1 HANSENÍASE: O OUTRO LADO DA DOENÇA UM RELATO DE EXPERIÊNCIA Mauro Afonso da Silva 1 Resumo Este artigo mostrará, a partir de experiências vividas, o relato de um ex-portador de Hanseníase, enfatizando assuntos a respeito da descoberta da doença, tratamento, dentre outros que fazem parte do cotidiano de quem sem ao menos saber quando, onde e por que, adquiriu a doença, que por vez, vitimou milhares de pessoas nos séculos passados e que hoje, continua vitimando, não pela doença em si, mas sim pelo preconceito. Palavras-chave: Hanseníase; tratamento; preconceito. Abstract This article will show, from experiences, the story of a former leprosy patient, emphasizing issues about the discovery of the disease, treatment, discrimination, and others that are part of everyday life for those without even knowing when, where and that acquired the disease, which in turn killed thousands of people in past centuries and today, still killing, not the disease itself, but by prejudice. Keywords: Leprosy; treatment; bias. Introdução Quatro anos depois de ter adquirido hanseníase, me veio à vontade de escrever um artigo sobre o assunto. Não sabia bem ao certo como delimitar o tema e tão pouco como demonstrar a cientificidade do mesmo. Tinha em mente somente o desejo de “gritar ao mundo” a importância das pessoas saberem o que é ser um hansênico. Mas isso não parecia uma tarefa simples, afinal “gritar” seria fácil, o difícil mesmo seria aplicar esse desejo através das palavras. Durante todo o meu tratamento, fui percebendo as dificuldades encontradas por mim e pelas outras pessoas portadoras quanto ao distanciamento entre o que se fala e o que se vive quando se tem hanseníase. O Ministério da Saúde em todos os seus informativos diz que “Hanseníase tem cura”, mas em momento algum diz ou 1 Mauro Afonso da Silva é graduado em Biologia /UFMT/Pontal do Araguaia/2001; Pós-Graduando em Saúde Coletiva com Ênfase em Saúde da Família pelas Faculdades Unidas do Vale do Araguaia/Barra do Garças/2010; Professor de Dependência da disciplina de Citologia / Histologia / Embriologia dos cursos de Fisioterapia e Nutrição e Professor do curso de Pedagogia na disciplina de Fundamentos Teóricos e Metodológicos das Ciências Naturais e Responsável Técnico dos Laboratórios da Área da Saúde das Faculdades Unidas do Vale do Araguaia, em Barra do Garças, MT. E-mail: [email protected]. 2 cita como o problema é enfrentado pelos seus portadores. E foi justamente esse distanciamento que me fez escrever este artigo. Meu objetivo é mostrar aspectos da doença, desde o diagnostico até a “cura”, ou seja, o antes, o agora e o depois do tratamento. Três fases que supõe chegar a um denominador comum: a Hanseníase tem cura, mas o que não é falado é que ao longo destas etapas os portadores se vêem num mundo de medo, insegurança, desafios e preconceitos a serem vencidos. Eu não poderia ser diferente, tive a oportunidade de vivenciar tudo isso. E essa vontade de revelar minha experiência é muito forte, quero que meus leitores apreciem a leitura desse artigo e tentam incorporar para si o dissabor de ser hansênico. Talvez eu não saiba como fazer caber em palavras o que eu aqui preciso escrever, mas estou certo que a descrição do antes, do agora e do depois, embora traduzam simplesmente emoção, seja útil na representação do meu discurso. Não tenho dúvidas no que irei escrever, afinal tenho conhecimento do assunto e o vivi diariamente durante um ano de minha vida, o que poderia evidenciar o caráter subjetivo desse artigo. Entretanto, se esse aprendizado servir para suscitar uma reflexão acerca do tema e dar ânimo e vigor para aqueles que enfrentam a mesma situação, já terá valido a intenção de escrever. O Medo Por volta do mês de outubro do ano de 2005, uma leve ferida, muito parecida como uma picada de inseto surgiu em meu braço direito. Aparentemente, era só mais uma “feridinha” que havia eclodido. Aos poucos, dia após dia, ela foi se modificando, se tornando assim, cada vez maior, passando a adquirir o aspecto de uma mancha. Na parte interna, era toda esbranquiçada e nas suas bordas apresentava o aspecto avermelhado, acompanhado de muita coceira. Essa situação começou a me preocupar, pois