ENTRE(VISTA) DA LITERATURA & AFINS [Questões: Helena Sousa Freitas (Jornalista da Agência Lusa e do Sem Mais Jornal, escritora). Respostas: Ângelo Rodrigues Entrevista publicada no Sem Mais Jornal em 25 de Fevereiro de 1999] 1. Helena Sousa Freitas – O público português é muitas vezes referido como não tendo hábitos de leitura e diz-se que os novos autores escrevem para a gaveta. Concorda? Ângelo Rodrigues - O público português lê muito pouco. Há uma grande resistência à leitura e esta é substituída pelo multimédia, sobretudo a Televisão e o vídeo... Os fracos hábitos de leitura têm várias causas e provavelmente a Escola não é a principal. Creio que - em parte - o “embrutecimento literário e cultural” do nosso povo se deve sobretudo à Comunicação Social que temos, em particular a Televisão. Repare-se: só se vê futebol e política e pouco mais. É quase por favor que se fala de um autor, de um livro, e de um qualquer evento à volta de um livro ou de um autor. Quanto aos autores que escrevem para a gaveta, tal procedimento faz parte do princípio destas coisas, isto é, publicar, partilhar com os outros, é sempre um acto de coragem, de ousadia mas também de espera. Costumamos dizer que o tempo é o melhor amigo em questões de Literatura. É necessário que os trabalhos amadureçam. Quantos vezes nos precipitamos e no dia a seguir quase que não nos reconhecemos nas “coisas” que fazemos. Escrever para a gaveta é o primeiro passo – é sagrado. Se os trabalhos forem realmente interessantes, mais cedo ou mais tarde irão ver a luz do dia. 2. HSF – A que pensa que se deve essa falta de interesse pela Literatura? AR - O gosto pela Literatura educa-se. Tem a ver com a Escola, com a tradição familiar e com a formação em geral do indivíduo. Aqueles para quem a Literatura ainda não é interessante é porque ainda não descobriram - o que se lamenta profundamente - que, como dizia Pessoa, «a Literatura, como toda a Arte, é uma confissão de que a vida não basta». Ora, constatamos dia-a-dia, infelizmente, que para muita gente a Vida basta e esta reduz-se a um quotidiano maquinal, estupidificante, de pura sobrevivência, não sobrando muitas das vezes tempo para exercer a dignidade e a autenticidade que a humanidade exige. Vive-se a escravatura do trabalho, o consumismo, o materialismo, “o que está a dar”: ter carro, casa, bibelôs de toda a espécie... Temos tudo e acabamos por nada ter. Vivemos o Ter e não o Ser. É esta a máxima da nossa sociedade. 3. HSF – Ainda assim continua, através do Departamento de Novos Autores da Editorial Minerva, a incentivar a publicação de obras de novos autores. Quando começou e o que o motiva ou apaixona a prosseguir esta tarefa? AR - Sempre gostei de tudo o que é marginal. “Idiossincrasiamente”, marginal é quase o sinónimo de alternativo. Em sentido radical, não há novos nem velhos autores, não há nem consagrados nem desconhecidos pois o importante mesmo é que haja pura e simplesmente autores. Em Portugal sempre se deu pouca ou nenhuma importância aos autores que começam a manifestar o seu talento e quantos são aqueles que por essa e outras razões desmotivam e ficamos sem saber da importância e relevância de muitos que acabam por desistir com o nefasto sentimento de não valer a pena. É evidente que leio os chamados “consagrados” ou mais conhecidos (muitos dos quais produtos de máquinas publicitárias de todo o tipo), contudo, devo dizer-lhe que me dá imenso gozo ler pela primeira vez um determinado autor cujos restantes e únicos leitores - para além de mim - terão sido a vizinha, a família, um ou outro amigo e pouco mais. E mais aumenta esse gozo quando constato que muitos superam em qualidade, em espontaneidade e em autenticidade, muitos nomes de que toda a gente fala julgando que são esses os “bons” e os “verdadeiros” escritores e poetas. HÁ MUITA CONFUSÃO SOBRE O QUE É A LITERATURA! Esta não é nem se reduz à produção de meia dúzia de nomes da prosa e da poesia. A Literatura também pode ser “feita” pela vizinha Maria que é doméstica, pelo Manuel António que é padeiro e pelo João Malaquias que por acaso é professor universitário. E nunca a “qualidade” é proporcional à formação académica ou outra. Em Literatura o academismo conta muito pouco. Quantas vezes não é mais do que empecilho, um obstáculo. A Editorial Minerva - através do DNA - tem realmente uma vocação de descoberta e incentivo aos novos valores. Temos consciência de que uma boa parte dos autores que publicamos não o serão efectivamente, mas... é necessário dar uma oportunidade a todos; quantos são aqueles que realmente evoluem e isso traduz-se numa grande satisfação. Podemos dizer que perpassa no nosso trabalho uma dimensão iniciática, didáctica, pedagógica e em alguns casos uma espécie de “psicoterapia pela Literatura”. 