Universidade de Marília Faculdade de Comunicação, Educação e Turismo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Da obra literária à minissérie televisiva: um estudo da transcodificação da decadência moral da personagem Luísa do romance O Primo Basílio de Eça de Queirós Élica Luiza Paiva Marília 2006 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. 2 Élica Luiza Paiva Da obra literária à minissérie televisiva: um estudo da transcodificação da decadência moral da personagem Luísa do romance O Primo Basílio de Eça de Queirós Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Comunicação da Faculdade de Comunicação, Educação e Turismo da Universidade de Marília, na área de concentração “Mídia e Cultura”, linha de pesquisa “Ficção na Mídia”, como requisito para obtenção do título de Mestre. Orientadora: Profª. Dra. Lúcia Correia Marques de Miranda Moreira. Marília 2006 3 Universidade de Marília Faculdade de Comunicação, Educação e Turismo Reitor: Márcio Mesquita Serva Programa de Pós-Graduação em Comunicação Coordenadora: Profª. Drª. Suely Fadul Villibor Flory Área de Concentração: Mídia e Cultura Linha de pesquisa: Ficção na Mídia Orientadora: Profª. Drª. Lúcia Correia Marques de Miranda Moreira Marília 2006 4 Banca Examinadora Élica Luiza Paiva Da obra literária à minissérie televisiva: um estudo da transcodificação da decadência moral da personagem Luísa do romance O Primo Basílio de Eça de Queirós Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre, no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Comunicação, Área de Concentração: Mídia e Cultura, Linha de Pesquisa: Ficção na Mídia, da Faculdade de Comunicação, Educação e Turismo da Universidade de Marília, Marília – SP, pela seguinte Banca Examinadora: Profª. Drª. Lúcia Correia Marques de Miranda Moreira Orientadora Prof. Dr. Altamir Bottoso Examinador Profª. Drª. Rosângela Marçolla Examinadora Marília 2006 5 Agradecimentos ... da mesma forma como a noite nos mostra uma infinidade de pontos-luz a brilhar no céu assim deveria ser esta página, com uma infinidade de nomes, de pessoas a quem posso chamar de anjos! Entretanto, como não consigo contar todas as estrelas do céu, também não conseguiria agradecer a cada um que participou... ensinou... riu... sofreu comigo as dificuldades e sentiu o sabor desta fase. Embora as estrelas não possam ser contadas por mim, elas continuam a fazer parte do meu universo e a ter um brilho especial como os meus anjos. Anjos que Deus enviou para não me deixarem cair, nem desistir, nem chorar, nem ficar sem abrigo, nem sem carinho, nem sem alimento, nem sem trabalho, muito menos sem um sorriso! Costumo dizer que a minha fé é infinita como o amor do poeta, e é a Ele que agradeço. Ao que considero o maior dos poetas, Deus. E aos seus anjos... O professor que disse que eu deveria fazer a minha parte, pois Deus providenciaria todo o resto! Devo a ele o desejo e a certeza de que seria possível ser uma Mestra: Ms. Roberto Reis de Oliveira. Àquela que regou a semente do desejo e da certeza e se dispôs a me ajudar a trabalhar no projeto de dissertação, sem ao menos imaginar que depois viria a ser a minha orientadora, o meu anjo do conhecimento, da sensibilidade e da razão. Hoje, minha amiga: Profª. Drª. Lúcia Miranda. À família Rocha dos Santos que me adotou como filha e me carregou no colo desde então. Mas não foi só esta família que Deus me deu no decorrer destes anos! Por outros lares passei... dos Gonçalves de Oliveira, dos Nunes Rufini, os Del Faveri Cório e dos Dezotti. Em todos eles me senti filha, irmã, amiga, amada e rica da graça de Deus. Impossível descrever a gratidão que tenho por estes seres humanos, realmente HUMANOS e ao mesmo tempo divinos, pela bondade infinita permanente em seus corações. Meus amigos: Savanna da Rosa Ramos, Lidiane Rocha dos Santos, Maria de Fátima Nunes Rufini, Michel William Dezotti, Fábio Gonçalves de Oliveira, Mariana Dalan, Clara Beatriz Dezotti, Silvana Romano da Silva, Mário Rufini, Maria de Lourdes Del Faveri Cório, Cipriano Sanches, Carolina Dalan, Janaina Ravanelli, Maria Eugênia Nunes Rufini, Élio Janoni, Lariane Febraio, José Antonio Dezotti, Agostinho Del Faveri Cório, Jacqueline S. Périssé, Juliana Rodrigues Miyamae, Mário Victor Nunes Rufini, Marcos Rogério Campos e Geórgia Alessandra Gomes. Por aquelas conversas e as trocas de informações nas madrugadas... as risadas... as orações... os desesperos... as lágrimas... a ousadia... a perseverança... a fé... a paciência... um abraço... uma palavra de conforto. Foram o meu combustível para que eu conseguisse me manter perseverante. Isso explica as reticências usadas no início, uma gratidão infinita, que tem a sua raiz plantada na minha primeira família, a que me deu a vida e me ensinou a fórmula da riqueza espiritual: a alegria de viver! Meus pais Antonio Batista Paiva e Maria Luiza Romano de Paiva, meus irmãos José Luís Paiva e esposa e Edna Aparecida Paiva Pereira e esposo. Amigos? Irmãos? Pais? Mães? Não importa! Todos ANJOS de Deus... meus anjos! A todos... a minha eterna gratidão. 6 Dedicatória Dedico este trabalho às pessoas que mais amo nesta vida... Meus pais Antonio Batista Paiva e Maria Luiza Romano de Paiva Meus irmãos de sangue e de coração... Edna A. Paiva e José Luís Paiva Lidiane Rocha dos Santos e Fábio Gonçalves de Oliveira Michel Willian Dezotti e Savanna da Rosa Ramos Elizete da Silva e Geórgia A. Gomes Mario Victor Nunes Rufini e Maria Eugênia Nunes Rufini E finalmente à pessoa mais surpreendente, mais otimista, mais guerreira, mais amável, que pelo imenso amor que cultiva em seu coração é meu maior exemplo de vida! Minha mãe de coração: Maria de Fátima Nunes Rufini. 7 Traduzir-se Uma parte de mim É todo mundo; outra parte é ninguém: fundo sem fundo. Uma parte de mim É multidão; outra parte estranheza e solidão. Uma parte de mim Pesa, pondera: outra parte se espanta. Uma parte de mim é permanente; outra parte se sabe de repente. Uma parte de mim é só vertigem; outra parte, linguagem. Traduzir uma parte na outra parte - que é uma questão de vida ou morte – será arte? Ferreira Gullar 8 Resumo Esta pesquisa analisa o processo da decadência moral da personagem Luísa do romance do escritor português, Eça de Queirós, intitulado O Primo Basílio e a sua transcodificação para a mídia televisiva, a minissérie homônima produzida e veiculada pela Rede Globo de Televisão, em 1988. Para tanto, faz-se um estudo tanto da narrativa literária, com suas metodologias e teorias quanto da narrativa televisiva, sempre abordando como ambas as narrativas contam a história da derrocada moral da personagem escolhida como objeto-recorte para análise. Aborda-se ainda a questão do espaço e do tempo, bem como o processo de construção dos personagens, o qual foi evidenciado por meio de embasamento teórico apoiado em diversos autores da teoria narrativa e de roteiros fílmicos e televisivos. Palavras-chave: narrativa literária, narrativa televisual, comunicação, transcodificação e minissérie televisiva. 9 Abstract This research analyzes the process of the character's moral decadence Luísa of the Portuguese writer, Eça de Queirós, entitled O Primo Basílio and its transcodification for the televise media, the produced homonymous series and transmitted by Globo Television Net, in 1988. For this, it is made makes a study as of the literary narrative, with its methodologies and theories as of the narrative of television, approaching how both narratives always tells the history of the character's morals overthrown chosen as object-target for analysis. It is still studied the subject of the space and time, as well as the process of the characters' construction, which was evidenced by means of theoretical basis supported in several authors of the narrative theory and of film and television directions. Key Words: literary narrative, televise narrative, comunication, transcodification and television series. 10 SUMÁRIO Resumo ...................................................................................................................................... 8 Abstract ..................................................................................................................................... 9 Introdução ............................................................................................................................... 11 Capítulo I................................................................................................................................. 13 1.1 Contextualização histórica do romance O Primo Basílio.............................................. 13 1.2 Linguagem Literária: elementos estruturais da narrativa .............................................. 17 1.2.1 O tempo e o espaço na narrativa de O Primo Basílio............................................. 23 1.3 A construção dos personagens....................................................................................... 28 1.3.1 A derrocada moral da personagem Luísa no espaço doméstico............................. 30 1.3.2 A derrocada de Luísa no espaço do adultério (Paraíso) ........................................ 34 Capítulo II ............................................................................................................................... 48 2.1 A chegada da TV no Brasil............................................................................................ 48 2.2 A linguagem televisiva .................................................................................................. 49 2.3 Formatos ficcionais televisivos: filme, telenovela e minissérie .................................... 55 Capítulo III.............................................................................................................................. 64 3.1 A transcodificação: do livro à TV ................................................................................. 64 3.1.1 A minissérie O Primo Basílio................................................................................. 66 3.2 Quando a câmera narra a história .................................................................................. 71 3.2.1 A decadência moral da personagem Luísa na minissérie ....................................... 73 Considerações Finais .............................................................................................................. 82 Referências .............................................................................................................................. 86 11 Introdução Quando se questiona a relação entre literatura e a sua transcodificação para outros códigos, como os do cinema e da televisão, abrem-se muitas possibilidades de estudo e interpretação. É a partir destas possibilidades e considerando a importância para a pesquisa em Comunicação que surgiu o tema estudado nesta dissertação, uma junção e ao mesmo tempo uma decodificação de dois códigos que contam, a partir de formatos diferentes, a história de Luísa Mendonça de Brito Carvalho e o seu relacionamento amoroso com o primo Basílio de Brito, personagens do romance O Primo Basílio, do escritor português Eça de Queirós. Eça é considerado como um dos mais brilhantes escritores de todos os tempos por inúmeros fatores, mas principalmente pela atemporalidade dos assuntos que expõe em suas obras. Na sua fase realista, dentre outras obras relevantes, escreveu O Primo Basílio escolhida pela Rede Globo de Televisão para ser adaptada para o formato de minissérie. A proposta deste trabalho é estudar tanto a obra literária quanto a transcodificação para a mídia televisiva, na linha de pesquisa “Ficção na Mídia”. Contudo, tanto na primeira quanto na segunda, o recorte a ser analisado é o processo de decadência moral, bem como física, da personagem Luísa no espaço doméstico e no espaço do adultério, que se configuram no desenrolar da trama romanesca criada pelo autor português com o intuito de compor um cenário, também desenvolvido em outros romances seus, da vida portuguesa do século XIX, denunciando mazelas sociais comportamentais, sobretudo referentes à burguesia. O primeiro capítulo pretende fazer uma apresentação do romance com relação à contextualização dos acontecimentos apresentados no enredo, bem como delinear os elementos fundamentais à compreensão da sua estrutura narrativa. Depois deter-se-á em questionamentos acerca da construção dos personagens enfocando sempre a personagem Luísa e o processo da sua decadência moral nos espaços doméstico e do adultério, conforme mencionado. A partir destas observações, no próximo capítulo - como a televisão é o suporte técnico da minissérie a ser estudada - pressupõe-se que seja proeminente fazer algumas considerações sobre a sua chegada no Brasil e ainda, abordar aspectos relevantes da sua linguagem e os formatos que utiliza para propagar a ficção. 12 Já o terceiro e último capítulo desta dissertação tem o propósito de considerar de uma forma menos complexa, como se dá o processo de transcodificação de uma obra literária para a minissérie televisiva, tendo como ponto de partida a adaptação do referido romance para a minissérie. Compõem o suporte técnico do presente trabalho as obras de: Aguiar e Silva, Arbex Jr, Agel, Abdala Jr, Pierre Bordieu, Beth Braith, Syd Field, Marcondes Filho, Martin Barbero & Rey, Renato Ortiz, Pellegrini, dentre outros. E dando prosseguimento ao trabalho, passa-se, no próximo capítulo, a tecer considerações sobre o romance queirosiano que é um dos objetos da presente pesquisa. 13 Capítulo I 1.1 - Contextualização histórica do romance O Primo Basílio A presente pesquisa tem como objeto de estudo a obra literária O Primo Basílio de José Maria Eça de Queirós, publicada em 1878 e a sua adaptação para o formato televisivo, a minissérie homônima produzida e veiculada pela Rede Globo de Televisão no ano de 1988. Para tecer esta dissertação pretende-se fazer um resgate do processo de decadência moral da personagem Luísa nos espaços doméstico e do adultério, primeiro na obra literária e posteriormente na adaptação para a mídia televisiva. Vale ressaltar que este recorte vai servir de objeto de análise para explicitar o processo de transcodificação da narrativa literária para a televisual. Este capítulo reter-se-á na apresentação do romance e na contextualização da sua estrutura narrativa (foco narrativo, narrador, espaço social e físico, tempo histórico e psicológico e personagem). Entretanto, não serão analisadas todas as suas vertentes e sim as que se destacam no objeto-recorte desta pesquisa. O Primo Basílio é uma obra fundamental do Realismo-Naturalismo (1865-1900) português. O movimento Realista-Naturalista é posterior ao Romantismo (1825-1865), o qual teve suas primeiras manifestações literárias nos países europeus mais desenvolvidos, principalmente na Alemanha e na Inglaterra. Entretanto, foi na França que este movimento ganhou proporções revolucionárias. Da mesma forma como ocorreu nos países europeus, em Portugal, o movimento romântico também remonta à evolução econômico-social e política da burguesia. A nobreza perde o poder político e econômico e a burguesia passa então a ditar seus valores. Este novo público-leitor de origem burguesa teve formação literária pela leitura de jornais vendidos a preços acessíveis. Além disso, a elevação do poder aquisitivo da classe média e um sistema de impressão em escala comercial propiciaram o alargamento do mercado consumidor. Se no classicismo tínhamos um público aristocrático, palaciano, agora este é mais amplo e precisava ser motivado para adquirir a obra de 14 arte. Há, nesse setor, como no conjunto da sociedade, uma democratização da cultura.1 Portanto, é na ascensão da burguesia e no intuito de propagar os ideais do liberalismo burguês que o Romantismo é concebido. As principais características deste movimento literário é a propagação de emoções individuais. É um novo modo de ilustrar o mundo por meio de uma ideologia que vê nas riquezas materiais e intelectuais a transitoriedade e a relatividade tanto no homem quanto na história. O estilo romântico evidencia as emoções e a subjetividade na forma de ver, sentir e pensar a vida pressupondo um novo modo de produção artística que dá ênfase ao ‘eu’, o homem torna-se o centro dos acontecimentos e é a partir dele que se estrutura a imagem do novo homem, o idealizado, que “[...] procura na morte a libertação de tudo que o oprime [...] vê a realidade sensível como uma armadilha que ameaça destruí-lo e anular sua essência. O desconforto existencial impele o sujeito a buscar o resgate de seus males em outra dimensão [...]”2. Algumas destas particularidades mencionadas sustentam a visão do mundo da arte romântica. O encerramento desta fase está relacionado com o contexto social da Segunda Revolução Industrial. A sociedade européia estava em crise, a qual também afetou Portugal e outros países que faziam parte deste processo de industrialização. O descontentamento por parte da população atingiu quase todos os setores sociais, em especial os camponeses que sem apoio governamental têm como única alternativa a emigração, conforme se pode depreender pelas considerações de Benjamin Abdala Júnior e Maria Aparecida Paschoalin. A política econômica desenvolvimentista seguida pelo regime liberal trouxe grande aumento da produção agrícola, beneficiando os proprietários da terra, que passaram a residir nas cidades. Em conseqüência, temos o crescimento de uma classe média citadina, de raízes agrárias, que veio somar-se à comercial, grupo social bastante beneficiado pelo desenvolvimento dos novos meios de comunicação3. É neste contexto, com o surgimento de uma nova classe social, a denominada pequena burguesia citadina, que se inicia um novo movimento literário: o Realismo, o qual evoluiu 1 ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História Social da Literatura Portuguesa. 3. ed. São Paulo: Ática, 1985, p. 78. 2 MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa em Perspectiva. Vol III. São Paulo: Atlas, 1994, p. 21-22. 15 gradativamente para o Naturalismo. A ascensão deste estilo de literatura, em Portugal, foi propiciada nessa época em que a alta burguesia já não mais assumia o controle do país. Esta classe emergente favoreceu o crescimento da produção literária, passando a consumir cada vez mais jornais, revistas, romances, transformando-se num público significativo, que queria ver seus problemas retratados na literatura por meio da representação da realidade em que vivia, tanto a situação social, econômica e política quanto a crítica à subjetividade romântica propagada pelo Romantismo. Ao contrário da alta burguesia, que se interessava somente pelo jogo do sentimentalismo idealizado. A representação da realidade através da arte literária voltada para a solução dos problemas sociais pode ser designada como uma das principais características do Realismo. Foi mencionado anteriormente que “o Realismo evoluiu gradativamente para o Naturalismo”, o que pode ser explicado pelo fato do Naturalismo4 ser compreendido como: [...] uma forma histórica do Realismo, de caráter mecanicista e positivista. O Realismo existe como tendência, dominante ou não, em todas as épocas históricas: é mais uma atitude do artista diante da representação da realidade5. Desta forma o Realismo-Naturalismo caminham juntos descrevendo a realidade concreta por meio de textos artísticos. Eça de Queirós é um dos principais autores que aderiram a este movimento literário. O escritor não é apenas um analista, como propunha o realismo nem somente um artista, mas também um moralista. O estilo6 de Eça de Queirós é evidenciado também na finalidade ética e social a que se propõe atingir por meio de seus personagens destituídos de força moral, sugerindo uma reforma social para a sociedade burguesa do século XIX. De acordo com Ernesto Guerra da Cal, um importante estudioso das obras de Eça: 3 ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. Op. cit., p. 99. Cf. o que afirma MOISES, Massaud. Dicionário de termos literários. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 1985, p. 103. “À semelhança do Realismo, o Naturalismo constitui um movimento literário dos fins do século XIX: o ‘natural’ como atitude existe desde sempre, na medida em que a Natureza oferece os modelos de compreensão e interpretação dos fenômenos do conhecimento, mas tornou-se moda no último quartel da centúria passada”. 