O rio ignorado Um raio de lua cheia que se filtrou pela janela me despertou. Olhei a cidade e o que vi me fez duvidar sobre se estava adormecida ou acordada. Esfreguei meus olhos com força, mas ao abri-los a imagem anterior permanecia estática. O rio não tinha mais água. Estava totalmente seco e seu leito, entristecido, me cumprimentava abrindo suas fendas. Chequei à hora, lavei o rosto e sem pensar nem um minuto, saí para a rua. São Paulo era uma cidade fantasma regida pelo silencio, não tinha movimento, carros, gente, nada. Cruzei a rodovia para chegar ate o rio, e boquiaberta, me perguntei aonde teria ido parar toda aquela água. Como por um tobogã, escorreguei uns 5 metros para baixo ate o leito, e ajoelhada toquei o solo com ambas as mãos. A terra não guardava restos de umidade. Comecei a caminhar em direção ao norte, mas era tal a necessidade que tinha de achar água que, em pouco tempo, minhas pernas estavam trotando. Corri olhando para todas as partes. Os prédios pareciam desabitados, as ruas vazias, nem sequer estavam os urubus dormindo sobre os fios de luz. Saindo de uma curva, divisei um objeto de cor amarela que estava no meio do rio. Era uma placa metálica com forma de losango e pontas enferrujadas que exibia a imagem de um veado. Um veado esbelto, jovem e alegre dando um salto. Fechei os olhos e me lembrei da primeira vez que tinha visto uma dessas placas. Tinha sido uns anos atrás, num dia de chuva, parada com meu carro do lado do rio no meio de um grande engarrafamento. Após do primeiro, descobri dúzias daqueles cartazes indicando ter precaução com os animais. Como se eles pudessem sobreviver ao inferno que lhes construíram ao lado! E ali estávamos novamente, meu bom amigo e eu, frente a frente no fundo do rio sem água. Senti a nostalgia de um passado recente com chuvas, plantas e alguma esperança. Os primeiros raios de sol pincelaram o horizonte de cores violeta e laranja. Desejei ouvir o canto dos pássaros, mas o silencio da cidade abrumou meus sentidos me deixando em absoluta solidão. Pensei que se corresse a toda velocidade ate o cruzamento com o outro rio poderia achar um pouco de água e, com ela talvez, alguma explicação do acontecido. Corri enlouquecida os três quilômetros que me separavam do rio Tietê, como se estivesse fugindo de algum inferno pessoal e ao chegar, vi que esse rio também não tinha nem uma gota de água. A paisagem era desoladora. Gritei com todo o ar que cabiam em meus pulmões, gritei uma e outra vez pedindo ajuda, tentando atrair algum ser vivo que estivesse por perto, mas só o eco da minha voz me respondeu. Quando o sol apareceu iluminando a cidade desabitada, senti o medo e a angustia invadindo meu sangue. Fosse o que fosse que estivesse acontecendo, senti que eram horas de me proteger no meu apartamento. Com essa certeza, corri o mais rápido que pude todo o trajeto de volta ate chegar à frente da placa amarela do veado. Nesse instante, e por mais ilógico que parecesse, decidi ficar com ela. Carreguei-a firmemente entre meus braços e, na altura do meu prédio, a arrastei para cima ate chegar à superfície. Dolorida, suando e com falta de ar consegui entrar no meu apartamento. Pelas duvidas, fechei a porta com todas as chaves. Uma vez no meu quarto, apoiei a placa no chão e me deitei na cama para descansar. Ás 8hs fui acordada pelo barulho de uma buzina com o rugido habitual do transito. Em seguida fui ate a janela. O rio estava ali, como todos os dias, se retorcendo nas suas águas estancadas e arrotando gases tóxicos. Esfreguei meus olhos sorrindo, e ao abri-los, a imagem continuava ali. Ao seu redor os urubus se espreguiçavam ao sol, milhares de carros avançavam a passo de homem pelas rodovias com centenas de motos os esquivando. Também vi o trem carregado de passageiros correndo ate a próxima estação. Aliviada respirei fundo o cheiro podre da água com que sempre me levanto e, a caminho do banheiro, tive que pular a placa do veado que obstruía minha passagem. Fim Gabriela Colombo. (São Paulo, 14 de maio de 2011)