Sociedad Española de Historia Agraria - Documentos de Trabajo
DT-SEHA n. 1405
Marzo 2014
www.seha.info
OS SENTIDOS DO PASSADO: QUESTÃO AGRÁRIA E LUTA PELA
TERRA NO INTERIOR DE SÃO PAULO (BRASIL, 1949)
Vagner José Moreira*
* Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).
Contacto: [email protected]; [email protected]
© Marzo 2014, Vagner José Moreira
Resumo
Neste artigo, perscruto as memórias sobre o levante comunista de 1949,
Fernandópolis, no Noroeste do Estado de São Paulo, Brasil. A disputa em torno da
memória e na construção de sentidos está relacionado à ocultação histórica da luta
pela terra e contra a exploração no campo. As versões oficiais sobre o movimento
estão marcadas por memórias limitadas ao comunismo. Outras memórias
relacionam as lutas dos trabalhadores nas décadas de 1940-50 às lutas pela terra
dos trabalhadores rurais sem-terra contemporâneo. Esse ato interpretativo é
relevante, pois atribui sentido ao fato e constitui-se em evidência de experiências
plurais.
Palavras-chave: Trabalhadores, Memória, Movimentos Sociais, Revolução Agrária,
Partido Comunista.
Resumem
En este artículo investigo las memorias sobre el levantamiento comunista de 1949,
Fernandópolis, en el Noroeste del Estado de São Paulo, Brasil. La disputa en torno a
la memoria y a la construcción de los sentidos está relacionada con la ocultación
histórica de la lucha por la tierra y contra la explotación en el campo. Las versiones
oficiales sobre el movimiento están marcadas por memorias limitadas al comunismo.
Otras memorias relacionan las luchas de los trabajadores en las décadas de 194050 con las luchas contemporáneas por la tierra de los trabajadores sin-tierra. Ese
acto de interpretación es relevante pues atribuye sentido al hecho histórico y
constituye una evidencia de experiencias plurales.
Palabras clave: Trabajadores, Memoria, Movimientos Sociales, Revolución Agraria,
Partido Comunista.
Abstract
In this article, search the memories of the communist uprising of 1949,
Fernandópolis, in the Northwest of São Paulo, Brazil. The dispute around the
memory and the construction of meanings is related to the hiding the historical
struggle for land and against exploitation in the country. The official versions about
the movement are marked for limited communism memories. Other memories relate
to the struggle of workers during the decades of 1940-50 to the land struggles of rural
landless contemporary. This interpretive act is relevant, since attributes meaning to
fact and constitute in evidence plural experiences.
Keywords: Workers, Memory, Social Movement, Agrarian Revolution, Communist
Party.
JEL Codes: J43, J 81, J83, P32.
Introdução
A versão oficial e hegemônica para o movimento social de trabalhadores, comumente
conhecido como levante comunista de 1949, é limitada a ocorrência de determinados eventos
na noite aprazada de 23 para 24 de junho do ano de 1949, tradicionalmente de festejos de São
João em Fernandópolis, região Noroeste do Estado de São Paulo. De acordo com essa
memória, a data foi escolhida para dar início à “revolução agrária” e “comunista no Brasil”. O
processo criminal que indiciou os trabalhadores envolvimentos no levante comunista em
diversas passagens identifica-se formulações que indicam que no campo e na cidade, um
grupo de trabalhadores projetou o movimento que tiraria da miséria os trabalhadores,
eliminaria a injusta condição social reinante no país; por fim ao absolutismo dos patrões, à
escravização, a ganância e a exploração dos intermediários. Ainda se declarava a inutilidade
de se trabalhar para outrem, a distribuição gratuita da terra e encerrar de vez as ações
imperialistas no país1. Essa é uma dentre as muitas versões para o movimento social dos
trabalhadores de 1949 em Fernandópolis2.
A região em que está localizada a cidade de Fernandópolis já foi descrita como “sertão
de São José do Rio Preto”, “Oeste Paulista”, “Alta Araraquarense”. Atualmente, é
denominada “Noroeste paulista”. Fernandópolis tornou-se município em 1º de janeiro de 1945
e, anteriormente, pertencia ao extenso município de Tanabi, Estado de São Paulo.
Tradicionalmente, a região de Fernandópolis é descrita como uma área de “expansão da
fronteira” construída pela “marcha pioneira” nos “sertões” da Alta Araraquarense por meio da
ação dos “infatigáveis continuadores dos bandeirantes”, responsáveis pelo “desbravamento
das terras incultas”. A narrativa histórica construída a partir da perspectiva dos “destemidos
desbravadores” privilegia e elege como sujeitos históricos os que foram identificados como
“pioneiros” na “edificação” dos “alicerces da cidade”3, promovendo uma memória laudatória
e hegemônica4. No entanto, é certo que as diversas cidades edificadas nessa região
constituíram-se a partir da especulação imobiliária da burguesia paulista e da sua política de
1
PROCESSO CRIME n. 140, de 1949. Comarca de Votuporanga-SP. O inquérito policial foi instaurado pelo
Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). O processo criminal pela Justiça Pública do Estado de São
Paulo, Comarca de Votuporanga, em que criminalizou mais 40 trabalhadores. Com a numeração justaposta ao
inquérito policial, o processo criminal totaliza 762 folhas.
2
Cf. MOREIRA, V. J. O levante comunista de 1949: memórias e histórias da luta pela terra e da criminalização
dos movimentos sociais de trabalhadores no Noroeste paulista. Cascavel, PR: EDUNIOESTE, 2012.
3
COSTA, R. M. S.; COSTA, V. L. Fernandópolis – das raízes à consolidação da emancipação. In: PESSOTA,
A. J. et al. Fernandópolis: nossa história, nossa gente. Fernandópolis: Bom Jesus, 1996. p. 10-16.
4
O Senso de 1950, publicado no periódico Fernandópolis-Jornal, informa que município de Fernandópolis era
composto de cinco distritos: Distrito da Sede Municipal/Cidade 5.670 habitantes; Zona Rural 21.895 habitantes;
Distrito Indiaporã 830 habitantes; Distrito Meridiano 316 habitantes; Distrito Macedônia 588 habitantes; Distrito
Pedranópolis 224 habitantes; Total: 29.523 habitantes. FERNANDÓPOLIS-JORNAL, n. 277, 27/05/1951, p. 1.
1
indústria de cidades, como afirma Sedeval Nardoque, em que “a grilagem de terras, a
fundação de cidades, a especulação imobiliária e os conflitos de terras foram comuns”5.
A luta pela terra: entre revoluções e a Guerra Fria
As disputas em torno dos sentidos do passado revelam dimensões das contradições
vividas, das relações dominantes de poder e da luta de classes. O processo de ocultação
histórica de experiências sociais dos trabalhadores, em seus diversos movimentos de luta por
transformações sociais, em particular a luta pela terra – reforma agrária –, tem sido utilizada
na composição de um saber histórico dominante – hegemônico.
As versões narrativas do movimento de trabalhadores de junho de 1949, o levante
comunista, estão marcadas por disputas em torno dos sentidos da memória, cujo processo
histórico vivido é significado, por vezes, pelo esquecimento ou a recusa em lembrar-se desse
passado, bem como pelo “medo” que o movimento provocou junto à “população da cidade”.
Versões sobre a “ameaça comunista” parecem povoar as memórias de muitos. Por outro lado,
reminiscências sobre o movimento de 1949 relacionam as lutas dos trabalhadores nas décadas
de 1940-50 às lutas pela terra promovidas pelos trabalhadores rurais sem-terra hodiernos. Esse
fato relevante constitui-se em indício e depois em evidência de experiências vividas que não
podem ser reduzidas a um “movimento comunista de revolução agrária” ou apenas levante
comunista6.
De fato, os movimentos sociais de trabalhadores que ocorreram naqueles tempos no
campo podem ser descritos e interpretados como levantes de trabalhadores na luta por direitos
trabalhistas, contra as relações sociais de exploração a que estavam submetidos, em alguns
momentos, como movimentos de luta pela terra. Durante as décadas de 1940-60 foram
intensas e o debate em torno da reforma agrária, envolvendo sujeitos diversos, tais como, os
trabalhadores rurais, a Igreja Católica, Partido Comunista do Brasil (PCB) e o Congresso
5
NARDOQUE, S. Renda da terra e produção do espaço urbano em Jales – SP. 2007. 445 f. Tese (Doutorado
em Geografia) – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista, UNESP, Rio
Claro, 2007. p. 35.
6
Sobre a perspectiva teórica para a discussão dos sentidos do passado e da memória, Cf. HOBSBAWM, E. J.
Sobre história. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. GRUPO MEMÓRIA
POPULAR. Memória popular: teoria, política, método. In: FENELON, D. R. et al. Muitas memórias, outras
histórias. São Paulo: Editora Olho d’Água, 2004. KHOURY, Y. A. Historiador, as fontes orais e a escrita da
história. In: ALMEIDA, P. R; KHOURY, Y. A.; MACIEL, L. A. (Orgs.). Outras histórias: memórias e
linguagens. São Paulo: Olho d'Água, 2006. KHOURY, Y. A. Muitas memórias, outras histórias: cultura e o
sujeito na história. In: FENELON, D. R. et al. (Orgs.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Editora
Olho d’Água, 2004.
2
Nacional7. Na região de Noroeste paulista, muitos foram os conflitos em torno da posse pela
terra8.
A construção histórica e social de memórias sobre o movimento social dos
trabalhadores no ano de 1949 em Fernandópolis evidencia a disputa e a construção da
memória em torno do termo “levante”, na descrição e interpretação dos movimentos sociais.
Naquele momento histórico, a noção foi apropriada pelos agentes do DOPS9, pelos entes da
Justiça e pela imprensa, sendo disseminada no social com o adjetivo “comunista”. Esse fato
foi deliberado com o objetivo de criminalizar policial e politicamente os movimentos sociais
dos trabalhadores que ocorriam desde 1946, pelo menos, na região de Fernandópolis.
Olhar em perspectiva para esse período do passado levou-me a identificar a noção
“levante” como um termo ambivalente, que não deve ser abandonado pelo historiador, pois
descreve práticas de lutas e compõe a tradição de lutas dos movimentos sociais dos
trabalhadores, sendo assim objeto da historiografia10. As disputas em torno da memória do
7
CARDOSO, H. H. P. Os anos 50, o projeto de industrialização e o tema da reforma agrária. In: MACHADO,
M. C. T.; PATRIOTA, R. (orgs.). Política, cultura e movimentos sociais: contemporaneidades historiográficas.
Uberlândia/MG: Universidade Federal de Uberlândia, 2001. MEDEIROS, L. S. Luta por terra e organização dos
trabalhadores rurais: a esquerda no campo nos anos 50/60. In: MORAES, J. Q.; ROIO, M. del. (Orgs.). História
do marxismo no Brasil. Visões do Brasil. Campinas, SP: UNICAMP, 2000. v. 4. PRADO JÚNIOR, C. A questão
agrária no Brasil. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 2000. RANGEL, M. S. Medo da morte e esperança de vida:
uma história das ligas camponesas. 2000. 372 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000.
8
Cf. BARRIGUELLI, J. C. Subsídios à história das lutas no campo em São Paulo (1870-1956). São Carlos:
Universidade Federal de São Carlos, Arquivo de História Contemporânea, v. 2, 1981. BISCARO NETO, N.
Memória e cultura na história da Frente Pioneira (Extremo Noroeste paulista – décadas de 40 e 50). 1993. 180
f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Programa de Estudos Pós-Graduados em História, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1993. BRUSANTIN, B. M. Na boca do sertão: o perigo político
no interior do Estado de São Paulo (1930-1945). São Paulo: Arquivo do Estado, Imprensa Oficial do Estado,
2003. CHAIA, V. L. M. Os conflitos de arrendatários em Santa Fé do Sul – SP (1959-1969). 1980. 163 f.
Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo – USP, São Paulo, 1980. REIS, N. Tensões sociais no campo: Rubinéia e Santa Clara D’Oeste. 1990.
