noivo.
114
6. O uso de variadas palavras etimologizadas ou pseudo-etimologizadas indica
que o missivista tinha mais contato com textos escritos e, por isso, maior
letramento, conforme trabalho de Barbosa (2005).
De acordo com Barbosa (1999) a presença de palavras etimologizadas pode ser
um indício de que o escriba tinha noção de que certos termos podem dar ao seu texto
certo ar de letrado, mesmo que isso não corresponda de fato à realidade (Barbosa,
2005). Jayme apresentou um número maior de ocorrências e maior variedade de
palavras que fazem alusão à etimologia das mesmas. Maria utilizou esse recurso de
maneira mais tímida e sempre repetindo as mesmas palavras. Parece claro, portanto,
visto os valores de ocorrências de etimologizações nas cartas dos missivistas que havia
uma diferença quanto ao domínio da norma culta por parte de casal. Jayme, por
apresentar alto índice de etimologizações (73% com 122 dados), poucas pseudoetimologizações e uma grande variedade de vocábulos que refletem um conhecimento
sobre a origem da palavra, pôde ser apontado como mais letrado que Maria, observando
por este critério. Maria, por outro lado, apresentou uma frequência irrisória de palavras
etimologizadas (27%) nos mesmos vocábulos – ella, pella –, o que faz pensar que ela só
conhecia aquelas formas por força da repetição.
7. A
variabilidade
de
abreviaturas
não
se
mostrou,
nessa
amostra
especificamente, como um forte indicativo de maior domínio por parte do
remetente desse artifício linguístico. A ideia inicial era a de que o missivista
que detivesse maior aporte linguístico-cultural seria capaz de utilizar esse
recurso mais eficientemente.
A abreviatura, diferentemente do observado com os critérios analisados, não
pareceu ser um bom parâmetro para medir o grau de letramento dos missivistas em
nossa amostra especificamente. Ambos os escribas possuíam dados de abreviaturas
repetidas, e não foi possível traçar de maneira significativa um contraste entre Jayme e
Maria.
115
8. A segmentação e junção silábica e/ou vocabular33 é um dos principais
aspectos para caracterização dos missivistas em mais ou menos letrados, pois
são questões que refletem o contato e domínio dos mesmos com textos
escritos, como aponta Marquilhas (1999).
A segmentação e a junção sinalizaram com bastante precisão a diferença entre os
indivíduos no que se refere às suas habilidades com a escrita (os chamados mãos
inábeis, conforme a autora coloca). Nas cartas de Jayme e de Maria, perceberam-se
resultados discrepantes em relação aos dois. O noivo apresentou dados de segmentação
e junção com formas presas – clíticos – enquanto Maria apresentou segmentação em
diferentes palavras. A noiva teve inúmeros dados de segmentação com palavras
iniciadas por vogais/ditongos, interpretados como formas dependentes nos termos de
Camara Jr. (1970): a mo (por amor), ou traveiz (por outra vez), ao passo que Jayme não
apresentou esse tipo de ocorrência nas cartas dele.
Considerando a análise da alternância entre as formas pronominais de segunda
pessoa, foram postas as seguintes questões:
a) A entrada de você no paradigma pronominal, como apontam alguns trabalhos
com corpora diacrônicos – Duarte (1993, 1995), Lopes (2008) – ocorreu por
volta da década de 1930. A frequência de você, nesse período analisado, supera a
de tu?
Os dados das missivas desta dissertação confirmaram que, em meados da década
de 1930, os índices de você aumentam significativamente em relação ao pronome tu. As
frequências para o sujeito pleno, em nossa amostra, foram equivalentes aos resultados
observados com outros materiais. A hipótese levantada por Duarte (1995) se confirmou
nesta análise, pois, conforme apontou Souza (2012), por volta da década de 1930
começa a haver um equilíbrio quanto à expressão plena ou nula do sujeito. Nos dados
analisados, você já se mostrou bastante produtivo. Na posição de sujeito, identificaramse altos índices para você e tu como sujeito preenchido, o que não tinha sido observado
em outros estudos (pelo menos no que se refere ao pronome tu).