5 Ibid., p. 103. 6 “Longe de qualquer definição, todos temos a consciência e a sensação do que é “estilo”: aquilo que individualiza o autor, o que o diferencia dos outros, o que é caracteristicamente seu – o que conhecemos como seu, por estar harmonicamente integrado no conjunto da sua originalidade e impregnado dela [...]”. CAL, Ernesto Guerra da. Linguagem e Estilo de Eça de Queiroz. Lisboa: Editorial Aster, 1953, p. 25-26. 4 16 O estilo literário vai muito mais além do meramente verbal. Ter estilo não é possuir uma técnica de linguagem, mas ter uma visão própria do mundo e ter conseguido uma forma adequada para a expressão dessa paisagem interior. As palavras são, pois, mais alguma coisa do que o veículo de comunicação, por meio do qual o artista nos faz chegar a sua mensagem. Por detrás delas, implícita, misteriosamente presente, está uma apreensão total da realidade; uma atitude vital, uma concepção subjetiva do mundo, uma particular maneira de o simplificar, de o transformar, adaptando-o à personalidade, à própria maneira de o sentir, de “o pensar” por assim dizer7. Este estilo singular de Eça de Queirós levou suas obras a outros continentes, sendo traduzidas, questionadas e profundamente estudadas tanto por pesquisadores, quanto pelos alunos do Ensino Médio, pois é leitura obrigatória para aqueles que querem prestar vestibular. O Primo Basílio ingressa seus leitores no âmbito da cultura erudita, nas questões sociais ainda pertinentes para a nossa época, eis aí as questões que tornam a obra atemporal, pois o leitor faz analogias entre as situações vividas pelos personagens e a realidade vivenciada hoje, no Brasil. Os romances de Eça ainda continuam despertando novas significações, daí se assegura as diversas leituras e interpretações possibilitadas pela forma de pensar e de contar as histórias, próprias do escritor. N’O Primo Basílio o autor critica, por meio de seus personagens despidos de virtudes, bem como lances amorosos motivados pela mediocridade, a educação frívola e a vida ociosa da mulher burguesa e de um modo geral, a sociedade lisboeta do século XIX. O autor questiona, principalmente, uma das instituições sociais tidas como uma das mais sólidas: o casamento. Embora o adultério fosse tema já trabalhado pelo Romantismo, Eça também inova ao incluir diálogos sobre homossexualismo quando narra o passado da personagem Leopoldina8. Representa, também, um dos primeiros momentos de reflexão sobre o atraso da sociedade portuguesa em um mundo profundamente transformado pela Revolução Industrial e pelo desenvolvimento tecnológico. 7 CAL, Ernesto Guerra da. Linguagem e Estilo de Eça de Queiroz. Lisboa: Editorial Aster, 1953, p. 27. Leopoldina é uma das personagens, do romance O Primo Basílio, que possui características e personalidade inapropriadas para as mulheres, segundo a moral vigente no século XIX. Infiel ao seu marido, Leopoldina busca a felicidade nos seus amantes, pois considera o seu esposo ‘um porco’. Contudo, ao contrário das mulheres de bem, as quais possuem uma educação frágil e totalmente voltada para o espaço doméstico, Leopoldina é dona de uma educação calcada na realidade o que a torna uma ameaça para as esposas fiéis. Cf. QUEIRÓS, Eça. O Primo Basílio. 18. ed. São Paulo: Ática, 1997, p. 29-30 8 17 Em linhas gerais, apresentaram-se aqui algumas das características mais importantes do Realismo/Naturalismo. Na seqüência, destacam-se os componentes estruturais da narrativa com o propósito de auxiliar as análises posteriores do romance O Primo Basílio. 1.2 – Linguagem Literária: elementos estruturais da narrativa O Primo Basílio caracteriza-se como um romance dramático, pois não há uma divisão notória entre enredo e personagens. Edwin Muir constata que, neste gênero “[...] ambos são entrelaçados entre si. As qualidades conhecidas dos personagens determinam a ação e a ação, por sua vez, modifica de maneira progressiva os personagens e assim tudo é impelido para diante em direção a um fim [...]”9. Tem-se a personagem Luísa como exemplo. As suas características físicas e psicológicas refletem claramente na sua maneira de agir, as quais também podem ser observadas na transcodificação da obra literária para a televisual, que vai ser abordada no terceiro capítulo. As particularidades deste gênero pressupõem-se pertinentes à adaptação para o formato televisivo considerando o ritmo de ambas as narrativas. Na literatura, o narrador descreve a ação enquanto que na adaptação as cenas são narradas pelos movimentos de câmera que apresentam - ao espectador – os personagens, o espaço e o tempo em que vivem. Estes movimentos mostram também a seqüência da atuação dramática dos personagens, atuação que se configura como a ação em si. Observe-se o narrador textual contando sobre as características que determinam as ações de Luisa: Mas a Luísa, a Luisinha, saiu muito boa dona de casa; tinha cuidados muito simpáticos nos seus arranjos; era asseada, alegre como um passarinho, como um passarinho amiga do ninho e das carícias do macho; e aquele serzinho louro e meigo veio dar à sua casa um encanto sério10. Apesar de pequeno, este trecho do início do romance remete, por meio das observações do narrador, à descrição da personagem Luísa, características que são confirmadas nas suas ações no decorrer da narrativa, tal como afirma Muir no trecho citado anteriormente. O narrador mostra que as ações da personagem, no ambiente doméstico, são conseqüências do seu espírito e formação pequenos, os quais são reportados para o leitor com diminutivos dando indícios dos seus interesses reduzidos e do seu horizonte sem expectativas, delineado por romances. Acredita-se que estas descrições também irão caracterizar a 9 MUIR, Edwin. A Estrutura do Romance. 1. ed. Rio de Janeiro: Globo, s/d, p. 21-22. QUEIRÓS, Eça. O Primo Basílio. 18. ed. São Paulo: Ática, 1997, p. 17. 10 18 construção da personagem Luísa interpretada pela atriz Giulia Gam, na minissérie, a qual se apropriou dos cabelos loiros, da delicadeza e futilidade da personagem de papel de Eça de Queirós. Observa-se então, que é através da construção dos personagens que se dá o processo de desencadeamento do enredo, pois são as causas decorrentes das ações destes personagens, descritas pela narração, que caracterizam o enredo. Muir esclarece esta questão citando E. M. Forster, “definiríamos a estória como uma narrativa de acontecimentos dispostos em uma seqüência no tempo. Um enredo é também uma narrativa, cuja ênfase recai sobre a causalidade”11. Eça de Queirós utiliza-se de vários recursos da Estrutura da Narrativa para escrever O Primo Basílio, seu enredo é composto por uma seqüência de fatos fictícios que contam através de um narrador a história de um grupo de personagens pertencentes a um determinado patamar social. Dispõe também de um cenário que está focalizado em um espaço e num tempo também determinados. Esta limitação a um círculo, a um complexo de vida, produzindo naturalmente uma intensificação da ação é outra característica do romance dramático, como esclarece Muir. Para ilustrar, menciona-se um trecho do capítulo II do livro: Aos domingos à noite havia em casa de Jorge uma pequena reunião, uma cavaqueira, na sala, em redor do velho candeeiro de porcelana cor-de-rosa. Vinham apenas os íntimos. “O Engenheiro”, como se dizia na rua, vivia muito ao seu canto, sem visitas. Tomava-se chá, palrava-se. Era um pouco a estudante. Luísa fazia crochê, Jorge cachimbava. O primeiro a chegar era Julião Zuzarte, um parente muito afastado de Jorge e seu antigo condiscípulo nos primeiros anos da politécnica. Era um homem seco e nervoso, [...] Às nove horas, ordinariamente, entrava D. Felicidade de Noronha. [...] Falavase nessa noite do Alentejo, de Évora e das suas riquezas, da capela dos ossos, quando o Conselheiro entrou com o paletó no braço. [...] Houve um silêncio comovido, e à porta uma voz fina disse: - Dão licença? – Oh, Ernestinho!... – exclamou Jorge. [...] – Ora muito boas-noites – disse, à porta, uma voz grossa. Voltaram-se. Ó Sebastião! Ó Sr. Sebastião! Ó Sebastiarrão! Ele era, Sebastião, o grande Sebastião, o Sebastiarrão, Sebastião tronco de árvore – o íntimo, o camarada, o inseparável de Jorge desde o latim, na aula de frei Libório, aos paulistas12. 11 12 FORSTER, E. M. apud MUIR, s/d, p. XI. QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 32-48. 19 Ao ler este capítulo é possível observar que o narrador, ao mesmo tempo em que apresenta os personagens - que compõem o núcleo principal, já os descreve. Expõe minuciosamente as suas características físicas, psicológicas, o status de cada um, a profissão e como a desempenham, suas virtudes e inquietações, seus objetivos e sonhos, seus tiques, suas doenças e seus pensamentos mais íntimos como indícios das suas ações no decorrer da narrativa. Gérard Genette relata que ao “permanecer no domínio da expressão literária, definirse-á sem dificuldade a narrativa como a representação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos, reais ou fictícios, por meio da linguagem, [...]”13. A narrativa (récit) seria então o significante, o enunciado e a história (ou diegese) o significado do conteúdo narrativo. Já a narração, o teórico descreve como “o ato narrativo produtor e, por extensão, o conjunto da situação real ou fictícia na qual se situa”14. Presume-se, portanto, que narração e descrição caminham juntas nesta obra de Eça, embora ambas tenham diferenças de conteúdo. Enquanto a narração prende-se a ações e acontecimentos num processo que se desenvolve tanto no aspecto temporal como no dramático da narrativa, a descrição – ao contrário – uma vez que se demora sobre objetos, ambientes, lembranças, personagens em sua simultaneidade, e encara os processos como espetáculos, parece suspender o curso do tempo contribuindo para espalhar a narrativa no espaço textual. Esta representação dos acontecimentos da história é feita por um narrador, no caso da obra estudada, um narrador onisciente e que não pode ser confundida com o relato do autor. Aguiar e Silva explica que “o narrador constitui a instância produtora do discurso narrativo, não devendo ser confundido, na sua natureza e na sua função, com o autor, pois o narrador é uma criatura fictícia como qualquer outra personagem”15. Como se sabe, todo discurso para ser designado eficiente necessita de um emissor/locutor e de um receptor/auditor. No romance não é diferente, o narrador faz o papel do emissor/locutor, aquele que atua como contador da história e o narratário “o receptor do texto narrativo, aquela criatura ficcional a quem se dirige o emissor/narrador”16. Entretanto, cabe aqui salientar que este não é o único receptor do texto narrativo – pondera Vitor Manoel de Aguiar e Silva: 13 GENETTE, Gerard apud DEFINA, Gilberto. Teoria e Prática de Análise Literária: síntese de princípios de análise literária aplicados ao romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. São Paulo, Pioneira, 1975, p. 38. 14 AGUIAR e SILVA, Vitor Manuel de. A Estrutura do Romance. 3. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1974, p. 42. 15 Ibid., p. 26. 16 Id., p. 28. 20 Em muitos textos narrativos, existe um destinatário intratextual do discurso narrativo e, portanto, da história narrada. É a esta instância à qual o narrador conta a história, ou parte da história, que daremos o nome de narratário. O narratário não deve ser identificado, ou confundido, com o leitor implícito, com o leitor visado e com o leitor ideal – e muito menos com o leitor empírico -, embora a sua função no texto narrativo tenha sempre correlações importantes com o leitor implícito e com o leitor empírico – o narratário representa uma das articulações mediadoras da transmissão da narrativa – e possa apresentar também correlações diversas com o leitor visado e com o leitor ideal17. Ressalta-se também que o narrador não se identifica com o autor empírico, nem mesmo com o autor textual. O narrador representa, “enquanto instância autonomizada que produz intratextualmente o discurso narrativo, uma construção, uma criatura fictícia do autor textual, constituindo este último, por sua vez, uma construção do autor empírico”18, argumenta Aguiar e Silva. O modo como o narrador conta a história possui algumas denominações: instância narrativa, foco narrativo, focalização e ainda ‘ponto de vista’. Neste trabalho, não há uma delimitação quanto à utilização de quaisquer dos termos notificados, já que há vários teóricos que evidenciaram estudos acerca da Estrutura da Narrativa e apesar de chegarem a conclusões similares, não estabeleceram as mesmas denominações para o mesmo problema. No entanto, o que se pretende aqui é observar com mais ênfase as determinações do teórico Aguiar e Silva. O foco narrativo “compreende as relações que o narrador mantém com o universo diegético e também com o leitor (implícito, ideal e empírico), o que equivale a dizer que representa um fator de relevância primordial na constituição do texto narrativo”19. Pode-se a princípio, ser descrito e reduzido a uma forma tríade de se contar uma história: na primeira pessoa, quando o narrador é uma personagem e faz parte da história (focalização interna); na terceira pessoa, quando o narrador só conta a história, não faz parte do elenco (focalização externa) e o narrador onisciente que é o caso do narrador de O Primo Basílio. Vale lembrar que esta apresentação das instâncias narrativas, feita aqui, é superficial e posta ao leitor de 17 AGUIAR e SILVA, Vitor Manuel de. Teoria e Metodologia Literárias. 1. ed. Lisboa: Universidade Aberta, 2002, p. 257, grifos do autor. 18 Id., p. 253. 19 AGUIAR e SILVA, Vitor Manuel de. Teoria e Metodologia Literárias. 1. ed. Lisboa: Universidade Aberta, 2002, p. 293-294. 21 uma forma simples. Entretanto, ao narrador onisciente será dado um destaque maior, pois ele predomina no romance estudado. Esclarece a este respeito E. Anderson Imbert em Formas en la novela contemporánea (XVIII): “o narrador assume o papel de um deus que tudo sabe, capaz de analisar as ações e os pensamentos de suas criaturas, sucessiva e simultâneamente por fora e por dentro. É um narrador onisciente, visível e onipresente”20. Observe-se o exemplo seguinte: Era a sua íntima amiga. Tinham sido vizinhas, em solteira, na Rua da Madalena, e estudado no mesmo colégio, à Patriarcal, na Rita Pessoa, a coxa. Leopoldina era filha única do Visconde de Quebrais, o devasso, o caquético, que fora pajem de D. Miguel. Tinha feito um casamento infeliz com um João Noronha, empregado da alfândega. Chamavam-lhe a “Quebrais”; chamavam-lhe também a “Pão-e-queijo”. Sabia-se que tinha amantes, dizia-se que tinha vícios. Jorge odiava-a. E dissera muitas vezes a Luísa: Tudo, menos a Leopoldina!21 Pode-se observar que o narrador faz uso de uma capacidade de conhecimento praticamente ilimitada, podendo por isso, facultar as informações que entende ser pertinentes para o conhecimento minucioso da história. Ele conhece Luísa desde a sua mocidade, sabe com clareza o que ela apresenta em seu interior e conta ao leitor sem mesmo perguntar a ninguém, sem fazer com que outro personagem que tenha conhecido a personagem intervenha no relato, que Leopoldina “era a sua íntima amiga”. Bem como conhece toda a trajetória da vida desta, a qual o narrador julga ter “um casamento infeliz” e uma acusação que vai ser fundamentada somente no decorrer do romance, que ela “tinha amantes, dizia-se que tinha vícios”, como pode ser observado na citação acima. A visita de Leopoldina à casa do engenheiro, e toda a descrição da personagem, a qual se opõe à moral da época é um dos primeiros indícios da derrocada moral de Luísa. Mais uma ilustração: Às vezes na sua consciência achava Leopoldina “indecente”; mas tinha um fraco por ela: sempre admirava muito a beleza do seu corpo, que quase lhe inspirava atração física. Depois desculpava-a: era tão infeliz com o marido! Ia atrás da paixão, coitada! E aquela grande palavra, faiscante e misteriosa, de onde a felicidade escorre como a água de uma taça muito cheia, satisfazia 20 21 IMBERT, E. Anderson Apud DEFINA, Gilberto. Op. cit., p. 32. QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 24. 22 Luísa como uma justificação suficiente: quase lhe parecia uma heroína; olhava-a com espanto como se consideram os que chegam de uma viagem maravilhosa e difícil, de episódios excitantes. Só não gostava de certo cheiro de tabaco misturado de feno, que trazia sempre nos vestidos. Leopoldina fumava22. Aqui o narrador coloca-se numa posição de transcendência em relação ao universo diegético. Controla e manipula soberanamente os eventos relatados, os personagens que os interpretam, o tempo em que se movem e o cenário em que se situa o drama. Caracteriza ainda, o posicionamento moral de Luísa perante uma amiga que quebra as normas morais impostas às mulheres do seu tempo. Ela “desculpa” as atitudes de Leopoldina e ainda a vê como “heroína”, pois, esta “ia atrás da paixão, coitada!” era infeliz com o marido e a paixão, no seu ponto de vista, é “onde a felicidade escorre como a água de uma taça muito cheia”. Vale-se dizer que Eça, neste trecho, mostra a sociedade lisboeta vivendo de aparência, trazendo bases falsas e recalcadas numa educação rígida, na qual a mulher é a mais reprimida, sendo ela impossibilitada de buscar seus próprios desejos, busca vazão em leituras as quais a levam à “imoralidade imaginativa”, já que a moral visada e real é uma prisão, o preço da liberdade é o adultério. Estas justificativas eram suficientes para Luísa, de acordo com o narrador, já que é ele quem tece considerações sobre estes pensamentos secretos da personagem. [...] o narrador tem autonomia de resumir ou distender o tempo diegético, suprimir lapsos cronológicos mais ou menos longos, operar retrospectivas, etc. por outro lado, as possibilidades seletivas da focalização onisciente implicam uma vertente subjetiva; selecionando o que deve relatar, o narrador explícita ou implicitamente interpreta, do mesmo modo que formula juízos valorativos [...]. Essa manifestação corresponde muitas vezes à ocorrência da intrusão do narrador em discurso abstrato, a manipulações e reduções do tempo da história, nos domínios da freqüência, da ordem temporal e da velocidade, a descrições de dimensão panorâmica, etc23. 22 Id. Ibid., p. 26. REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Teoria da Narrativa. São Paulo: Ática, 1988, p. 256257. 23 23 Como já foi mencionado anteriormente, o tempo e o espaço são elementos considerados cruciais na composição de uma narrativa. Tem-se, portanto, no caso d’O Primo Basílio, o narrador onisciente como o agente que expõe ao leitor/receptor o tempo e o espaço em que vivem os personagens. Além de contar a história como alguém que tudo sabe, este narrador utiliza-se do tempo do discurso, que compreende três áreas de codificação: a ordem, a velocidade e a freqüência; nelas inserem-se signos (analepse, prolepse, cena dialogada, pausa descritiva, etc.) cuja articulação incute no relato a peculiaridade temporal que o caracteriza, além do espaço físico e social em que vivem os personagens. 