255f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Programa de Estudos Pós-Graduados em História, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1990. VIEIRA, V. L. Cooptação e resistência: um estudo sobre
o movimento dos trabalhadores em São Paulo, de 1945 a 1950. 1989. 283 f. Tese (Mestrado História Social) –
Programa de Estudos Pós-Graduados em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
1989. WELCH, C. A.; GERALDO, S. Lutas camponesas no interior paulista: memórias de Irineu Luís de
Moraes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. WELCH, C. A. A semente foi plantada: as raízes paulistas do
movimento sindical camponês no Brasil, 1924-1964. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
9
Utilizo a sigla DOPS para Departamento de Ordem Política e Social, como órgão da Secretaria da Segurança
Pública do Estado de São Paulo, como está impresso nos diversos documentos no período. O DOPS foi criado
no Estado de São Paulo em 30/12/1924 e a sigla DEOPS, para “Departamento Estadual de Ordem Política e
Social”, tornou-se usual a partir de 1975, alterando inúmeras vezes a sua denominação durante todo esse período.
Geralmente, a Seção Política do DOPS era encarregada de investigar e reprimir as organizações políticas e a
Seção Social encarregada de investigar e reprimir os movimentos sindicais e diversos movimentos sociais por
direitos trabalhistas e sociais, para, assim, forjar uma suspeição generalizada e estigmatizada sobre diversos
sujeitos e organizações e movimentos.
10
Cf. HOBSBAWM, E, J. Mundos do trabalho: novos estudos sobre história operária. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1988. ______. Os trabalhadores: estudos sobre a história do operariado. 2 ed. São Paulo: Paz e terra,
2000. ______; RUDÉ, G. Capitão Swing: a expansão capitalista e as revoltas rurais na Inglaterra do início do
3
movimento habilitam o uso do termo “levante” como um dos termos para a descrição das
diversas lutas dos trabalhadores naquele período: alguns trabalhadores se “levantaram”, ou se
deslocaram politicamente em movimento social, para lutar contra o pagamento da renda da
terra e os despejos das fazendas. Outros lutavam para minimizar a exploração do
assalariamento, do armazém, do “câmbio negro” e das duras condições de vida. Outros, ainda,
levantavam-se para lutar movidos pelo projeto da terra repartida, bem como de trabalhar na
própria terra. Houve também aqueles trabalhadores que lutavam, sim, “levantaram-se” por
uma “revolução agrária e comunista”11.
As lutas dos trabalhadores rurais naquele período foram forjadas na tensão e na
relação com os grupos que exerciam poder na cidade e no campo. Os projetos elaborados para
suas vidas têm a marca dessa experiência social: viviam num ambiente complexo, de forte
pressão política por conta da Guerra Fria, ambiente político e social em que as tensões locais
foram entremeadas e exacerbadas com as operações da Polícia Política e Social do Estado de
São Paulo, o DOPS.
A categoria revolução – muito utilizada no período – constituiu-se, particularmente,
uma das inúmeras “metáforas clássicas da transformação” social da modernidade quando
anunciada pelos trabalhadores, mobilizados ou não em suas organizações sindicais e
partidárias. A revolução moveu, orientou, como afirma Stuart Hall12, o imaginário radical de
muitos no século passado, mesmo que a realidade se apresentasse de forma complexa e a
“teoria” da qual partiam “fossem costurados um ao outro por uma correspondência
rudimentar; de tal forma que, quando as hierarquias sociais são derrubadas, uma inversão dos
valores e símbolos culturais tem que acontecer, mais cedo ou mais tarde”13, enfim, “metáforas
da transformação” distante da realidade que se queria transformar. Todavia, os trabalhadores
projetavam e faziam revoluções e foram prontamente combatidos pela burguesia urbana e
agrária e sua respectiva polícia. As transformações e o processo histórico poderiam ser
compreendidos de forma simplista e mecânica, “costurados um ao outro por uma
século XIX. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa.
3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, v. 1, 1997. ______. A formação da classe operária inglesa. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, v. 2, 1988. ______. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao
pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. ______. Costumes em comum: estudos sobre a
cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. ______. Senhores e caçadores: a origem da
Lei Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
11
Cf. MOREIRA, V. J. O levante comunista de 1949...
12
HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Org. L. SOVIK. Belo Horizonte: Editora UFMG;
Brasília: UNESCO, 2003. p. 219-244.
13
HALL, S. Da diáspora..., p. 220.
4
correspondência rudimentar”14. A transformação era compreendida como uma simples
“inversão” ou “substituição” de uma classe por outra nas diversas instituições de poder e do
Estado.
A partir de um esforço para não cometer anacronismo na interpretação daquele
processo histórico vivido na metade do século passado – ponderando que a noção de
revolução governava e moldava a vida de muitos trabalhadores (incluindo diversos deles em
Fernandópolis, militantes ou não do PCB), foi a partir dessas perspectivas que os
trabalhadores atribuíam significados às experiências e práticas –, é possível apreender a noção
revolução como “repertórios de resistência”, constituindo-se no contrateatro encenado pelos
trabalhadores em suas lutas pela terra, contra as violências e exploração das relações de
trabalho (arrendamento, meia, colonato, assalariamento, entre outras), ou para a ampliação de
direitos e reversão de injustiças. De fato, a revolução proletária e camponesa não estava posta
seriamente pelo próprio PCB, e o Manifesto de Janeiro de 1948, ou Como enfrentar os
problemas da revolução agrária e antiimperialista – de autoria atribuída a Luis Carlos
Prestes15, objetivava orientar o partido e seus militantes – expressava um momento de
radicalização do PCB diante da cassação do registro do partido e dos mandatos
parlamentares16. Contudo, o imaginário social em torno do projeto de uma revolução
alimentava utopias, projetos e expectativas de muitos sujeitos e atravessava o social.
Para a interpretação histórica do levante comunista de 1949 cogito e indago narrativas
orais produzidas em 1996 para a escrita do artigo sobre o “levante comunista”17 e para o livro
sobre a “história da cidade”18, obra que celebra a memória laudatória, fontes orais produzidas
14
Idem, p. 220.
PRESTES, L. C. Como enfrentar os problemas da revolução agrária e antiimperialista. Problemas, Rio de
Janeiro, n. 9, p. 18-42, abr. 1948.
16
Os manifestos de 1948 e de 1950 foram discutidos amplamente pela historiografia que tematiza o PCB no
período. Beatriz Ana Loner afirma que “de 1948 a 1951, aproximadamente, temos a fase de maior radicalização
da linha política, cujo documento mais expressivo é o conhecido pelo nome de ‘Manifesto de Agosto’. A partir
de meados de 1951, esta proposta vai abrindo-se paulatinamente, mantendo-se até o IV Congresso do partido, em
novembro de 1954. [...] É o ‘Manifesto de Janeiro’ [de 1948], a primeira e imediata resposta do partido à
extinção dos mandatos. Orientando-se pelo informe de Zhdanov, caracterizavam a situação nacional como de
avanço da reação em todos os terrenos, possibilitado pela aliança entre latifúndio e imperialismo, com o apoio da
grande burguesia bancária, comercial e industrial. Pretendem esclarecer as massas, para que lutem pela
derrubada do governo e instauração de um governo nacional-popular. Deve-se lutar pela independência nacional,
contra o imperialismo, em defesa das liberdades democráticas, do nível de vida das massas, da indústria
nacional, etc.” LONER, B. A. O PCB e a linha do “Manifesto de Agosto”: um estudo. 1985. 206 f. Dissertação
(Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 1985. p. 68, 87-88.
15
17
Cf. COSTA, R. M. S.; MALACRIDA, P. M. M. M.; SUGAHARA, A. M. A. Semente comunista em solo
conservador. In: PESSOTA, A. J. et al. Fernandópolis: nossa história, nossa gente. Fernandópolis: Bom Jesus,
1996.
18
PESSOTA, A. J. et al.. Fernandópolis: nossa história, nossa gente. Fernandópolis: Bom Jesus, 1996, p. 10-16.
5
no desenvolvimento dessa pesquisa, processo criminal, relatórios policiais (DOPS), dentre
outros materiais históricos19.
Memórias construindo histórias...
A narrativa oral de Oswaldo Felisberto é representativa para o prelúdio da
perscrutação do processo histórico em que memórias construíram histórias sobre o
movimento social dos trabalhadores. A representatividade de determinadas entrevistas está
relacionada aos campos de possibilidades e tendências presentes nas narrativas orais, os
contornos dos procedimentos narrativos e simbólicos compartilhados socialmente – a
experiência excepcional e os fatos excepcionais narrados. Como afirma Alessandro Portelli,
“talvez porque nos revelam o que foi possível”20. Os sujeitos, quando narram, atribuem
sentidos às suas vivências e às vivências de outras pessoas. Nesse processo, a subjetividade
desses
sujeitos
expressa
significados,
expectativas
e
“campos
de
possibilidades
21
compartilhadas, reais ou imaginárias” . A experiência narrada produz atos interpretativos do
presente e do passado, marcados por procedimentos narrativos e simbólicos. Esses atos
interpretativos constituem em fatos históricos para o historiador.
Oswaldo Felisberto exerceu a profissão de contador logo que chegou à cidade, em
1943, foi dentista prático por um longo período, talvez até o final da década de 1950, quando
iniciou o curso de odontologia em Uberaba-MG, abandonado depois de um ano e meio de
curso. Em 1952 foi também professor no colégio público em Fernandópolis. No início da
década de 1960 começou a trabalhar na Casa da Lavoura da cidade e aposentou-se como
funcionário da Secretária da Agricultura do Estado de São Paulo, lotado na cidade de São
Paulo. Desde meados da década de 1940, posicionou-se politicamente como comunista e em
1951 foi eleito vereador, militando na cidade como mediador de movimentos sociais,
principalmente, na luta em defesa dos interesses dos trabalhadores rurais. Em descrição
elaborada por Yara Maria Felisberto, sua filha, Oswaldo era um eloquente orador e
participava das reuniões do Partido Comunista, estando sempre muito próximo dos
comunistas; porém, afirma-se, não participou do movimento de 1949.
19
Sobre a metodologia da fonte oral, Cf. MOREIA, V. J. Propriedades da evidência, narrativas orais e a escrita
da história: memórias sobre trabalhadores na luta pela terra. História e Perspectivas, Uberlândia, n. 48, p. 239282, jan./jun. 2013. Para a metodologia no uso dos demais materiais, Cf. MOREIRA, V. J. O levante comunista
de 1949...
20
ALMEIDA, P. R.; KHOURY, Y. A. História oral e memórias: entrevista com Alessandro Portelli. História &
Perspectiva, Uberlândia, n. 25/26. p. 27-54, jul./dez. 2001; jan./jun.2002. p. 32.
21
PORTELLI, A. A filosofia e os fatos. Narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais.
Tempo, Rio de Janeiro, v.. 1, n. 2, 1996. p. 72.
6
Oswaldo Felisberto, ao ser questionado sobre o “levante comunista”, em entrevista
concedida a Áurea Maria de Azevedo Sugahara em 1996, explica:
Áurea Sugahara: Fala uma coisa senhor Oswaldo, em 1949 houve um levante comunista? O
que o senhor saberia me dizer a respeito?
Oswaldo Felisberto: Não houve propriamente... Não houve o levante comunista. Lá o que
houve foi o seguinte: era o tipo dos sem-terra, era o tipo do indivíduo sem-terra liderado por
Antônio Joaquim. Antônio Joaquim mais uns guerrilheiros... guerrilheiros não, uns lavradores,
não é! Que queriam desapropriar a fazenda do Veloso, lá em Ouroeste, onde Antônio
Joaquim... onde Antônio Joaquim tinha fazenda. Então eles levantaram lá em... e vieram para
tomá Fernandópolis. Mas não tomaram!
Áurea Sugahara: Não chegaram?
Oswaldo Felisberto: Não tomaram nada!
Áurea Sugahara: Houve uma tentativa?