33
Chama-se de segmentação neste trabalho vocábulos fragmentados indevidamente, como: a qui, com
migo e estaç-ão. A junção, por sua vez, é o processo inverso no qual há a união de elementos que
deveriam estar separados, como em mezango e pramin.
116
b) Trabalhos como de Rumeu (2008), Lopes & Machado (2005) apontam as
mulheres como sendo as maiores responsáveis pela inserção de você no
português brasileiro. Em razão de você ter um caráter mais indireto referente à
sua origem Vossa Mercê, a mulher, utilizaria mais essa forma como uma
maneira de resguardar-se do seu interlocutor. Esse resultado também se
confirma neste trabalho ou haveria outras questões relativas ao perfil
sociolinguístico dos remetentes que influenciariam no uso dessas formas de
segunda pessoa?
Maria empregou com maior produtividade a forma você em relação a Jayme. Tal
comportamento ocorreu, sobretudo, com sujeito preenchido. Maria apresentou também
maior alternância entre as formas variantes, evidenciando a flutuação dos dois
subsistemas de tratamento em competição na fase em análise. O grau de letramento
traçado anteriormente acerca da missivista e o uso mais produtivo de você indicariam,
nesse caso, que tal variante não mais resguardava a indiretividade e distanciamento
observados no século XIX. O você, empregado por Maria, estaria funcionando como a
variante de segunda pessoa do singular que se generalizou na fala cotidiana do
português brasileiro novecentista.
117
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http://www.revistaaopedaletra.net/volumes/vol%203.2/Ana_Christina_Souto_Maior-O_genero_carta-variedade_uso_e_estrutura.pdf. Acesso em: 27 de julho de 2009.
SOUZA, Janaina Pedreira Fernandes de. (2012). Mapeando a entrada do você no quadro
pronominal: análise de cartas familiares dos séculos XIX-XX / Janaina Pedreira
Fernandes de Souza. Rio de Janeiro: UFRJ – FL.
TEYSSIER, Paul. (2001). História da Língua Portuguesa. São Paulo: Martins Fontes.
WATTHIER, Luciane. Revisitando histórias guardadas no tempo: um olhar bakhtiniano
para o gênero discursivo carta de amor. 2010. 120 páginas. Dissertação (Mestrado em
Letras) - Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Estadual do Oeste do
Paraná - UNIOESTE, Cascavel.
WEINREICH, Uriel; LABOV, William e HERZOG, Marvin. (2006 [1968].)
Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística. São Paulo: Parábola.
121
Anexo:
Nesta seção são apresentadas todas as palavras que foram coletadas pelo
programa de edição E-dictor nas 97 cartas que compõem o corpus. Abaixo os vocábulos
foram discriminados segundo os processos analisados anteriormente – segmentação,
junção, desvios grafemáticos, etimologizações e abreviaturas – e os remetentes, sendo
contabilizada cada ocorrência dos dados nas missivas.
Cartas da Maria
Dado
Junção
Segmentação
Palavra
Frequência
1.
a borecido
aborecido
________
aborrecido
2
2.
a braços
abraços
________
3
3.
a cabado
acabado
________
2
4.
a cabar
acabar
________
3
5.
a cabares
acabares
________
2
6.
a inda
ainda
________
2
7.
a indanão
aindanão
ainda não
1
8.
a legre
alegre
________
1
9.
a legria
alegria
________
2
10.
a legrou
alegrou
________
1
11.
a manha
amanha
12.
a mor
amor
________
4
13.
a onde
aonde
________
2
14.
a paixonada
apaixonada
________
1
15.
a panhei
apanhei
________
1
16.
a pesar
apesar
________
1
17.
a proveitava
aproveitava
________
1
18.
a quela
aquela
________
3
19.
a quele
aquele
________
4
20.
a queles
aqueles
________
1
21.
a qui
aqui
________
8
22.
a sim
asim
23.
a simesmo
asimesmo
24.
a te
25.