1.2.1 - O tempo e o espaço na narrativa de O Primo Basílio Embora o intuito deste capítulo seja demonstrar a decadência moral da personagem Luísa, por meio do foco narrativo utilizado no romance de Eça e como se deu a construção dos personagens, crê-se que há a necessidade de pelo menos mencionar superficialmente o tempo e o espaço da narrativa, elementos que se pressupõem estruturais da obra literária, pois de que adiantaria haver um narrador que tudo sabe, no caso do romance estudado, e personagens construídos tais como seres humanos, sem um contexto histórico para inseri-los e um tempo apropriado para estes vivenciarem a sua história? Para embasar estes questionamentos, Aguiar e Silva lembra as afirmações de Maurice-Jean Lefebve. O romance, como toda narrativa, evoca ‘um mundo concebido como real, material e espiritual, situado num espaço determinado, num tempo determinado, refletido na maioria das vezes num espírito determinado que, diferentemente da poesia, tanto pode ser o de uma ou de várias personagens como o do narrador’. Nesse tempo e nesse espaço, em estreita conexão com o modo de ser das personagens, com as relações que estas mantêm entre si e com o meio, são figurados acontecimentos dispostos numa certa ordem seqüencial e apresentados segundo narrativas muito variáveis 24. Esta abordagem será de grande valia quando esta pesquisa for tratar da transmutação para a minissérie televisiva, na qual se poderá verificar com precisão o modo com que a câmera como narrador, vai mostrar o tempo e o espaço por meio do cenário, objetos, vestimenta dos personagens, diálogos e monólogos interiores, ou seja, através da atuação dos 24 atores. Entretanto, já é plausível considerar que, de acordo com Aguiar e Silva, a diegese de um determinado romance nunca será exatamente igual à diegese de um filme extraído desse romance, “por grande que seja a fidelidade do realizador ao texto do romance, tal como a diegese de um romance haveria de se alterar se fosse possível reescrevê-lo segundo uma técnica narrativa diferente [...]”25. Edwin Muir explica que o mundo imaginativo do romance dramático está no tempo, enquanto que o espaço é descrito de uma forma intensa, pois é este que caracteriza o modo de ser e as ações dos seres de papel. Em parte, o cenário, através das descrições do narrador, torna-se colorido e tingido pelas paixões das figuras principais. A título de ilustração, o espaço predominante no romance de Eça: “- Ah! Lisboa sempre é Lisboa – suspirou D. Felicidade.; - Cidade de mármore e granito, na frase sublime do nosso grande historiador! – disse solenemente o Conselheiro”26. O espaço é Lisboa, a casa de Luísa e de Jorge, o Paraíso e o Alentejo, os quais podem ser considerados como os mais mencionados na obra. Lisboa é o cenário da crítica de Eça de Queirós; é o espaço da sociedade lisboeta por onde transitam os personagens e onde eles expõem suas condições sócio-econômicas e históricas. Alentejo é o espaço que rouba Jorge de Luísa, deixando-a num marasmo sem fim. Paris é o cenário que devolve Basílio a Luísa, trazendo alegria e a novidade de uma vida de prazeres e aventuras. A casa é o espaço privilegiado do romance, onde se passam as cenas entre Luísa e Juliana – considere-se que o Paraíso serve de contraponto da vida doméstica e do mundo das alcovas. Contudo, crê-se que há, tanto no romance quanto na minissérie, dois espaços principais nos quais se desenrolam a ação: a casa de Jorge e o Paraíso. A sala esteirada, alegrava, com seu teto de madeira pintado a branco, o seu papel claro de ramagens verdes. Era em Julho, um domingo; fazia um grande calor; as duas janelas estavam cerradas, mas sentia-se fora o sol faiscar nas vidraças, escaldar a pedra da varanda; [...] nas duas gaiolas, entre as bambinelas de cretone azulado, os canários dormiam; um zumbido monótono de moscas arrastava-se por cima da mesa, pousava no fundo das chávenas sobre o açúcar mal derretido, enchia toda a sala de um rumor dormente27. 24 LEFEBVE, Maurice-Jean apud AGUIAR e SILVA, Vitor Manuel de. A Estrutura do Romance. 3. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1974, p. 41. 25 AGUIAR e SILVA, 1974. Op. cit., p. 44. 26 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 36. 27 Id. Ibid., p. 15. 25 A sala é o local da casa do engenheiro em que se passa boa parte do romance, a reunião com os amigos, os primeiros encontros com Basílio, o início da decadência moral de Luísa e os afrontamentos com Juliana. Já o local que Basílio aluga para encontrar-se com Luísa - longe dos comentários dos vizinhos e dos olhares atentos de Juliana – ele o denomina Paraíso, o que provoca em Luísa uma ansiedade que a leva a sonhar que está vivendo as situações daqueles romances que lê, no qual o amante providencia um lugar luxuoso e romântico para os encontros com a amada. Contudo, ao chegar ao endereço descrito por Basílio, Luísa depara-se com um lugar simples, sujo e sem nenhum luxo, índice de que a sua realidade está distante daquele sonho romântico vivido pelos personagens dos romances. O narrador descreve o espaço referido da seguinte forma: [...] uma casa amarelada, com uma portinha pequena. Logo à entrada um cheiro mole e salobro enojou-a. A escada, de degraus gastos, subia ingremente, apertada entre paredes onde a cal caía, e a umidade fizera nódoas. No patamar da sobreloja, uma janela com um gradeadozinho de arame, parda do pó acumulado, coberta de teias de aranha, coava a luz suja do saguão. E por trás de uma portinha, ao lado, sentia-se o ranger de um berço, o chorar doloroso de uma criança. [...] Luísa viu logo, ao fundo, uma cama de ferro com uma colcha amarelada, feita de remendos juntos de chitas diferentes; e os lençóis grossos, de um branco encardido e mal lavado, estavam impudicamente entreabertos...28 Por meio das descrições, é possível notar tanto o espaço físico quanto o espaço social em que os personagens vivem. A casa de Jorge não é um palacete, mas as mobílias, as porcelanas, as pratarias descritas no decorrer dos acontecimentos, bem como as refeições servidas, as serviçais, o cargo profissional que Jorge ocupa na sociedade e a classe social dos amigos que freqüentam a sua casa denotam que naquele ambiente vive um casal burguês. Quanto ao tempo, embora já se tenha comentado, este pode ser dissimilar em diferentes romances dramáticos; a capacidade de levá-lo ao fim para o qual ele se movimenta também pode ser definida e indefinida; o ritmo da ação pode ser mais lento ou mais rápido, o que sugere que a sensação de tempo esgotando-se dá a verdadeira margem à emoção dramática. “No romance dramático, pois, como em toda a literatura dramática, o tempo se 28 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 146. 26 move e, portanto, vai mover-se para seu fim e destruir-se”29. Considera-se aqui o tempo do discurso, que pode ser entendido como conseqüência da representação narrativa do tempo da história e o tempo do discurso ou diegese, propriamente dito. O problema da apresentação do tempo na narrativa impõe-se por causa de uma dissemelhança entre a temporalidade da história [ou diegese – grifo nosso] e a do discurso. O tempo do discurso é, em um certo sentido, um tempo linear, enquanto o tempo da história é pluridimensional. Na história, muitos acontecimentos podem-se desenrolar ao mesmo tempo; mas o discurso deve obrigatoriamente colocá-los um em seguida do outro; uma figura complexa encontra-se projetada sobre uma linha reta30. Considerando a diegese como uma sucessão de eventos inconcebíveis fora do fluxo do tempo, pode ser limitada e caracterizada por indicadores cronológicos, como por exemplo, as horas, os dias, as noites, os meses e as suas estações e os anos do calendário civil. Enquanto que o tempo do discurso narrativo julga-se de difícil medição, pois ainda há interferências dos tempos da escritura que seriam o tempo da enunciação e o tempo da leitura, ou seja, o tempo da percepção. A coincidência perfeita entre o desenvolvimento cronológico da diegese e a sucessão, no discurso, dos acontecimentos diegéticos, não se encontra possivelmente em nenhum romance. Aos desencontros entre a ordem dos acontecimentos no plano da diegese e a ordem por que aparecem narrados no discurso, daremos a designação de anacronia31. A possibilidade de utilizar o tempo para compor uma obra literária, faz com que a ficção passe a adquirir verossimilhança com a realidade, possibilitando ao leitor uma identificação com a história narrada, com o espaço/ambiente em que vivem os personagens. Possibilita ainda a identificação com o drama vivido por estes seres de papel, o que pode determinar o sucesso ou não de uma determinada obra. Abaixo temos um exemplo do tempo cronológico do romance queirosiano. Pode-se observar que o narrador conta os dias em que Jorge está ausente, para justificar as atitudes de 29 AGUIAR e SILVA, 1974. Op. cit., p. 46. DEFINA, Gilberto. Op. cit., p. 62. 31 AGUIAR E SILVA, 2002. Op. cit., p. 286. 30 27 Luísa. O monólogo interior da personagem atua como sua consciência ao lembrá-la que a sua visita à amiga iria contrariar as ordens do marido. Havia doze dias que Jorge tinha partido e, apesar do calor e da poeira, Luísa vestia-se para ir a casa de Leopoldina. Se Jorge soubesse não havia de gostar, não! Mas estava tão farta de estar só! Aborrecia-se tanto! De manhã ainda tinha os arranjos, a costura, a toilette, algum romance...Mas de tarde!32 Salienta-se que é relevante finalizar as abordagens sobre o tempo e o espaço na obra literária mencionando que o tempo do discurso é equilibrado pela narração e pela descrição. Se narrar é desdobrar ações temporalmente, descrever é situar objetos, seres e circunstâncias no espaço. Dentro da narrativa, a descrição é o repouso da ação. Objetivamente, a ação continuará acontecendo dentro dos episódios e incidentes da narração, e a ação será, deverá ser, sempre dinâmica. Mas da ação enquanto surge e perpassa pelo ambiente em que é vivida e que lhe oferece cenário, pano de fundo. A descrição é uma parada, estância para reconhecimento de lugar, do clima, do ambiente e é estática em relação à narração. Realizada com arte, umas vezes, a descrição serve como descanso ao leitor e momentos de lirismo dentro do conflituoso. Outras vezes pressiona mais o drama, indo até o trágico33. No romance, Eça usa de muita descrição, na sua totalidade é plausível dizer que a obra é permeada por descrições. Acredita-se que a minuciosidade com que são descritos os espaços, os objetos, os personagens e suas idealizações, pensamentos e caráter pessoal devese ao estilo realista-naturalista de O Primo Basílio, por meio do qual o autor tem a incumbência de situar o leitor quanto à sociedade da época. O que não implica o caráter dramático do romance, que se caracteriza pelo espaço limitado e liberdade no tempo. Esta abordagem sobre o espaço e o tempo em que se situa a narrativa romanesca de Eça de Queirós é necessária para o estudo do processo de construção dos personagens, pois crê-se que há, tanto no tempo quanto no espaço, elementos que caracterizam o comportamento, o estado de espírito, a formação e o modo de ver o mundo possível dos seres de papel. 32 33 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 48. GENETTE, Gerard. Apud DEFINA, Gilberto. Op. cit., p. 52. 28 1.3 – A construção dos personagens O processo de decodificação da construção dos personagens é possível quando estes são apresentados ao leitor por meio da descrição, o que, na narrativa, provoca as conseqüências das ações de cada um, influenciando nos acontecimentos da diegese, intensificando as dificuldades vividas por estas criaturas (ação), o que mais adiante, em circunstâncias diferentes, acabam se dissolvendo na seqüência da narrativa, de acordo com os pressupostos teóricos apontados por Aguiar e Silva. Segundo as teorias expostas em A estrutura do romance, A personagem constitui um elemento estrutural indispensável da narrativa romanesca. Sem personagem, não existe verdadeiramente narrativa, pois a função e o significado das ações ocorrentes numa sintagmática narrativa dependem primordialmente da atribuição ou referência dessas ações a uma personagem ou agente34. Supõe-se que a criação dos personagens denuncia e acentua o compromisso de O Primo Basílio com o seu tempo: a obra deve funcionar como arma de combate social o que realça seu caráter Realista-Naturalista. A burguesia - principal consumidora dos romances nessa época - deveria ver-se no romance e nele encontrar seus defeitos analisados objetivamente, para, assim, poder alterar seu comportamento. Temos no núcleo principal as personagens: Juliana Couceiro Tavira - personagem mais completa e acabada da obra, tem sido vista como o símbolo da amargura e do tédio em relação à profissão. Feia, virgem, solteirona, bastarda, está inconformada com sua situação e por isso odeia a tudo e a todos, não se detendo diante de qualquer sentimento de fundo moral; Luísa Mendonça de Brito Carvalho - representa a jovem romântica, inconseqüente em suas atitudes, a adúltera ingênua e, no final, arrependida; Basílio de Brito - o dândi, conquistador e irresponsável, "bon vivant" pedante e cínico e Jorge Carvalho – marido de Luísa, um engenheiro bem sucedido e funcionário do ministério. Já as personagens secundárias, dividem-se em: confidentes: Leopoldina Quebrais de Noronha - encarna o avesso da moral da época; adúltera, fumante, escandaliza a toda a sociedade; age conscientemente, possui vários amantes, Sebastião Vitória Soares e Visconde 34 AGUIAR e SILVA, Vitor Manuel. A Estrutura do Romance. Coimbra: Livraria Almedina, 1974, p. 24. 29 Reinaldo. As visitas: Conselheiro Acácio - tipifica o formalismo próprio da época, o falso moralismo, o apego às aparências; amigo do pai de Jorge e padrinho do casamento, gosta de frases feitas e citações morais, mas, na vida privada, lê poemas obscenos de Bocage e mantém como amante a empregada, Adelaide, a qual, por sua vez, o trai com um caixeiro; é um dos tipos mais famosos da galeria queirosiana, e responsável pelos adjetivos "acaciano" e "conselheiral", usados quando se deseja aludir ao falso padrão moral de alguém. D. Felicidade de Noronha – uma solteirona tolhida pela sociedade que, tardiamente, procura um marido e escolhe o Conselheiro Acácio; Julião Zusarte – um primo de Jorge. Médico e mal-sucedido financeiramente vive desejando se dar bem e agourando todas as conquistas de Jorge, porém é inofensivo. Ernesto Ledesma (Ernestinho) - primo de Jorge, é um escritor vazio, preocupado com dramalhões românticos, que escreve para o teatro. As cozinheiras e os vizinhos: Joana, Pedro, Paula dos móveis, Helena, Cunha Rosado, Gertrudes, Carvoeira, Virgínia Lemos, Mendonça, Justina, Tia Joana (na minissérie chama-se Henriqueta), Josefa (na minissérie chama-se Raimunda), Arnaldo, Filomena (na minissérie chama-se Rita); e as denominadas Participações Especiais, que desempenham poucas ações tanto na narrativa quanto na minissérie – Fernando, Artur, Gouveia, Cocheiro, Castro, Ana Silveira, Alves Coutinho, Vicente Azuzara e Mariana. De um modo geral, crê-se que os personagens de O Primo Basílio podem ser considerados o protótipo da futilidade, da ociosidade daquela sociedade. Parece prudente citar, aqui, todos os personagens com o intuito de situar o leitor na esfera da contextualização da história, pois, “[...] a personagem é um habitante da realidade ficcional, de que a matéria de que é feita e o espaço que habita são diferentes da matéria e do espaço dos seres humanos”35. Considerando este espaço ficcional onde vivem, no romance, nota-se que eles, assim como os seres humanos, possuem: [...] um reservatório/motor. Reservatório, agrega imagens, sentimentos, lembranças, experiências, visões do real que realizam o imaginado, leituras da vida e, através de um mecanismo individual/grupal, sedimenta um modo de ver, de ser, de agir, de sentir e de aspirar ao estar no mundo. [...] o imaginário emana do real, estrutura-se como ideal e retorna ao real como elemento propulsor36. São denominadas criaturas de papel, agem umas sobre as outras e se revelam umas pelas outras e assim propagam direta ou indiretamente suas ideologias, através de suas 35 BRAIT, Beth. A Personagem. São Paulo: Ática, 1985, p. 11. 30 próprias personalidades. Como reproduções do ser humano, possuem uma forma já idealizada pela maioria dos leitores/receptores, as quais fazem parte do processo de identificação destes com os personagens, criando assim um elo de identificação entre ambos, o que pode ou não caracterizar o sucesso da obra, de um modo geral. 1.3.1 – A derrocada moral da personagem Luísa no espaço doméstico Para exemplificar os questionamentos anteriores, faz-se necessário relatar o início da decadência moral de Luísa, a qual pôde ser revelada pela aproximação de Basílio: Ele então não hesitou, prendeu-a nos braços. Luísa ficou inerte, os beiços brancos, os olhos cerrados – e Basílio, pousando-lhe a mão sobre a testa, inclinou-lhe a cabeça para trás, beijou-lhe as pálpebras devagar, a face, os lábios depois muito profundamente; os beiços dela entreabriram-se; os seus joelhos dobraram-se. Mas de repente todo o seu corpo se endireitou, com um pudor indignado, afastou o rosto, exclamou aflita: - Deixa-me, deixa-me!37 É necessário ressaltar que Eça utiliza dos sentimentos próprios dos humanos para compor a essência dos seus personagens para que haja o desenvolvimento da narrativa e a identificação desta com o leitor. Embora existam inúmeros tipos de personalidade humana, acredita-se que em cada uma delas há uma busca pelo novo, por algo ainda não realizado ou não sentido, como no caso de Luísa. Possibilidades novas, oportunidades de viver um romance com seu ex-namorado, como nos romances que lia sugerindo uma outra existência, mais poética, mais própria para os grandes sentimentos. Outra característica própria dos seres humanos é o sentimento do arrependimento, também presente na personagem, que deixa de sonhar por um instante, no momento em que recebe uma carta de Jorge, ocasião em que o leitor experimenta as emoções próprias da situação da personagem e sensibiliza-se. Note: Não a esperava, e aquela folha de papel cheia de uma letra miudinha, que lhe fazia reaparecer vivamente Jorge, a sua figura, o seu olhar, a sua ternura, deu-lhe uma sensação quase dolorosa. Toda a vergonha dos seus 36 37 SILVA, Juremir Machado. As Tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2003, p. 11-12. QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 87. 31 desfalecimentos cobardes, sob os beijos de Basílio, veio abrasar-lhe as faces. Que horror deixar-se abraçar, apertar! No sofá o que lhe dissera; com que olhos a devorara!... Recordava tudo, - a sua atitude, o calor das suas mãos, a tremura de sua voz... E maquinalmente, pouco e pouco ia-se esquecendo naquelas recordações, abandonando-se-lhes, até ficar perdida na deliciosa lassidão que elas lhe davam, com o olhar lânguido, os braços frouxos. Mas a idéia de Jorge vinha então outra vez fustigá-la como uma chicotada. Erguiase bruscamente, passeava pelo quarto toda nervosa, com uma vaga vontade de chorar...38 Luísa fica a remoer e a lutar contra os seus desejos que se confrontam com a moral da época. Jorge viaja contra a sua vontade, e isto dá à personagem uma sensação de liberdade de expressão, de sentimento, de ação própria diferente das ações predestinadas na sua responsabilidade doméstica e de esposa. “Ação é personagem; uma pessoa é o que faz, não o que diz. [...] O que compõe um bom personagem? Quatro elementos: necessidade dramática, ponto de vista, mudança e atitude”39. Pressupõe-se que na construção tanto de uma personagem literária quanto de uma personagem de uma minissérie televisiva buscam-se elementos, os quais a caracterizem como uma possibilidade de existência humana. Estes elementos podem ser notados na seguinte passagem do romance: Mas enfim, vamos, de que lhe servia estar livre, só? – E de repente tudo o que poderia fazer, sentir, possuir, lhe aparecia numa perspectiva longa que fulgurava; aquilo era como uma porta, subitamente aberta e fechada, que deixa entrever, num relance, alguma coisa de indefinido, de maravilhoso, que palpita e faísca. – Oh! Estava doida decerto!40 Ao escrever sobre a criação de um personagem, Syd Field cita Aristóteles, já que os filósofos dizem que a vida de um homem é medida pela soma total das ações que pratica durante o tempo da sua existência, “a vida consiste de ação”41. No caso do romance não é diferente, Aguiar e Silva42 comenta que é por meio do retrato descritivo, feito pelo narrador, acerca do personagem, que o caracteriza como um ser fictício com seu estado físico e 38 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., 93. FIELD, Syd. Os Exercícios do Roteirista. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 45. 40 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 94. 41 FIELD, Syd. Op. cit., p. 45. 42 Cf. em AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria e Metodologias Literária. 1. ed. Lisboa: Universidade Aberta, 2002, p. 261. 