4. HSF – Como é ser editor em Portugal? AR - Eu não sou propriamente editor, colaboro sim com uma editora que me dá alguma liberdade de acção para desenvolver projectos no âmbito da descoberta e acompanhamento de novos autores e tal trabalho dá-me alguma satisfação na medida em que acredito que em cada cinquenta autores que ajudo a revelar, pelo menos um haverá de valer a pena. Contudo, ser editor em Portugal é uma forma de vida nem sempre compensadora a muitas dimensões. Estou ligado à edição e aos livros por pura paixão e por achar que podia fazer desta actividade uma espécie de serviço público. Em termos gerais, é uma actividade algo penosa, economicamente arriscada, desgastante e quantas vezes mal compreendida por alguns autores e pares. 5. HSF - Como surgiu o DNA da Editorial Minerva? Quantos novos autores já lançou? Quais os casos de maior sucesso? Existem nomes de referência no actual panorama literário que tenham passado pelo DNA? AR - O DNA surgiu de um convite feito pelo gerente da Editorial Minerva há cerca de cinco anos. Não sei precisar bem quantos autores já revelamos porque a forma como o fazemos varia: editamos antologias, colectâneas até doze autores, discos e edições singulares, contudo, e considerando todas estas formas de edição e revelação, poderemos dizer que já editamos para cima de quinhentos autores. Quando me pergunta quais os casos de maior sucesso, tenho muitas dificuldades em responder na medida em que não é o sucesso que me move; nem sequer sei o que é isso de sucesso embora ensine este conceito nas aulas de Psicologia... O nosso sucesso é conseguirmos trazer do obscurantismo, do desconhecido, do total anonimato, alguns autores que, mesmo estando no meio de outros de menor ou nenhuma importância, puderam ver a luz do dia e, como acreditamos que há alguma justiça no mundo - nem que isso demore séculos - tais autores irão ter a importância, o reconhecimento e o papel que merecem. Não há - no meu ponto de vista - um “actual panorama literário português” no sentido em que meia dúzia de escritores e poetas o integram e o resto serão escrevinhadores ou meros trabalhadores da palavra e afins. Basta eu receber na editora três poemas de um qualquer jovem natural de Alguidares de Cima, de quem nunca ninguém ouviu falar, para que se altere de imediato o “actual panorama literário português”. É tudo treta! Contudo, poderia citar dez a vinte nomes - sobretudo poetas - que decerto irão ficar na Literatura portuguesa como referências incontornáveis. 6. HSF – Editar em Portugal é dispendioso? Em quanto fica, em média, uma edição de autor para um livro de 250 páginas? AR - Por exemplo, para um professor de qualquer grau de ensino - que aufere mensalmente a vergonha de um ordenado - que pouco mais dá do que para sobreviver, é evidente que é dispendioso fazer edições de autor em Portugal. Mais vergonhoso se torna quando esse mesmo professor, sendo honesto e interessado, consome imensos livros e não tem nenhuma ajuda ministerial para esse efeito. Mas, puxando a brasa à nossa sardinha, devo dizer-lhe que a Editorial Minerva - pelo facto de ter uma gráfica própria e serviços afins - pratica talvez o melhor preço do mercado português em matéria de edição e acompanhamento de obra dignificando os autores e as obras com a sua reconhecida chancela. A Editorial Minerva existe desde 1927 e publicou o primeiro livro de José Saramago. Vem de longe a tradição de apoiar “novos” autores! Em relação ao exemplo que dá, é muito difícil dizer em quanto fica a edição de um livro pois depende não apenas da paginação como da tiragem, dos materiais e do tipo de acompanhamento que é realizado. Se alguém estiver interessado, deve dirigir-se à Editorial Minerva que será sempre bem recebido. Se, minimamente, nos agradar o que escreve, tudo faremos para a realização desse seu sonho. 