26.
amanhã
1
assim
6
asim mesmo
assim mesmo
1
ate
________
até
5
a té
até
________
ade
________
a de
há de
1
27.
ajente
________
a gente
a gente
1
28.
aminha
________
a minha
4
29.
amuitos
________
a muitos
1
30.
anda-nos
________
anda nos
1
31.
anoite
________
a noite
1
4
122
32.
atarde
________
a tarde
1
33.
atriteza
________
a triteza
34.
atua
________
a tua
35.
au- guma
au-guma
________
36.
au mentado
aumentado
________
37.
au mentarã
aumentarã
________
aumentaram
1
38.
aultuma
________
a ultuma
a última
1
39.
aumedico
________
au medico
ao médico
2
40.
ca- rta
ca-rta
________
carta
1
41.
cadaveis
________
Cada veis
cada vez
1
42.
chegame
________
chega me
1
43.
chora- ndo
chora-ndo
________
2
44.
co- m
co-m
________
45.
com binar
combinar
________
3
46.
com binarmos
combinarmos
________
1
a tristeza
1
3
alguma
5
1
com
1
47.
com cordou
comcordou
________
concordou
1
48.
com- formar
Com-formar
________
conformar
3
49.
com forme
comforme
________
conforme
1
50.
com migo
commigo
________
comigo
10
51.
com par
compar
________
comprar
1
52.
com tente
comtente
________
contente
2
53.
com tigo
comtigo
________
contigo
4
54.
com tinua
comtinua
________
continua
1
55.
com tinuam
comtinuam
________
continuam
1
56.
com verça
comverça
________
conversa
2
57.
con migo
conmigo
________
comigo
1
58.
da quela
daquela
________
2
59.
da queles
daqueles
________
1
60.
darte
________
dar te
61.
de morar
demorar
________
1
62.
de pois
depois
________
10
63.
de presa
depresa
________
64.
deu
________
De eu
65.
Domi- ngo
Domi-ngo
________
Domingo
3
66.
ei quanto
eiquanto
________
enquanto
1
67.
ei quato
eiquato
________
enquanto
1
68.
em com tra
emcomtra
________
encontrar
1
69.
em comtros
emcomtros
________
encontros
1
70.
em tão
emtão
________
então
1
dar-te
depressa
1
1
3
71.
em trega
emtrega
________
entrega
1
72.
em velope
emvelope
________
envelope
2
73.
entregate
________
entregar te
entregar-te
1
74.
escrevite
________
escrevi te
escrevi-te
1
75.
esperarte
________
esperar-te
76.
estaç- ao
estaç-ao
________
1
estação
1
123
77.
Eua
________
Eu a
Eu
1
78.
gr- aças
gr-aças
________
graças
1
79.
jabotei
________
ja botei
já botei
1
80.
jáli
________
Já li
81.
javi
________
Já vi
já vi
1
82.
lidarei
________
li darei
lhe darei
1
83.
m- ole
m-ole
________
mole
1
1
84.
m- uito
m-uito
________
muito
3
85.
ma- ndei
ma-ndei
________
mandei
1
86.
madeitar
________
ma deitar
me deitar
2
87.
mado-te
________
mado te
mandou te
1
88.
mandar te
mandarte
________
mandar-te
1
89.
meaborecer
________
me aborecer
me aborrecer
1
90.
meaborecido
________
me aborecido
me aborrecido
1
91.
medar
________
me dar
3
92.
medeitar
________
me deitar
1
93.
medeste
________
me deste
1
94.
melevantei
________
me levantei
3
95.
melevar
________
me levar
1
96.
memandace
________
me mandace
2
97.
memandou
________
me mandou
2
98.
mepidiu
________
me pidiu
99.
merespondas
________
me respondas
1
100.
merespondia
________
me respondia
1
101.
mezango
________
me zango
1
102.
mu- itos
mu-itos
________
103.
na quela
naquela
________
1
104.
na quele
naquele
________
2
105.