até então, todo procedimento, que eu havia tomado para que a lesão se curasse, foi em vão. Utilizei vários medicamentos para fungos, e nenhum deles houve respaldo. Foi então, que um colega de trabalho – na época lecionava na Escola “Gaspar Dutra” - me deu um “toque” quanto à aparência daquela mancha, dizendo-me que poderia ser Hanseníase. No momento, repudiei o comentário em tom de preconceito. Imagine 3 logo eu, um professor, estar com Hanseníase! Mas, de fato, estava concretizado, eu estava mesmo com o mal de Hansen. O medo é um sentimento que aparece espontaneamente quando estamos diante de algo que nos assusta. E foi esse sentimento que senti quando estava diante de uma situação inaceitável. Ele me fez adiar por várias vezes a ida ao consultório médico, fez-me buscar alternativas, que me fizessem fugir da realidade, a aceitar que poderia estar doente. Mas a cada dia, olhar para aquela mancha era uma tortura, pois todo medicamento que usava estava sendo em vão, e ela ali, aumentando cada vez mais. Muitas vezes eu pedi a opinião de várias pessoas a respeito daquela mancha, a respeito da doença, e após cada conversa, cada bate papo, o meu desespero crescia mais, pois todos diziam a mesma frase: “Vá procurar um médico, pois isto está com cara de ser Hanseníase”. Era tudo o que eu não queria ouvir, mas enfim, quem procura, acha. Foi muito bom ter ouvido diversas opiniões a respeito do assunto, pois, só assim, pude aos poucos ir me conscientizando de que eu poderia estar ou não com a doença e que, se por ventura estivesse, iria me tratar e ser curado, embora o que me diziam sobre a doença era assustador: “Olha, essa doença, mata; ela faz cair as orelhas, os dedos, o nariz; você não vai dar conta de trabalhar; os medicamentos são muito fortes; vai ficar com seqüelas depois do tratamento; vai ficar limitado a fazer certas coisas”. Confesso, o meu medo só foi crescendo. Mas ao mesmo tempo tinha que tomar uma atitude, não podia me acomodar e viver aquele momento de terror todos os dias. Foi quando decidi depois de um mês de sofrimento, ir à procura de um especialista. A Notícia A princípio, procurei meu tio, Natal Carboni, que trabalhava na época, no Centro de Referência de Barra do Garças. Um tanto receoso, mostrei a ele a minha tão perturbada mancha. Seu olhar foi de espanto, e meio duvidoso disse que iria me encaminhar no dia seguinte para a enfermeira responsável pelo programa de Hanseníase em Barra do Garças. Meu coração, nesse momento, acelerou como um aviso de que eu estava cada vez mais perto daquilo que tanto me assustava. Sai daquele lugar com uma enorme vontade de chorar, mas me contive, pois estava 4 rodeado de pessoas que estavam à espera de atendimento. Daquele momento em diante fiquei enfraquecido. No período vespertino, tinha de lecionar, mas me faltou coragem. Só pensava como iria ser o dia seguinte e nada mais. Pedia a Deus por tudo que era mais sagrado que não me deixasse estar com aquela doença. A noite chegou e eu não conseguia dormir, rolava de um lado para o outro, até que o dia amanheceu. Levantei com uma olheira danada, mas enfim, era o grande dia. No meio do caminho o desejo de voltar, de sumir era intenso, afinal, não tinha noção do que me esperava, mas sabia que era necessário o encontro. Ao chegar ao Centro de Referência, fui procurar meu tio, que prontamente me levou até a porta do consultório da enfermeira. Numa pequena placa fixada na porta estava escrito os dizeres: Hanseníase – Alice Medeiros. Acho que nunca suspirei tão forte em toda minha vida. Não tinha mais para onde correr. Lembrei-me do ditado que diz: “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Ele bateu à porta, aqueles três soquinhos soaram em eco nas minhas orelhas, como algo tenebroso, e em seguida a porta se abriu, eclodindo por detrás dela uma mulher de baixa estatura, com cabelos encaracolados e amarrados por uma “liguinha”, como dizem, com um largo sorriso no rosto - que a princípio repudiei -, dando os cumprimentos ao meu tio, e num simples girar de corpo me estendeu as mãos se apresentando como Alice. Meio desconfiado lhe estendi as mãos dizendo meu nome. Ela, toda brincalhona, retornou o olhar ao meu tio dizendo a