39 32 psicológico-moral, o qual geralmente é completado quando o narrador apresenta ao leitor a sua história genealógica, que ele “ganha” vida e pode vivenciar as ações narradas. É possível notar neste trecho que Luísa se encontra diante de um drama sentimental, que representa o conflito necessário para o desencadeamento do enredo. Então é oportuno dizer que uma vez que se estabeleça a necessidade dramática do seu personagem, o autor, cria obstáculo a essa necessidade, o que gera a busca do personagem para ultrapassar ou não todos os empecilhos para satisfazer a sua carência. Esta afirmação pode ser justificada na obra, quando Basílio visita pela quinta vez a prima e a presenteia com um romance de Belot, intitulado A mulher de fogo. Nesta ocasião, Basílio, pressentindo que a prima estava resistindo aos seus desejos, faz um discurso persuasivo sobre as burguesas da alta sociedade, caracterizando-as como mulheres muito distintas, porém todas tinham amantes. Pode-se notar que todos os seus gestos e palavras têm como objetivo manipular Luísa, que cada vez mais se convence de que o adultério parecia assim um dever aristocrático, é quando ela aceita ir ao campo com Basílio para passear. Iam entrando no Lumiar, e por prudência desceram os estores. Ela afastou um, e, espreitando, via fora passar rapidamente, ao lado do trem, árvores empoeiradas; um muro de quinta de um cor-de-rosa sujo; fachadas das casas mesquinhas; um ônibus desatrelado; mulheres sentadas ao portal, à sombra, catando os filhos; e um sujeito vestido de branco, de chapéu de palha, que estacou, arregalou os olhos para as cortinas fechadas do coupé. E ia desejando habitar ali numa quinta, longe da estrada; teria uma casinha fresca com trepadeiras em roda das janelas, parreiras sobre pilares de pedra, pés de roseiras, ruazinhas amáveis sob árvores entrelaçadas, um tanque debaixo de uma tília, onde de manhã as criadas ensaboariam, bateriam a roupa, palrando. E ao escurecer, ela e ele, um pouco quebrados das felicidades da sexta, iriam pelos campos, ouvindo calados, sob o céu que se estrela, o coaxar triste das rãs43. Outro elemento, o ponto de vista, é caracterizado por Field, na narrativa televisual e/ou fílmica como a maneira como o personagem vê o mundo, o que na literatura é apresentado ao leitor por meio do narrador. Luísa é sonhadora, um pouco distante da realidade e do senso crítico, inconseqüente. A sua idéia de felicidade se restringe a futilidades, as quais só podem fazer parte do universo das pessoas sonhadoras. Por outro lado, apesar de não ser um 33 estereótipo desejado pela maioria dos leitores, supõe-se que a personagem desperta uma certa dose de empatia, necessária para o desenvolvimento tanto do enredo quanto da identificação do leitor com a obra, o que não é diferente na minissérie. Pode-se dizer que o leitor enxerga o desejo de Luísa por uma vida diferente da que vive com Jorge. Imagina-se que ela sofre por não se sentir segura distante do marido e quando encontra no primo o suprimento para as suas carências, passa a desejar viver com ele, mas ao mesmo tempo não deixa de lembrar da ausência de Jorge. Tal fato pode ser notado no seguinte fragmento: Mas um sentimento de solidão, de abandono, veio impacientá-la. Que seca, estar ali tão sozinha! Aquela noite cálida, bela e doce, atraía-a, chamava-a para fora, para passeios sentimentais, ou para contemplações do céu, num banco de jardim, com as mãos entrelaçadas. Que vida estúpida, a dela! Oh! Jorge! Que idéia ir para o Alentejo! As conversas de Leopoldina e a lembrança das suas felicidades voltavam-lhe a cada momento; uma pontinha de champagne agitava-se-lhe no sangue. O relógio do quarto começou lentamente a dar nove horas – e de repente a campainha retiniu44. O retinir da campainha é um índice da consumação total do adultério. A visita noturna de Basílio, com o pretexto de se despedir, gera em Luísa o sentimento de perda, para tentar evitar o conflito interior, ela cede. O narrador descreve ainda, as sensações da personagem Luísa ao se sentir sozinha, distante de Jorge. Conta ao leitor como se estivesse sentindo os anseios de Luísa, partilhando das suas fantasias, lembranças e desejos. Demonstra que a personagem tem características próprias das mulheres burguesas, considerando o contexto social da época que o autor se propôs a retratar. Os pensamentos e a educação familiar frágeis podem ser notados na personagem, bem como o romantismo com que encara as situações reais, pois não é capaz de suportar a fria realidade em que vive e se encontra diante da partida de Jorge para o Alentejo. Esta frivolidade pode ser notada desde o início do romance, já na transcodificação para a minissérie televisiva, o espectador percebe, através da atuação da atriz Giulia Gam, do modo como interpreta Luísa, suas ações, desejos e todo o seu modo de vida. Constata-se que a maneira como a personagem vê o mundo é uma das razões principais que a levam a continuar se encontrando com o primo, sem pensar nas conseqüências, não dando ouvidos a sua consciência, nem aos comentários da vizinhança e muito menos dos olhos atentos de Juliana, o que caracteriza o outro elemento que compõe a personagem, a mudança, 43 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 112-113. 34 segundo Field e posteriormente, a atitude, também citada pelo autor, a qual poderá ser notada quando Luísa decide aceitar o convite para se encontrar com Basílio no Paraíso. 1.3.2 – A derrocada de Luísa no espaço do adultério (Paraíso) Segundo Antonio Candido, “Geralmente, da leitura de um romance fica a impressão duma série de fatos, organizados em enredo, e de personagens que vivem estes fatos”45. O autor ainda comenta que é praticamente impossível pensar o enredo separadamente dos personagens e vice-versa, pois quando se leva em conta a vida que levam, os problemas que se desenrolam no decorrer da narrativa, também se considera a linha do seu destino, traçadas num espaço e em um tempo determinados dentro do romance. “O enredo existe através das personagens; as personagens vivem no enredo. Enredo e personagem exprimem, ligados, os intuitos do romance, a visão da vida que decorre dela, os significados e valores que o animam”46. Note-se a trajetória de Luísa no espaço do adultério, um quartinho alugado num bairro simples e afastado, denominado Paraíso por Basílio: Ia encontrar Basílio no Paraíso pela primeira vez. E estava muito nervosa; não pudera dominar, desde pela manhã, um medo indefinido que lhe fizera pôr um véu muito espesso, e bater o coração ao encontrar Sebastião. Mas ao mesmo tempo uma curiosidade intensa, múltipla, impelia-a, com um estremecimentozinho de prazer. – Ia, enfim, ter ela própria aquela aventura que lera tantas vezes nos romances amorosos! Era uma forma nova do amor que ia experimentar, sensações excepcionais! Havia tudo - a casinha misteriosa, o segredo ilegítimo, todas as palpitações do perigo! Porque o aparato impressionava-a mais que o sentimento; e a casa em si interessava-a, atraía-a mais que Basílio! Como seria? Era para os lados de Arroios [...]47. Pode-se perceber através da narração, que a personagem está ansiosa pelo encontro, mas que não é o amante que lhe interessa, muito menos o sentimento que tem por ele, mas a frivolidade em saber se o Paraíso é um lugar tão sofisticado quanto os que costuma imaginar 44 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 130. CANDIDO, Antônio (Org.). A Personagem de Ficção. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 53. 46 Id. Ibid., p. 53-54. 47 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 145. 45 35 ao ler sobre os encontros amorosos dos romances, curiosidades que são partilhadas com Leopoldina. “A personagem vive o enredo e as idéias, e os torna vivos”48. O trecho demonstra ainda a superficialidade com que Luísa pensa, sonha, deseja e encara a realidade. Nota-se também que há juízo de valores, quando o narrador afirma que “a casa em si interessava-a, atraía-a mais que Basílio!”. É por meio do narrador que o autor traça o roteiro da criação de um personagem através de uma situação para construir a história. Diferentemente de um roteiro televisivo, que conta uma história por meio de imagens, com detalhes externos usando a atuação dos personagens, o romance, segundo Syd Field, geralmente lida com a vida interior, mais profunda de alguém, “e os pensamentos, sentimentos, emoções e memórias do personagem acontecem no universo mental da ação dramática. Um romance geralmente acontece dentro da cabeça do personagem”49. Então o ponto de vista do personagem é o que causa os conflitos no decorrer da diegese. Conflitos estes, estritamente necessários para que haja a ação e conseqüentemente o desenrolar da narrativa. Este elemento que compõe o personagem das obras literárias também está presente nos personagens fílmicos e televisivos, pois assim como no romance o “personagem dramatiza um ponto de vista forte, bem definido [...] e vai agir a partir de seu ponto de vista, e não simplesmente reagir”50. Até então Luísa se envolve nas ternuras de uma vida modificada com a partida de Jorge e a chegada de Basílio. Contudo, em uma das vezes que seu primo não apareceu conforme combinado, Luísa escreve um bilhete com a intenção de enviá-lo ao amante, como se pode constatar no fragmento transcrito: E o seu grande amor, de repente, como um fumo que uma rajada dissipa, desapareceu! Sentiu um alívio, um grande desejo de tranqüilidade. Era absurdo, realmente, com um marido como Jorge, pensar noutro homem, um leviano, um estróina!... Deram quatro horas. Veio-lhe uma desesperação, correu ao escritório de Jorge, agarrou uma folha de papel, escreveu à pressa: Querido Basílio. Por que não vens? Estás doente? Se soubesses os tormentos por que me fazes passar...51 48 CANDIDO, Antonio (Org.). Op. cit., p. 54 FIELD, Syd. Os Exercícios do Roteirista. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 15. 50 Id. Ibid., p. 48. 51 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 118. 49 36 É o momento em que a campainha toca. Luísa amassa rapidamente o bilhete e o guarda no bolso do vestido. Era Sebastião que chegara com passos de homem alertando-a sobre os comentários dos vizinhos a respeito das visitas do primo à sua casa e os seus passeios diários. No entanto, Luísa não dá ouvidos ao amigo. É então que entra em cena a personagem Juliana, a qual é considerada por este estudo, como a personagem mais completa da obra de Eça. Enquanto Luísa é avaliada como uma personagem plana, ou seja, uma personagem facilmente reconhecida e lembrada, caracterizada no universo diegético como seres de papel que “[...] em sua forma mais pura são construídas ao redor de uma única idéia ou qualidade [...]52, e estas características não se alteram no decorrer da obra. Todavia é possível tecer questionamentos sobre esta classificação dada à personagem Luísa, porque apesar da fragilidade ser o seu traço característico, a narrativa mostra, num primeiro momento, que ela tem desejo de vivenciar um romance, de morar em outra casa, de ter um filho, de fugir com Basílio, sente remorsos quando é abandonada pelo amante. Estas características que também povoam o comportamento de Luísa fazem pensar na hipótese desta ser classificada como uma personagem redonda, que segundo Forster é aquela capaz de surpreender de modo convincente por meio de suas atitudes no desenrolar da narrativa. Vale ressaltar que a personagem Luísa, apesar de todas as circunstâncias pelas quais passou em razão do seu adultério, o que leva a crer que ela pode ser classificada como personagem redonda, porque a princípio conseguiu surpreender o leitor com as suas atitudes inusitadas, como por exemplo, sujeitar-se a encontrar o amante em um lugar degradado pelo aspecto físico (Paraíso), ela morre pela mesma característica que a fez cair no adultério, a fragilidade. Outra razão importante que poderia torná-la uma personagem redonda, o sentimento de remorso por trair o marido, o que poderia demonstrar que ela modificou o seu modo de encarar a realidade, entretanto, não passa de medo. O medo de ficar sem um marido, independente se este fosse Jorge ou Basílio, outra característica de uma pessoa frágil. Machado de Assis, em uma crítica à obra O Primo Basílio de Eça de Queirós, afirma: [...] a Luísa – força é dizê-lo – a Luísa é um caráter negativo, e no meio da ação ideada pelo autor, é antes um títere do que uma pessoa moral. 52 FORSTER, Edward M. Aspectos do Romance. 2. ed. São Paulo: Globo, 1998, p. 66. 37 Repito, é um títere; não quero dizer que não tenha nervos e músculos; não tem mesmo outra coisa; não lhe peçam paixões nem remorsos; menos ainda consciência53. As afirmações de Machado de Assis podem ser apreendidas através de uma leitura crítica do romance. E para complementar, Foster argumenta que, para o leitor, os personagens planos “[...] permanecem inalteráveis em sua mente pelo fato de não terem sido transformadas pelas circunstâncias, movendo-se através delas. Isso é que lhes dá, num retrospecto, uma qualidade confortante, e as preserva [...]”54, como crê-se que é o caso da personagem Luísa. Já Juliana é o oposto, possui personalidade própria e tem objetivos a cumprir, levando em conta o mundo possível em que vive no romance. Ela encontra o bilhete no bolso de Luísa, lê e o devolve esperando encontrar uma prova mais concreta do adultério prova da qual pretende tirar proveito por meio de chantagens que podem vir a lhe dar lucros, vestidos novos, botinhas e uma vida melhor. À Juliana compete a caracterização de personagem redonda, para a qual se atribui uma multiplicidade de traços que a permite agir com atitudes inusitadas, próprias do caráter que lhe foi atribuído, na sua construção. Forster assevera que “o teste para uma personagem redonda está nela ser capaz de surpreender de modo convincente [...]”55 o leitor. Passado alguns dias, Luísa volta a escrever para Basílio e quando está quase finalizando a carta eis que chega de forma inesperada, D. Felicidade e a única maneira de se livrar do escrito é atirando-o no sarcófago56. Tem-se aqui um exemplo de plurissignificação da linguagem de O Primo Basílio, que segundo Aniceta Mendonça, “é desta caixa de papéis que Juliana irá furtar o rascunho da carta de Luísa para Basílio. Uma caixa que deveria ser o caixão de um segredo e é afinal o lugar onde jaz a morte da tranqüilidade do amor adúltero”57. Juliana, que já está ansiosa por uma deixa da patroa, encontra a carta e guarda-a. Luísa fica extremamente nervosa e procura o papel desesperadamente, sem ao menos imaginar que pudesse estar com Juliana, despreocupa-se ao pensar que o lixeiro poderia tê-lo levado. E 53 ASSIS, Machado de. Eça de Queirós: O Primo Basílio. In: ____________. Crítica & Variedades. São Paulo: Globo, 1997, p. 132-147. 54 FORSTER, Edward M. Op. cit., p. 67. 55 FORSTER, Edward M. Op. cit., p. 75. 56 “O próprio ‘sarcófago’, bem como os objetos distribuídos naquele escritório – as espadas, a caixa das pistolas – fazem parte da semiologia da narrativa. O ‘sarcófago’ é o virtuema da morte de Luísa – é nele que joga apressadamente a carta que escrevia a Basílio, e é essa carta que Juliana depois utiliza na chantagem”. Cf. MENDONÇA, Aniceta de. Da descrição aos objetos: personagens nos romances de Eça de Queirós. Revista de Letras. Assis-SP, 19: 9-38, 1997, p. 28. 57 MENDONÇA, Aniceta de. O Primo Basílio, romance exemplar do realismo queirosiano. Revista de Letras. Assis-SP, 14, 72-85, 1972, p. 83-84. 38 continua se encontrando com Basílio no Paraíso e trocando de vez em quando uma ou outra correspondência. Esta capacidade de Juliana surpreender o leitor com suas atitudes perante a decadência moral da sua patroa é uma das prerrogativas que a caracterizam como personagem redonda. As suas ações não param por aí. Juliana rouba as cartas da patroa e deixa-as com uma tia, guardando consigo uma cópia delas. De acordo com Howard & Mabley: [...] o personagem precisa tentar fazer alguma coisa: tentar não fazer alguma ou tentar impedir que algo aconteça também significa fazer algo. [...] mas é preciso haver obstáculos que impeçam tal personagem de atingir facilmente o que quer. Se for fácil salvar a pessoa, ganhar a corrida ou pintar o quadro, o público dirá: E daí? O desinteresse do público é resultado da falta de dificuldade na circunstância58. A ação de Juliana ao pegar a carta do sarcófago e roubar as que Luísa tinha guardadas no baú de cartas vem demonstrar que “o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização deste”59, pois a atitude de Juliana é plausível com a de um ser humano que possui objetivos a alcançar e está disposto a correr qualquer risco para conseguir. Antes mesmo de Juliana declarar a Luísa sobre a posse das suas cartas e iniciar a chantagem, a protagonista já se sentia impura e usada pelo amante, que já não mais a tratava como antes. Observe: Ultimamente mesmo, quando ela entrava no Paraíso, já não tinha a delicadeza amorosa de se levantar alvoroçado; sentava-se apenas na cama, e tirando preguiçosamente o charuto da boca: - Ora viva a minha flor! – dizia. E um ar de superioridade quando lhe falava! Um modo de encolher os ombros, de exclamar: - Tu não percebes nada disso! Chegava a ter palavras cruas, gestos brutais. E Luísa começou a desconfiar que Basílio não a estimava, apenas a desejava! Ao princípio chorou [...]60. A verossimilhança das atitudes dos personagens com as atitudes dos seres reais vem a calhar quando Juliana, já sabendo do adultério e em posse das cartas, faz-se de interessada no 58 HOWARD, David. MABLEY, Edward. Teoria e prática do roteiro. São Paulo: Globo, 1996, p. 50. CANDIDO, Antonio. (org.). A personagem de ficção. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 55. 60 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 159. 59 39 bem-estar da sua patroa. Repare como o narrador descreve a tranqüilidade em que se encontrava a casa de Jorge por estes tempos: A casa com efeito tinha um aspecto jovial de felicidade tranqüila: Luísa saía todos os dias e achava tudo bom; nunca se impacientava; a sua antipatia por Juliana parecia dissipada; considerava-a uma pobre de Cristo! Juliana tomava seus caldinhos, dava seus passeios, ruminava. Joana, muito livre, muito só em casa, regalava-se com o carpinteiro. Não vinham visitas. D. Felicidade, na Encarnação, inundava-se de arnica. Sebastião fora para Almada vigiar as obras. O Conselheiro partira para Sintra, “dar umas férias ao espírito, tinha ele dito a Luísa, a deliciar-se nas maravilhas daquele Éden”. O Sr. Julião, “o doutor”, como dizia Joana, trabalhava a sua tese. As horas eram muito regulares; havia sempre o silêncio pacato. Juliana, um dia, impressionada por aquele recolhimento satisfeito de toda a casa, exclamou para Joana: -Não se pode estar melhor! A barca vai num mar de rosas! E acrescentou, com uma risadinha: -E eu ao leme!61 Juliana silenciosamente já controlava a casa de Jorge, oferecendo indícios ao leitor de que adiante ela usaria das cartas para conseguir dinheiro da patroa. A convivência dos personagens vem confirmar que a “verossimilhança propriamente dita, - depende em princípio da possibilidade de comparar o mundo do romance com o mundo real (ficção igual a vida)”.62 Ferreira cita Forster, o qual complementa as considerações precedentes, mencionando que o personagem deve lembrar um ser vivo, encarando a verossimilhança mais em termos de coerência, pois “as personagens são reais, não por serem como nós (embora possam sê-lo), mas, porque são convincentes. Elas nos devem dar a sensação de que, embora não tenham sido explicadas, são explicáveis; aí reside a sua sensação do real”.63 Com o passar dos dias Juliana passa a se acomodar nos seus afazeres domésticos. Ao chegar de um de seus passeios, Luísa encontra a casa e o seu quarto por arrumar e chama a atenção de Juliana que responde em tom alterado: 61 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 161-162. CANDIDO, Antonio. Op. cit., p. 75. 63 FORSTER, E. M. Apud FERREIRA, Edda Arzúa. Integração de Perspectivas: contribuição para uma análise de personagens de ficção. Rio de Janeiro: Cátedra, 1975, p. 22. 