o brigada
obrigada
________
1
106.
o fendeu
ofendeu
________
2
107.
o fereceu
ofereceu
________
1
108.
ocontrario
________
o contrario
109.
orecado
________
o recado
2
110.
orosto
________
o rosto
1
111.
ou tra-
outra-
________
outra
1
112.
pa- ssando
pa-ssando
________
passando
2
113.
paçouma
________
Paço uma
passo uma
1
114.
pe- sso-te
pe-sso-te
________
peço-te
1
115.
pergu- ntou
pergu-ntou
________
perguntou
1
116.
perguntome
________
perguntou me
perguntou-me
1
117.
piora- ndo
piora-ndo
________
piorando
1
118.
pramin
pra min
para mim
1
119.
sau- de
sau-de
________
saúde
1
120.
sem pre
sempre
________
2
121.
sepoder
________
se poder
1
me pediu
muitos
o contrário
1
1
1
124
122.
sepudece
________
se pudece
se pudesse
1
123.
sevoce
________
se voce
se você
2
124.
sieu
________
si eu
se eu
2
125.
sivem
________
si vem
se vem
1
126.
sivou
________
si vou
se vou
1
127.
sotem
________
so tem
só tem
1
128.
tam bei
tambei
________
também
1
129.
tam bem
tambem
________
também
11
130.
tecomto
________
te conto
1
131.
teesquecerei
________
te esquecerei
1
132.
telembras
________
te lembras
1
133.
temandei
________
te mandei
1
134.
tepesso
________
te pesso
135.
tersido
________
ter sido
136.
ti vece
tivece
________
137.
tiespero
________
te espero
138.
tiver
________
ti ver
te ver
1
139.
v- oçe
v-oçe
________
você
1
140.
vou menbora
voumenbora
Voume enbora
vou-me embora
2
te peço
2
1
estivesse
1
1
Cartas do Jayme
Dado
Junção
Segmentação
1.
a onde
aonde
________
Palavra
Frequência
1
2.
Ati
________
a ti
2
3.
bei- jal-as
bei-jal-as
________
beijá-las
1
4.
conhecela
________
conhece la
conhecê-la
1
5.
demolil-o ,
demolil-o,
demoli-l-o,
demoli-lo,
1
6.
dizerte
________
dizer-te
7.
enalteceme
________
enaltecer me
enaltece-me
1
8.
extasiarte
________
extasiar te
extasiar-te
1
9.
falarte-ei
________
falar te ei
falar-te-ei
1
10.
fazme
________
faz me
faz-me
1
11.
guardal-a
________
guarda-la
guardá-la
1
12.
informarte
________
informar te
informar-te
1
13.
Ouvil-os
________
ouvi los
ouvi-los
1
14.
Pagal- as
pagal-as
paga-l-as
pagá-las
1
15.
Resta-se
restase
________
restasse
1
16.
vel-a
________
ve la
vê-la
1
17.
vel-as ,
vel-as,
ve-l-as,
vê-las,
1
18.
sentil-o
________
senti lo
senti-lo
2
19.
se quer
sequer
________
1
1
125
3.1.2. Desvios grafemáticos
Cartas da Maria
Dado
Palavra
1.
a borecido
aborrecido
2.
a comtenção
aconteçam
a manha
amanhã
1
a sim
a simesmo
assim
assim mesmo
6
a te
até
5
abicesso
açunto
abcesso
assunto
1
8.
9.
ade
há de
11.
ajente
ali
a gente
alí
12.
almocou
almoçou
13.
almosar
almoçar
14.
amostrei-te
mostrei-te
15.
amuitos
há muitos
16.
aniverçario
aniversário
aranjar
arranjar
2
aras
asentados
horas
assentados
1
19.
20.
atrais
atrás
atriteza
a tristeza
1
au
ao
27
au- guma
au mentarã
alguma
aumentaram
7
24.