Oswaldo Felisberto: Foram até no Caxi só. Foram até ali no Caxi. No Caxi eles voltaram...
desmancharam tudo22.
A questão elaborada pela pesquisadora sobre o levante comunista ocorre no meio da
entrevista de 32 minutos. Antes de tratar sobre o levante comunista, Felisberto fora indagado
ou motivado a falar sobre a “história política de Fernandópolis” e sobre os diversos sujeitos
que exerceram o poder político local. As questões iniciais elaboradas por Áurea Sugahara e a
narrativa de Oswaldo Felisberto constituem atos interpretativos sobre o presente e sobre o
passado da cidade. O diálogo entre a entrevistadora e o entrevistado é iniciado a partir dessas
questões, talvez diante das pressões políticas para elaboração do “livro sobre a história da
cidade”. Felisberto também se sentia mais à vontade para falar a respeito desses temas. Parece
que Felisberto estava reticente quanto a conceder a entrevista e falar sobre sua militância e
sobre o “movimento comunista na cidade”.
A versão narrada por Oswaldo Felisberto modifica os fatos tal como eles ocorreram.
Primeiro, os conflitos em torno da luta pela terra não estavam limitados à “desapropriação” da
fazenda do Veloso e, segundo, os trabalhadores chegaram até Fernandópolis, não retornando
do atual Córrego do Caxi, antigo Córrego da Capivara. Foi justamente no Córrego do Caxi
que ocorreram os conflitos entre o inspetor de quarteirão José Honório da Silva, que teve sua
casa e bar alvejados, e os trabalhadores, que de lá se deslocaram pouco depois para
Fernandópolis. Em Populina, Guarani D’Oeste e no Córrego do Caxi, que naquele período
constituíam-se em vilas pertencentes ao município de Fernandópolis, ocorreram conflitos
22
Oswaldo Felisberto. Santo André/SP, entrevista realizada por Áurea Maria de Azevedo Sugahara em 1996,
sem data precisa. O trecho da entrevista citado não foi utilizado e problematizado no artigo pelas autoras, Cf.
COSTA, R. M. S.; MALACRIDA, P. M. M. M.; SUGAHARA, A. M. A. Semente comunista em solo
conservador. In: PESSOTA, A. J. et al. Fernandópolis: nossa história, nossa gente. Fernandópolis: Bom Jesus,
1996.
7
armados. Tais fatos não se verificaram em Fernandópolis. Talvez tenha sido esse o motivo
que levou Felisberto afirmar que não “houve levante comunista” na cidade, constituída por
um núcleo urbano central, local em que residia Felisberto. A pergunta formulada corrobora a
resposta de Felisberto. Certamente a compreensão e os significados de um levante comunista
para Felisberto não se encaixava no movimento que ocorreu naquela noite de 23 para 24 de
junho de 1949. Como também parece não estar mais certo no seu presente, 1996, que aquela
era a melhor alternativa para a resolução dos problemas vividos pelos trabalhadores.
Das reminiscências de Osvaldo Felisberto emergem indícios dos conflitos em torno da
luta pela terra, pois, em 1996, tempo presente da narrativa, relacionar o movimento de
trabalhadores de 1949 à luta pela reforma agrária organizada pelo Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra (MST) é significativo dos sentidos atribuídos à luta dos
trabalhadores durante as décadas de 1940 e 1950. Em muitas narrativas orais, as versões
construídas
sobre
os
movimentos
sociais
dos
trabalhadores
em
Fernandópolis,
especificamente o movimento de 1949, significam aquelas lutas como lutas pela terra ou
reforma agrária, aproximando-as, histórica e politicamente, das lutas dos trabalhadores rurais
sem-terra nos dias de hoje.
As memórias e os significados atribuídos por esses sujeitos históricos entrevistados às
experiências vividas por eles ou por outros sujeitos foram formuladas dentro de um ambiente
específico e de relações subjetivas estabelecidas entre entrevistadores e entrevistados, com
suas diversas práticas sociais, marcados pelo ambiente político e social que estes sujeitos
ocuparam nesse processo histórico, bem como pelo momento de suas vidas naquele presente.
As memórias de atos interpretativos, a partir das reminiscências formuladas em 1996 e no
tempo presente desta pesquisa sobre o movimento de 1949, constituem fato relevante na
investigação de evidências de experiências, de modos de vida e de luta, assim como dos
diversos projetos e memórias em disputa23.
Mesmo querendo negar a ocorrência do “levante”, os trabalhadores são inicialmente
caracterizados como “guerrilheiros”. Dentre todas as entrevistas realizadas pelo grupo de
pesquisadores para elaboração do “livro sobre a história da cidade” e as entrevistas realizadas
23
Cf. ALMEIDA, P. R. “Cada um tem um sonho diferente”: histórias e narrativas de trabalhadores no
movimento de luta pela terra. In: ALMEIDA, P. R; KHOURY, Y. A.; MACIEL, L. A. (Orgs.) Outras histórias:
memórias e linguagens. São Paulo: Olho d'Água, 2006. KHOURY, Y. A. Do mundo do trabalho ao mundo dos
trabalhadores. In: PORTELLI, A at al; VARRUSSA, J. R (org.). Mundo dos trabalhadores, lutas e projetos:
temas e perspectivas de investigação na historiografia contemporânea. Cascavel/PR: EDUNIOESTE, 2009.
______. Historiador, as fontes orais e a escrita da história. In: ALMEIDA, P. R; KHOURY, Y. A.; MACIEL, L.
A. (Orgs.). Outras histórias: memórias e linguagens. São Paulo: Olho d'Água, 2006. ______. Muitas memórias,
8
para a pesquisa, apenas a narrativa de Felisberto, mesmo que reelaborada logo a seguir,
identifica os trabalhadores com o termo “guerrilheiro”. É provável que o entrevistado
identifique o movimento de luta pela terra organizada pelo MST como uma luta de guerrilha –
política e revolucionária – que não se restringe à reforma agrária: a entrevista foi concedia em
meados da década de 1990, justamente num período em que as tensões e diversos conflitos
em torno da luta pela terra organizada pelo MST estavam em contundente evidência e
visibilidade pública.
A relação pode ser compreendida à medida que se considera o momento da concessão
da entrevista e como aquele tempo era vivido por Oswaldo Felisberto. Durante a década de
1950-60, Felisberto sofreu muito com a repressão policial, mudando várias vezes de cidade e
vindo a falecer em Santo André, no ABC Paulista. Chegou morar com a família em Uberaba,
onde começou a faculdade de odontologia, mas ali passou por sérios problemas e não
concluiu o curso. Parece que as perseguições não estavam relacionadas apenas às suas
atividades políticas, mas ao exercício da profissão de dentista prático. É provável que
Felisberto relacione a repressão à atividade exercida como dentista prático à sua militância
política, o que pode ter acontecido na realidade, mesmo considerando, no início da década de
1950, que a política do Serviço de Fiscalização do Exercício Profissional da Secretaria de
Saúde do Estado de São Paulo tenha regulamentado a profissão e iniciado a repressão aos
dentistas práticos. Na década de 1950, por quatro vezes o consultório de Felisberto foi
interditado (20/01/1951, 21/02/1952, 26/07/1955 e 04/09/1956), bem como indiciado em
inquérito policial (e, posteriormente, processado) por “exercício ilegal da profissão”. Ainda
enquanto era acadêmico de odontologia em Uberaba, no período entre 1957 e 1958, esteve
sendo investigado pela Delegacia de Polícia de Fernandópolis e inquirido em carta precatória
pela Delegacia de Polícia de Uberaba em função do exercício ilegal da profissão24.
Quando já trabalhava na Casa da Lavoura em Fernandópolis, logo após o golpe civilmilitar em 1964, Felisberto foi preso em Fernandópolis e transferido para a prisão de Lins,
Estado de São Paulo, ali ficando preso por mais de um mês. Ao retornar, seu cargo havia sido
transferido para a cidade de Votuporanga, o que criou dificuldades para o exercício das
atividades de Oswaldo Felisberto. Essas vivências foram experienciadas como transtornos e
marcaram a vida de Oswaldo Felisberto e de toda a sua família. Sua filha Yara relata que
outras histórias: cultura e o sujeito na história. In: FENELON, D. R. et al. (Orgs.). Muitas memórias, outras
histórias. São Paulo: Editora Olho d’Água, 2004.
24
DELEGACIA DE POLÍCIA DE FERNANDÓPOLIS. Prontuário 473 – Oswaldo Felisberto. Em
“Comunicação Criminal do Juízo de Direito da Comarca de Fernandópolis” à Delegacia de Polícia de
Fernandópolis, Of. n. 232, de 6 de abril de 1960, anexada no Prontuário, informa que Felisberto foi absolvido.
9
“determinadas pessoas” delataram o seu pai para os militares por pura perseguição política,
quando ele já não atuava mais no partido.
A discriminação e perseguição política fizeram-se presentes no enredo das entrevistas
de Yara Felisberto e de Idelma Felisberto, filha e esposa, respectivamente, de Oswaldo
Felisberto, sendo interpretado pelas entrevistadas como pressões para os diversos
deslocamentos até a fixação de moradia em Santo André. Como afirma Yara, “nos
empurraram pra fora da cidade”. Meu primeiro contato com Yara foi por telefone, que se
mostrou, desde o início, reticente em relação à realização da sua entrevista e, na entrevista
com sua mãe, afirmando: “a gente não lembra de nada”, “a mãe não sente a vontade para
falar”, “eliminamos essa fase da nossa vida”, entre outras frases denotativas de um passado
que deveria continuar onde estava – no passado, “esquecido”.
A narrativa de Idelma Felisberto está marcada por frases significativas a respeito de
como vivenciaram essas experiências e do trabalho da memória, em que busca esquecer-se do
vivido: “E... deixa eu ver o que mais posso dizer, que eu posso me lembrar! [...] a vida aqui
foi meio dura! [...] Porque o movimento deles iam crescendo e os outros achavam ruim,
então começou a perseguição. Foi isso! Eu não me lembro mais nada”25.
Narrativas entremeadas de silêncios e reticências, carregadas de digressões, reforçam
os sentidos atribuídos à experiência vivida como tempos que foram vividos em meio a
tensões, conflitos e privações. A narrativa fragmentada de Idelma Felisberto parece querer
reforçar a imagem de um tempo que não foi apenas difícil de ser vivido, mas também difícil
de ser lembrado.
Embora o processo de composição das memórias e as reminiscências do vivido
constituíssem um processo traumático26 e dolorido para a família, Yara Felisberto identificou
os sentidos das lutas de seu pai e daquele tempo:
Yara Maria Felisberto: Então eu acho que naquele tempo, eu acho que eles eram muito
idealistas. Eles desenvolviam as idéias deles, preconizavam um mundo bom. Um mundo onde
todo mundo fosse feliz, onde todos pudessem ter um pedaço de chão, o seu... a sua... o seu
trabalho de uma forma tranquila. Isso daí incomodou muito, porque em uma época que
predominava o latifúndio, eram os grandes proprietários de terras, né! As terras eram ainda
muito pouco, assim..., era uma concentração de terras muito grande nas mãos de poucos, então
falava em reforma agrária, era complicado, e a bandeira deles era a reforma agrária!
Pesquisador: Era?
25
Idelma Felisberto. Fernandópolis/SP. 19/08/2006. Acervo do pesquisador. (Grifos nosso).
Cf. THOMSON, A. Quando a memória é um campo de batalha: envolvimentos pessoais e políticos com o
passado do Exército Nacional. Projeto História, São Paulo, EDUC, n. 16, p. 277-296, EDUC, fev. 1998. ______.
Recompondo a memória: questões sobre as relações entre história oral e as memórias. Projeto História, São
Paulo, EDUC, n. 15, p. 51-84, abr. 1997.
26
10
Yara Maria Felisberto: E até hoje ainda é, e tá aí a briga por causa de terra e é uma confusão
que parece que não tem fim! Mas naquele tempo não era assim uma coisa tão... Principalmente
eles que viviam na cidade, que pregavam a... reforma agrária como uma divisão assim..., mais
de uma forma tranquila, não era de uma forma..., não sei em outros grupos como é que as
coisas aconteciam, mas entre eles eram uma coisa...27.