ele que agora eu estava em boas mãos. Em pensamento eu pronunciei que os anjos dos céus disessem amém. Gentilmente me convidou que eu entrasse em sua sala para termos uma conversa. Imediatamente me prontifiquei. Ficamos sentados frente a frente e o interrogatório começou. Quis saber de tudo, como apareceu a mancha, quando eu a descobri, quanto tempo demorou em procurar um especialista, no caso, ela, o que eu sabia a respeito da doença, o que eu estava pensando. Aos poucos comecei a me soltar e fui falando tudo e um pouco mais. Conversa vai, conversa vem, ela me confessou que também foi uma portadora de Hanseníase, me explicou sobre a doença, o tratamento e a cura. Isso me aliviou bastante, pois afinal de contas eu estava na frente de uma pessoa que teve a doença e, no entanto estava ali, como se nunca tivesse sido uma leprosa, como se dizia na época de Cristo. 5 Embora a conversa tivesse sido bastante proveitosa, o que eu queria mesmo era ouvir que não era um portador. Para isso se tornar uma verdade, foi necessário fazer os testes e exames. Numa singela sugestão me propôs que os testes fossem feitos naquele momento. Engoli como se estivesse passando um ovo pela minha garganta. “- Agora?!”- eu perguntei meio que exclamando. Ela me respondeu: “- Sim, agora, quanto mais cedo você ficar sabendo, melhor.” Nesse instante, ela se retirou da sala e pediu que eu a esperasse. Meu coração, como sempre, saindo pela boca. Quando retornou a sala, trouxe consigo alguns objetos para a realização dos testes. Fiquei assustado, tinha algodão, agulha – aquelas usadas para aplicação de insulina - e tubos com líquidos. Ela me explicou como iria proceder. Esse teste é o de provas clínicas complementares. (Bechelli e Curban, 1988). Pesquisa da sensibilidade: Ocorre em primeiro lugar a perda da sensibilidade térmica, em seguida da dolorosa e finalmente da tátil, podendo-se proceder a pesquisa de todas elas com tubos contendo líquidos com temperaturas diferentes, agulhas para picadas nas máculas e algodão para testar o tato. Prova da histamina: Sobre a mácula suspeita e na pele circunvizinha coloca-se uma gota de cloridrato de histamina. Através da gota faz-se com agulha picada superficial, intradérmica sem determinar hemorragia. Após alguns segundos a pele começa reagir. A pele normal reage formando a tríade reacional de Lewis com eritema inicial, eritema secundário e pápula edematosa, nas máculas acrômicas ou hipocrômicas da hanseníase aparecem o eritema inicial e a pápula, faltando o eritema secundário (prova da histamina incompleta). Prova da pilocarpina: Sendo a anidrose comum nas lesões hansenóticas, procurou-se diagnosticá-la mediante provas de sudorese. Injeta-se 0,2 ml de nitrato ou cloridrato de pilocarpina por via intradérmica, na lesão suspeita e sua vizinhança. Pode-se passar tintura de iodo na pele antes da injeção e, depois desta, polvilhá-la com amido. Havendo sudorese observa-se característica cor azulada ao fim de 5 minutos, o que não ocorre nas lesões hansenóticas. Teste de Mitsuda: Utiliza-se suspensão de bacilos mortos, injetada em área de pele normal na face anterior do braço. A primeira leitura faz-se após 48 horas (reação de Fernandez) e a segunda após 21-30 dias quando desenvolve-se a chamada reação tardia. O teste é dito Mitsuda positivo quando forma-se infiltração nodular maior que 5 mm de diâmetro ou quando o infiltrado ulcera. Isso indica certo grau de resistência à hanseníase, tanto mais pronunciado quanto mais intensa a resposta. O teste é Mitsuda negativo quando há ausência de reação, indicando resistência deficiente. Este teste pode indicar o prognóstico da doença uma vez que pessoas com Mitsuda positivo tendem a desenvolver as formas benignas da doença e pessoas com Mitsuda negativo têm maior probabilidade de desenvolver a hanseníase virchowiana. Foi assim que começamos o teste, passo a passo, de olhos fechados para que meu cérebro não processasse informações de sensibilidade térmica, de dor e tátil. No decorrer dos testes, ia me fazendo perguntas para que eu respondesse sim 6 ou não. São de praxe essas perguntas, pois, por meio delas, o médico ou enfermeiro responsável pode perceber o grau de sensibilidade na