7. HSF – O nosso país tem – para além do Ministério da Cultura – O Instituto Português do Livro e da Leitura, a Associação Portuguesa de Escritores e diversas entidades congéneres, que concedem subsídios, bolsas e prémios-revelação para novos autores. Mesmo assim, muitos escritores têm de pagar do seu bolso a edição dos seus livros. Parece que há aqui qualquer elo que falha, qualquer desencontro. Será falta de informação... ou a justificação é outra? AR - Não entendi muito bem o objectivo da questão, contudo, aproveito para lhe dizer que está na hora de as pessoas compreenderem que editar um livro é quase como comprar um quadro ou outra qualquer obra de Arte. Não é um investimento puramente materialista mas sim um investimento espiritual. É uma questão de mentalidade. Não se compra um móvel que custa trezentos contos e utiliza-se essa verba para fazer o tal livro que se queria editar e que se andou sempre à espera que a proposta de um editor caísse do céu; ora, tal procedimento é uma ingenuidade total no “actual panorama literário português”. 8. HSF – Na sua opinião, a ficção portuguesa está ou não em crise em termos de venda? AR - Se partimos do princípio que não se lê em Portugal, então é toda a Literatura que “está em crise”. Curiosamente, e apesar de tudo, creio haver muitos eventos relacionados com a Poesia e os poetas e, contudo, tais manifestações não significam mais vendas. As pessoas - parece-me - gostam mais da parra do que da uva. Ainda assim, lê-se mais ficção do que Poesia. 9. HSF – Essa crise será só de âmbito nacional? AR - A crise é internacional mas é assustador o que se passa neste país. Nós, os que temos a missão de espiritualizar o Mundo! (a velha ideia do V Império...). 10. HSF - Mas se é tão difícil um novo autor lançar-se em Portugal, como podem explicarse casos de sucesso como o de Pedro Paixão, o autor de “A Noiva Judia” ou “Viver Todos os Dias Cansa”? AR - Sinceramente, não gosto muito de Pedro Paixão e não me parece que o sucesso de um autor se traduza única e exclusivamente em vendas de uma ou outra obra sua. Muito antes de este autor se revelar, quantos outros autores que provavelmente nunca ninguém irá ouvir falar me passaram pelas mãos com produções que eu considero mais. Este autor não inovou, tudo aquilo já foi tentado, escrito e ultrapassado. É tudo uma questão de marketing, contactos, trocas, insistência e certos conhecimentos. 11. HSF – Em Portugal, que camada procura mais o livro – adolescentes, adultos, idosos, outros – e porquê? AR - Não sei responder. 12. HSF – Parece-lhe que os portugueses lêem mais autores nacionais ou estrangeiros? AR - Felizmente está-se a ler cada vez mais autores portugueses. 13. Na sua opinião, em Portugal compra-se um livro pela obra ou pelo nome e sucesso do autor? [O exemplo de Saramago é flagrante: depois do Nobel esgotou edições em poucos dias, quando a sua obra já existia antes e com a mesma qualidade]. AR - Infelizmente e estupidamente, compra-se mais livros em função do nome e do “sucesso” do autor. Vivemos a “cultura de rebanho”. Efectivamente o nosso prémio Nobel é - como refere - um bom exemplo desta atitude. 14. HSF - No seu caso, o que pode dizer-me da recepção da sua obra pelo público? [Já agora, quais os títulos (faltam-me alguns) e data de publicação? Foi sempre editado pela Minerva?] AR - Eu não sei se sou escritor e muito menos se tenho uma “obra” - tal coisa não me preocupa absolutamente nada. Quanto à recepção da minha “obra” pelo público, posso dizer que é óptima se tal coisa se traduzir em vendas. Nunca fiz nenhuma edição superior a mil exemplares e todas elas se esgotaram. Confesso que sempre me estive lixando para o público e nunca me preocupei muito com a recepção das minhas “coisinhas” pois também nunca lhes dei a importância que devia. Parto desta máxima para mim próprio: “se as coisas que faço - em termos literários - têm alguma importância e interesse para a humanidade, então