No processo histórico e social de construção das memórias e dos sentidos atribuídos
ao movimento dos trabalhadores, o presente é sempre referenciado como contraponto do
lembrar. A luta pela terra nos dias atuais, empreendida pelos movimentos dos trabalhadores
rurais sem-terra, significada como uma “briga por causa de terra” e “confusão que parece que
não tem fim”, permeia a elaboração da versão sobre o movimento de 1949 e das lutas dos
trabalhadores “naquele tempo”. A utilização do presente como referência tem sentido de
suavizar as práticas de luta no final da década de 1940 e início da década seguinte: a prática
de luta pela terra emerge na entrevista como uma “forma tranquila”. Yara Felisberto chama a
atenção para os conflitos vividos numa “época que predominava os latifúndios” e de “grandes
proprietários de terra” – elementos intrínsecos, em qualquer tempo, aos conflitos e lutas
diversas dos trabalhadores pela terra.
A construção de uma versão para o tempo do movimento de 1949 pela filha de
Oswaldo Felisberto leva-a a produzir imagens sobre as práticas de luta dos trabalhadores por
meio do distanciamento dos conflitos e da violência da luta pela reforma agrária no presente.
Em alguns momentos, para explicar sua interpretação sobre a luta pela terra no presente e
caracterizar a luta empreendida pelo seu pai no passado, Yara Felisberto utiliza as imagens de
“violência” e “extremismo” dos conflitos no oriente médio, repugnando-os e valorando-os
como práticas caracterizadas pelo “radicalismo” e pela “intransigência”. Parece que a
preocupação de Yara Felisberto é com a construção de memórias e de imagens de seu pai e do
movimento como “tranquilo”(s), de pessoas que lutavam por meio das “palavras”, das “ideias
liberais e lutam por isso e lutam de uma forma muito violenta hoje. Naquela época não!”.
Essa atitude de Yara Felisberto certamente está relacionada com o vivido (repressão e a
perseguição política) pela família ante a militância comunista de seu pai e da própria trajetória
de Oswaldo Felisberto durante a década de 1980-90, o que a faz reavaliar a posição política de
seu pai.
Todavia, “naquele tempo”, Oswaldo Felisberto era firme e convicto nas posições que
assumia, conforme seus posicionamentos durante as sessões da Câmara Municipal de
27
Yara Maria Felisberto. Fernandópolis/SP. 12/08/2006. Acervo do pesquisador. Yara nasceu em 22/02/1950.
Foi professora de História, Diretora de Escola e aposentou-se como Supervisora de Ensino em Santo André,
Estado de São Paulo.
11
Fernandópolis28.Quando questionada em sua entrevista sobre suas memórias sobre o “levante
comunista” e sobre as lutas daqueles tempos, Idalina Maldonado atribui a Oswaldo Felisberto
a autoria de uma palavra de ordem, provavelmente entoada desde os movimentos sociais de
1946:
Idalina Maldonado: Nós fizemos passeata, que até o Oswaldo Felisberto fez aquele versinho:
“Leite, carne e pão, açúcar sem cartão, o povo organizado combate a reação”. Isso é
bonito, isso foi Oswaldo Felisberto, ele também era, assim, bem influente.
Pesquisador: Como era? Leite...
Idalina Maldonado: Leite, carne e pão, açúcar sem cartão, o povo organizado combate a
reação.
Pesquisador: “Sem cartão”, porque era controlado?
Idalina Maldonado: Era controlado, tinha que tê o cartão pra comprá o açúcar, o querosene, o
óleo29.
O conteúdo do “versinho” tinha significados sociais para os trabalhadores daquele
tempo. Para Alessandro Portelli, o fato de narradores comporem suas narrativas com
“materiais formalizados”, máximas, provérbios, ditos populares, entre outras formas, pode
indicar “o grau no qual um ponto de vista coletivo existe dentro da narrativa do indivíduo”.
Como ainda assevera Portelli, a história de determinados eventos “são contadas repetidas
vezes ou discutidas com membros da comunidade; a narrativa formalizada, mesmo a métrica,
pode ajudar a preservar uma versão textual de um evento”30. Parece ser o caso das
reminiscências de Idalina Maldonado ao se lembrar do verso depois de décadas. Esse fato
leva-me a presumir que inúmeras foram as ocasiões em que a máxima fora entoada nas
diversas manifestações e movimentos do período. O “versinho” atribuído poeticamente a
Oswaldo Felisberto desvela as condições de vida, vividas como pressões, naquele final da
28
ATA DA REUNIÃO DA CÂMARA MUNICIPAL DE FERNANDÓPOLIS EM SUA 6ª SESSÃO
ORDINÁRIA EM 1 DE ABRIL DE 1952 apud FERNANDÓPOLIS-JORNAL. Semanário, n. 358, 25 de maio
de 1952, p. 1.
29
Idalina Maldonado. Fernandópolis, 13/07/2005. Acervo do pesquisador. (Grifos nosso). Idalina nasceu em
03/10/1912 em Catiguá/SP (antiga Ibarra). Idalina, junto com o marido José Maldonado, participava das
atividades relacionadas ao PCB na cidade. José Maldonado fora fichado no DOPS, Cf. Prontuário 73.253 – José
Maldonado. DEOPS/SP, DAESP. De acordo com suas próprias memórias, Idalina, junto com outras mulheres,
fazia parte da “Associação Feminina” do partido na cidade. A entrevista com Idalina foi concedida com a
presença de seus filhos e realizada no período de elaboração do projeto de pesquisa, num momento em que não
vislumbrava a problemática central da tese. Durante a entrevista, Hélio Maldonado, um de seus filhos,
participou, efetivamente, tecendo comentários e respondendo a indagações que eram direcionadas para sua mãe.
Na entrevista Idalina e Hélio em alguns momentos chegaram a negar a ocorrência do “levante comunista”.
Idalina Maldonado, em entrevista para as autoras do artigo “Semente comunista em solo conservador”, faz
alusão ao verso, mas sem atribuí-lo a Oswaldo Felisberto, Cf. COSTA, R. M. S.; MALACRIDA, P. M. M. M.;
SUGAHARA, A. M. A. Semente comunista em solo conservador. In: PESSOTA, A. J. et al. Fernandópolis:
nossa história, nossa gente. Fernandópolis: Bom Jesus, 1996.
30
PORTELLI, A. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre ética na história oral. Projeto
História, São Paulo, EDUC. 15, p. 13-49, abr. 1997, p. 30; 33.
12
década de 1940. Parece que o conteúdo da palavra de ordem compunha-se nos diversos
aforismos impressos nos periódicos comunistas do período. Todavia, o fato de Oswaldo
Felisberto entoá-la ou ser mesmo o autor da máxima permite afirmar que assumia a frente nas
passeatas ou nas concentrações de trabalhadores rurais que ocorriam na cidade.
Em 22 de outubro de 1946, o delegado de polícia de Fernandópolis, Antonio Espinhel
Castelo Branco, produziu um relatório policial para o inquérito policial instaurado contra
Felisberto e José Ramos Filho, disponível no prontuário de Oswaldo Felisberto no DOPS:
Relatório. De acordo com o determinado pelo despacho de folhas, esta Delegacia prosseguiu o
presente inquérito policial instaurado pela Delegacia de Ordem Social, do que apurou esta
Delegacia e que constam dos presentes autos, os indiciados José Ramos Filho e Oswaldo
Felisberto, são os responsáveis pela distribuição nesse município dos boletins subversivos
“Contra o Vale e o Barracão”, dos quaes (sic) existem dois exemplares constantes de fls. 4 e 5,
nesses autos. Esses boletins vieram por via postal, procedentes da Capital do Estado, do
partido comunista da citada Capital, dirigidos ao partido comunista local. Os indiciados são
membros nesse partido, donde se vê que a distribuição desses boletins importa em
responsabilidade desse mesmo partido comunista, mesmo porque esses boletins, como ficou
dito e estabelecido está nesses autos pelas declarações do comunista Jerosino Pereira, esses
boletins vieram do partido comunista da Capital do Estado. Fernandópolis, 22 de outubro de
1946. Delegado de Policia (a) Antonio Espinhal Castelo Branco31.
A ação do DOPS em 1946, em um momento em que o PCB ainda não havia sido
cassado e colocado na ilegalidade, denuncia evidências do processo de criminalização policial
e política dos movimentos sociais de trabalhadores. O relatório intenta criminalizar Oswaldo
Felisberto por distribuir panfletos no ambiente rural de Fernandópolis, evidência da sua
militância política.
Nas declarações para o inquérito policial do arrendatário de terras José Ramos Filho,
Oswaldo Felisberto é identificado como um dos principais representantes da “liga
camponesa” de Fernandópolis e informa que recebeu o boletim “Contra o Vale e Barracão”
de Felisberto. O boletim “Contra o vale e o barracão” parece ter sido distribuído em
Fernandópolis e em toda região. O boletim, textualmente, informa que:
O vale é um roubo. Tudo no “Barracão” é mais caro e mais ordinário. O contrato de
arrendamento obriga a entregar ao patrão quasi (sic) tudo o que possuímos. Trabalha-se o ano
inteiro, de sol a sol, mas a vida é cada vez pior. A fome dos filhos e da mulher cresce e as
doenças aumentam. Não temos médicos e os remédios são cada dia mais caros. Tudo isso
porque a terra não nos pertence. Precisamos conseguir um contrato melhor com os patrões.
Não podemos continuar a entregar da terra tudo o que tiramos. Lutemos contra tanta miséria,
contra tanta exploração, contra as brutalidades policiais, contra as perseguições e injustiças.
31
Prontuário 69.800 – Oswaldo Felisberto. DEOPS/SP, DAESP.
13
Para isso precisamos unir nossas forças. Vamos, juntos, organizar uma LIGA CAMPONESA.
Assim organizados, havemos de vencer!32
O panfleto descreve os modos de trabalhar e de exploração dos trabalhadores por meio
do vale, do barracão, dos contratos de arrendamento das terras33, a carência e a privação
simbolizadas no termo “fome”, assim como as péssimas condições de saúde e a carestia dos
remédios34. Expressa uma postura política, já que conclama os trabalhadores para luta contra
as injustiças e contra truculência policial. Oswaldo Felisberto foi processado e fichado no
DOPS pela distribuição desse panfleto35.
Nesse momento, o PCB ainda estava na legalidade. Certamente, a autoria do material
pode ser atribuída à direção estadual do PCB, embora o boletim tenha sido usado como
documento de prova em prontuários de trabalhadores na região de Fernandópolis e da
Associação dos Trabalhadores Rurais de São José do Rio Preto, como evidencia o
chamamento para a organização da “Liga Camponesa”36.
32
PANFLETO Contra o Vale e o Barracão. Prontuário 6585 – Associação Agropecuária de São José do Rio
Preto, DEOPS/SP, DAESP. Prontuário 73.257 – Liga Camponesa. DEOPS/SP, DAESP.
33
Irineu Luís de Moraes em suas memórias sobre sua militância política, atuando nas fazendas da região de São
José do Rio Preto no início da década de 1950, afirma que, diante da complexidade da composição e de
interesses dos trabalhadores rurais, a proposta de reforma agrária sempre era mais receptiva aos arrendatários de
terra: “Com os arrendatários podia-se entrar direto na discussão sobre reforma agrária. Eles aceitavam porque
estavam arrendando três alqueires de terra do fazendeiro pelo olho da cara. Nesses três alqueires eles
trabalhavam, se molhavam de suor, passavam fome para colher um arrozinho, feijão ou milho e com isso pagar o
arrendamento da terra do fazendeiro e sair com a mão abanando. Se alguém falasse em reforma agrária, eles
seriam capazes de sair correndo e tomar a terra do fazendeiro violentamente. Eles aceitavam a idéia como
também aceitavam o pequeno sitiante, o pequeno proprietário.” WELCH, C.; GERALDO, S. Lutas camponesas
no interior paulista: memórias de Irineu Luís de Moraes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 153.