62 40 - A senhora não me faça sair de mim! A senhora não me faça perder a cabeça! – E com voz estrangulada através dos dentes cerrados: - Olhe que nem todos os papéis foram para o lixo! Luísa recuou, gritou: - Que diz você? - Que as cartas que a senhora escreve aos seus amantes, tenho-as eu aqui! – E bateu na algibeira, ferozmente. Luísa fitou-a um momento com os olhos desvairados e caiu no chão, junto a causeuse, desmaiada.64 A ira de Juliana desencadeou o clímax do romance. A possibilidade de vir à tona o adultério abalou as estruturas frágeis da personalidade de Luísa, que sem maturidade alguma acredita que Basílio é capaz de tomá-la nos braços e levá-la para Paris. É então que faz as malas e procura por Basílio, que encara a situação de uma forma inusitada aos olhos de Luísa, quando ele se recusa a fugir com ela. Note-se que Luísa cai em si e se dá conta da realidade em que se encontra, o que torna ainda mais evidente a sua fragilidade, as suas ações impensadas e a falta que fez a razão ao se entregar a um amante. Veja-se como Luísa se sentiu com a recusa de Basílio, na descrição do narrador: Aquelas palavras caíam sobre os planos de Luísa, como machadadas que derrubam árvores. Às vezes a verdade que elas continham atravessava-a irresistivelmente, viva como um relâmpago, desagradável como um gume frio. Mas via naquela recusa uma ingratidão, um abandono. Depois de se ter instalado, pela imaginação, numa segurança feliz, longe, em Paris – parecialhe intolerável ter de voltar para casa, de cabeça baixa, sofrer por Juliana, esperar a morte; e os contentamentos que entrevira naquele outro destino, agora que lhe fugiam de entre as mãos, pareciam-lhe maravilhosos, quase indispensáveis! E depois de que servia resgatar a carta a dinheiro? A criatura saberia seu segredo! E a vida seria amarga, tendo sempre em volta de si aquele perigo a rondar!65 64 65 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 178-179. QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 190. 41 É possível observar os pensamentos de Luísa perante a situação de desamparo em relação ao amante. Seus medos, a sua fragilidade ao se deparar com as conseqüências dos seus atos, através do monólogo interior. As fantasias vividas com Basílio, assim como nos romances que lia, também a colocam numa situação de enfrentamento com a realidade, com a qual ela não consegue lidar. O narrador expõe todas as conseqüências que seu ato adúltero veio causar juntamente com a imaturidade e visão irreal de mundo vivido pela personagem. Constata-se que este seja o momento de maior relevância no romance de Eça. Observa-se que as suas características realistas vêm a tona com as atitudes de Basílio perante a amante. A sua mesquinhez, seu espírito individualista e estritamente voltado para os bens materiais juntamente com a sua praticidade se chocam com o romantismo e a vida fútil de Luísa, cheia de sonhos “cor-de-rosa” cultuados pelos romances que lê. Abaixo está o diálogo que demonstra as afirmações anteriores, em que Luísa conversa com Basílio sobre a sua decisão de abandonar o marido e fugir para Paris: - Saí de casa para sempre, aí está o que eu fiz! - Mas vais voltar para casa! – exclamou ele, quase com cólera. – Por que havias de tu fugir? Por amor? Então devíamos ter partido há um mês; não há razão para nós irmos. Para que, então? Para evitar um escândalo? Como um escândalo maior, não é verdade? Um escândalo irreparável, medonho! Estou-te a falar como um amigo, Luísa!! – Tomou-lhe as mãos, com muita ternura: - Tu imaginas que eu não seria feliz em ir viver contigo para Paris? Mas vejo os resultados, tenho outra experiência. O escândalo todo evita-se com umas poucas de libras. Tu imaginas que a mulher vai-se pôr a falar? O seu interesse é safar-se, desaparecer; sabe perfeitamente o que fez; que te roubou; que usou de chaves falsas. A questão é pagar-lhe66. A praticidade e a objetividade de Basílio deixam Luísa extremamente nervosa e sem o controle da situação. Ela não sabe como agir perante as afirmações do amante, não consegue se impor diante de uma palavra masculina devido a sua educação frágil, pois foi educada para receber ordens do marido, e neste caso, do amante. Embora não soubesse o que fazer, Luísa sentia a necessidade de agir de outra forma, fugir das regras impostas pela sociedade. Mesmo considerando seu estado adúltero, tinha agora, com a recusa de Basílio, que cuidar para que Jorge ao chegar do Alentejo, não descobrisse seu romance com o primo. Este enfrentamento da realidade mostrada no romance através do drama dos personagens deve ser considerado 42 como uma das razões de Eça em escrever sobre um tema tão comum e ao mesmo tempo tão pouco mostrado na sociedade lisboeta do século XIX. Em O Primo Basílio tem-se “Personagens construídas a partir de um modelo real, conhecido pelo escritor, que serve de eixo, ou ponto de partida”67 para o desencadeamento do romance. Confira a analogia que o autor faz entre um amante real e um amante fictício, no caso, Basílio ao se deparar com uma situação de chantagem, na qual há a necessidade de dispor de dinheiro para solucionar o problema: Enfim oferece-lhe trezentos mil-réis, se quiseres. Mas pelo amor de Deus, não faças outra; não estou para pagar as tuas distrações a trezentos mil-réis cada uma! Luísa fez-se lívida, como se ele lhe tivesse cuspido no rosto. - Se é uma questão de dinheiro, eu o pagarei, Basílio! Não sabia como. Que lhe importava? Pediria, trabalharia, empenharia...Não aceitaria o dele! Basílio encolheu os ombros: - Estás-te a dar ares; onde o tens tu? - Que te importa? – exclamou.68 É possível notar que tanto Basílio como Luísa perante uma situação embaraçosa de decisão, agem como dois seres humanos. Por um lado, Basílio que só pensa nos seus bens materiais e nos seus próprios prazeres e por outro, Luísa, que diante de uma situação nova e traumática não consegue considerar a realidade que está vivendo e em vez de também usar da praticidade para resolver o problema, age como uma donzela desamparada, característica própria de uma educação voltada somente para os afazeres domésticos. Ao leitor cabe uma explicação do porquê de tantas citações do romance. A ênfase nos diálogos e descrições pode ser justificada pelo fato de que se acredita que estes conflitos vividos pela personagem Luísa são indícios que a levam a um fim pré-destinado por aqueles que não procedem de acordo com as regras morais da sociedade retratada no romance. Para que seja possível a criação de uma narrativa dramática, seja ela televisual, cinematográfica ou mesmo a literária é necessário que haja conflitos. Estes conflitos são gerados por um problema escolhido pelo autor, o qual também escolhe como se dará este 66 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 190-191. CANDIDO, Antonio. Op.cit., p. 72. 68 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 191. 67 43 desenvolvimento e posteriormente, traça a sua solução, pelo desfecho. Eça escolheu o modo de vida e as influências morais, sociais, políticas, econômicas e culturais da sociedade burguesa do século XIX como problema. Já o caminho para demonstrar o problema deu-se através da ficção e da escolha dos núcleos de personagens e suas histórias de vida, considerando como conflito principal a ação do adultério entre Luísa e o primo Basílio, que está sendo demonstrado neste momento por meio das citações e respectivos comentários. Enquanto a solução do problema e o desenlace final devem ser relatados posteriormente. Basílio não quer participar do problema, causado pelo roubo das cartas – pela criada Juliana - que se dirigiu a Luísa. Este modo de agir do amante deixa Luísa desnorteada e desamparada perante uma situação nova a seus olhos, o que não ocorre com Basílio que já teve experiências parecidas. Observe que Luísa sente medo: Ela interrompeu-o, agarrou-lhe violentamente o braço; - Pois sim, mas fala tu a essa mulher, fala-lhe tu, arranja tudo. Eu não a quero tornar a ver. Se a vejo, morro, acredita. Fala-lhe tu! Basílio recuou vivamente, e batendo com o pé: - Estás doida mulher! Se eu falo, então pede tudo, então pede-me a pele! Isso é contigo. Eu dou-te o dinheiro, tu arranja-te!69 Eça descreve com muita sutileza como a sociedade machista vê a mulher. Primeiro pela forma com que Basílio trata Luísa depois de ter conseguido o que queria, ou seja, os encontros no Paraíso e depois a revolta deste quando se depara com a obrigação de ser responsável pelo ato de sedução e conquista de sua prima, o que a levou a ceder e a julgar que os sentimentos dele eram profundos e de cumplicidade e compromisso. O caráter pouco acentuado de Basílio pode ser notado quando este compartilha com o amigo, Visconde Reinaldo, os problemas que está tendo com a amante. É então que Visconde Reinaldo comenta: - Oh quê? – E coberto de flocos de espuma, com as mãos apoiadas ao rebordo da mármore da tina: - Pois tu achas isso decente, uma mulher que toma a cozinheira por confidente, que lhe está na mão, que perde a carta nos papéis sujos, que chora, que pede duzentos mil-réis, que quer safar – isso é 69 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 191. 44 lá amante, isso é lá nada! Uma mulher que, como tu mesmo disseste, usa meias de tear! - Meu rico, é uma mulher deliciosa! O outro encolheu os ombros descrente. Basílio deu logo provas; descreveu belezas do corpo de Luísa; citou episódios lascivos70. Os comentários de Basílio são característicos dos homens de uma sociedade machista que tem na mulher, um objeto para ser usado e descartado ou como progenitora que possibilitará a continuação do nome da família. Estas afirmações podem ser justificadas logo no início do romance quando o narrador conta que o personagem Jorge depois que a sua mãe morreu, sentia falta ouvir um fru-fru de vestidos andando pela casa, desejo que seria realizado com o casamento com Luísa. Com a atitude própria de um amante totalmente descompromissado, Basílio parte para Paris e deixa Luísa sozinha como esposa adúltera que é chantageada. Com o sentimento de arrependimento, próprio dos humanos, Luísa novamente se depara com a realidade e se lembra que é casada com um homem bom e íntegro, como pode ser verificado na passagem seguinte: O trem rolou. Era o nº 10... Nunca mais o veria! Tinham palpitado no mesmo amor, tinham cometido a mesma culpa. – Ele partia alegre, levando as recordações romanescas da aventura; ela ficava, nas amarguras do erro. E assim era o mundo! Veio-lhe um sentimento de solidão e abandono. Estava só, e a vida aparecialhe como uma vasta planície desconhecida, coberta da densa noite, eriçada de perigos! Entrou no quarto devagar, foi-se deixar cair no sofá; viu ao pé o saco de marroquim, que preparara na véspera para fugir: abriu-o; pôs-se a tirar lentamente os lenços, uma camisinha bordada, - encontrou a fotografia de Jorge! Ficou com ela na mão, contemplando o seu olhar leal, o seu sorriso bom. – Não, não estava no mundo só! Tinha-o a ele! Amava-a aquele; nunca a trairia, nunca a abandonaria! – E colando os beiços ao retrato, umedecendo-o de beijos convulsivos, atirou-se de bruços, lavada em 70 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p.194. 45 lágrimas, dizendo: - Perdoa-me, Jorge, meu Jorge, meu querido Jorge, Jorge da minha alma! 71 É o ápice do desespero da amante. Sozinha, adúltera, a consciência matando-a aos poucos pelo sentimento de culpa e ainda tendo que enfrentar Juliana, uma criada de dentro de casa com personalidade própria, com objetivos traçados, inerte ao seu sofrimento. É então que começa a degradação moral de Luísa no espaço doméstico. Perante os vizinhos já existem os mexericos provenientes das suas saídas ao Paraíso, das visitas do primo. Os amigos Sebastião e Julião Zuzarte também comentam entre si, a possibilidade do adultério, mas até então, o ambiente doméstico, apesar das críticas das empregadas, ainda estava intacto. A paz no lar acaba: Eram quase nove horas quando a campainha retiniu com pressa. Julgou que seria Joana de volta; foi abrir com um castiçal, - e recuou vendo Juliana, amarela, muito alterada. - A senhora faz favor de me dar uma palavra? Entrou no quarto atrás de Luísa, e imediatamente rompeu, gritando, furiosa: - Então a senhora imagina que isto há de ficar assim? A senhora imagina que por o seu amante se safar, isto há de ficar assim? - Que é,mulher? – fez Luísa, petrificada. - Se a senhora pensa, que por o seu amante se safar, isto há de ficar em nada? – berrou. - Oh mulher, pelo amor de Deus!... A sua voz tinha tanta angústia que Juliana calou-se. Mas depois de um momento, mais baixo: - A senhora bem sabe que se eu guardei as cartas, para alguma coisa era! Queria pedir ao primo da senhora que me ajudasse! Estou cansada de trabalhar, e quero o meu descanso. Não ia fazer escândalo; o que desejava é que ele me ajudasse... Mandei ao hotel esta tarde... o primo da senhora tinha desarvorado! Tinha ido para o lado dos Olivais, para o inferno! E o criado ia à noite com as malas. Mas a senhora pensa que me logram? – E retomada pela sua cólera, batendo com o punho furiosamente na mesa: - Raios me 71 QUEIRÒS, Eça. Op. cit., p. 198. 46 partam se não houver uma desgraça nesta casa, que há de ser falada em Portugal!72 Depois desta conversa com Juliana, Luísa passou a ceder as suas chantagens. Passou a cozinhar, a fazer os despejos, a engomar enquanto Juliana visita as amigas, a tia, em trajes de dama, provenientes do guarda-roupa da patroa. Basílio viajando, sem dar notícias e Jorge para chegar. O desespero e a loucura tomam conta de Luísa, que com a ajuda de Leopoldina até encontrou-se com o personagem Castro, o banqueiro, que era louco por ela. Ele até ofereceu os seiscentos mil-réis para Luísa deitar-se com ele, mas ela não teve coragem apesar de ser a solução dos seus problemas com Juliana. Jorge chega finalmente. Encontra tudo igual, aparentemente. Mas nota que Luísa tem um ar de doente, de cansada. Como a chantagem continua cada vez mais severa, Luísa cria coragem e pede ajuda a Sebastião, o bom Sebastião, o Sebastiarrão. Como o autor já deu indícios no começo do romance, o amigo Sebastião é quem consegue resolver o problema de Luísa, levando a ordem até a casa de Jorge, por meio de dois guardas, os quais por algumas moedas, intimidam Juliana, fazendo com que ela devolva as cartas de Luísa para Sebastião. Mais uma vez Eça consegue mostrar que a ordem pública pode ser facilmente manipulada pela amizade e pelo dinheiro. Entretanto, Juliana não resiste à pressão dos guardas e tem um infarto, apressado pelo medo, pois já era cardíaca. Segundo Muir, O final de qualquer romance dramático será uma solução do problema que põe os eventos em movimento; a ação específica terá se completado, produzindo um equilíbrio ou resultando em alguma catástrofe que não pode ter prosseguimento por mais tempo. Equilíbrio ou morte, estes são os dois finais em direção aos quais se move o romance dramático. O primeiro por várias razões, em geral toma a forma de um casamento conveniente73. Para concretizar as afirmações de Muir, Luísa, apesar de muito aliviada e feliz por ter recuperado e queimado as cartas, cai doente. A pressão que sofrera com as chantagens e o medo do seu caso com Basílio chegar aos ouvidos de Jorge, provocou uma intensa dor de cabeça e febre. Jorge sempre presente e cuidadoso com Luísa, queria e pedia muito a ela que se recuperasse logo. Eis que chega uma carta de Basílio destinada a Luísa. Como ela estava acamada, Jorge leu: 72 73 QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 199. MUIR, Edwin. Op. cit., p. 31-32. 47 Minha querida Luísa Seria longo explicar-te, como só anteontem em Nice – de onde cheguei esta madrugada a Paris – recebi a tua carta que pelos carimbos vejo que percorreu toda a Europa atrás de mim. Como já lá vão dois meses e meio que a escreveste, imagino que te arranjaste com a mulher, e que não precisas do dinheiro. De resto se por acaso o queres, manda um telegrama e tem-lo aí em dois dias. [...] A minha partida não devia ter tirado, como tu dizes, todas as ilusões sobre o amor, porque foi realmente quando saí de Lisboa que percebi quanto te amava, e não há dias, acredita, em que me não lembre do Paraíso. Que manhãs! Passaste por lá por acaso alguma outra vez? Lembras-te do nosso lanche? Não tenho tempo para mais. Talvez em breve volte a Lisboa. Espero ver-te, porque sem ti Lisboa é para mim um deserto. Um longo beijo do Teu do C. Basílio74 Mesmo sabendo da traição da mulher, Jorge continuou cuidando e velando por ela até ela melhorar, mas não conteve a sua ânsia em confirmar a verdade e mostrou a carta a Luísa, que caiu novamente doente. As dores na cabeça, a febre e os delírios a consumiram em dias. Luísa morreu. Esta pesquisa facultou o entendimento sobre a construção dos personagens. A partir desta premissa é possível constatar que os personagens vão sendo construídos no decorrer do romance, através dos seus pensamentos, do seu modo de vestir, dos seus sonhos, do seu modo de agir, da maneira como enfrentam os problemas relativos à vida diária, da mesma forma com que é diagnosticada a personalidade humana, por suas ações. Todavia são realidades absolutamente diferentes, a ficção é uma realidade inventada. Comparato cita Tzvetan Todorov, o qual afirma que “a literatura não é uma linguagem que possa ou deva ser falsa [...] é uma linguagem que não se deixa submeter à prova da verdade [...] isto é o que lhe define o próprio estatuto de ficção”75. Sendo assim, não se deve deixar de comentar que a linguagem cinematográfica e/ou a televisiva também: [...] introduziu uma nova concepção de tempo e espaço em sua reprodução do mundo. O espaço perdeu sua qualidade estática e passou a ser 74 QUEIRÓS. Eça. Op. cit., p. 300-301. 48 movimentado, incorporando as características do tempo histórico. O espaçotempo pode parar, como nos ‘close-ups’, pode voltar ao passado, como nos ‘flash-backs’, pode dar um salto e nos levar ao futuro [...] parece evidente a fronteira que separa a realidade concreta e ficção [...]76. A partir destas ponderações, no próximo capítulo tecer-se-ão algumas observações acerca da televisão como canal de propagação da ficção. E posteriormente, no último capítulo, falar-se-á da transmutação da obra de Eça de Queirós O Primo Basílio para a minissérie televisiva homônima, produzida e veiculada pela Rede Globo de Televisão. Capítulo II 2.1 – A chegada da TV no Brasil Este capítulo pretende abordar questões relevantes sobre a linguagem da televisão, uma mídia de concessão pública, porém utilizada por organizações formais, fato que abre a possibilidade de pensá-la como instrumento da Indústria Cultural, característica da sociedade de massa. Considerando-a como um dos suportes técnicos do objeto de pesquisa desta dissertação, crê-se necessário fazer uma breve contextualização histórica desta mídia que é considerada uma das mais difundidas em nosso país, perdendo apenas para o rádio. Em 1917 chega ao Rio de Janeiro o pernambucano Assis Chateaubriand. Advogado e Jornalista, começou sua carreira n’O Correio da Manhã, neste mesmo ano. Já em 1924, compra no Rio de Janeiro, O Jornal. Este foi o início de um império da Comunicação brasileira que, em 1950, incorporava diários e emissoras, como: Diário da Noite; Diário de São Paulo; revistas (O Cruzeiro) e emissoras de rádio (Tupi). Foi neste ano que Chateaubriand trouxe para o Brasil as primeiras câmeras de vídeo, juntamente com os técnicos norte-americanos da RCA para implantar a televisão no Brasil. “[...] uma data marca 75 76 COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1996, p. 75. Id. Ibid., p. 76. 49 a inauguração oficial da primeira emissora de TV no país: 18 de setembro de 1950. Nesse dia, entrava no ar a PRF-3 TV Difusora, depois TV Tupi de São Paulo. Primeiramente Canal 3, mais tarde Canal 4 - a pioneira da América Latina”77, afirma Paternostro. O primeiro programa foi improvisado porque mesmo depois de tudo pronto, ensaiado, uma das câmeras quebrou, desestruturando o apresentador, participantes e técnicos. De acordo com Paternostro, Cassiano Gabus Mendes comandou artistas como Mazzaropi, Walter Forster, Lia de Aguiar, Hebe Camargo, Wilma Bentivegna e Lolita Rodrigues. Usando de muito improviso e com duas horas de atraso, o programa foi ao ar. A TV brasileira foi adaptando, dos estúdios de rádio, programas jornalísticos como o Repórter Esso, humorísticos como o PRK-30 e Balança mas não cai para a linguagem televisiva. Até o final da década de 50, funcionavam as TVs Tupi, Record (1953) e Paulista (1952) em São Paulo; Tupi, Rio (1955) e Excelsior (1959) no Rio de Janeiro; Itacolomi (1956) em Belo Horizonte. Nesses primeiros dez anos da TV brasileira, o aparelho televisor ainda era um artigo de luxo. Em 1954, existiam 12 mil aparelhos no Rio e em São Paulo; em 1958, eram 78 mil em todo o país78. A briga pela audiência começa nos anos 60. Na disputa pelas verbas publicitárias a TV assume seu caráter comercial. É nessa guerra pela conquista e sedução de telespectadores que esta mídia está empenhada até hoje. Este objetivo recai amplamente sobre a linguagem utilizada no dia-a-dia da TV, a qual vem se transformando, readaptando e procurando autonomia dentre os meios de comunicação. A TV procura saciar o apetite do telespectador realimentando a sua eterna avidez pelo caminho mais curto, pela temporalidade de resposta rápida, fazendo sua síntese com o hibridismo de formatos, as citações, as adaptações, as releituras, as intertextualidades de meios, gêneros e linguagens. 