25.
aultuma
a última
26.
aumedico
ao médico
27.
aus
aos
29.
auteu
auteulado
ao teu
ao teu lado
30.
avizei
avisei
31.
beijado
beijando
32.
biliscois
beliscões
33.
bou
bom
34.
buriçe
burrice
35.
burinha
burrinha
36.
cadaveis
cada vez
37.
caião
caiam
Frequência
3.
4.
5.
6.
7.
10.
17.
18.
21.
22.
23.
28.
2
1
1
1
1
1
1
1
3
1
1
1
1
1
1
1
2
3
2
1
1
1
1
1
1
1
1
1
126
38.
cançada
cansada
39.
cançadinho
cansadinho
carte
carta
1
cauza
causa
2
celo
selo
1
certesa
certeza
1
chega
chegar
1
chegaçe
chegame
chegasse
1
46.
47.
chegase
chegasse
chegei
cheguei
9
chegu
chegou
1
cheve
chove
1
chora
chuveu
chorar
choveu
2
52.
53.
chuvia
chovia
com cordou
com- formar
concordou
conformar
1
com forme
conforme
1
com migo
com par
comigo
comprar
10
com temte
contente
2
com tigo
com tinua
contigo
continua
4
61.
62.
com tinuam
continuam
com verça
conversa
2
combinamo
combinamos
1
comesão
começam
1
comfiansa
confiança
4
comformada
comformar
conformada
conformar
1
68.
69.
comserve
conserve
70.
comtente
contente
comto
conto
1
comtra
contar
2
comverçando
conversando
1
comvidar-
convidar-
1
con
com
1
con migo
comigo
1
confesou
confessou
2
40.
41.
42.
43.
44.
45.
48.
49.
50.
51.
54.
55.
56.
57.
58.
59.
60.
63.
64.
65.
66.
67.
71.
72.
73.
74.
75.
76.
77.
78.
79.
80.
81.
82.
1
1
1
1
1
1
3
1
1
1
1
1
1
coreio
correio
6
corente
corrente
3
couza
coisa
5
couzas
culhado
coisas
cunhado
1
1
127
83.
da
dar
85.
de presa
de- zenho
depressa
desenho
86.
dece
desse
defiçel
deichar
difícil
deixar
1
descomfiarem
desconfiarem
1
deseijo
deu
desejo
de eu
3
91.
92.
devi
deve
dezeijo
desejo
2
dice
disse
9
diçe
diçerão
disse
disseram
7
dis
diz
4
dise
diseçe
disse
dissesse
8
diser
dizer
1
diso
disso
1
doçes
duer
doces
doer
2
103.
104.
egreja
igreja
ei quato
enquanto
2
84.
87.
88.
89.
90.
93.
94.
95.
96.
97.
98.
99.
100.
101.
102.
105.
106.
3
1
1
1
1
2
1
1
1
1
1
em com tra
encontrar
1
em comtros
encontros
1
em tão
em trega
então
entrega
1
em velope
envelope
3
emchado
inchado
1
emcontro
encontro
1
en
encontar
em
encontrar
1
encontra
enportava
encontrar
importava
1
116.
117.
enteiro
inteiro
119.
entereça
entregate
interessa
entregar-te
120.
enxeste
encheste
122.
eros
es- queçeres
erros
esqueceres
123.
es- queso
esqueço
124.
es tãom
estão
escesas
esqueças
1
escreve
escrever
1
espera
esperar
1
107.
108.
109.
110.
111.
112.
113.
114.
115.
118.
121.
125.
126.
127.
1
2
1
1
2
1
1
10
1
1
1
128
128.
esperãdo
esperando
esquesa
esqueça
14
esquesas
esqueças
1
esqueseres
esqueceres
1
esqueso
estaç- ao
esqueço
estação
1
133.
134.
estacão
estação
136.
estais
estam
estar
estão
137.
estante
instante
esteije
estejão
estejam
estejam
1
estejes
estejas
2
estiverão
estreviou
estiveram
extraviou
1
Eua
facrificio
Eu
sacrifício
1
fais
faz
8
falarão
faltão
falaram
faltam
2
fasas
faças
2
fasem
fasia
fazem
fazia
2
150.