34
Muitos trabalhadores se deslocavam para a região, porém não conseguiam o acesso a terra seja por meio da
compra parcelada, motivado pela publicidade em torno da facilidade da aquisição elaborada por particulares ou
“empresas colonizadoras”. Sobre essas relações de trabalho no Noroeste paulista, o historiador Natal Biscaro
Neto entrevista um administrador de fazenda, Ozório Marçal Guimarães, em que afirma que nas fazendas os
“ranchos eram abrigos para aqueles que não tiveram acesso a terra, que se obrigavam ao trabalho de diaristas no
campo, [...] se tornaram agregados no campo, quando se mudavam de um local para outro, [ou] eram expulsos da
propriedade, [...] revela Ozório Marçal Guimarães: ‘Quando não dava certo da pessoa ficar na propriedade, eu
pegava somente as telhas do rancho e o arame que por acaso a pessoa tivesse, pois a madeira usada já era da
fazenda. Ninguém podia alegar ignorância, pois tudo estava escrito em contratos [...]’. Pelo contrato de
agregação, o trabalhador rural se submetia aos fazendeiros ou sitiantes com os quais mantinha relação de
trabalho e, em primeiro plano, reconhecia não ter direitos sobre a terra, reconhecendo-a como de seu patrão.
‘Eles chegavam e eu os garantia no comércio, fazendo suas compras por ano ou semestralmente. Eu mandava
uma ordem por escrito e os empregados ou agregados iam fazer as compras, mas eu é quem pagava, depois
acertava com os agregados, recebendo em arroz ou milho. Os bons arrendatários, eu segurava na fazenda
reformando seus contratos. Os ruins eu botava para fora e, quando não queriam sair, eu os avisava do perigo de
‘amarelarem os pés’ ou ‘amanhecerem com a boca cheia de formiga’”. BISCARO NETO, N. Memória e cultura
na história da Frente Pioneira (Extremo Noroeste paulista – décadas de 40 e 50). 1993. 180 fls. Dissertação
(Mestrado em História Social) – Programa de Estudos Pós-Graduados em História, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo. p. 54-55.
35
Prontuário 69.800 – Oswaldo Felisberto, DEOPS/SP, DAESP.
36
Parece que diante da impossibilidade legal da constituição de “sindicatos de trabalhadores do campo” a
alternativa encontrada foi a organização de “ligas camponesas”. O Prontuário do “Partido Comunista Brasileiro”
organizado pelo DOPS, no Estado de São Paulo, foi documentado com os “Estatutos da Liga Camponesa
14
A política de organização dos trabalhadores rurais em “ligas camponeses” ou em
“associações de camponeses” constituía a forma de organização definida pelo PCB paulista a
partir de 194637. A historiografia sobre as “ligas camponesas”38 tem privilegiado essas
práticas de organização e mobilização dos trabalhadores rurais apenas no Nordeste brasileiro,
nas décadas de 1950-60, talvez pela visibilidade política que aqueles movimentos tenham
conquistado. A obra de Edgar Carone parece fundar essa perspectiva historiográfica:
Outra problemática, que surge tardiamente no processo brasileiro, é a que resulta da maior
consciência de classe, e que se traduz também no conflito pela posse da terra: é a dos que
trabalham contra os que a possuem. Os primeiros movimentos são os das Ligas Camponesas
no Nordeste, que surgem na década de 195039.
O prontuário de Oswaldo Felisberto no acervo do DEOPS está documentado com uma
circular do “Partido Comunista de Fernandópolis”, cuja autoria é atribuída a ele, e
identificado como “Secretário de Divulgação e Propaganda do Comitê Municipal de
Fernandópolis”, documento de circulação interna, datado de 9 de março de 1946, direcionado
às células e comitês distritais da cidade com o objetivo de organização do partido na região:
(Projeto de Estatuto)”. SECRETARIA SINDICAL, 23 de janeiro de 1946. Prontuário 2431, 14.° volume –
PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO. DEOPS/SP, DAESP.
37
Sobre a legislação sindical e a orientação do PCB para as lutas no campo Maria Isabel Lemes Faleiros afirma
que “Apesar da Consolidação das Leis Trabalhistas promulgada dois anos antes, de acordo com o Decreto 5452,
beneficiá-los. A legislação sindical complementar [Decreto-Lei n. 7038 de 10 de novembro de 1944 e Portaria
n. 44 de 19 de março de 1945, conforme informa a nota da própria autora] permitia aos proprietários e
arrendatários se organizarem separadamente dos trabalhadores com ‘subordinação remunerada’, enquanto os
pequenos produtores – parceiros, arrendatários e pequenos proprietários – eram contemplados com uma
regulamentação especial de 1945 que os excluía dos sindicatos dos trabalhadores rurais colocando-os sob
associações de caráter técnico-econômico.” FALEIROS, M. I. L. Percursos e percalços do PCB no campo
(1922-1964). 1989. 243 fls. Dissertação (Doutorado em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, 1989. p. 112-113.
38
Cf. RANGEL, M. S. Medo da morte e esperança de vida: uma história das ligas camponesas. 2000. 372 fls.
Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas, Campinas. Referências esparsas sobre as experiências de organização das “ligas camponesas” no
interior do Estado de São Paulo, Cf. FALEIROS, M. I. L. Percursos e percalços do PCB no campo (1922-1964).
1989. 243 fls. Tese (Doutorado em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de
São Paulo – USP, São Paulo. MEDEIROS, L. S. Lavradores, trabalhadores agrícolas, camponeses: os
comunistas e a constituição de classes no campo. 1995. 295fls. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) –
Programa de Doutorado em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, Campinas.
Sobre as ligas camponesas no Brasil, Cf. AUED, B. W. A vitória dos vencidos: Partido Comunista Brasileiro –
PCB – e ligas camponesas, 1955-64. Florianópolis: UFSC, 1986. AZEVEDO, F. A. As ligas camponesas. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1982. BASTOS, E. R. As ligas camponesas. Petrópolis: Vozes, 1984. CARVALHO, R.
Carro doce: o romance das ligas camponesas. Rio de Janeiro: Anima, 1986. MORAIS, C. S. História das ligas
camponesas do Brasil. In: STÉDILE, J. P. (Org.). História e natureza das ligas camponesas. São Paulo:
Expressão Popular, 2002.
39
CARONE, E. A Quarta República (1945-1964): documentos. São Paulo: Difel, 1980. p. 300.
15
“uma ajuda no sentido de tornar uniforme a sua estrutura orgânica e ao mesmo tempo armar
todos os companheiros da direção e das bases”40.
O mais interessante foi Felisberto protocolar uma petição em 11 de janeiro de 1945
para o cargo de escrivão de polícia interino na Delegacia de Polícia de Fernandópolis. Por
alguma razão, o delegado ignora a petição. Esta foi encaminhada e Felisberto nomeado para o
cargo em 10 de maio de 1946, porém não lotado. Esse fato parece não ter agradado a muitos
na cidade, pois Felisberto foi “denunciado” junto a Secretaria da Segurança Pública como
comunista41. Essa “denúncia” provocou o deslocamento do serviço secreto do DOPS para a
cidade e um debate interno sobre as responsabilidades e sobre a nomeação para o cargo de
escrivão, até descobrirem que esta era devida a uma petição própria de Felisberto, fato que
encabulou e indignou a muitos, incorrendo na exoneração de Felisberto42.
O fato intrigante para o historiador é a petição de Felisberto para o cargo de escrivão
de polícia. Naquele momento, Felisberto trabalhava em um escritório de contabilidade e
poderia estar profissionalmente descontente. Tendo conhecimento de que havia vagas para o
cargo de escrivão de polícia na Delegacia de Polícia de Fernandópolis, não titubeou em
protocolar a petição. Todavia, pode ter pesado em sua decisão de formular uma petição o fato
de que a Delegacia de Polícia de Fernandópolis constituía-se, factual e simbolicamente, em
um local de repressão aos movimentos sociais e ao PCB local, e o seu delegado um agente
nesse processo. Infiltrar-se nos meandros do poder local e trabalhar na contra-informação
poderia ter configurado uma estratégia para os trabalhadores na cidade, tarefa assumida por
Oswaldo Felisberto.
40
PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL. Secretário Municipal de Fernandópolis. Circular n. 1. Prontuário
69.800 – Oswaldo Felisberto. DEOPS/SP, DAESP.
41
Ofício de denúncia “Exmo. Sr. Dr. Secretário da Segurança Pública. – São Paulo – Tendo sido nomeado
recentemente OSWALDO FELISBERTO, residente em Fernandópolis, para o cargo de Escrivão de Polícia, é a
presente levar ao conhecimento de V. Excia., que esse indivíduo é um comunista agitador, elemento
verdadeiramente sem qualidade, caloteiro, sem dignidade, sem profissão, enfim um verdadeiro lacaio que aqui
vive extorquindo dinheiro dos incautos em nome do Partido Comunista. V. Excia., poderá dirigir ao Dr.
Delegado de Polícia de Fernandópolis, pedindo informações que as obterá com relação a informação supra. –
Despacho: - De Ordem do Sr. Secretario, ao Sr. Delegado Aux. Da 5ª. Divisão, para informar, S. Paulo, 8 de
junho de 1946. a) Augusto Gonzaga.” Prontuário 69.800 – Oswaldo Felisberto. DEOPS/SP, DAESP.
42
Após diversos ofícios e radiotelegramas, o Chefe da Diretoria do Pessoal informa: “SECRETARIA DA
SEGURANÇA PUBLICA:- Diretoria do Pessoal - 1ª. Secção – Informação n. 2411 – Interessado: Esta
Secretaria – Assunto: Nomeação do Sr. Oswaldo Felisberto, para o cargo provisório da Classe “E” da carreira de
escrivão de Polícia. [...] Assim, julgamos, data vênia que não cabe responsabilidade a esta secção pela nomeação
supra que alias já foi tornada sem efeito por decreto publicado hontem (sic), dia 1 de agosto. Entretanto,
alvitramos data vênia, para que não se repitam casos idênticos, que antes novas nomeações [de escrivães] e
carcereiros, se diligencie a pesquisa de antecedentes políticos sociais, s. m. j. É o que nos cabe informar.
Diretoria de Pessoal - 1ª. Secção em 2 de agosto de 1946. O Chefe de Secção (a) Faria Cardoso Diretor do
Pessoal.” Prontuário 69.800 – Oswaldo Felisberto. DEOPS/SP, DAESP.
16
O que quero com essa discussão é chamar a atenção para as circunstâncias vividas e
para a trajetória de Felisberto, assim como para a construção da memória familiar sobre esse
passado. A desconstrução da imagem de Oswaldo Felisberto como militante comunista parece
situar a narrativa de Yara Felisberto em um projeto familiar de construção de uma memória
pública da família Felisberto, em que desqualifica o passado de militância política e posiciona
a família no presente a partir de um lugar político “neutro”.
A resposta à primeira pergunta elaborada na entrevista situa o lugar social do qual
partiu Yara Felisberto para a construção dos sentidos do passado vivido pela sua família.
Certamente, o trabalho de composição dessa memória foi tema de discussão familiar:
Yara Maria Felisberto: É na verdade são..., às vezes coisas que a gente ouviu contar porque
nessa época eu num..., não era nascida. Eu nasci em cinquenta. (risos) Então eu não me lembro
de nada do que aconteceu, naquela época, mais assim de coisas que a gente ouviu falar da
época, né? E mais das consequências desse período, porque na verdade ele num..., era
simpatizante do Partido Comunista e por ser simpatizante ele sofreu as consequências [...]43.
É provável que as “consequências” vividas marcaram as experiências da família
Felisberto. Sentindo profundamente, Yara narrou em sua entrevista a morte de seu avô
paterno:
Yara Maria Felisberto: Muitos foram discriminados aqui. Aqui em Fernandópolis foram, né!?
Eu já me lembro de outra fase, da fase de sessenta e...
Pesquisador: Sessenta e quatro?