2.2 – A linguagem televisiva Num primeiro momento, a incessante busca em seduzir o telespectador se dá pelo fato de a televisão ter uma característica dispersiva, ou seja, geralmente o telespectador não fica 77 PATERNOSTRO, Vera Íris. O texto na TV - Manual de Telejornalismo. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 13. 50 concentrado somente na programação que está assistindo, devido aos ruídos. Maciel afirma ainda que “o espetáculo televisão torna o veículo superficial, exige dele um ritmo constante para fixar a atenção do telespectador”79. O autor argumenta que uma das regras para que se tire um aproveitamento maior desse enorme potencial de comunicação, a televisão, é “buscar o equilíbrio entre a informação e a emoção, procurando sempre conquistar o envolvimento dos telespectadores pela sedução”80. Este processo pode ser notado na minissérie, nas passagens de uma cena para outra, na composição das informações dos núcleos de personagens e principalmente na intensificação da ação em meio à narrativa imagética. É pertinente lembrar que esta poderosa fórmula de persuasão e manipulação ideológica – a TV – teve sua estrutura fincada no contexto histórico-social. Assim como a instalação do capitalismo e as mudanças nos modos de produção afetaram bruscamente a economia, a política e a cultura mundial, com a TV não foi diferente. A partir deste encadeamento a TV passou a solidificar-se em uma estrutura voltada para a mercantilização simbólica dos bens de consumo, o que originou a cultura de massa. A possibilidade de adquirir facilmente um aparelho de televisão e o desenvolvimento tecnológico favoreceram o acesso da massa a uma grande quantidade de informação e de bens simbólicos81. Barbero atribui outros fatores que colaboram para o sucesso permanente da televisão. De acordo com o autor, não foram apenas mudanças de caráter econômico e industrial, mas um “[...] refinamento dos dispositivos ideológicos [...]”82. A conseqüência desta junção é o surgimento de uma TV que cria e difunde uma ideologia própria. Esta ideologia mencionada por Barbero passa então a ser o ponto central na produção simbólica desse meio. O teórico acrescenta ainda que os índices de audiência tão disputados pelas emissoras vêm confirmar o caráter destes produtos que se solidificam por meio de “ [...] um discurso que, para falar ao máximo de pessoas, deve reduzir as diferenças ao mínimo, exigindo o mínimo de esforço decodificador e chocando minimamente os preconceitos sócio78 Id., p. 26. MACIEL, Pedro. Jornalismo de Televisão: normas práticas. Porto Alegre: Sagra-D.C. Luzzatto, 1995, p. 22. 80 Id., Ibid. 81 “O campo de produção de bens simbólicos apresenta duas vertentes – mais ou menos marcada conforme as esferas da vida intelectual e artística – sendo elas: o campo de produção erudita e o campo da indústria cultural. A diferença básica entre os dois modos de produção se refere a quem se destinam os bens culturais produzidos. Assim, o campo de produção erudita destina a produção de seus bens a um público de produtores de bens culturais, enquanto o campo da indústria cultural os destina aos não – produtos de bens culturais, ou seja, a população em geral”. BONFIM, Gustavo Amarante. O Mercado de Bens Simbólicos de Pierre Bordieu. Rio de Janeiro: Depto de Artes e Design da PUC, 2003. Disponível em http://72.14.209.104/search?q=cache:meWTj4m096oJ:www.fmemoria.com.br/teoriaecritica/img/mercado_dos_b ens_simb.pdf+bens. Acesso em: 24 de agosto de 2006. 82 BARBERO, Jésus Martin. Dos Meios às Mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p. 35. 79 51 culturais das maiorias”83. Em outras palavras, pode-se afirmar que a TV passou também a se desenvolver de uma forma padronizada, com uma linguagem extremamente acessível, não exigindo muito conhecimento específico acerca do que está sendo veiculado ou senso crítico por parte do espectador. O processo de evolução da televisão manifesta-se como uma importante fórmula para a compreensão do sistema de veiculação de mensagens utilizado por este meio. Do ponto de vista técnico, este que é considerado o mais difundido meio de comunicação de massa, é avaliado como um meio frio devido à sua baixa definição de imagem e som, ao contrário do cinema que é um meio quente de alta definição. Esta característica técnica propicia à TV a condição de ser superficial. O cruzamento de pontos de luz e sombra forma a imagem da televisão o que provoca a sua baixa definição, o que não ocorre com o cinema que é um meio quente e mesmo quando a qualidade é ruim, os parâmetros de definição da imagem são superiores em virtude da sua tecnologia ser diferente. Ao contrário de meios como os livros que oferecem um aprofundamento no assunto, a televisão transmite de forma rápida, simples e com uma linguagem acessível somente a essência da informação. Deve-se considerar que tecnicamente cada minuto, neste meio de comunicação, tem um alto custo de produção e ainda, a TV tende a produzir uma programação mais dinâmica já que usa tanto a imagem quanto o áudio, o que permite uma captação rápida da mensagem, pelo espectador. Por veicular a essência da informação, sem demorar nos detalhes, a TV é questionada, estudada e criticada, não só por isso, mas por ser considerada o meio de comunicação de massa que tem mais facilidade de propagar ideologias, de manipular e formar opinião. Contudo, não cabe aqui adentrar nestes questionamentos. Ressalta-se que independente dos pontos negativos, esta chamada superficialidade da TV desperta no espectador o interesse pela leitura, não de um modo geral, mas principalmente quando esta se propõe a adaptar uma obra literária (cultura erudita) para um de seus formatos (cultura de massa). Tem-se como exemplo a grande quantidade de livros vendidos das obras literárias adaptadas para o formato de minissérie, feitas pela Rede Globo. Mcluhan afirma que “o meio frio da TV incentiva a criação de estruturas em profundidade no mundo da arte e do entretenimento criando ao mesmo tempo um profundo envolvimento da audiência”84. O que confere a este meio a importância do envolvimento com o público no seu processo comunicativo, além da cumplicidade proporcionada por seu caráter 83 Id. Ibid., p. 42. MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensão do homem. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 1999, p. 53. 84 52 superficial. A intensidade da relação entre a TV e o seu público torna-se muito significante, já que ela chega a provocar um efeito tátil no receptor. O autor contextualiza ressaltando que “[...] a TV, acima de tudo, é uma extensão do sentido do tato que envolve a máxima interrelação de todos os sentidos”85. Vale ressaltar que não se deve confundir envolvimento com profundidade, apesar de haver intimidade entre espectador e meio, a superficialidade ainda permanece nas abordagens dos temas. Bordieu86 levanta a questão da troca de valores referente ao uso dos meios em especial a televisão, que não proporciona aos usuários, na maioria das vezes, aquilo que realmente contribui para uma televisão democrática. A TV torna-se o mundo dos sonhos do telespectador, onde as situações de medo e angústia são passageiras e inofensivas, as épocas se misturam, investindo muito mais esta lógica irracional, extrapolando o mundo das vivências reais, evocando a fantasia, o imaginário, as aventuras do desejo – muitas vezes possíveis no mundo real – dos sonhos e da ilusão, como é o caso da minissérie O Primo Basílio. A partir deste pressuposto, Bordieu afirma que “[...] a tela da televisão se tornou hoje uma espécie de espelho de Narciso, um lugar de exibição narcísica”87. No jornalismo, por exemplo, esta situação se dá no momento em que os jornais constroem notícias sobre fatos extra-jornalísticos ou não-jornalísticos. Marcondes Filho88 cita o exemplo das entrevistas com candidatos a cargos públicos sobre temas “embaraçosos” – mas sensacionalistas – como a homossexualidade, misticismo, religião ou quando fazem matérias sobre si mesmos, olhandose como espelhos narcisistas em relação a assuntos que geralmente só têm a ver consigo mesmos. O autor declara ainda que a conseqüência disso é que a prática jornalística torna-se progressivamente minimalista, ou seja, totalmente voltada para os interesses das empresas de comunicação: O enfoque dos grandes temas recai sobre o ângulo subjetivo e pessoal; a economia não é tratada do ponto de vista de sua relação com o Estado, o grande empresariado, a massa assalariada, mas apenas com vistas a dar informações particularizadas aos leitores de onde melhor investir, como 85 Id. Ibid., p. 67. Cf. BORDIEU, Pierre. Sobre a Televisão: a influência do jornalismo e os jogos olímpicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. 87 Id. Ibid., p. 95. 88 Cf. MARCONDES FILHO, Ciro. A Saga dos Cães Perdidos. São Paulo: Hacker Editores, 2000. 86 53 manter seu capital, ou seja, como manual de prática de sobrevivência em meio à imprevisibilidade econômica89. A televisão passa então a se preocupar, principalmente, em mostrar acontecimentos que não chocam, nem convidam o interlocutor a uma análise crítica, mas fatos que chamam a atenção do público pelo curioso ou pelo banal. A realidade passa à ficção em fração de segundos. As pessoas envolvidas no fato passam a ser personagens numa trama, muitas vezes, dramática e chocante, deixando o fato de ser apenas notícia para se tornar espetáculo90, isso se dá por meio do tratamento que o fato recebe antes de ser transformado em notícia. Na ficção não é diferente, pois a linguagem televisiva permite a fácil transposição entre ficção e realidade. Contudo, neste caso, “o drama da personagem é fantasioso, mas a lágrima que o telespectador derrama ou a palpitação de seu coração é real”91, declara Arbex Jr. O autor cita ainda Umberto Eco, o qual atribui grande parte do poder sedutor da televisão à “ilusão de cordialidade” que o veículo propicia, já que basta ligar o aparelho e a sala da casa, antes imersa na mais profunda solidão, seja invadida por imagens, vozes e sons do mundo, criando a sensação de participação de uma comunidade ilusória. Eco explica que o telespectador mantém uma relação “onanística” com estas imagens, tanto no sentido de projetar suas fantasias em ídolos (artistas, cantores e galãs de novelas) quanto no gozo da participação nos eventos, sem contudo se expor ao acaso ou correr qualquer risco real. Arbex Jr. também se refere ao teórico Jean Baudrillard para explicar o desaparecimento das fronteiras entre ficção e realidade, atribuindo à mídia não apenas a capacidade de criar fatos, como também a de criar a opinião pública sobre os fatos que ela mesma, de certa forma, gerou. Para Baudrillard, a capacidade de “colonização do imaginário”92 pela mídia transformou a própria opinião em mero simulacro93. A fabricação da opinião pública, comentada por Baudrillard, simula a democracia. Segundo Arbex Jr. aparentemente, a opinião divulgada pela TV interfere nos acontecimentos, dando a ilusão de que o público foi levado em consideração. Na realidade, os indivíduos permanecem isolados, espalhados pelas mais distintas cidades, regiões, estados e países, sendo virtualmente unificados pela mídia, mas sem terem exercido qualquer interlocução. “É 89 Id.Ibid., p. 43. Cf. em ARBEX JR, José. Showrnalismo: a notícia como espetáculo. São Paulo: Casa Amarela, 2002. 91 ARBEX JR, José. Op. cit., p. 134. 92 A idéia de colonização do imaginário pode ser descrita como a imposição da cultura colonizadora sobre a colonizada, o que possibilita uma reflexão acerca da relação que se estabelece entre mídia e receptor, no caso deste estudo, entre minissérie e espectador. 93 Cf. ARBEX JR, José. Op. cit., p. 54. 90 54 a ‘ágora eletrônica’ que simula a antiga polis, onde tudo se debatia. As megacorporações simulam a ‘ágora’ que legitimará suas próprias estratégias de dominação e controle”94. Essa domesticação do imaginário coletivo transforma o povo, que seria um grupo de seres humanos unidos por fator em comum em público95, ou seja, em platéia destinada a acentuar o caráter abstrato e desencarnado da relação com as audiências. A televisão é a mídia que mais radicalmente irá desordenar a idéia e os limites do campo da cultura: suas “cortantes separações entre realidade e ficção, entre vanguarda e kitsch, entre espaço de ócio e trabalho”96. É possível observar que essas relações de mal-estar cultural com a hegemonia audiovisual respondem a movimentos e motivações de ordem geral. Na cultura, a desordem introduzida pela experiência audiovisual atenta contra o tipo de representação e de saber, no qual estava baseada a autoridade. Esta desordem pode ser explicada pela constante mutação dos valores culturais, políticos e econômicos, propagados pela TV, o que sugere ao espectador a contínua necessidade de adaptação a novos conceitos, a novas ordens. Quanto ao espaço, a TV provocou o levantamento, a desterritorialização97 dos modos de presença e relação, das formas de perceber o próximo e o longínquo, que tornam mais perto o vivido à distância do que aquilo que cruza nosso espaço físico cotidiano. Um exemplo típico dessa conseqüência é o individualismo em que está mergulhada a sociedade. “A percepção do tempo, no qual se instaura o sensorium audiovisual, está marcada pelas experiências da simultaneidade, do instantâneo e do fluxo [...] no culto ao presente alimentado pelos meios de comunicação em seu conjunto e, em especial, pela televisão”98. O enfraquecimento do tempo presente é provocado pela perda da capacidade de interlocução de que fala Habermas, conclui Arbex Jr. Os vínculos pessoais, familiares e afetivos são enfraquecidos, em benefício de outros vínculos que possam, eventualmente, trazer lucros e fortalecimento de posições na economia de mercado, como é o caso do estabelecimento do estereótipo que reafirmam os modelos a serem seguidos, cultuados e imitados, os quais são geralmente propagados através das telenovelas e minisséries, entre 94 Id. Ibid., p. 56. Dicionário da Língua Portuguesa on line. Disponível em www.priberan.pt. Acesso em: 12 de setembro de 2006. 96 MARTIN BARBERO, Jesus; REY, Gérman. Os exercícios do ver: hegemonia audiovisual e ficção televisiva. Tradução de Jacob Gorender. São Paulo: Senac, 2001, p. 32. 97 A desterritorialização, segundo Arbex Jr, é a capacidade que a TV tem de manipular o espectador por meio de uma linguagem interessante, o qual em fração de segundos consegue se transportar, por exemplo, para a trama de uma telenovela e a vivenciar o drama de um personagem, que conhece desde a sua primeira aparição na tela. Enquanto na realidade é dominado pela mobilidade, pelos fluxos e pelo desenraizamento familiar. Cf. ARBEX JR. José. Op. cit., p. 120. 98 Id. Ibid., p. 34-35. 95 55 outros. As bases da identidade pessoal não são mais sedimentadas na tradição dos hábitos e saberes, mas em arranjos provisórios organizados segundo interesses imediatos, da indústria da moda, por exemplo, que utiliza geralmente da ficção para distender seus interesses. A televisão configura-se como um dos mais importantes meios de comunicação de massa. Tudo o que ela produz incita o consumo, principalmente através das telenovelas e minisséries, pelas quais se veicula o reflexo e sustentação de uma sociedade que vive para o consumo. O que surge na tela torna-se, de alguma forma, um anúncio publicitário, o que para Roland Barthes99 só enfatiza a evidente origem comercial do imaginário coletivo da sociedade. A televisão incita o consumo, mas, além disso, sustenta-se como consumo. Graças às verbas geradas pela publicidade, a televisão passa a produzir programas cada vez mais sedutores, com a finalidade de seduzir os telespectadores até no momento da publicidade. Desta forma, compreende-se que o verdadeiro cliente da televisão não é o telespectador, e sim o anunciante, porque é ele que torna possível a sua existência. Nota-se, portanto, que a evolução técnica e administrativa da TV, desde o seu surgimento, implica também a transformação da linguagem utilizada por este meio bem como os constantes desenvolvimentos e aprimoramentos dos formatos televisivos. Embora sejam muito amplas as abordagens que podem ser estudadas sobre este meio de comunicação de massa, nesta pesquisa faz-se necessário, do ponto de vista técnico, uma síntese do formato escolhido para ser analisado – a minissérie - e dos que contribuem ou possuem interligações com este. 2.3 – Formatos ficcionais televisivos: filme, telenovela e minissérie Ciro Marcondes Filho100questiona que a princípio o papel da televisão seria mostrar ao espectador, na forma de notícia, a realidade crua e fria dos acontecimentos e por outro lado oferecer um espaço de entretenimento por meio das obras de caráter ficcional. No primeiro caso, havia a repetição, por via dos sistemas televisivos, dos acontecimentos, dos fatos que se passavam no mundo, quase como uma duplicação de sua existência. As coisas aconteciam duas vezes: uma, na vida real e outra, na transmissão jornalística televisiva para centenas, milhares, milhões de lares do país. Ao lado disso, funcionava um campo das fantasias, 99 Cf. BARTHES, Roland. Retórica de La Imagem. Buenos Aires: Ed. T. Contemporâneo, 1970. Cf. MARCONDES FILHO, Ciro. Televisão. São Paulo: Scipione, 1994. 100 56 especulações imaginárias, em que a televisão inicialmente transmitia teleteatros ou diretamente filmes de cinema, em que mais tarde foi desenvolvida uma grande indústria, a da telenovela, cuja função seria a de criar estórias próprias para serem veiculadas na televisão e com sua linguagem própria101. E as modificações não param por aí, considerando o contexto histórico em que se encontrava este estágio do desenvolvimento da linguagem televisiva. Depois da telenovela desenvolveu-se também a indústria de cinema para televisão, iniciada nos Estados Unidos, onde o gênero cresceu consideravelmente através das séries. É possível notar que nesta fase ainda há uma clara divisão de territórios. Marcondes Filho afirma que na maior parte de sua programação, a televisão dividia-se entre ficção e não-ficção, além de ter também uma série de outros programas, como musicais, humor, esportes, curiosidades e programas infantis. Todavia, com o passar do tempo, a linguagem televisiva começa a se modificar e a se adaptar ao sistema capitalista. Com a constante busca pela audiência e os avanços tecnológicos, o modo de fazer televisão anula as barreiras entre ficção e não-ficção. Marcondes Filho menciona que o primeiro teórico a defender a tese da abolição desta divisão na TV é o italiano Umberto Eco102. Para este, já não existe mais a clássica separação entre ficção e não-ficção, entre programas jornalísticos e programas ligados ao imaginário, mas sim a divisão entre dois tipos de forma de se fazer televisão: aquela em que as pessoas falam olhando para a câmera e outra, em que as pessoas falam sem olhar para ela. Marcondes Filho contextualiza os pensamentos de Eco da seguinte forma: No primeiro tipo, a televisão representa a si mesma, ela está lá exatamente para demonstrar que existe e que as coisas que estão acontecendo por trás das câmeras também estão lá porque ela existe. Falar olhando para a câmera significa que tudo o que acontece, que se passa, só tem garantida sua existência por força do próprio meio de comunicação. Por outro lado, falar sem olhar para a câmera é uma forma de produção televisiva em que a tevê representa o outro, ou seja, mostra as coisas que acontecem por si mesmas103. 101 Id. Ibid., p. 38. Cf. MARCONDES FILHO, Ciro. Op. cit., 1994. 103 MARCONDES FILHO, Ciro. Op. Cit., 1994, p. 38-39. 