mais cedo ou mais tarde (saiba-se: alguns séculos ou milénios), o mundo irá notar que existi”. É evidente que poderei contemplar e avaliar tal profecia pois estarei decerto em outra superior reencarnação a tentar ser verdadeiramente um escritor. É uma arrogância intitularmo-nos escritores. Creio que não é possível qualquer acto criativo sem uma grande dose de humildade. Perante o Mistério da Vida e da Morte, tudo é insignificante! [Livros publicados: Eu, O Ser E A Dúvida, Edições Orpheu, 1989 (esgotado); Compra-me Um Deus, Edições Orpheu, 1992 (esgotado); Bosque Flutuante - o vírus na rede dos camaleões (colectânea de 12 autores), Editorial Minerva, 1996; Da Ressurreição do Espanto, Editorial Minerva, 1998]. 15. HSF – Que género literário é mais procurado pelos portugueses? AR - O género literário mais procurado pelos portugueses parece-me ser a literatura cor de rosa, a literatura erótica e os jornais desportivos. Encontrar um verdadeiro leitor de Poesia é como encontrar num Domingo à tarde, uma nota de dez mil escudos no chão. 16. HSF – De acordo com dados da APEL, em Portugal publicam-se cerca de oito livros por dia, mas a sua tiragem tem vindo a diminuir. O presidente da APEL, Francisco Espadinha, diz que a redução das tiragens é uma estratégia dos editores para estimular a procura. Como editor, concorda com esta justificação? AR - Creio que os dados da APEL não estão correctos; creio que se publica mais do que oito livros por dia - não podemos menosprezar, subestimar e secundarizar as chamadas edições de autor. Não concordo nem discordo com Francisco Espadinha na medida em que tais análises não me interessam muito. Quando se decide uma determinada tiragem para um novo autor da Minerva, tal procedimento implica sempre uma deliberação e uma decisão consciente e coerente com as leis do mercado e as hipóteses de vendas e de ofertas pois uma boa parte das edições têm como destino serem ofertadas. A Minerva tem uma forma de trabalhar que não se liga muito a cânones e a mobiles economicistas. A razão mais importante para a edição de um livro, é o prazer de partilhar o próprio livro bem como contribuir, desinteressadamente, para a satisfação, afirmação e dignificação do autor e da obra. 17. HSF – Países como o Reino Unido têm autores de culto, cuja escrita serve de porta-voz aos dilemas da geração-urbana. Em Portugal existirão casos destes? Quais são os escritores? AR - Claro que há em Portugal - tal como no Reino Unido - autores de culto (e autores para “minorias”). Se me permite, apresento-me humildemente como tal - eu e o meu amigo Abílio Sampaio (que partilhou do meu último livro com um magnífico conjunto de poemas a que deu o nome de «Um Outeiro do Ninguém») e mais cerca de vinte ou trinta autores publicados pela Minerva. Culto significa aquele que se cultiva. Como sabe, em Portugal há alguns autores que são mais cultivados do que cultos. 18. HSF – Consegue comparar-me a situação do livro em Portugal com a que ele vive nos outros países da União Europeia? AR - Apesar de viajar um pouco, não possuo muitos dados que me permitam aventurar em tal comparação, contudo, tenho a sensação de que na União Europeia, o produto livro goza de melhor saúde, de mais procura e de melhor acessibilidade económica. 19. HSF – Apesar do pouco sucesso da literatura no nosso país, falar de livros e da escrita ainda enche auditórios. Tal é o caso do “Jornal Falado da Actividade Literária”, dos debates “Cem livros do Século”, no CCB e do “Com os Livros em Volta”, na Culturgest. Para além das sessões de divulgação de poesia que ocorrem um pouco por todo o país, sempre com casa cheia. Consegue explicar-me este paradoxo? AR - Efectivamente, parece haver uma situação paradoxal quando constatamos que eventos relacionados com a divulgação do livro estão repletos de gente, e, na volta, as vendas de livros relacionadas com tais eventos, não correspondem a tal aparato. A minha experiência na produção e organização de lançamentos de livros corrobora o que disse pois constato cada vez mais (é claro que há excepções), que nem sempre “muita gente” num evento literário é sinónimo de vendas. As pessoas muitas vezes vão a um evento de natureza literária apenas para serem vistas, “meterem” conversa com uma figura mais-ou-menos-pública, levar um vestido novo... quantas vezes para casar a filha com um modelo feito à pressa, um actor de telenovela que também aparece ou um intelectual de meia-tijela. Ele há gente para tudo! É claro que não consigo nem quero explicar o paradoxo que me coloca: ir ao CCB é fino. Dizer a um amigo que estivemos na Culturgest dá a sensação de que se é culto... 