área. Por fim, a prova da histamina, que, por sinal, surpreendeu-me muito, porque não esperava que fosse daquela maneira. Em determinado momento, pediu que abrisse os olhos, e para minha surpresa estava fincado na pele do meu braço uma pequena agulha, como disse anteriormente, agulha de insulina. Levei um susto, pois não senti dor quando ela introduziu a agulha, e naquele instante percebi estava bem próximo da verdade. Com um olhar nada surpreso ela me perguntou se eu estava sentindo dor, respondi que muito pouco. Esse muito pouco se deu porque eu estava vendo a agulha na minha pele, e por isso meu cérebro processou uma sensação de dor. Explicou-me que isso é comum, e que muitas pessoas fazem o teste da brasa do cigarro, mas como estão vendo o local que aplicam a brasa o processo da dor acontece. Isso implica que muitos indivíduos são portadores e não sabem por fazerem o teste sem orientação médica. Ela fez um diagnóstico com base nas provas clínicas complementares e me deu a notícia tão esperada: “Mauro, baseado nos testes que acabamos de realizar, pude constatar que você é um portador de hanseníase. Esses testes são praticamente 99,9% seguros, mas ainda temos que fazer o exame de baciloscopia.” Embora algumas vezes você já esteja quase conformado com uma situação indesejada, sempre resta alguma fagulha de esperança. Naquele momento, as minhas desapareceram. Fiquei sem palavras. Mudo, calado. Ela percebendo a minha estagnação, tentou me acalentar, mas foi em vão. Marcou o exame para o dia seguinte às 7h. Entregou-me o pedido, e disse para eu retornar com o resultado dois dias depois. Naquele dia, o medo, a insegurança, a ansiedade, a raiva tomaram conta de mim. Fechei-me para o mundo, assim como um caranguejo se fecha em sua concha. O mundo havia desabado. Como encarar tudo de uma única vez, a morte da minha mãe, tão recente, e uma doença até então, desconhecida para mim? Mais uma noite praticamente sem dormir. As 6h da manhã, o despertador do celular começou a tocar, e eu, mais que depressa, arrumei-me para ir ao laboratório fazer os exames. Quando lá cheguei, havia muitas pessoas à espera. Peguei uma senha para aguardar o atendimento. Sentado ali, naquela cadeira, a aguardar que chamassem o meu nome, eu ouvia a todo instante o nome das pessoas a serem chamadas, e o 7 meu, nada. Que espera interminável. Quase um dos últimos, sou chamado, levanteime e fui em direção a uma pequena sala, onde me sentei novamente enquanto o profissional responsável preparava a seringa e agulha para coleta de sangue. Até ai, tudo bem, nada me assustou, pois tirar sangue é um procedimento de rotina das pessoas, o que realmente me assustava era o exame de baciloscopia, até então nunca havia ouvido falar nesse nome. A baciloscopia é um exame de auxilio diagnóstico na Hanseníase e o profissional que o realiza deve ter treinamento especializado. O exame de baciloscopia, segundo o MORHAN (http://www.morhan.org.br/hans_tratamento.htm.), utilizando raspado dérmico de pacientes com suspeita clínica de hanseníase é um procedimento laboratorial rápido, de baixo custo, menos invasivo e que não necessita de tecnologia avançada. Apresenta uma especificidade de 100% quando um resultado positivo for analisado em conjunto com outros sinais da doença. A sensibilidade é baixa, pois menos de 50% dos esfregaços de indivíduos doentes são positivos. Novamente fui chamado, indo para uma outra sala, diferente da qual eu havia ido pela primeira vez. A profissional responsável pediu que eu me sentasse e começou a me explicar como seria o procedimento. Disse que iria fazer a coleta do material da seguinte maneira: “Vou fazer um pequeno corte com um bisturi na sua mancha, no seu cotovelo direito e em suas orelhas. Após a incisão, vou fazer uma raspagem para coleta do material. Não vai doer nada.” Na realidade foi bem o contrário. Nunca senti tanta dor num único dia. Minha vontade foi de sair correndo dali, só de imaginar que iria me cortar sem anestesia. Mas não teve jeito, tive de suportar a dor até o fim. Quando já estava no fim, só faltava a mancha, minha pressão ”caiu”, e comecei a ficar pálido e a suar frio, foi quando disse à ela que não estava me sentindo bem. Ela com