102 57 O que se caracteriza aqui, não é a dualidade clássica entre ficção e não-ficção, mas a dualidade entre dois planos de apresentação televisiva. No entanto, voltando-se para a ficção que é o foco principal desta pesquisa, é pertinente mencionar que a telenovela, apesar de ser um produto ligado ao imaginário não deixa de retratar e representar a realidade e o dia-a-dia do espectador. Esta afirmação também pode ser relacionada ao cinema e à minissérie, os quais da mesma forma, procuram produzir histórias em que haja a identificação com a realidade vivida pelo espectador. Contudo, enquanto as telenovelas tendem a representar os traços que caracterizam as relações sociais, a valorização do corpo, as paixões pelo futebol e carnaval, as belezas naturais do Brasil, entre outros, as minisséries “[...] são uma nova forma de recontar a história do nosso país”104. Em se tratando de formatos ficcionais televisivos, aqui estudados, pode-se dizer que a música, o teatro, a literatura e a pintura influenciaram diretamente na forma de se fazer cinema, em como contar histórias por meio de uma seqüência de imagens, a princípio, e depois pela junção de seqüência imagética e áudio. Anos mais tarde, o romance literário do mesmo modo, juntamente com a linguagem do cinema, já arraigada, as soap-operas americanas e as radionovelas latino-americanas influenciaram e contribuíram para o nascimento de um outro modo de contar histórias por meio da TV, as telenovelas e, posteriormente, com a adesão de todas as experiências anteriores, surgem as minisséries (próximas das primeiras novelas). De acordo com Brasil Júnior, “foi em meados da década de 80 que a Rede Globo inaugurou este novo formato de programa – as minisséries”105. Segundo o autor, até 2003 a Globo produziu oitenta e sete minisséries, “[...] sendo que trinta e uma foram feitas tendo por base textos literários, a maioria de autores do século XX”106. Observe-se que entre as obras adaptadas estão as dos renomados autores da nossa literatura contemporânea: Jorge Amado, com o qual a Rede Globo mais trabalhou, teve quatro obras adaptadas: Tenda dos Milagres, produzida em 1985; Tereza Batista, feito pela emissora em 1990; Dona Flor e seus dois maridos, exibida em 1998; sendo o último Pastores da Noite, no ano passado. O segundo escritor mais adaptado foi Nélson Rodrigues, com três trabalhos: Meu destino é pecar, que 104 BRASIL JUNIOR, Antonio da Silveira; GOMES, Elisa da Silva; OLIVEIRA, Maíra Zenun de. Os Maias, a literatura na televisão. Revista Habitus: revista eletrônica dos alunos de graduação em Ciências Sociais – IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, v.2, n.1, p. 5-20, 30 mar. 2004. Anual. Disponível em www.habitus.ifcs.ufrj.br. Acesso em: 01 dez 2006. 105 Id. Ibid. 106 Idem. 58 foi a segunda minissérie adaptada pelo canal de televisão, em 1984; Engraçadinha, feita em 1995; e também A vida como ela é, que foi televisionada em 1996. Os outros dois autores nacionais mais de uma vez adaptados são: Érico Veríssimo com O Tempo e o Vento em 1985 e Incidente em Antares no ano de 1994 e Dias Gomes, com O Pagador de Promessas em 1988, que anteriormente havia sido adaptado para o cinema, e Decadência, exibida em 1995107. Dentre as outras adaptações todas foram baseadas em autores brasileiros, com exceção do argentino Mempo Giardelli, que teve a obra Luna Caliente resgatada e transformada em minissérie em dezembro de 1999 e Eça de Queirós, autor português duas vezes adaptado – primeiro com O Primo Basílio em 1988 e em 2001 com Os Maias. O sucesso deste formato – minissérie - crê-se que é devido ao acúmulo de experiências de outros formatos como o fílmico e o da telenovela. Embora apresentados ao espectador por códigos correspondentes às suas características próprias de meios de comunicação diferentes, o filme, a telenovela e a minissérie apresentam similaridades estruturais e de proposta com o conto, o folhetim e o romance. Esta proximidade é verificável quando se comparam as narrativas literárias com as fílmicas, bem como com as televisuais. Considerando os códigos de cada meio, Moscariello tece as seguintes afirmações: Depois de reconhecida a vocação narrativa do filme, resta analisar – sob pena de se cair em perigosos equívocos translinguísticos – o comportamento diferente da narrativa no caso do filme e no romance. A diversidade reportase, evidentemente, apenas à substância da expressão, dado que a meta para onde correm as duas práticas é idêntica. Reporta-se em suma, aos diferentes procedimentos escriturais que regem a produção de sentido na tela e na página, mantendo-se inalterada a tensão efabuladora comum que faz mover tanto a máquina de filmar como a pena108. A narrativa da sétima arte, como é denominado o cinema, pode ser relacionada ao conto, pois este constitui uma unidade dramática que gira em torno de um só conflito, ou seja, todos os componentes de um conto se unem em um único objetivo: a concentração de efeitos e de pormenores, evitando-se as digressões e divagações. Em suma, o conto estabelece uma ação dramática na qual o tempo presente é crucial, enquanto o passado e o futuro tornam-se 107 Idem. 59 nulos ou sem notoriedade, ou melhor, mencioná-los é relevante quando isso corrobora, alimenta ou elucida o presente; o mesmo se verifica na narrativa fílmica a qual privilegia o tempo presente. No conto, bem como no filme, o espaço em que ocorrem as ações é restrito. Os personagens que aparecem e atuam, geralmente, são dois, o protagonista e o antagonista. Poucos mais são referidos de passagem, mas não participam do diálogo, aparecendo como pano de fundo conferindo veracidade à ação dos personagens principais. Nota-se também que em ambas as narrativas a unidade de ação, de lugar e de tempo, denominadas na literatura como unidade de tom, têm a preocupação de despertar no espectador um só sentimento ou impressão, por exemplo, de pavor, ternura, piedade, raiva, entre outros. A cronologia do conto e do filme segue ao ritmo do relógio, a isso se deve o fato destas narrativas abstraírem tudo o que não interesse ao conflito, trazendo a objetividade para o desenrolar da história, a qual se limita a um curto espaço de tempo. Claro que é possível tecer um emaranhado de analogias entre o conto e o filme, mas o objetivo deste capítulo é apenas mostrar algumas semelhanças entre os formatos televisivos entre si, e entre a literatura, além de instigar o leitor a buscar mais informações a respeito do assunto. Assim como a telenovela ou minissérie, o filme também é uma mercadoria destinada ao consumo. “É sobre estas bases estritamente comerciais que será concebida a feitura dos filmes, que assim se tornam um artigo de massa, porque é necessário acima de tudo que cada um deles seja visto por um número máximo de consumidores”109. Outra característica da TV e do cinema é como estes meios fragmentam a realidade e a transmitem para o espectador. Ambos utilizam a câmera como um olho humano que tudo vê e através dos meios técnicos são transmitidos para o espectador que passa a enxergar a realidade representada pela câmera. Conforme a posição tomada pela câmera em relação ao objeto filmado, tanto a linguagem fílmica quanto a televisiva comporta os planos fixos e os planos em movimento. Os principais planos fixos são: o primeiro plano ou close up ou plano de detalhe, o plano médio ou plano americano e o plano geral110. Estes planos fixos podem combinar-se com os 108 MOSCARIELLO, Ângelo. Como ver um filme. Lisboa: Editorial Presença, 1985, p. 51. AGEL, Henri. O Cinema. Porto: Livraria Civilização, 1983, p. 12. 110 “Os planos – ou shots – podem se fixos ou estar em movimento. Vejamos quais são os planos fixos: Primeiro Plano (close up): o termo inglês close up designa um plano próximo do objeto, e corresponde tanto ao ‘primeiro plano’ (rosto cortando por baixo dos ombros) como ao ‘plano de detalhe’. Por extensão, também costuma ser utilizado para designar um ‘primeiríssimo plano’ (plano dos olhos e da boca) [...] Plano médio ou americano costuma-se distinguir entre plano médio como sendo aquele que corta a figura pela cintura e o plano americano o que corta a figura pelos joelhos [...] e o Plano geral (long shot ou full shot) é freqüente distinguir entre plano geral - que dá ênfase ao ambiente – e plano de conjunto como aquele que descreve uma cena, entretanto em ambos os casos abarca tanto todas as personagens como o cenário completo”. Cf. COMPARATO, Doc. Da criação ao Roteiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1996, p. 313-314. 109 60 planos em movimento (moving shots) que são: dolly shot, ponto de vista, travelling shot, panorâmica (pan), process shot, tela partida ou múltipla, zoom, desfocagem (transfocator) e o halo desfocado (flou)111. Os planos quando utilizados da melhor forma e posteriormente bem sucedidos, denominando-os seqüência fílmica, permitem ao espectador reconstruir o conjunto da cena, tal como os sucessivos movimentos dos olhos permitem, na realidade, perceber qualquer espetáculo oferecido a eles. Se o filme pode ser comparado ao conto, na sua composição estrutural, a telenovela a minissérie, enquanto formato textual, aproximam-se do romance-folhetim, “[...] vários estudos reconhecem este tipo de narrativa como uma espécie de arquétipo da telenovela; neste sentido a denominação ‘folhetim eletrônico’ é sugestiva; ela indica a persistência literária herdada do século XIX”112. Entretanto, deve-se considerar que o passado da novela tem características da soap-opera113 americana e até da radionovela latino-americana. Este formato televisivo também não deixa de ser uma característica cultural advinda da cultura de mercado. A primeira publicação do folhetim foi na França. “Em outubro de 1836 La Presse, de Émile Girardin, publica um romance inédito de Balzac, e a partir de então, esta forma seriada de literatura torna-se cada vez mais aceita”114. Posteriormente, os jornais passaram a ver o folhetim como uma oportunidade comercial para o aumento da venda dos periódicos, pois incitavam o leitor a saber o que iria acontecer com os personagens nos próximos capítulos. No Brasil o folhetim se desenvolve quase que simultaneamente ao seu surgimento na França. “Em outubro de 1838, o Jornal do Comércio (RJ) publica Capitão Paulo de Alexandre 111 Já os planos em movimento (moving shots) são: Dolly shot costuma-se designar por travelling qualquer deslocamento da câmera que seja basicamente horizontal [...], o qual caracteriza-se pela aproximação (dolly in) ou pelo afastamento da objetiva (Dolly out) e ainda, pelo Dolly back que significa que a câmera retrocede, deixa a cena e desaparece. O ponto de vista é quando a câmera se situa ao nível dos olhos da personagem e temos a sensação de estar olhando através dela temos um ponto de vista subjetivo. Já no denominado travelling shot a câmera acompanha o movimento da personagem ou de alguma coisa que se mexe na mesma velocidade. A panorâmica (pan) pode ser dividida em horizontal (paning) e vertical (tilling). O process shot projeta uma cena pré-filmada por trás das personagens. A tela partida ou múltipla – mostra ações simultâneas. O zoom designa aproximação ou afastamento do objeto filmado. A desfocagem (transfocator) – diante de dois elementos a câmera concentra-se em um só e o halo desfocado (flou) – a câmera desfoca tudo o rodeia o objeto com o fim de o pôr em relevo. COMPARATO, Doc. Op. cit., p. 312-317. 112 ORTIZ, Renato (Org.). Telenovela – História e Produção. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 11. 113 “O advento das soap-opera nos Estados Unidos sugere uma comparação com o folhetim, do contraste entre estas duas formas é possível formarmos um quadro mais claro sobre o desenvolvimento da novela no continente latino-americano. Primeiro uma diferença inicial, contrariamente ao gênero folhetinesco, que se organiza em ‘próximos capítulos’ que anunciam o desfecho final da estória, a soap-opera se constitui de um núcleo que se desenrola indefinidamente sem ter realmente um fim. Não há verdadeiramente uma estória principal, que funcione como fio condutor guiando a atenção do ‘leitor’; o que existe é uma comunidade de personagens fixados em determinado lugar, vivendo diferentes dramas e ações diversificadas”. ORTIZ, Renato (Org.) Op. cit., p. 19. 114 ORTIZ, Renato (Org.). Op. Cit., p. 14. 61 Dumas, série que é iniciada em Paris, no Echo, somente alguns meses antes (setembro do mesmo ano)”115. Tudo indica que as condições sociais para o florescimento do folhetim como literatura popular no Brasil foram adversas. O sucessor do folhetim, a radionovela, chega ao Brasil somente em 1941, a qual adaptou as características seriais do primeiro, para o código verbal. Somente cerca de 10 anos depois estréia na TV Tupi de São Paulo, Sua vida me pertence, de Walter Forster. É o início de uma produção que permanece até 1963 com o advento da telenovela diária. Há então toda uma adaptação do formato seriado do folhetim e dos códigos do rádio para a TV, a qual exige além do texto a interpretação dos personagens, cenários e figurinos. É então que há a junção do trabalho dos profissionais do rádio e do teatro que começam a desvendar o que seria hoje o formato das telenovelas e minisséries. A contribuição do cinema para a telenovela também está no âmbito técnico e estético. O cinema norte-americano foi o espelho das inovações técnicas e artísticas, no que diz respeito ao imagético para a construção da dimensão da telenovela e da minissérie. Além disso, neste âmbito, podemos considerar a linguagem digital que vem ganhando espaço na televisão, cite-se, como exemplo, a exibição recente de uma releitura da novela Sinhá Moça, produzida pela TV Globo, em formato digital e levada ao ar no presente ano. Uma pergunta simples paira no ar. No que a telenovela difere da minissérie? Ambas se enquadram como gêneros dramatúrgicos televisivos. A minissérie é produzida num tempo mais curto que a telenovela, os capítulos são condensados e a ação é mais concentrada em cada capítulo. A minissérie desenvolve, na verdade, uma trama básica, à qual se acrescentam incidentes menores. Se biográfica, gira em torno de uma vida humana, se ficcional por inteiro (e supomos sempre que as biografias mencionadas sejam ficções que têm por base a vida de uma personalidade conhecida), a minissérie procura se conter num plot, num conflito básico, numa linha central de ação bem definida, não comportando a diversidade de linhas de ação da telenovela, às vezes só consolidadas depois que ela está em andamento116. Não se pode deixar de ao menos mencionar os seriados, os quais também fazem parte dos tipos de formatos televisivos veiculados na atualidade. A sua proximidade com a minissérie termina na independência de um capítulo para o outro. Enquanto a minissérie 115 Id. Ibid., p. 15. 62 estabelece uma ligação dramática, uma história, entre um capítulo e outro, o seriado possui capítulos independentes, pois o centro da ação é um protagonista e não a história, neste caso a apresentação de cada capítulo é o total da história. A distinção entre telenovela e outros gêneros ficcionais está no fato de que esta possui variedade de núcleos de personagens, de dramas diversos propositalmente interligados por meio de histórias e uma flexibilidade, que se caracteriza pela simultaneidade entre produção e apresentação das cenas que ocorrem nos diversos núcleos. A minissérie é européia – moderada, civilizada, propositada. A telenovela é latino-americana – desmesurada, mágico-realista, absurda, apaixonada, temperamental (com todo o preconceito que se queira atribuir a esta classificação, de resto um pouco ligeira)117. Enquanto a minissérie possui cerca de 25 capítulos, núcleos de personagens reduzidos, ações dramáticas condensadas além de ter um horário diferenciado para ir ao ar, conferindolhe um caráter intelectualizado, a telenovela brasileira possui uma trama principal e muitas subtramas. As subtramas são histórias paralelas, de vários tipos e coloridos, que correm ao lado da trama principal, ligando-se de alguma forma a ela. É como se fossem ramos de uma árvore que se entrelaçam – o que de fato acontece com árvores de muitos tipos. Cada ramo tem vida própria, com folhas e flores, tem sua unidade; mas está ligado aos demais, saindo todos do tronco principal e guardando a unidade principal, exatamente proveniente deste tronco118. Além deste emaranhado dramático, as telenovelas são levadas ao espectador em horários apropriados para o entretenimento, ao cair da noite, quando as pessoas já estão em casa de volta do trabalho, e querem descansar assistindo uma boa história. Convém mencionar aqui também o caráter áudio da telenovela que é realizada com a preocupação de ser acompanhada apenas pela audição, quase como se fosse uma radionovela, isso porque se considera o fato de o espectador, nesse momento, estar realizando atividades domésticas como preparar o jantar, por exemplo, enquanto mantém a TV ligada para fazer companhia. O 116 117 PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de Televisão. São Paulo: Moderna, 1998, p. 29. Id. Ibid., p. 38. 63 telejornal também leva esse fato em consideração. Por outro lado, as minisséries já consideram um espectador que, devido ao horário, está sentado, descansando, diante da TV, portanto pode usufruir mais da imagem. No próximo capítulo pretende-se estudar a obra de Eça de Queirós – O Primo Basílio adaptada para minissérie televisiva por Gilberto Braga e Leonor Bassères e com a produção e direção de Daniel Filho. A minissérie estreou no dia 9 de agosto de 1988, sendo exibida em 16 capítulos sempre as terças e sextas-feiras às 22h20. 118 Id. Ibid., p. 74. 64 Capítulo III 3.1 – A transcodificação: do livro à TV A utilização de um código como base para a produção de um outro código pode ser considerado uma transcodificação. À primeira vista, esta explicação seria óbvia. Entretanto, quando se trata da transcodificação de um código literário ficcional para a linguagem audiovisual não é tão simples. Este processo de adaptação, argumenta Comparato, “[...] é uma transcrição de linguagem que altera o suporte lingüístico utilizado para contar a mesma [grifo nosso] história”119, equivale, portanto, à recriação da mesma obra levando em consideração a linguagem própria do meio para o qual se está produzindo. Todavia, não são só estas as dificuldades encontradas. A escolha da obra a ser adaptada é o primeiro passo para o desencadeamento do processo de transcodificação. Para tanto, há inúmeros pontos de convergência e divergências, dentre eles está o suposto antagonismo entre o que se convencionou chamar de cultura erudita (a obra literária, neste caso) e a sua disseminação por meio da cultura de massa (produtos televisivos, considerando o objeto de estudo desta pesquisa)120. Mesmo que a programação das emissoras de televisão não consiga convencer os espectadores mais exigentes da validade de sua condição cultural, salvo as emissoras fundadas para cumprir este objetivo, como por exemplo, a TV Cultura de São Paulo. A escolha da obra O Primo Basílio, pela Rede Globo, para ser adaptada, coloca em dúvida estes questionamentos sobre as possibilidades culturais da TV. Sua adaptação, ao que se observa, foi fidedigna à obra original e conseguiu atingir as massas. O Primo Basílio de Eça de Queirós faz parte do histórico educacional brasileiro e ultrapassa as barreiras culturais. Sua atuação no meio pedagógico e a riqueza literária proveniente do estilo singular de Eça de Queirós foram alguns dos principais motivos que levaram à escolha de O Primo Basílio para ser adaptado para a minissérie televisiva. 119 COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1996, p. 330. Como sustenta Bordieu, as diferentes formas culturais só podem ser entendidas enquanto inseridas num mesmo espaço relacional de posições diferenciadas, de modo que só se é possível definir o que é cultura erudita em oposição à cultura de massa e vice-versa. Cf. mais informações em: BORDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1999. 