Anima-te, primavera! Sacode de ti essa tristeza, que todos estamos de braços abertos e corações saudosos para receberte e contigo bailar cirandas de alegria Essa não, primavera! N ão, minha primavera! Não me faças isso, pelo amor de Deus! Não comigo, que já estou velho. Não faças essa ingratidão comigo, que tanto te espero, de braços abertos e alma lavada, todos os anos. Desculpem, leitores. Perdoem este desabafo, pois estou frustrado e triste. É a traição do tempo. Quem pode, de sã consciência, afirmar que essa não será a minha última primavera? Por que, então, ela está me negando agora os seus encantos? Me sinto amarrado ao tempo e enfadado dele. Passo os verões suando, sentindo a revoada das moscas e sofrendo a agressão dos mosquitos. São três meses de calor sufocante. Depois, mais três meses de outono, assistindo, impotente, à lividez das folhas, que foram verdes, reluzentes e viçosas. E tudo parece preparar a natureza para o frio e para a morte. Estende-se sobre a terra o tétrico tapete amarelo das árvores que choram lágrimas de folhas mortas. Como estava anunciado, chega a invernia soprando ventos gelados, assobiando pelas frestas, sibilando arrepios filtrados pelo esquálido das casuarinas – doa em quem doer, e dói em todos. Os animais se recolhem às tocas e ali se alocam nas furnas. Os mendigos se abrigam sob as marquises e os cães sem dono se enrodilham pelos cantos. Mas, como não há bem que sempre dure nem mal que não se acabe, há promessas crescentes de primavera. Foram-se os três meses de destruição e de mortes. Pelos campos, pereceram os cavalos velhos, de frio e de fome, sobre os pastos que as geadas esturricaram. Aí, preparo-me para receber a visita que espero há um ano. Varro e esfrego o chão da sala da minha alma. Que chegue logo a primavera, com seus sóis, com suas luzes, com o colorido das suas flores e o perfume inebriante dos jardins e dos descampados. Mas parece que ela nem virá mais, de tanto que demora. Até que os calendários finalmente a proclamam. E ela chega assim, com surpreendente e lamentável vestimenta de viuvez. Chega, chorando lágrimas de chuvas e friezas vespertinas. Por quê? Que foi feito da menina-moça primaveril, que eu aguardava radiosa? Anima-te, primavera! Sacode de ti essa tristeza, que todos estamos de braços abertos e corações saudosos para receber-te e contigo bailar cirandas de alegria. Vamos, seca tuas lágrimas de chuva e abre o teu sorriso luminoso, primavera! Excepcionalmente neste final de semana, o “Diário” reproduz crônica publicada nos dias 18 e 19 de outubro de 2014 MIX REFLEXÕES SOBRE A CRÔNICA E u não sou escritor, não me sinto escritor, e sempre me apresento como jornalista. Embora eu já tenha publicado um livro de crônicas, e embora eu escreva aqui, neste espaço, desde a fundação do jornal – e lá se vão 13 anos! – tenho um pouco de pudor em dizer que sou cronista. Não é por nada não, é que me sinto sempre inadaptado entre literatos. Não tenho a imaginação fabuladora dos escribas de longo alcance. Como sou muito ligado à notícia, os fatos da vida, sejam importantes ou banais, é que me dão o mote para escrever. Escrevo sobre o que observo. Pois não é que um leitor veio me desmentir? Eu estava cruzando a porta giratória do banco onde tenho conta, quando o segurança saiu detrás da cabine de chumbo para me chamar de cronista. Ele não me chamou de repórter, nem viu uma reportagem que eu tenha feito recentemente. Não. Ele leu o meu Províncias, o livrinho que publiquei há dois anos, e disse: “o senhor é um cronista que escreve tão simples, tão claro, parece que está conversando com a gente.” Não sei se fiquei mais desconcertado com o elogio, ou por ser reconhecido não como repórter, mas como alguém que escreve crônicas. Eu me dei conta de que esse meu leitor tem razão: escrevo crônicas para jogar conversa fora. É isso: a crônica é parente da conversa fiada. O poeta Manuel Bandeira dizia que “ser cronista é viver em voz alta”. Então vou dando pitacos sobre a vida, mas sempre tentando não aporrinhar os leitores com meus fantasmas ocultos. Outro poeta, Arthur Rimbaud, tem uma frase ótima sobre isso: “Não desça demasiado profundamente em si mesmo, para não encontrar a lama da melancolia, fundo de todos os pensamentos”. Eu queria me ater à quimera de um mundo sem pompas, sem afetação, sem falsificações nem máscaras sociais. Queria deitar na minha rede, com meu cachorro esparramado ao lado, beber minha taça de vinho, e me concentrar nas substâncias básicas da vida: os amores e as amizades. Se eu puder ser sempre entendido, como o segurança do meu banco entendeu, e ser reconhecido com um retratista das coisas simples, como ele me reconheceu, então vou me aceitar como cronista. O crítico literário José Castello diz que Rubem Braga, o maior de todos os cronistas, era um homem de alma antibarroca. Tinha repugnância por tudo o que é ornamentado, sobrecarregado e extravagante. O velho Braga achava que a pretensão, a pose e o esnobismo são formas de defesa contra a grandeza da simplicidade. Ele próprio morria de medo de parecer presunçoso e excessivo. Embora tivesse muitos amigos, gostava de viver sozinho numa cobertura em Ipanema. Quando perguntavam a ele se não se sentia só, respondia: “eu tenho uma solidão muito cheia.” Simples e genial como só o grande Braga poderia ser. Santa Maria, sábado e domingo, 26 e 27 de setembro de 2015 – 16