bastante agilidade fez o último corte terminando assim minha tortura. Ah, que alívio saber que tinha terminado. Fiquei ali, respirando fundo e logo me levantei para ir embora. Engraçado que sai dali dando risadas, pois estava parecendo uma múmia com gaze nas orelhas, e no braço. O resultado, ah! O resultado... Esse eu tive de esperar mais um dia. No dia seguinte, seria mesmo o grande dia, pois eu iria ter a certeza, assim como 1+1 são 2 na matemática, se eu era ou não portador de hanseníase, embora ainda não era o dia de levar para Alice ler, mas na minha inocência eu saberia 8 interpretar a leitura do exame. Levantei até com uma certa euforia, afinal não era um resultado qualquer, era um resultado de longos dias de espera, dúvida e sofrimento. Até então eu “pintava” a hanseníase como um bicho de sete cabeças. Pois bem, e assim eu fui pegar o resultado no laboratório. De praxe os resultados vêm em envelope lacrado, aquele lacrado que qualquer um com jeitinho sabe abrir sem o médico ou responsável perceber. Saindo dali fui direto pra casa e abri o envelope. Que sensação ruim, pensei que estaria escrito em letras garrafais positivo ou negativo. Engano em partes. Não entendi “patavinas”, mas em alguns pontos do exame estava escrito, com letras garrafais, a palavra negativo. Um monte de “zerinhos” e o negativo na frente. Aquilo me alegrou. Disse a todos em casa que não entendia muito bem aquilo não, mas que aqueles negativos significavam algo de bom, como disse, sob o meu ponto de vista. Fiquei todo alegrinho, achando que tudo acabara bem. Aquela mancha era apenas uma mancha, eu não tinha hanseníase, e tudo estava maravilhoso. Mas como diz o ditado “alegria de pobre dura pouco” mesmo. A minha durou somente o restante daquele dia. No dia 10/11/2005, me lembro como se fosse hoje, lá estava eu novamente, com a Alice em minha frente, esperando me dar o resultado, que previamente determinei ser negativo. Mas a surpresa estava por vir. Quando ela abriu o envelope, olhou, analisou e na maior tranqüilidade me disse que eu tinha mesmo hanseníase. Que desespero, confesso. A primeira reação que tive foi questionar o resultado. Disse a ela: “ Se o resultado foi positivo, por que aquele monte de zerinhos com um negativo na frente”. Chamou-me a atenção por ter percebido que eu havia aberto o envelope, mas me explicou o resultado do “monte de zerinhos”. Pediu que eu retornasse no dia seguinte para começar a tomar o medicamento. Sai dali me faltando o chão para pisar, não sabia distinguir meus sentimentos, se era de raiva, ódio, medo, revolta. Que vontade de sumir, desaparecer, sair correndo sem rumo. Fui para casa. Quando lá cheguei, não sabia como contar para meus familiares, mas minha reação que era de choro já dizia tudo, não foi preciso contar muita coisa. O mais importante foi que tive o total apoio principalmente da minha irmã e do meu pai, que me ajudaram a encarar, de frente, a doença e o tratamento. 9 O Tratamento No início da década de 80, a Organização Mundial de Saúde recomendou a introdução da POLIQUIMIOTERAPIA (PQT) para o tratamento de 100% dos pacientes em todo o mundo, por meio da associação de drogas que propicia maior eficácia, maior rapidez e menor risco de resistência ao medicamento. Nos últimos dez anos, foram curados mais de 12 milhões de pacientes em todo o mundo, e mais de 300.000 brasileiros. A hanseníase apresenta-se basicamente, de duas formas. É importante ressaltar que os casos contagiosos deixam de ser transmissíveis quando o tratamento é iniciado. Conforme MORHAN: (http://www.morhan.org.br/hans_tratamento.htm). Paucibacilar PB (com poucos bacilos – forma não contagiosa) É o tratamento mais rápido, são seis (06) doses mensais de remédios em até 9 meses, além da ingestão de um comprimido diário, e alta por cura. Medicamentos/dosagem – Esquema PB: • Rifampicina: 01 dose mensal de 600mg (02 cápsulas de 300mg), com administração supervisionada; • Dapsona: uma dose mensal de 100mg supervisionada e uma dose diária auto administrada. Multibacilar MB (com muitos bacilos – forma contagiosa). Para o para a forma MB, o tratamento consiste em doze (12) doses mensais de remédios em até 18 meses e alta por cura. Além da