151.
fei
foi
feis
fez
5
fexa
ficei
fecha
fiquei
1
154.
155.
fiqui
fiquei
156.
foce
fosse
158.
fofer
foiste
sofrer
foste
159.
foite
foi-te
160.
forão
foram
fro
fubuscar
frio
fui buscar
1
gracas
grando
graças
grande
1
grasas
homen
graças
homem
3
166.
167.
ião
iam
infelis
inpocivel
infeliz
impossível
2
interesada
interessada
1
intrega
entrega
1
irma
irmã
2
129.
130.
131.
132.
135.
138.
139.
140.
141.
142.
143.
144.
145.
146.
147.
148.
149.
152.
153.
157.
161.
162.
163.
164.
165.
168.
169.
170.
171.
172.
2
1
1
5
2
1
1
1
2
1
1
1
1
1
1
2
1
1
1
1
1
1
1
1
129
173.
irman
iscondido
irmã
escondido
13
jente
juiso
gente
juizo
2
176.
177.
lei
leio
178.
lembransas
lembranças
179.
lenbran- do-me
lembrando-me
180.
lidarei
lhe darei
loge
longe
2
mado-te
mandou te
1
mais
maisinha
mas
mãezinha
8
manha
manhã
6
manlha
manhã
1
mara
mora
2
174.
175.
181.
182.
183.
184.
185.
186.
187.
188.
1
1
1
1
1
1
1
marava
morava
1
me aborrecer
Me aborrecido
1
190.
meaborecer
meaborecido
191.
medar
me dá
192.
meis
mês
melho
melhor
3
memandace
mepidiu
Me mandasse
me pediu
2
min
mim
6
mil
moça
2
198.
mis
mosa
199.
moso
moço
200.
nece
nesse
nei
neta
nem
nesta
8
nois
nós
11
noso
nosso
1
notiçias
nus
notícias
nos
3
onte
orivel
ontem
horrível
2
208.
209.
otel
hotel
211.
ou- brigado
paça-se
obrigado
passa-se
212.
paciarmos
passearmos
213.
paçouma
passo uma
214.
par
para
215.
pareçia
parecia
216.
pasada
passada
pasando
passando
189.
193.
194.
195.
196.
197.
201.
202.
203.
204.
205.
206.
207.
210.
217.
1
1
2
1
1
1
1
1
1
1
2
1
1
1
1
1
1
1
3
130
218.
pasão
passam
219.
pasei
passei
221.
paseio
pasiar
passeio
passear
222.
pasiares
passeares
224.
pasou
passiares
passou
passeares
225.
pe- sso-te
peço-te
peco-te
peçote
peço-te
peço-te
2
peissei
pen- ção
pensei
pensão
2
Penho
Penha
1
pensase
penssado
pensasse
pensando
2
penssando
penssar
pensando
pensar
2
peor
perguntome
pior
perguntou-me
3
persigindo
pesa
perseguindo
peça
1
238.
239.
peso-te
peço-te
pesso-te
pidirão
peço-te
pediram
17
pidiu
pediu
3
poçivel
podece
possível
pudesse
1
244.
245.
podeçe
pudesse
246.
podir
pedir
248.
pois
por- tam
pôs
portão
249.
portunidade
oportunidade
posivel
impossível
4
poso
posso
2
posso-te
peço-te
2
preçisa
preciza
precisa
precisa
1
prefeita
perfeita
1
pregunta
pergunta
1
presizavas
prizão
precisavas
prisão
1
258.
259.
proçedas
procedas
260.
proçeder
proceder
261.
que
quer
que
quem
220.
223.
226.
227.
228.
229.
230.
231.
232.
233.
234.
235.
236.
237.
240.
241.
242.
243.
247.
250.
251.
252.
253.
254.
255.
256.
257.
262.
1
1
2
1
1
2
1
1
1
1
2
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
2
1
1
1
1
1
1
131
263.
quei
quem
2
quen
quem
2
queras
quirido
queiras
querido
2
quizer
quiser
11
rasga
rasge
rasgar
rasgue
1
269.