Yara Maria Felisberto: Sessenta e dois..., sessenta e quatro..., sessenta e cinco, sessenta e
quatro quando meu avô faleceu [segundo Idelma Felisberto o falecimento ocorreu em 1965].
E... me lembro até que naquele tempo era costume leva o corpo pra ser benzido na Igreja. E a
minha mãe, eu me lembro assim, ela gostava muito do sogro, e quando foi... ela foi pedir pra
levar o corpo pra passar na Igreja o padre da época não autorizou, não permitiu! Porque ele era
comunista, meu avô. Ele dizia: “nós não deixamos que se entre comunistas dentro da Igreja.”
“Mas como é comunista? Ele é uma pessoa, um ser humano!” Ele falou: “Não é mais
permitido!” E a minha mãe ficou muito magoada com a Igreja na época, porque ela era
católica. Ela ia até a igreja, tudo. E as irmãzinhas aqui do lado frequentava a nossa casa, então
era um negócio meio... meio esquisito. E ela ficou muito magoada com a Igreja naquela época,
por esse motivo que não quiseram deixar o corpo dele entrar na igreja antes de ir para o
cemitério. Então têm umas coisas assim, uns fatos assim que marcaram. E depois no futuro o
fato de meus irmãos terem de sair daqui porque não arrumavam emprego de jeito nenhum,
passavam em concursos de banco tudo, mas não eram chamados pra vaga. Então eles não
conseguiam emprego e muito cedo tivemos de sair daqui, nós três primeiros depois a minha
irmã mais nova e por último meu pai e minha mãe. Fomos pra Santo André!44
43
Yara Maria Felisberto. Fernandópolis/SP. 12/08/2006. Acervo do pesquisador. (Grifos nosso).
Idem. Na lista elaborada pelo Serviço Secreto do DOPS em 19 de fevereiro de 1948 o nome de Teófilo Viana
Felisberto aparece identificado como comunista. Prontuário 69.800 – Oswaldo Felisberto. DEOPS/SP, DAESP.
44
17
Para Yara Felisberto, todos esses fatos são evidências da perseguição política à sua
família. Como compreender a reelaboração política de Oswaldo Felisberto e de sua família
diante de suas vivências? Sua narrativa de 1996 sobre a história do movimento de 1949 é
significativa para a compreensão desse processo:
Oswaldo Felisberto: [...] Mas, enfim, o processo político desenvolveu pro outro lado agora,
que é melhor agora do que naquele tempo. Não existe mais comunismo, nem na União
Soviética. Não há mais problema de comunismo. Existe esse problema aí de sem terra, que
esses tal de sem-terra, que é um problema social, que eles terão que futuramente resolve isso.
Mas é muita malandragem também no meio, viu..., tem muito nego aí que nunca foi da terra
que tá metido aí no meio disso aí, viu. Isso aí não é assim. Então, o governo tá acertando pra
vê se chega lá. [...]. De forma que nu, num, hoje não existe mais esse problema... Fazê esse
levantamento? Não traz, não traz consequência nenhuma, não traz influência pra
Fernandópolis. Pelo contrário, traz influência péssima, não é?! Não traz uma influência boa.
Mas, não surtiu efeito nenhum. Nem por Partido Comunista nem pra eles. O Partido
Comunista num, só queria agitação, só agitação, só fazê agitação. Foi uma etapa, uma folha
negra45.
Alessandro Portelli chama a atenção para o caráter dialógico da entrevista e para os
sentidos das questões que os entrevistados sempre formulam ao pesquisador durante a
entrevista, invertendo na relação46. A interpretação da narrativa de Felisberto pode ser a de
que aquele movimento de 1949 não trouxe mudança nenhuma na situação vivida pelos
trabalhadores rurais, tanto é que ainda hoje estes lutam pela terra. O problema agrário e
fundiário no Brasil foi reduzido a um “problema social” que o governo “futuramente” deverá
revolver. Reproduzindo imagens disseminadas no senso comum, de que na luta pela reforma
agrária hoje, muitos dos envolvidos não são trabalhadores rurais sem terra, posicionou-se
favoravelmente à política do governo Fernando Henrique Cardoso para com os movimentos
sociais de luta pela terra. O termo “levantamento” assumiu para Felisberto um sentido duplo
e ambíguo. Parece que Felisberto não está contente com o “levantamento” histórico desse
passado, pois para ele o “levantamento” do “levante comunista” não traz no presente
nenhuma “influência [positiva] para Fernandópolis”. A disputa em torno das memórias sobre
o movimento dos trabalhadores em 1949 levou Felisberto a se posicionar em 1996
contrariamente às suas próprias vivências e posições políticas assumidas no final da década de
1940 e início da década seguinte. É provável que a sua trajetória de vida corrobore as posições
assumidas durante a década de 1990. O sentido atribuído ao passado expõe posições políticas
45
Oswaldo Felisberto. Santo André/SP, entrevista realizada por Áurea Maria de Azevedo Sugahara em 1996,
sem data precisa.
46
Cf. PORTELII, A. O que faz a história oral diferente. Projeto História, São Paulo, EDUC, n. 14, p. 25-39,
fev.1997.
18
e a defesa de projetos no presente. O presente vivido pelos sujeitos interfere na construção das
versões sobre o movimento dos trabalhadores de junho de 1949. As disputas pela memória em
torno dos sentidos atribuídos ao passado revelam dimensões das contradições vividas, das
relações de poder e da luta de classes no presente e no passado.
A disputa em torno das memórias do levante comunista de 1949 torna-se cada vez
mais evidente com a narrativa oral de Maria Doralice França Angeluci, irmã de Severiano
Moreira França, comerciante e conhecido como militante comunista na cidade, que após o
levante sofreu com a repressão policial e política e sentiu-se pressionado a mudar da cidade.
Maria Doralice apresentou-se desde o início da pesquisa, ou do momento da concessão de sua
entrevista, como portadora de uma versão significava e expressiva para a compreensão do
processo histórico e social de construção de memórias sobre o movimento de trabalhadores de
junho de 1949 em Fernandópolis. Inicio a entrevista com o questionamento sobre as
memórias do movimento de trabalhadores em 1949. Aliás, essa pergunta a motivou a falar por
mais de 40 minutos, tempo em que eu apenas sinalizava “sim”, “não” ou “hum!”. Em diversos
momentos fui indagado com “não é verdade?”. Com relação à pergunta narrou o seguinte:
Maria Doralice: Eles foram muito perseguido. Eles abriram o partido. O partido, quando foi o
levante comunista, teve o levante comunista, foi logo daí dois anos; acho um ano, dois anos,
mais ou menos, fecharam, acho que o presidente Getúlio Vargas fechô, e aí eles foram
perseguidos; todos que eram fichados foi perseguido. Era chamado na delegacia! Punha
soldado! Soldado não saia da porta procurando aondé que tinha reunião, aondé que não tinha.
Eles foram muito perseguido... por causa que ele falava muito, eles falavam muito pelos
trabalhadores... pelas pessoas que trabalhava, que ganhava pouco... tudo difícil. Que eles
queria muito que viesse, ah... os latifundiários que é os...os que hoje nós sabemos que, que é
os fazendeiros, os coronéis, que caíssem os coronel, que não fizesse tanto o povo de escravo,
porque fazia de escravo!?
Ganhava uma miséria, mil e quinhentos, né! Naquele tempo, era o mil réis! E trabalhava
demais, eles queria, eles era contra, a favor do povo, do povo pobre. Eles queria que separasse
as terras. Que tivesse terra, que tivesse um... uma... uma nação mais justa. Eles trabalha pra
isso até hoje, eles trabalha por conta disso. Uma pessoa mais justa. Onde se viu os zoto povo
ganha tanto! E... uns ganha tão pouco!? Que a riqueza não é bem repartida!?
Eles tem isso na mente até hoje eles... se o senhor tiver a oportunidade de conversar com um
comunista, com uma pessoa que é comunista, eles fala isso!?
Que a pessoa não, num, num vê, que a pessoa num, num vê assim com respeito e os
comunistas vê, né! Eles acha que os pobres é muito sacrificado! Que a, o capital é dividido em
poucas pessoas, só! Capitalistas, né! E os pobres só trabalha, só serve pá trabalhá pra eles!?47 .
A narrativa de Maria Doralice parece pautar-se sempre pela afirmação da sua
relevância enquanto narradora. Talvez porque esteja se preservando do esquecimento ao
narrar, cravando uma memória pública sobre sua trajetória de vida e, assim, construindo a
19
“identidade do narrador” e resistindo à “ameaça do tempo”48. Maria Doralice escolheu um
determinado “caminho” para organizar e estruturar a história que iria narrar e delimitar o
enredo do qual partiria nas entrevistas. A entrevista foi realizada quando Maria Doralice
estava prestes a completar 76 anos de vida. Nesse momento de sua vida se encontrava viúva
de Francisco Angeluci, que, juntamente com seus irmãos, foram proprietários de cinema em
Fernandópolis e em diversas cidades da região.
O enredo presente em sua narrativa está marcado na relação construída pelas
referências ao irmão, Severiano Moreira França, a defesa de “princípios comunistas” – “[...]
apesar de que nunca aderi o movimento deles, por causa do marido, né! [...] mais eu achava,
eu achava legal. Eu fui sempre simpatizante do Partido Comunista!” –, nas referências aos
diálogos com os seus filhos (certamente, o que fundamentou diversos trechos de sua
narrativa), e, por fim, a sua crença no espiritismo. É significativo quando Maria Doralice me
questiona se eu sei que a Igreja Católica e os padres são contra os comunistas. Maria Doralice
expressa a todo instante a sua subjetividade ao interpretar e narrar a versão para aqueles
acontecimentos. Assim, constrói outros fatos nesse processo de composição de sua narrativa,
fundamentado em uma determinada estrutura de sentimentos.
No período em que ocorreu o movimento em 1949, Maria Doralice já estava casada e
o seu marido não era politicamente próximo ao cunhado. A entrevistada afirma, por essa
razão, que se sentiu tolhida em relação a uma participação política efetiva naquele momento,
mas enfatiza que quando o marido não estava na cidade, ia com a cunhada, esposa de
Severiano, em algumas reuniões.
A versão construída parte de termos com sentidos históricos e políticos determinados.
É o caso do uso das categorias históricas “latifúndio” e “latifundiários”, difundidas no Brasil,
principalmente, a partir das décadas de 1950-60 com a disputa política em torno da questão
agrária49, particularmente por intelectuais próximos ao PCB e pelos periódicos pecebistas,
para descrever os proprietários de terra – os “fazendeiros”, os “coronéis” – como aqueles que
exploraram e expropriaram os trabalhadores rurais – os camponeses50. O termo “fazendeiro”
47
Maria Doralice de França Angeluci. Fernandópolis/SP. 4/5/2006, 10/05/2006. Acervo do pesquisador.
Realizei duas entrevistas com Maria Doralice.
48
PORTELLI, A. “O momento da minha vida”: funções do tempo na história oral. In: FENELON, D. R. et al.
(Orgs.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Editora Olho d’Água, 2004. p. 296.
49
SANTOS, R. (org.) Questão agrária e política: autores pecebistas. Rio de Janeiro: EDUR, 1996.
50
WELCH, C. A. A semente foi plantada: as raízes paulistas do movimento sindical camponês no Brasil, 19241964. São Paulo: Expressão Popular, 2010. FERNANDES, B. M.; MEDEIROS, L. S.; PAULILO, M. I. (orgs.)
Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas. v. I: o campesinato como sujeito político
nas décadas de 1950 a 1989. São Paulo: UNESP; Brasília, DF: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento
Rural, 2009.