ingestão de um comprimido diário. Medicamentos/dosagem – Esquema MB: • Rifampicina: uma dose mensal de 600mg (2 cápsulas de 300mg), com administração supervisionada; • Clofazimina: uma dose mensal de 300mg (3 cápsulas de 100mg), com administração supervisionada e uma dose diária de 50mg auto administrada; • Dapsona: uma dose mensal de 100mg supervisionada e uma dose diária auto administrada. De acordo com a quantidade de bacilos, a hanseníase pode se apresentar nas formas citadas anteriormente: Paucibacilar e Multibacilar. Vale ressaltar também que de acordo com o quadro dermatológico a hanseníase se apresenta sob quatro formas clínicas 10 diferentes: Hanseníase indeterminada; Hanseníase tuberculóide; Hanseníase dimorfa; Hanseníase virchowiana. Minha forma clínica foi MHD (Mal de Hansen Dimorfa) e esquema terapêutico Multibacilar MB – 24 doses, esquema PQT – 12 doses. Abaixo, mostro as fases da doença Mal de Hansen. Caso clínico MHI Caso clínico MHT Caso Clínico MHD Caso clínico MHV Na tarde do dia 11/11/2005, fui tomar a primeira dose mensal supervisionada de Rifampicina (600mg), Clofazimina (300mg) e Dapsona (100mg) no Centro de Referência de Barra do Garças. Minha irmã me acompanhou, haja vista que, além de ser a primeira dose mensal do tratamento, alguns efeitos colaterais poderiam surgir. Encontrava-me num estado de muita ansiedade, o que resultou em nervosismo. Eu, que sempre recusei a tomar comprimidos - somente em último caso, - tive de submeter a tomar 6 (seis) de uma só vez. E segundo as “más línguas”, essa dose mensal supervisionada era de “derrubar até cavalo”, ou seja, era muito forte, o que de fato não deixou de ser verdade. Algumas horas após ter tomado a medicação, a reação que tive foi de muito sono, dormi o resto do dia e fui acordar à noitinha. O sono era algo incontrolável, não tinha como ficar acordado. Recomendaram-me que, ao tomar a dose mensal supervisionada, não deveria comer alimentos derivados do leite, ovos e carnes, ou seja, meu cardápio nesses dias não era lá muito apetitoso. Servia-me de arroz, feijão, salada e legumes. Digamos um tanto saudável, mas... No dia seguinte ao da dose mensal supervisionada, fiquei sem tomar medicamento, pois é norma do tratamento “pular” um dia, voltando a administrar o 11 remédio somente no terceiro dia. Esse esquema era regra para todos os meses do tratamento. E assim comecei meu tratamento, uma dose diária de clofazimina – 50mg – auto-administrada e uma dose de dapsona – 100mg, também auto-administrada durante um ano, lembrando que, ao final de cada cartela, que durava 27 dias, eu precisava tomar a dose mensal supervisionada. Durante os seis primeiros meses de tratamento, não senti nenhuma reação adversa, meu organismo parecia ter aceitado muito bem a medicação. Estava exercendo minhas atividades profissionais normalmente, não precisei me ausentar do trabalho, convencendo-me de tudo o que eu havia lido sobre a doença. Segundo o Movimento de Reintegração de Pessoas Atingidas pela Hanseníase - MORHAN, ( http://www.morhan.org.br/hans_tratamento.htm), diz que: Os doentes em tratamento podem continuar suas atividades normais, Devem conviver normalmente com sua família, seus colegas de trabalho e amigos, enfim permanecer na sociedade sem nenhuma restrição, no caso de dificuldades no convívio social, os usuários deverão ser acompanhados pelo profissional responsável fornecendo-lhes apoio e conforto para suas dificuldades psíquicas e sociais. O problema começou a surgir depois dos seis primeiros meses de tratamento, quando as reações se manifestaram. Foi nesse momento também que passei a acreditar nas informações que havia buscado a respeito, mas que até então não tinham se manifestado em mim. O mesmo MORHAN – Movimento de Reintegração de Pessoas Atingidas pela Hanseníase afirma que Qualquer doente de hanseníase, mesmo em tratamento, pode apresentar reações, caroços vermelhos com febre alta, dor nos nervos e outras manifestações. Todos esses casos devem ser encaminhados ao médico, porque existem outros medicamentos para controlar reações (prednisona e talidomida). Além do médico o paciente deverá ser consultado pelo profissional responsável pela prevenção de incapacidades