270.
reçebi
recebi
272.
recibí
registar
recibi
registrar
273.
resar
rezar
274.
romançe
romance
sabe
sacrifiçio
saber
sacrifício
1
sacrifisio
sacrifício
1
saldades
saudades
2
sam
são
2
sangada
zangada
1
sangado
saudads
zangado
saudades
5
sedo
cedo
3
sego
seija
cego
seja
1
sepoder
sepudece
se puder
se pudesse
1
si
sivou
se
se vou
12
sobrinha
soubece
sobrinhos
soubesse
4
suportavel
talves
insuportável
talvez
1
tam
tanto
1
tam
tam bei
tão
também
5
tamto
tanto
5
tan
tarmo
tão
estarmos
1
299.
300.
tecomto
te conto
teis
telefona
tens
telefonar
3
264.
265.
266.
267.
268.
271.
275.
276.
277.
278.
279.
280.
281.
282.
283.
284.
285.
286.
287.
288.
289.
290.
291.
292.
293.
294.
295.
296.
297.
298.
301.
302.
303.
1
1
1
2
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
tenpo
tempo
6
te peço
trem
2
305.
tepesso
tern
306.
tersa-feira
terça-feira
307.
ti
te
304.
1
1
2
132
308.
ti vece
estivesse
309.
tiver
te ver
tivese
tivesse
3
traes
traveis
traz
través
1
312.
313.
traves
través
314.
tren
trem
316.
trite
troçe
triste
trouxe
317.
us
uns
us
uzar
os
usar
1
vais
vãmos
vas
vamos
1
321.
322.
ve
vê
veijo
vejo
1
vez
vencer
6
325.
veis
venser
326.
ves
vez
327.
vese
vezes
328.
veses
vezes
329.
viaje
viagem
330.
vieçe
viesse
vin
virão
vim
viram
1
voçe
vou menbora
você
Vou-me embora
22
Dado
Palavra
Frequência
1.
a
há
1
2.
abracos
abraços
1
3.
adocar
adoçar
1
4.
agonisante
agonizante
1
310.
311.
315.
318.
319.
320.
323.
324.
331.
332.
333.
334.
1
1
2
1
1
5
1
1
1
1
3
1
1
1
1
1
1
1
2
Cartas do Jayme
5.
almentar
aumentar
1
6.
almentar-mas
aumentarmos
1
7.
altomovel
automóvel
1
8.
amo
amor
3
9.
amostraste
mostraste
1
10.
anciedade
ansiedade
1
11.
ancioso
ansioso
3
12.
apoderarce
apoderar-se
1
133
13.
arrangei¹
arranjei
1
14.
assucar
açúcar
1
15.
atraz
atrás
2
16.
atrazou
atrasou
1
17.
au
ao
1
18.
camo
calmo
1
19.
cança
cansa
2
20.
cereno
sereno
1
21.
comnosco
conosco
1
22.
Constitue
Constitui
1
23.
convalescensa
convalescência
1
24.
crêa
creia
1
25.
cres
crees
1
26.
crianssice
criancice
1
27.
dansei
dancei
2
28.
dar
dá
1
29.
darao
darão
1
30.
degua
d'água
1
31.
desaçosegado
desassossegado
1
32.
descança
descansa
1
33.
durmente
dormente
2
34.
durmi
dormi
2
35.
durmia
dormia
1
36.
durmir
dormir
1
37.
emora
embora
1
38.
enesquecível
inesquecível
3
39.
enfinda
infinita
1
40.
escretorio
escritório
1
41.
esplicar
explicar
1
42.
extasiarte
extasiar-te
1
43.
facam
façam
1
44.
fantazia
fantasia
1
45.
fasso
faço
1
46.
furtuna
fortuna
1
47.
geito
jeito
2
48.
grandicissimo
grandíssimo
1
49.
groria
glória
1
50.
hotem
ontem
1
51.