20
era usual na região de Fernandópolis ou mesmo no Estado de São Paulo e o termo “coronel”
utilizado no Nordeste para nomear os mesmos proprietários de terra e as consequentes
relações de poder e dominação. Nesse momento, em sua narrativa, Maria Doralice parece
revelar que não compreendia muito bem o significado de algumas palavras, como é o caso de
“latifundiários”: “os que hoje nós sabemos que, que é”. Os conceitos “comunista” e
“comunismo”, que Maria Doralice insistentemente se esforça por definir (até para legitimar
sua narrativa) são pensados como aqueles “que falavam muito pelos trabalhadores” e que por
isso foram “perseguidos”. Ainda, conceitos como “capital” e “capitalismo” situam as
circunstâncias das desigualdades sociais e das relações sociais de produção: “o capital é
dividido em poucas pessoas, só! Capitalistas! E os pobres só trabalha, só serve pá trabalhá pra
eles”.
O uso desse repertório de categorias informa a narrativa de Maria Doralice, bem como
o modo como interpreta esse processo histórico. O ato interpretativo procura determinar os
principais problemas vividos pelos trabalhadores e os projetos em disputa naquele período. A
versão construída a partir desse ato interpretativo para o movimento dos trabalhadores de
junho de 1949 adquiriu forma e significado: “foi o levante comunista, teve o levante
comunista”. A “questão fundiária” e a “luta pela terra” parecem produzir o significado
desejado na utilização dos referidos termos: “Eles queria que separasse as terras. Que tivesse
terra, que tivesse um... uma... uma nação mais justa”.
A entrevista de Maria Doralice foi motivada por suas memórias sobre o irmão,
Severiano Moreira França. Minha preocupação inicial era reconstituir os rastros daqueles que
estiveram de alguma forma relacionada ao movimento dos trabalhadores de 1949. O
parentesco de Maria Doralice com Severiano justifica a entrevista na medida em que eu a
considerava sujeito de experiências compartilhadas socialmente. Todavia, a subjetividade
presente na construção de sua narrativa, o ponto de vista circunscrito, o diálogo estabelecido e
exigido por Maria Doralice durante a entrevista (sempre me questionando a respeito dos
assuntos tratados por ela), enfim, os procedimentos narrativos, dão forma e substância à
entrevista. A narrativa de Maria Doralice tornando, portanto, significativa a experiência – e
assim, uma entrevista representativa. Os contornos narrativos utilizados na composição da
perspectiva que adquiriu seu ato interpretativo estão relacionados às suas memórias sobre
Severiano Moreira França. Em um momento da entrevista – e eu ainda não havia ainda
mencionado seu irmão – Maria Doralice narrou:
21
Maria Doralice: Porque eu entendo de.... de assim que quando eu comecei com quatorze que
eu ouvia meu irmão falá é isso o Partido Comunista [...]. E a gente percebendo assim, eles qué
um movimento justo, uma pessoa justa, que a pessoa tenha seu direito, porque a pessoa tenha
seu direito, que hoje o povo num cuida direito, porque ninguém tem direito de nada. Só quem
paga, quem... quem tá com o dinheiro aí... é que tem o direito... E eles é... é a favor dos
trabalhador, assim, assíduo, sabe? Os trabalhador tinha que tá em primeiro lugar, o povo tinha
que vê a classe mais pobre primeiro. Porque pu cê vê, até hoje o você vê um rico, nossa! Um
rico, um fulano rico morreu... o pobre trabalhador morre lá na porta do hospital num tem, num
tem nem um médico pá tomá conta, nem nada?!
Vagner: É!
Maria Doralice: E o coitado deixa a família aí e acabô a história. Depois a viúva fica com um
salário mínimo, com os filhos morrendo de fome. Salário mínimo, o que dá pra comprá? Não
dá! E o Partido Comunista, tudo mundo ganha igual...
Vagner: É!
Maria Doralice: Não é verdade? (risos).
Vagner: É... (Afirmei com a cabeça que sim.)
Maria Doralice: E eu penso isso, que... A gente que... tava por fora, e eu era menina muito
nova assim, mas a gente via as conversa deles [...]51.
Para Maria Doralice não “acabou a história”. A construção da narrativa tem o presente
como referência e adquire contornos significativos à medida que o relato histórico é descrito
movimentando-se entre as temporalidades presente e passado, “o movimento de ir e vir, de
lançadeira”52. Com sua narrativa dissidente, resiste e se afirma como sujeito histórico e se
insere no tempo, não se referindo a apenas ela, mas também a seu irmão. O livro
Fernandópolis – nossa história, nossa gente53 foi interpretado por muitos na cidade como
uma obra “parcial”, que privilegiou a “memória de alguns” em detrimento de outros, que
“ficaram de fora” ou que foram tratados parcialmente. A disputa em torno da memória do
passado da cidade parece marcar as narrativas de muitos, como as narrativas de Maria
Doralice, Luiza Silva dos Santos e Adhair Silva (esposa e filho, respectivamente, de Antônio
Alves dos Santos), assim como Anna Zendron Figueiredo e Zenith Zendron Figueiredo
(esposa e filha, respectivamente, de José Antônio Figueiredo, conhecido como Zé Cearense),
dentre outras narrativas.
Desse modo, Maria Doralice constrói sentidos para as lutas dos movimentos sociais
daquela época e para os movimentos sociais dos dias de hoje – como relaciona presente e
passado a todo instante em sua narrativa, ao circunstanciar as lutas do passado às lutas do
presente, mediado pelas noções de “direito” e “justiça”. Ao historiar seu ato interpretativo, ou
talvez muito mais a memória de um ato interpretativo, menciona o irmão e a lembrança de o
quê ouvia-o falar, ou das conversas “deles”, os comunistas.
51
Maria Doralice de França Angeluci. Fernandópolis/SP. 4/5/2006, 10/05/2006. Acervo do pesquisador.
PORTELLI, A. “O momento da minha vida”..., p. 302.
53
PESSOTA, A. J. et al. Fernandópolis...
52
22
Diante da referência a Severiano Moreira França, perguntei a Maria Doralice quem
havia sido ele (essa foi a segunda pergunta que fiz na entrevista, depois de mais de 40 minutos
de duração de sua fala, motivada com a pergunta inicial), ao que ela responde:
Maria Doralice: Ele tinha uma loja de secos e molhados e ninguém vinha na loja dele. Mas
ficava dias e dias a loja aberta esperando e ninguém ia comprar. Tinha medo, eles tinham
medo porque a polícia tava sempre abaixando ali, né! E sabe, o povo antigamente tinha mais
medo de polícia que... (risos) ... é igual o Partido Comunista. O Partido Comunista e junto a
polícia baixando (risos) é onde eles tinha medo... O senhor sabe, tudo isso é a ignorância. O
senhor sabe que é ignorância do povo?!
Vagner: Sim.
Maria Doralice: O povo é muito ignorante. Eles falam do que não sabe, do que não... num vê,
não estudam, eles não tem estudo... O quê que o senhor acha? Falava que matava criança, que
comia criança, que quê o senhor acha? Não ia ter medo? Ia tê medo! Até ele morrê ele foi
comunista e comunista depois que é comunista não volta mais... (risos) Ah, o povo falava
assim, quando conversava, assim, com a gente: “Nossa, o você é irmã do Severiano? Nossa ele
era comunista!” Ficava assim tudo espantado assim, como que era um bicho, assim... Foi
muito perseguido viu seu... O Partido Comunista. O senhor pode por aí que é verdade... Eu
que sou testemunha, que o meu irmão foi preso não sei quantas vezes!54
Alessandro Portelli chama a atenção para o caráter dialógico da entrevista e para os
sentidos das questões que os entrevistados sempre formulam ao pesquisador durante a
entrevista, invertendo a relação55. Maria Doralice parece querer enfatizar com esse
procedimento narrativo a veracidade factual para o narrado: “O senhor pode por aí que é
verdade”. Ou, como já mencionei, reincide a questão formulada diversas vezes ao pesquisador
durante a entrevista: “não é verdade?”. A entrevistada utiliza a “autoridade” do pesquisador
ou do professor de história para autorizar e autenticar sua fala. Mas qual o significado da
“verdade”? Provavelmente, parte dessa verdade esteja relacionada ao que foi mencionado
antes: intenção de “preservar o narrador [e o irmão] do esquecimento” 56, mas seria reduzir a
pouco, minimizar sua narrativa a apenas esse fato – embora isso já seja em si significativo.
A trajetória de vida de Severiano Moreira França, mediada pela narrativa de Maria
Doralice e pelos documentos do prontuário do DOPS de Severiano, circunstância a “verdade”
insistentemente narrada por Maria Doralice. Pelo que consta, Severiano sofreu muito com a
repressão policial após o movimento de ocupação e concentração de trabalhadores na cidade,
ocorrido em 1948 – ou no levante de 1949. A sua casa de Secos e Molhados foi invadida
constantemente pela polícia, além de ser permanentemente vigiada. Por conta disso, os
54
Maria Doralice de França Angeluci. Fernandópolis/SP. 4/5/2006, 10/05/2006. Acervo do pesquisador. (Grifos
nosso).
55
PORTELLI, A. Forma e significado na história oral. A pesquisa como um experimento em igualdade. Projeto
História, São Paulo, Educ, n. 14, p. 25-39, fev.1997.
23
fregueses desapareceram e Severiano já não estava mais conseguindo sustentar sua família,
pressionado a vender seu estabelecimento comercial, mudou-se para São Paulo. Lá acabou
sendo preso e fichado diversas vezes pelo DOPS.
O primeiro documento que consta do Prontuário de Severiano no DOPS é uma carta
datada de 20 de outubro de 1953 (a ordenação dos documentos nos prontuários do DOPS
segue a sequência cronológica do arquivamento, assim, o primeiro documento é o último a ser
arquivado) e assinada pelo Delegado Adjunto Hugo Ribeiro da Silva, em que se afirma:
Como se vê, não houve arbitrariedade, por parte de qualquer órgão deste Departamento, contra
os dois “feirantes”, mas, a execução de uma medida de rotina, de polícia preventiva, no setor
de ordem política e social.
Não se justifica, pois, o protesto enviado ao Sr. Presidente da República, que, aliás, é assinado
por João Batista de Oliveira e outros, sendo aquele também fichado como elemento
comunista, neste Departamento.
Certamente que, encontrando-se material comunista em poder de um indivíduo, nada mais
justo que esse indivíduo esclarecer a Polícia, a origem de coisa apreendida.57
Maria Doralice informa que Severiano, com o dinheiro da venda da casa de Secos e
Molhados, comprou um caminhão e começou a fazer feira em São Paulo. Assim, em 1953,
Severiano já estava residindo em São Paulo.
Pelo que se pode concluir a partir do documento, Severiano, um dos feirantes, havia
sido preso e torturado. Na avaliação do delegado, “nada mais justo” para “a execução de uma
medida de rotina” e o esclarecimento da “origem de coisa apreendida” – o “material
comunista”. Parece ter criado algum constrangimento o protesto enviado ao Presidente da
República, pois em relação a isso o delegado tenta justificar-se ao seu superior na carta.
Esse é o último documento do prontuário de Severiano. O primeiro data de 1946 e foi
produzido pelo Serviço Secreto do DOPS, em diligência, na região de Fernandópolis, para
averiguar e determinar quais eram os comunistas da cidade. Nesse documento, Severiano é
apresentando como “Chefe Agitador”. Entre essas duas datas, há outros documentos que
informa que Severiano foi preso por portar e distribuir “material comunista”. Há no seu
prontuário uma foto, procedimento parecia não se constituir uma rotina do DOPS, pois nos
prontuários cotejados para essa pesquisa, poucos prontuários foram apresentados e
identificados com fotos58.
56
PORTELLI, A. “O momento da minha vida”..., p. 296.
PRONTUÁRIO 72.525 – Severiano Moreira França. DEOPS/SP, SAESP.
58
Idem.
57
24
Severiano Moreira França foi preso diversas vezes – ou melhor, “não sei quantas
vezes”. A expressão indica um sem números de vezes de difícil quantificação para Maria
Doralice. “Não sei quantas vezes” faz a mensuração perder-se nas inúmeras vezes que
Severiano, Zé Cearense, Fernando Jacob e inúmeros outros trabalhadores foram presos nas
Delegacias de Polícia de Fernandópolis, Votuporanga, São José do Rio Preto, Lins e São
Paulo, relacionado aos movimentos sociais de trabalhadores que ocorriam na região de
Fernandópolis.