para avaliar a condição dos nervos periféricos, seguir as suas orientações, evitando assim complicações e deformidades futuras. Dor nos nervos periféricos foi o que eu mais senti, em alguns dias eu chorava de dor, sem saber que atitude tomar, e era inviável faltar no trabalho. E o trabalho, infelizmente era o que mais me irritava, pois tinha de tolerar a paciência em sala de aula, uma virtude que eu, naquele momento da minha vida, não tinha. A falta de paciência, as reações, a morte de minha mãe, que, até aquele momento, pensei que havia me conformado, tudo isso foi se acumulando, tornando meu estado clínico mais crítico. Emagreci 8 (oito) quilos em um mês. Aquilo me deixou “maluco”. Passei por todos os profissionais envolvidos no meu tratamento – a enfermeira Alice, a Dra. Edila, a psicóloga Noemi, a nutricionista Ana Tereza, e nada tinha resultado. Fui 12 “obrigado” a administrar prednisona para melhorar a dor. Segundo o Ministério da Saúde, a prednisona é uma droga corticóide sintética que normalmente é tomada oralmente mas pode ser tomada também através de injeção intra-muscular e pode ser usada para um grande número de doenças diferentes. Tem um efeito de glucocorticóide. É uma droga que é convertida pelo fígado em prednisolona que é a droga ativa e também um esteróide. É particularmente efetiva como uma imunossupressante e afeta tudo do sistema imune. Esse corticóide foi receitado pela Dra. Edila na dosagem de 30mg, sendo a dosagem diminuída até chegar 5mg. Com a administração desse corticóide, as dores foram sendo amenizadas. O único problema desse medicamento é que ele causa dependência, por isso fiz uso dele somente duas vezes, recusando-me a administrá-lo outras vezes, sendo assim, tive de suportar as dores que surgiam. Fui submetido também a um teste com o nome popular de “teste de PI”, mas cientificamente chama-se monofilamentos de Semmes – Weinstein (SW). São fios de nylon de 38 milímetros de comprimento e diâmetros diferentes. Foram introduzidos em 1962 para avaliar a sensação cutânea. Segundo Bell (apud DUERKEN F.; VIRMOND M., 1997), o monofilamento de nylon é utilizado para auxiliar o diagnóstico precoce e monitorar a solução da lesão nervosa periférica. Permite identificar melhora, piora ou estabilidade do quadro, alterações de sensibilidade antes da perda da sensibilidade protetora e indicar a conduta terapêutica. Na hanseníase, o uso dos monofilamentos substitui com vantagem os demais testes. É um teste quantitativo, de fácil aplicação, seguro e de baixo custo, que permite identificar e monitorar a sensibilidade, e por isso, é considerado um dos melhores para uso no trabalho de campo, nas unidades de saúde e nos centros de referências para hanseníase. Cada um deles está relacionado com uma força específica para curvá-lo, que varia de 0,05g a 300,0g no conjunto de seis monofilamentos. Quanto maior o diâmetro do fio, maior será a força necessária para curvá-lo no momento que é aplicado sobre a pele. A aplicação de estímulos com forças progressivas permite avaliar e quantificar o limiar de percepção do tato e pressão, estabelecendo correspondência com os níveis funcionais. Abaixo um modelo do monofilamentos de Semmes-Weinstein: 13 Quadro 1 - Monofilamentos de Semmes-Weinstein Fonte: Andeazzi, Mota, Villarino, Leite, 2007. Quadro 2 - Avaliação da sensibilidade Fonte: Andeazzi, Mota, Villarino, Leite, 2007. 14 Esse teste ajudou a identificar o grau de inflamação dos meus nervos periféricos. A situação foi ficando bastante crítica, a ponto de me afastar do trabalho pelo INSS. Fui afastado por um período de 6 (seis) meses, tempo necessário para o final do tratamento. A Cura No dia 24 de outubro de 2006, tomei a última dose mensal supervisionada, e 27 dias depois, os últimos comprimidos de clofazimina e dapsona. Que felicidade, havia terminado meu tratamento, estava curado! Retornei ao Centro de Referência para receber alta do tratamento com a enfermeira Alice. Ela me encaminhou a Dra. Edila para fins burocráticos do meu prontuário. Ela passou um novo pedido de “teste de PI” ou monofilamentos de Semmes – Weinstein (SW). Fiz o teste e meus nervos estavam com inflamação num nível muito elevado. Fui encaminhado para