idal
ideal
1
52.
incanssaveis
incansáveis
1
53.
irrevugavel
irrevogável
1
54.
istante²
instante
1
55.
jamar
chamar
1
56.
mais
mas
4
57.
manha
manhã
1
134
58.
maos
mãos
1
59.
martirisar
martirizar
1
60.
mendingo
mendigo
1
61.
nalfrago
náufrago
1
62.
naufrago
náufrago
1
63.
netar
néctar
1
64.
nim- guem
ninguém
1
65.
novidadesinhas
novidadezinhas
1
66.
pareçes
pareces
1
67.
passeiando
passeando
1
68.
peco-te
peço-te
5
69.
podemois
podemos
1
70.
qual- que
qualquer
1
71.
quasi
quase
2
72.
quiz
quis
1
73.
quizer
quiser
1
74.
Quizera
Quisera
4
75.
quizeres
quiseres
2
76.
resta-se
restasse
1
77.
satisfasera
satisfazer a
1
78.
seçar
cessar
1
79.
sepasão
separação
1
80.
siquer
sequer
1
81.
socego
sossego
1
82.
socegou
sossegou
1
83.
sosi- nho
sozinho
4
84.
sosinha
sozinha
1
85.
surpreza
surpresa
2
86.
talves
talvez
1
87.
tezouro
tesouro
1
88.
tijela
tigela
1
89.
viagei
viajei
1
3.1.3. Etimologizações
Cartas da Maria
Dado
Palavra
Frequência
1.
ella
Ela
18
2.
ellas
Elas
1
3.
elle
Ele
13
4.
elles
Eles
4
5.
cousa
Coisa
3
135
6.
pello
Pelo
1
7.
delle
Dele
1
8.
34
Ia
1
Dado
Palavra
Frequência
1.
ahi
Aí
12
2.
Aquelle
Aquele
1
3.
arranhacéo
Arranhacéu
1
4.
Assumpto
Assunto
1
5.
Attendo
Atendo
1
6.
attento
Atento
1
7.
bella
Bela
1
8.
cahirem
Caírem
2
9.
céo
Céu
3
10.
comprehedes
Compreendes
1
11.
comprehendes
Compreendes
3
12.
comprehendo
Compreendo
2
13.
contacto
Contato
1
14.
cousa
Coisa
8
15.
cousas
Coisas
1
hia
Cartas do Jayme
16.
creado
Criado
1
17.
creamos
Criamos
1
18.
creatura
Criatura
1
19.
dahi
Daí
1
20.
egreja
Igreja
1
21.
ella
Ela
1
22.
estrella
Estrela
1
23.
estrellas
Estrelas
2
24.
esxepto
Exceto
1
25.
hontem
Ontem
24
26.
iha
Ia
1
35
36
27.
logares
Lugares
1
28.
nelles
Neles
1
29.
pae
Pai
4
30.
paes
Pais
4
31.
papae
Papai
1
3456
Falsa etimologização.
136
32.
peior
Pior
2
33.
peiorado
Piorado
1
34.
pella
Pela
1
35.
prohibas
Proíbas
1
36.
sahe
Sai
1
37.
sahes
Sais
2
38.
sahi
Saí
8
39.
sahir
Sair
4
40.
victoria
Vitória
3
41.
vae
Vai
5
42.
vaes
Vais
5
43.
trophéo
Troféu
1
44.
taboa
Tábua
1
45.
táboa
Tábua
1
46.
signal
Sinal
1
3.1.4. Abreviaturas
Cartas da Maria
Dado
Palavra
Frequência
1.
D.
Dona
5
2.
N.
Nossa
3
3.
S.
Senhora
2
4.
S.
São
3
5.
Snr
Senhor
1
6.
S
Santa
1
Dado
Palavra
Frequência
1.
D.
Dona
18
2.
S
São
1
3.
Sr
Senhor
1
4.
Snr
Senhor
1
Cartas do Jayme
137
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Cartas amorosas de 1930 - Faculdade de Letras