A trajetória de vida do irmão marca as memórias de Maria Doralice. A repressão
policial e a perseguição política tornaram-se problemas constantemente tratados em sua
narrativa, seja para indicá-las como algo sofrido pelo próprio irmão ou, de forma genérica, a
perseguição a “eles” – aos trabalhadores e ao Partido Comunista:
Maria Doralice: A gente fica pensando, fala mais... ele fez tudo aquela coisa pôs coitado dos
comunistas prendia, mais prendia mesmo, seu Vagner, prendia mesmo! Num tinha, baixava
assim onde tinha três, quatro, dez comunistas, prendia!
Vagner: Isso aconteceu aqui em Fernandópolis também?
Maria Doralice: Se num corresse prendia, jogava os livros dentro do banheiro, meu irmão
jogou quantas vezes os livros dentro do, da privada aquelas privada de fundo de quintal, o
senhor lembra?
Vagner: Sei!
Maria Doralice: Jogava os livros, num podia nem pegá livro! Se pegasse os livros que eles lia,
ah... era posto, ia preso!
Vagner: Nossa!
Maria Doralice: Apanhava! O finado Zé Cearense levou uma surra, coitado, quando pegaro
ele, depois, depois ele foi solto porque ele ficou ruim da, da vesícula. Acho que deve... batê, tê
batido nele, coitado, até que estourou a vesícula, levaro ele pá Rio Preto e ele, depois ele saiu,
ele largô, largô não! Ele num largô do Partido Comunista, ele ainda foi um tempo na casa do
meu irmão escondido lá. Mas quando ele voltô ele já tava muito cansado de idade, sabe? Mais
ele sofreu muito, foi muito perseguido o Zé Cearense, que pegaro. E porque era fichado e
aqueles que era fichado era mais fácil de pegá. Meu irmão era fichado, Antônio Joaquim, o Zé
Cearense [...]59.
A partir da narrativa outras problemáticas emergem. O primeiro “ele” citado por Maria
Doralice faz referência a Getúlio Vargas, atribuindo-lhe a responsabilidade pela repressão e
tortura ao irmão. De certa forma, Maria Doralice está correta. Valeriano foi preso diversas
vezes durante o “governo Vargas”, entre 1951 e 1954. Todavia, em outros momentos de sua
narrativa, a entrevistada estabelece relação entre Getúlio Vargas e a cassação do registro do
PCB, com consequente repressão aos comunistas.
59
Maria Doralice de França Angeluci. Fernandópolis/SP. 4/5/2006, 10/05/2006. Acervo do pesquisador. (Grifos
nosso).
25
O trabalho da memória de Maria Doralice remete-me à experiência de pesquisa de
Alessandro Portelli60 ao problematizar as narrativas de trabalhadores comunistas do setor
naval de fundição de aço em Terni, cidade italiana, após a Segunda Guerra Mundial. Nesse
período, o Partido Comunista Italiano atrelou-se ao “compromisso histórico” e à “união
nacional”. A perspectiva política de “unidade nacional” rompeu com a possibilidade histórica
e revolucionária de tomada de poder e o socialismo não estava mais na agenda do Partido
Comunista Italiano. Para Portelli, esse fato marca as experiências de militantes comuns,
“tornou-se crescente a dificuldade para expressar ou mesmo entender os desejos e esperanças
frutados. O resultado foi o estabelecimento de um profundo conflito entre a racionalidade do
mundo concreto e o sonho de um outro mundo possível”61. O autor interpreta essas
“distorções” expressas nas narrativas como “mundos possíveis” ou como “possibilidade”,
significando a existência de outros projetos, tendências e propostas para o porvir histórico,
“sonhos e desejos há muito enterrados no inconsciente”. Diante de “histórias de expectativas
malogradas”, a “imaginação criativa” de trabalhadores “é a forma narrativa do sonho de uma
vida pessoal e de uma diferente história coletiva” – “os sonhos ucrônicos”62.
A relação entre Getúlio Vargas e a cassação do registro do PCB, que ocorre em 1947,
com consequente repressão aos comunistas, talvez possa ser compreendida com a distorção
presente na narrativa de Maria Doralice. A distorção não torna a narrativa de Maria Doralice
“mentirosa” e, por essa razão, não utilizável no trabalho de produção do conhecimento
histórico. A narrativa de Maria Doralice é uma evidência de que parte do mito e das imagens
construídas em torno de Getúlio Vargas não tem hoje sustentação social e têm sofrido
significativas críticas63. Para Maria Doralice, o processo histórico vivido foi construído e
apreendido numa perspectiva de continuidade temporal, pois as práticas de repressão e
perseguição política não foram interrompidas no período entre 1945 a 1950. Maria Doralice
sugere que as práticas de repressão e perseguição política vêm desde muito tempo,
mencionando o caso de Olga Benário e situando-o sob a mesma perspectiva.
Esse tempo parece não sofrer interrupção na história. Assim, Maria Doralice também
estabelece uma relação entre o movimento dos trabalhadores de 1949 com o MST e a luta
pela terra nos dias hodiernos:
60
PORTELLI, A. Sonhos ucrônicos. Memórias e possíveis mundos dos trabalhadores. Projeto História, São
Paulo, Educ, nº. 10, p. 41-58, dez/1993.
61
Idem, p. 46.
62
Idem, p. 43-50.
63
HOBSBAWM, E. J. ; RANGER, T. (orgs.). A invenção das tradições. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
26
Maria Doralice: Eles eram mais ou menos que nem os sem-terra. Quando eu vejo o
Movimento dos Sem-Terra, seu Vagner? Vamos falar realmente. Quando eu vejo a polícia
baixá no povo, nos trabalhador, desmanchá aqueles casebre deles, aquilo me dói por dentro,
até desligo a televisão. Porque eu sei que existe isso mesmo. Mas a gente vê assim de cara
limpa, assim, batê naquele povo, jogá tudo fora, desmanchá casa, aquilo pra mim é um ato de
vandalismo e o governo assinano em baixo, pelo amor de Deus, quê que é isso, né? Não dá
uma palavra, e dizê “Não, não! Não vai desmanchar”. O que tá lá faz casa então pra eles...
arruma as coisas pra eles, pra eles... não jogá na rua criança, né, muié, tudo as pessoas...
Vixi!
Esses povos comunistas é contra aquilo ali, que o senhor precisa de vê! A polícia em cima,
que nem ficá em cima de um ladrão, de um assassino. Porque que tem muito ladrão? Por causa
disso, só! É uma desigualdade total, é injustiça total! Por isso o senhor vê o que virou o nosso
lugar, primeiro não tinha é... porque o que comanda mais o... aqui a terra, o nosso Brasil, é os
latifundiários, é os... esses... é o tráfico de droga, o senhor sabe que é verdade. Que eu tô
falando verdade, que a gente tá vendo aí, que a gente não é bobo, não nasci ontem, tenho 76
anos.64
Além de se indignar e identificar a continuidade nas práticas de coerção e
criminalização dos movimentos sociais, a narrativa de Maria Doralice aponta para uma
tendência no presente: a continuidade das lutas dos trabalhadores pela terra. Ao desenvolver
essa operação intelectual estabelece a relação entre aquelas experiências do passado dos
movimentos sociais no campo e as atuais lutas pela reforma agrária. Maria Doralice associa
no presente a “desigualdade total” e a “injustiça total” aos “latifundiários” – ou à “antiga”
questão agrária. Todavia, aponta a complexidade para a resolução dos problemas vividos no
presente na medida em que sinaliza para o “tráfico de drogas” e para o entendimento dos
traficantes como aqueles que dividem o poder com os latifundiários no Brasil.
O processo histórico de ocultação de experiências sociais dos trabalhadores rurais, em
seus diversos movimentos de luta por transformações sociais, tem sido utilizado na
composição do saber histórico hegemônico. Talvez, o levante de trabalhadores de 1949, os
demais movimentos sociais contra relações de trabalho de exploração e de luta pela terra, que
ocorreram nas décadas de 1940 e 1950, sejam as “causas perdidas no passado poderiam ser
ganhas no presente”, parafraseando E. P. Thompson65, uma vez que no presente tem ocorrido
na região próxima a Fernandópolis diversas ocupações de terras, acampamentos e
assentamentos, organizados pelos trabalhadores rurais sem terra.
64
Maria Doralice de França Angeluci. Fernandópolis/SP. 4/5/2006, 10/05/2006. Acervo do pesquisador.
Cf. THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. A árvore da liberdade. Trad. Denise
Bottmann. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, v. 1, 1997.
65
27
Considerações finais
As tensões em torno das memórias e histórias narradas mobilizam os trabalhadores na
luta para afirmar memórias e histórias de classe. Perceberam o quanto é relevante para a
mobilização e organização da classe a celebração de uma memória de classe, com marcos
históricos próprios, datas e eventos. Um ano após o movimento de trabalhadores de 1949 em
Fernandópolis foi organizada uma festa em Populina, de onde os trabalhadores saíram para o
movimento em direção a Fernandópolis, na noite de 23 para 24 de junho de 1949. Com o
título “Aniversário da luta em Fernandópolis”, o periódico do PCB “Voz Operária” noticia
que no “sertão de Fernandópolis” os trabalhadores se mobilizaram contra a exploração dos
latifundiários:
No dia 23 de junho [de 1950], comemorado o aniversário do levante, os camponeses
realizaram um “terço” e um grande baile, em que compareceram mais de 350 pessoas. Falaram
ao povo o líder camponês Zé Cearense e o vereador de Prestes, Mario Longo, que alegria [...].
Mario Longo – Votuporanga, 28 de junho de 1950.66
Mario Longo, autor do comunicado publicado na imprensa pecebista, vereador e
trabalhador residente em Votuporanga naquele período, cidade localizada pouco mais de 30
quilômetros de Fernandópolis, foi processado por participar como “vereador de Prestes” no
“II Congresso das Municipalidades” em Ribeirão Preto, ocorrido em junho de 1949 67. Não
apenas para Mario Longo, que participou e compartilhou do evento comemorativo em
Populina, mas certamente para muitos de seus companheiros, o movimento ocorrido em
Fernandópolis em 1949 tratava-se de um “levante” e constituía-se num marco da luta dos
trabalhadores na região, um momento em que os trabalhadores compartilharam sonhos e
projetos para suas vidas. Para Mario Longo, a celebração, constituía-se no espaço de
sociabilidade, de “alegria”, além de solidariedade e luta.
A questão relevante é o fato de que em 1950 parecia significativo celebrar a luta de
trabalhadores por seus direitos e na luta pela terra. Entretanto, alguma coisa se perdeu nesse
processo histórico que, dialeticamente, relaciona presente e passado, e as lutas dos
trabalhadores daquele período parece não compor as tradições e memórias dos trabalhadores
no presente.
66
67
VOZ OPERÁRIA, n. 61, 22/07/1950, p. 10. (Grifo nosso).
Prontuário 76.273 – Mario Longo. DEOPS/SP, DAESP.
28
A memória dividida68 de alguns sujeitos entrevistados limita-se em afirmar que as
memórias do “acontecimento” restringem ao medo que provocou na cidade a “ameaça
comunista” ou que não se recordam do fato. E a partir dessa perspectiva, o movimento dos
trabalhadores em 1949 é caracterizado como algo que não aconteceu ou reduzido à tentativa
de “invasão” da cidade por comunistas. As disputas políticas em torno de quais memórias e
histórias devem ser narradas e rememoradas marcam as histórias da cidade e, nesse embate, a
correlação de forças parece ter sido ganha pelas classes dominantes e dirigentes da cidade.
Todavia, não tem sido suficiente para silenciar memórias dissidentes sobre o presente e o
passado dos trabalhadores e seus movimentos sociais.
68
Cf. PORTELLI, A. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de 1944): mito, política, luto
e senso comum. In: AMADO, J.; FERREIRA, M. M. (Coords.) Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro:
FGV, 1996.
29
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