o Centro de Reabilitação de Barra do Garças, para fazer sessões de fisioterapia. Fui atendido por dois fisioterapeutas, a Dra.Viviane, especialista em Terapia Ocupacional e Dra. Luciana Morbeck especialista em eletrotermoterapia. Durante 6 (seis) meses, 3 (três) vezes por semana, comparecia assiduamente às sessões. No início, pensei que não iria surtir efeito, mas, ao longo do tratamento, pude perceber as melhoras que foram surgindo. Aos poucos, fui me readaptando à vida normal. Voltei a trabalhar, recuperei os “quilinhos” perdidos, a auto-estima, o desejo de viver feliz novamente. Quando terminou o tratamento fisioterápico, estava “novinho em folha”, sem dores, sem estresse, sem depressão, sem mau humor. A única notícia que não me agradou muito foi saber que eu teria que conviver com algumas sequelas que ficaram em meus nervos, tais como: não realizar movimentos repetitivos, não pegar peso, não ficar muito tempo em pé, dentre outros. Isso não me agradou muito, mas são “ossos do ofício”. Não tinha saída, ou aceitava ou aceitava. Não tinha escolha. 15 Considerações finais A hanseníase ainda continua sendo vista como a doença incurável do passado, causadora de um grande pânico aos seus portadores. Percebe-se haver um grande desconhecimento desta enfermidade no que diz respeito entre o que se fala e o que se vive. As dificuldades enfrentadas pelos doentes iniciam desde a busca do diagnóstico, a conscientização deste, a realização do tratamento e após a cura, uma vez que a trajetória continua para tratar as sequelas deixadas pela doença, necessitando o portador adaptar-se à sua nova condição. Os sentimentos relacionados a esta doença milenar, como o medo, a vergonha, a culpa, a exclusão social, a rejeição e a raiva, estão internalizados no psiquismo de seus portadores. O estigma e o preconceito permanecem no imaginário dos indivíduos, pois estão enraizados em nossa cultura causando grande sofrimento e dor aos portadores de hanseníase. A hanseníase deixa profundas cicatrizes no ser humano, o estigma permanece em seu corpo, em sua mente e em sua alma. A vida dos portadores de hanseníase sofre grandes transformações devido às perdas que vão se efetivando ao longo dos anos. As mudanças ocorridas no corpo, a rejeição e o abandono da família, dos amigos, a perda do emprego, do padrão de vida e da sua saúde em geral, pelos intermináveis tratamentos a que são submetidos, são situações que são trazidas pela doença e passam a fazer parte do seu cotidiano. O doente de hanseníase necessita resgatar seus vínculos e valores, recuperar sua auto-estima, compartilhar sentimentos e relacionar-se para integrar-se ao mundo real. E como resgatar esses vínculos? Acredita-se ser de fundamental importância oferecer na rede pública um trabalho com uma equipe de saúde, com abordagem interdisciplinar, que promova à educação em saúde para a população em geral e contribua de modo significativo para que estes sujeitos descubram seus valores como seres integrantes da sociedade, ajudando-os no seu processo de reintegração e reinserção social. 16 Referências Bibliográficas BAPTISTA I M F D, SARTORI B C S, TRINO L M. Guia de conduta para realização do exame baciloscópico Hansen. int 2006; 31 (2): 39-41. HELENE LMF, SALUM MJL. A reprodução social da hanseníase: um estudo do perfil de doentes com hanseníase no município de São Paulo. Cad Saúde Pública 2002; 18: 101-113. BAKIRTZIEF Z. Identificando barreiras para aderência ao tratamento de hanseníase. Cad Saúde Pública 1996; 12: 497-505. DUERKSEN F.; VIRMOND M: Cirurgia reparadora e Reabilitação em Hanseníase. Bauru: Ed. ALM International, 1997. BECHELLI L.,CURBAN,G. Compêndio de Dermatologia. São Paulo: Editora Ateneu,1988. http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/hanseniase/hanseniase-14.php. Acesso em 10 de abril de 2010. MORHAN. Movimento de Reintegração de Pessoas Atingidas por Hanseníase. Disponível em: http://www.morhan.org.br/hans_tratamento.htm. em 10 de abril de 2010. WIKIPEDIA. Prednisona. Disponível em: http://www.wikipedia.org/wiki/Prednisona. Acesso em 10 de abril de 2010. SAÚDE. Guia de Controle da Hanseníase. Disponível em: http://www.saude.gov.br. Acesso em 10 de abril de 2010. .