20. HSF – Considera que programas como “Acontece” e “No Sofá Vermelho” influenciam o consumo do livro em Portugal? A que nível? AR - O programa «Acontece» é efectivamente uma referência no designado jornalismo cultural mas não é um mar de rosas; e importante e interessante mas tem que deixar de ser uma capelinha. Está a tornar-se um programa apenas com uma perspectiva cultural (demasiado intelectualista e arrogante), isto é, falar de cultura, caros amigos do «Acontece», não é falar apenas de meia dúzia de escritores e de artistas. Falar de cultura implica falar daquele que editou - por exemplo - o seu livro número trinta mas também daquele que está agora a editar o seu primeiro livro. Quem vê o «Acontece» com regularidade, julgará erradamente ser apenas aquilo que se passa no país em termos culturais e literários. Ora, tal atitude por parte da produção do programa é uma arrogância, uma prepotência, uma mentira... Jornalismo cultural não é bem o que se faz no «Acontece». Repare no seguinte: a Minerva realiza uma média de três a quatro eventos literários por mês, é uma sorte quando o «Acontece» noticia um. É claro, estão sempre em primeiro, em segundo e em terceiro lugar os membros da capelinha! 21. HSF – Apesar do panorama ser desanimador para os novos autores, os cursos de escrita criativa para formar novos escritores florescem de Norte a Sul do país e existem já casos notórios de sucesso ao nível da procura, como é o caso da “Aula do Risco”, com o escritor Rui Zink. Este investimento fará sentido em Portugal? AR - É evidente que ninguém nasce escritor. Um escritor - isto é, alguém com sensibilidade para a Literatura e que produz escrita com regularidade, sem ser por encomenda ou por motivações económicas - é sempre fruto de uma determinada e cuidada educação, de uma cultura, de determinadas e peculiares vivências: “originais”, literárias, estéticas, místicas, filosóficas, etc.. É claro que ninguém é escritor porque decide ser escritor, é necessário talento, trabalho, leitura, investigação, técnica, capacidade de inovação e ousadia pela diferença. Um escritor é um provocador de impossíveis, deve «espicaçar as consciências adormecidas no sono fácil das ideias feitas». Se é este tipo de coisas que se ouve e aprende num curso de escrita criativa, então acho que tem algum sentido existirem; se, por outro lado, um curso desta natureza consistir em ensinar alguém a escrever um poema ou um conto à maneira do Rui Zink, então não vale a pena pois já cá temos o Rui que, de longe, prefiro a escrever do que a falar - e muito menos na Televisão. 22. HSF – Na sua opinião, nasce-se escritor ou o talento também pode aprender-se ou ser aperfeiçoado em aula? AR - Como já referi, ninguém nasce escritor; este acontece condicionado por imensas razões e circunstâncias. O talento e amadurecimento criativo-literário pode ser ajudado e aperfeiçoado; em parte, uma boa aula (e um bom professor) pode contribuir muito para isso. 23. HSF – Cada dia que passa existem mais pessoas a ligar-se à Internet e a optar por pesquisar no ciberespaço, em detrimento das bibliotecas. Que possibilidades existem do livro perder o seu lugar na sociedade? AR - Creio que, quanto mais suportes de informação existem, mais o livro está de pedra e cal. O livro é a grande referência da humanidade. Pode crer - e isto é uma profecia - o livro impresso em papel jamais deixará de existir mesmo que me instalem no cérebro um chip contendo o melhor da Literatura portuguesa. 24. HSF – Que futuro preconiza para o livro, em Portugal e no mundo? AR - Que viva o livro sempre! Que possamos viver com livros, dos livros e para os outros através dos livros! Questionário específico ou “regional” 25. HSF – O distrito de Setúbal é produtivo em termos de novos autores? Quantos é que já passaram pelo DNA? AR - Podemos afirmar que há autores com obras muito interessantes no distrito de Setúbal. Não posso precisar quantos passaram pelo DNA pois não me preocupo muito com estatísticas dessa natureza mas, seguramente que uns trinta ou quarenta autores que incluímos nas antologias e outros projectos são do distrito de Setúbal. 26. HSF – Existirá um movimento literário na região de Setúbal? Forte ou fraco? AR - Se não existir nenhum movimento literário em Setúbal é pena. Caso não exista, lanço desde já o repto: contactem o DNA da Editorial Minerva e vamos formar um movimento literário, nem que isso sirva apenas para contar anedotas e trocar experiências... 27. HSF – Face à zona da Grande Lisboa ou do Grande Porto, o distrito de Setúbal sai a perder em termos de número de leitores e de acontecimentos literários. Concorda? Como pode justificar-se esta situação? AR - É evidente que por ser capital, Lisboa aglutina e hegemoniza muitos eventos literário-culturais, contudo, em termos culturais, não concordo com a velha ideia de que Lisboa é Portugal e o resto é paisagem. Pelo o que me é dado ver, tanto Setúbal como Almada, “mexem culturalmente” e têm - como os políticos gostam de dizer - vida cultural própria preconizando assim uma identidade e uma demarcação em relação a Lisboa. 28. HSF – Apesar do aparente desinteresse literário dos residentes no distrito, existem boas bibliotecas no Barreiro, em Setúbal, em Almada... o que devia ser meio caminho andando para um maior sucesso da literatura. No entanto, parece que isso não sucede. Podia comentar? AR - O sucesso da Literatura - como diz - não passa só e apenas pela existência de bibliotecas e de livrarias, tem mais a ver com a Educação e a Cultura transmitida às crianças e aos jovens. Leiam todos os dias histórias às crianças, ofereçam-lhes mais livros e menos vídeos e horas de televisão e verão - outra profecia; tenho uma tendência para a bruxaria - um caótico estado de coisas a se inverter. 29. HSF – Na sua opinião enquanto professor no distrito, qual o papel que a escola desempenha na criação de hábitos de leitura? Qual a reacção dos estudantes face à escrita e à leitura intra e extra curriculares? AR - Infelizmente a Escola está a perder terreno. Creio que as novas pedagogias “lixaram” tudo. O ensino tem que ser reformulado completamente. Neste caos que é o ensino, com professores tratados “a baixo de cão”, o livro, apesar de tudo, tem um papel fundamental; ora, um compêndio não é mais do que a condensação e a síntese de um vasto conjunto de livros, contudo, creio que os programas deveriam contemplar mais a leitura integral de obras de autores contemporâneos. A leitura e a escrita intra e extra curriculares pura e simplesmente não existe. Creio que deveria de existir ao nível do activismo das escolas uma regular e obrigatória tertúlia onde fosse possível incentivar o gosto pela leitura e pela escrita. Sei que tem havido louváveis tentativas desta natureza. 30. HSF – Considera que temos boas livrarias no distrito, que motivem os consumidores à compra e à leitura? Podia apontar-me alguns exemplos? AR - Sim, não nos podemos queixar da falta de livrarias, podemos sim - e eu tenho algumas razões para isso - queixarmo-nos de alguns livreiros pois de livreiros só tem o nome. Há pessoas a vender livros como se vendessem latas de feijão ou coca-colas. Há livreiros que julgam que uma boa livreira não é mais do que ter o Saramago e meia dúzia de “consagrados”. Uma boa livraria deve ter tudo: novos, velhos, desconhecidos, “consagrados”, livros cozidos, livros colados, capas de papel ordinário, cartonados, _____________________________ (...) Deixo este espaço para que alguém continue a lista. 31. HSF - O distrito terá autores que representam a geração pós-25 de Abril? Podia darme alguns exemplos? AR - Claro que sim. Todo o autor que não escreva por encomenda e que livremente vá dizendo o que lhe “dá na real gana”, esse autor representa não apenas a geração do 25 de Abril mas também aquilo que de melhor há na consciência humana: a autonomia. ________________________ Ângelo Rodrigues [email protected]