120 65 Há muitos questionamentos acerca deste processo, contudo antes de avaliar se o produto recriado é melhor do que o original, o que se deve levar em conta é que o primeiro tem que ter uma relação com o segundo. Uma adaptação implica certas limitações criativas, uma vez que o roteirista tem de levar em conta o conteúdo da obra, isto é, os ambientes, as personagens, as intenções, etc. Mas como vimos, mesmo tais limitações podem ser positivas e dar azo a uma obra substancialmente superior à original. Tudo depende, claro está, do talento do roteirista121. A partir destas premissas, é possível observar que a minissérie O Primo Basílio é uma adaptação propriamente dita. Esta designação é conferida às produções reelaboradas com a maior fidedignidade possível à obra original. De acordo com Comparato numa adaptação propriamente dita “[...] não há alteração da história, nem de tempo, nem de localizações, nem de personagens. Os diálogos refletem apenas as emoções e os conflitos presentes no original”122. Estas afirmações podem ser notadas no decorrer da minissérie, a qual preserva todos estes detalhes mencionados no romance de Eça. A narrativa imagética guarda, de acordo com as exigências do seu formato, através das imagens, todo o cenário lisboeta que é muito evidenciado por meio das cenas que mostram a localização da casa de Jorge, as ruas de “pedra e granito” mencionadas pelo personagem do Conselheiro Acácio. Outra demonstração da fidelidade ao espaço descrito no romance, e apresentado na minissérie, é o Teatro de São Carlos, mostrado logo no início da narrativa televisiva. O tempo é visualmente exibido pelos cenários que compõem o ambiente interno das residências e principalmente pelo figurino de época, que retrata como a sociedade lisboeta se vestia no século XIX. Os personagens que compõem o núcleo dramático da minissérie correspondem aos mesmos criados pelo autor textual, inclusive é notável que suas personalidades condigam em inúmeros aspectos com os descritos por este. Quanto ao diálogo, o roteirista aproveitou quase que totalmente os diálogos diretos e indiretos do romance. Porém, Comparato menciona que “[...] este tipo de trabalho não é uma mera ilustração audiovisual, mas que é preciso ultrapassar os limites da fidelidade para se 121 122 Id. Ibid., p. 331. COMPARATO, Doc. Op. cit., p. 331. 66 conseguir um roteiro correto e eficaz”123. Depois destas breves considerações far-se-á a análise da minissérie. 3.1.1 – A minissérie O Primo Basílio A abertura da minissérie televisiva se dá num ambiente luxuoso, onde Jorge e Luísa estão apreciando um espetáculo de ópera. O ambiente de estilo neoclássico, mais precisamente o Teatro de São Carlos, em Lisboa, insere o receptor num ambiente formal de luxo, freqüentado por pessoas da alta sociedade. Pressupõe-se que o espaço escolhido para o início da narrativa televisiva teve o mesmo efeito das descrições verificáveis no texto do romance, ou seja, através de um costume da sociedade burguesa de Lisboa do século XIX, freqüentar espetáculos de ópera, foi possível inserir o receptor na realidade social dos personagens apresentados pelo narrador, no caso, pelas câmeras. O espetáculo já está no final, o casal segue de tipóia para a sua casa. Chegando, Jorge gentilmente se oferece para ajudar Luísa a descer da tipóia, ele abre a porta da casa e ambos sobem as escadas que levam aos seus aposentos, Jorge cantarolando o que ouvira no espetáculo e Luísa soltando risinhos de felicidade. A vestimenta dos personagens são peças chave para mostrar suas personalidades, Jorge de preto, índice de austeridade e Luísa vestida de branco, demonstrando inegáveis delicadeza e fragilidade, aspectos que se intensificarão num e noutro personagem ao longo da trama. Além disso, a linha mestra proposta por Braga e Bassères para a releitura e/ou transcodificação da obra de Eça de Queirós, preserva ainda muitos diálogos, personagens e ações dramáticas presentes no romance. E cofiando a barba curta e fina, muito frisada, os seus olhos iam-se demorando com uma ternura, naqueles móveis íntimos, que eram do tempo da mamã: o velho guarda-louça envidraçado, com as pratas muito tratadas a gesso-cré, resplandecendo decorativamente; o velho painel a óleo, tão querido, que vira desde pequeno [...]. Vivera sempre naquela casa com sua mãe. Chamava-se Isaura: era uma senhora alta, de nariz afilado, muito apreensiva [...]. Fisicamente Jorge nunca se parecera com ela. Fora sempre robusto, de hábitos viris. Tinha os dentes admiráveis de seu pai, os seus ombros fortes 123 124 Id. Ibid., p. 331-332. QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 13. 124 . 67 Tanto o romance quanto a minissérie começam no meio da história (in media res) com Jorge e Luísa já casados. No romance é através dos objetos que formam o espaço da casa do casal, que o narrador retoma aos acontecimentos anteriores da vida dos personagens, como, por exemplo, quando Jorge começa a olhar ao seu redor, os móveis, a decoração, os quadros, o retrato de seu pai na parede que é contado ao leitor sobre a família de Jorge, sua personalidade e seus anseios. Assim também ocorre com a personagem Luísa, que só depois de serem apresentados todos os personagens é que o narrador narra o seu passado, como uma forma de instigar o leitor a desvendar o mistério do porquê o passado de Luísa só foi revelado depois de ser apresentado o personagem do seu primo Basílio. Isto evidencia e organiza, prolepticamente, o espaço do destino trágico de Luísa. Na minissérie não é diferente, a narrativa inicia-se num espetáculo de ópera e logo mostra o espaço principal, onde podemos constatar os objetos, ambientes e personagens que se perpetuam por todo o romance. A câmera percorre os cenários, os cômodos da casa, como numa descrição do passado de Jorge, juntamente com os outros personagens que são o elo entre o casal e a sociedade lisboeta. Estabelece-se, tanto no livro quanto na minissérie, uma semiologia dos objetos, organizando-se uma linguagem própria, que fala à nossa sensação e percepção. Ainda que consideremos a construção, o funcionamento e a denominação dos objetos pela linguagem, sua existência concreta, permanecem suas relações quanto ao espaço artístico, ao tempo da narrativa, à causalidade ficcional, como resultantes de uma experiência sensível, que a sua utilização e a sua própria presença nos cenários descritivos ou filmados nos impõe. Acredita-se, portanto, que a estratégia narrativa utilizada pelo autor textual tem como objetivo criar efeitos sobre o leitor e esta mesma energia inculcada nos objetos que se faz presente no texto de Eça também é um dos recursos técnicos utilizados pela minissérie, os quais decorrem de um processo criador que, personificando o objeto inerte, revelam-no dotado de uma série de qualidades evocadas, permitindo ao leitor/espectador, através de uma complexa transferência sentimental e qualitativa, diversas interpretações. O espaço, que se constitui juntamente com o tempo, como uma das categorias da narrativa, é criado na narrativa verbal através das palavras, o 68 que propicia uma inevitável indeterminação e incerteza, levando o leitor a recriar, em sua mente, as imagens espaciais descritas 125 . É possível observar que o tempo e o espaço são claramente percebidos pelos detalhes da descrição tanto na narrativa literária quanto na televisiva, a qual se utiliza de enfoques, como o close e a abertura de câmera que chamam o receptor a interagir através de suas projeções interpretativas reavivando o espírito da narrativa queirosiana, com diálogos escassos. A atuação dos objetos, com sua simbologia e força de persuasão, possibilitando várias leituras que a narrativa fílmica consegue preservar, respeitando, como se pode constatar, características inerentes ao discurso queirosiano. Nota-se ainda este detalhismo na descrição de uma confeitaria, neste trecho retirado do capítulo IV do livro, combinando elementos gerais e particulares, objetividade e subjetividade: Estavam parados ao pé da Confeitaria. Na vidraça, por trás deles emprateleirava-se uma exposição de garrafas de malvasias com os seus letreiros muito coloridos, transparências avermelhadas de gelatinas, amarelidões enjoativas de doces de ovos, e queques de um castanho-escuro tendo espetados cravos tristes de papel branco ou cor-de-rosa. Velhas natas lívidas amolentavam-se no oco dos folhados; ladrilhos grossos de marmeladas esbeiçavam-se ao calor; as empadinhas de marisco aglomeravam suas crostas ressequidas. E no centro, muito proeminente numa travessa, enroscava-se uma lampreia de ovos, medonha e bojuda [...] 126 A prosa do autor caracteriza-se pela ironia fina, humor, caricaturismo na composição dos personagens, paródia, senso de contraste, espírito crítico e, muitas vezes, grande lirismo na descrição da natureza. E ainda, é possível notar que Eça resgata a dimensão da prosa poética na fotografia meticulosa e lírica que faz dos ambientes. Estes aspectos constatados no texto literário podem ser verificados na minissérie na cena em que Jorge recebe os amigos em sua casa. O plano geral mostra o ambiente doméstico, mais precisamente a sala da casa de Jorge (Tony Ramos), onde seus amigos estão reunidos para o chá de domingo. O plano médio destaca a vestimenta da personagem Juliana (Marília Pêra), a qual está uniformizada como 125 FLORY, Suely F. V. Entre textos e código, uma leitura da abertura de Os Maias: do romance à minissérie. Comunicação & Veredas, São Paulo: Editora Unimar, v.1, p. 64-79, 2002, p. 12. 69 criada, sugerindo o estatus burguês e a formalidade convencional das famílias burguesas do século XIX. A postura dos convidados juntamente com os diálogos denotam o falso moralismo que servia de alicerce para a sociedade da época, a qual pode ser exemplificada pelo personagem do Conselheiro Acácio (Sérgio Viotti). Ainda nesta cena, dentre os diálogos, o que leva o espectador a presumir que Jorge irá passar por uma situação de infidelidade conjugal, é o comentário que faz acerca do final da peça de teatro que Ernestinho (André Valli) está escrevendo. Quando a câmera faz um close up em Jorge ao enfatizar a Ernestinho que a sua personagem teatral deve ser punida com a morte, no final da peça, por trair o marido, em fração de segundos a câmera se volta, também em close up, para Luísa (Giulia Gam) a qual está atenta ao ponto de vista de Jorge em relação às mulheres adúlteras, um índice de que se um dia ela viesse a traí-lo, sua pena seria também a morte. O plano exterior de O Primo Basílio predomina sobre o plano interior. O exagero descritivo dos ambientes reforça e complementa a fragilidade psicológica dos personagens, que nada têm de admirável. Emoções, sensações e desejos surgem no texto como ações externas ao personagem como o trecho que descreve o impulso extraconjugal de Luísa. A narrativa televisiva também parte deste pressuposto, do detalhismo na descrição dos personagens e do espaço no desenrolar da ação, como podemos observar na montagem dos cenários, na disposição e organização dos objetos, os quais estabelecem uma relação de interdependência entre narração e descrição que utilizam das minúcias de Eça como um complemento diegético da ação, que na minissérie é evidenciado pelos cortes e movimentos de câmera, enfocando os objetos que compõe os cenários, num jogo estático e ao mesmo tempo dinâmico que caracteriza sua simbologia através das aproximações e distanciamentos dos planos de filmagem, de acordo com a leitura do diretor. [...] A construção fílmica, por outro lado, tem no espaço, uma dimensão ampla e complexa. Estabelece-se uma relação isomórfica com os objetos, as paisagens, os figurinos e as dimensões e relações espaciais do mundo real. O espaço em movimento na minissérie oferece um suporte ao desenvolvimento da sucessão temporal da narrativa, pois a cada espaço corresponde um tempo específico [...]127 126 127 QUEIRÓS, Eça. Op. cit. p. 132. FLORY, Suely F.V. Op. cit., p. 12. 70 A passagem do tempo, em ambas as narrativas, se dá com o passar dos dias e meses enquanto a história dura por um ano, é o que consta nas informações que o próprio Eça descreve no romance. No contexto da narrativa da abertura do romance e da minissérie é possível notar que a construção do romance é feita de maneira que proporciona condições de comunicação entre a obra e o leitor. “A potencialidade emancipatória da obra confere ao leitor um papel ativo e à literatura uma importância social que ultrapassa o papel reprodutor, atribuído a ela pelos enfoques marxistas e/ ou da sociologia da literatura”128. Se considerar a experiência estética a que se refere Jauss, que divide em três atividades simultâneas e complementares - a poiesis, a aisthesis e a katharsis – pode-se afirmar que esta teoria se encaixa nos pressupostos da construção do romance. Jauss contextualiza da seguinte maneira: A arte tem uma função comunicacional, pois o leitor participa da construção do texto, à medida que ocupa os espaços vazios deixados pelo autor. A poiesis corresponde ao prazer de se sentir co-autor da obra. Ao realizar esta tarefa que lhe é destinada, o leitor usufrui do prazer estético da poiesis129. Enquanto é possível verificar que a poiesis é atuante na estrutura textual do romance em análise, já que o leitor é transportado para a realidade de Lisboa no século XIX ao se deparar com a história e com os personagens. O enredo da trama provoca no leitor/receptor uma espécie de estranhamento tanto no contexto social em que os personagens estão incluídos quanto na própria linguagem e diálogo entre eles, este é o processo que pode ser denominado como aisthesis, pois “[...] compreende a recepção prazerosa do objeto estético que, através do processo de estranhamento, gera possibilidade de renovar a sua percepção tanto da realidade externa, quanto da interna”130. A terceira categoria da experiência estética a qual proporciona ao leitor/receptor identificar-se com as situações vividas pelos personagens, é denominada por Jauss como katharsis que “corresponde tanto à tarefa prática das artes como função social, servir de mediadora, inauguradora e legitimadora de normas de ação... quanto à determinação ideal de toda arte autônoma [...]”131. Crê-se que a Katharsis é o objetivo maior do autor textual, pois a construção do texto e dos personagens é uma crítica à sociedade vigente na época, a qual pode ser claramente identificada pelo leitor/espectador. 128 Id. Ibid., p.4-5. JAUSS apud FLORY, Suely F. V. Op. Cit., p.5. 130 FLORY, Suely F. V. Op. Cit., p. 5. 131 Idem. 129 71 Na seqüência pretende-se expor alguns dos pontos que se julga importante neste processo de identificação do espectador com a obra, através do olho mecânico da câmera, que narra a história por meio da seqüência de imagens em movimento, mostrando ao espectador, o espaço e o tempo em que vivem os personagens. 3.2 – Quando a câmera narra a história Um roteiro bem feito é essencial para o sucesso de qualquer trabalho de ficção cinematográfico e/ou televisivo. “O trabalho do roteirista é contar histórias, não fazer histórias”132. Levando em conta que roteirizar é fazer um filme no papel, segundo Howard & Mabley, em se tratando de cinema e televisão, uma história bem contada [...] não significa apenas uma história bem narrada, habilmente estruturada e tramada. A história tem de ser mostrada em cenas esmeradas, com papéis bem concebidos (e bem interpretados), que inspirem o cenógrafo, o fotógrafo, o compositor, o montador e todos os demais colaboradores a acrescentarem seus talentos à forma final com que as imagens e palavras do roteirista aparecem perante o espectador133. Pensa-se que é através da câmera que se torna possível transmitir ao espectador todo o trabalho do roteirista e de toda a equipe que atua no processo de contar a história. É ela que mostra por meio da imagem e do movimento o que fora escrito e idealizado pelo roteirista, o trabalho do cenógrafo, do figurinista, a interpretação dos atores, além de todo o andamento e ritmo da narrativa. Quando se trata de adaptação, Balogh questiona que “quase todos os estudos de adaptação conhecidos se detiveram primordialmente nos elementos diferenciadores existentes entre os textos original e adaptado”134. Contudo, não é este o objetivo deste estudo, embora seja possível notar que o romance foi cuidadosamente transcodificado para a minissérie, permanecendo os diálogos intocáveis e considerando a perfeita interpretação dos 132 HOWARD & MABLEY. Op. cit., p. 21. Id. Ibid., p. 21-22. 134 BALOGH, Anna Maria. Conjunções Disjunções Transmutações: da Literatura ao Cinema e à TV. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2005, p. 49. 133 72 atores e a composição cenográfica minuciosa na escolha das locações externas e na ambientação interna das casas, do teatro, enfim. Da mesma forma que o narrador, no romance, a câmera atua como que descrevendo minuciosamente os espaços e as ações dos personagens. Através da sua descrição é possível notar que Luísa é mostrada como se fosse um objeto de decoração para a casa de Jorge. Ou está sentada ao piano, ou ao toucador, ou na poltrona a ler seus romances ou na mesa a tomar café. Na casa há muitos vitrais e espelhos, há cenas em que os personagens são mostrados através dos espelhos que compõem o cenário, índices da fragilidade educacional e moral de Luísa, marcada por uma frivolidade indiscutível que intensifica e acompanha a sua personalidade infantil e frágil. A trilha sonora da minissérie é composta de música clássica e música portuguesa orquestrada. A música unida com as imagens transmite ao espectador as sensações de alegria, tristeza, medo, angústia, prazer, desespero e pânico sofridos pelos seres de papel. No entanto, cabe observar que, pelo fato de se tratar de uma das primeiras minisséries realizadas pela TV brasileira, a utilização desse recurso descritivo (pois cria ambientes, projeta consciências) ainda não demonstra a eficiência descritiva que se pode verificar, por exemplo numa minissérie que transcodificou mais recentemente uma obra do mesmo autor, Os Maias, levada ao ar pela TV Globo em 2001. Ali, a trilha sonora corrobora de maneira contundente a carga dramática do destino trágico daquela família. A transcodificação de uma obra literária, ou seja, a transposição desta para um outro código só é possível porque cada obra literária oferece múltiplas possibilidades de interpretação (função poética, artística, estética da linguagem, etc). Balogh tece o seguinte comentário ao dissertar sobre adaptação e transmutação: “O filme adaptado deve preservar em primeiro lugar a sua autonomia fílmica, ou seja, deve-se sustentar como obra fílmica, antes mesmo de ser objeto de análise como adaptação”135, crê-se que este comentário também se estenda à adaptação para a minissérie televisiva. Todavia a autora complementa que “Na prática, se reconhece como adaptado o filme que ‘conta a mesma história’ do livro no qual se inspirou, ou seja, a existência de uma mesma história é o que possibilita o ‘reconhecimento’ da adaptação por parte do destinatário”136. A imagem e o movimento são os aspectos fundamentais para a narrativa televisiva. Porém, o que importa não é tanto seguir o comportamento de um dado personagem na tela e sim estar atento ao comportamento que a máquina de filmar adota relativamente ao 135 136 BALOGH, Anna Maria. Op. cit., p. 53. Id. Ibid., p. 55. 73 personagem. Segundo Moscariello, quando se trata da relação entre ator/personagem e a câmera, o primeiro pode ser cúmplice do segundo, mas também pode acontecer – e é o caso mais freqüente - que um não seja solidário com o outro, antes corrigindo-o ou mesmo contradizendo-o. Aqui, um exemplo claro, é a cena em que Luísa vai pela primeira vez ao Paraíso. Ao entrar no prédio que corresponde ao endereço que Basílio havia escrito no bilhete, o movimento da câmera, dolly in, dá a sensação de que o espectador está subindo as escadas atrás de Luísa. De uma forma geral, a presença marcante dos cenários e conseqüentemente dos objetos que o compõem, assinalam reiteradamente a convivência diária dos personagens/atores dando indícios de seus estados psicológicos e de situações que ainda estão por vir. A partir desta premissa, pode-se notar que ao subir as escadas, a câmera mostra as paredes manchadas como se indicassem o estado moral de Luísa, adúltera, sujeitando-se a estar naquele lugar de aspecto pobre, simples e sujo para encontrar-se às escondidas com o amante. Enquanto Luísa sobe, sua voz narra em off o encontro de dois amantes, que lera em um de seus romances, quando o homem prepara um ambiente luxuoso no espaço interno de uma casinha simples, para receber a amada. Ao chegar ao quarto, onde Basílio a espera, a decepção de Luísa se completa ao ver aquele ambiente rústico, enxovalhado. É então que a câmera dá um close up na colcha de retalhos estendida sobre a cama, como um indício de que a vida da personagem estava como aquela colcha, toda retalhada moralmente, perante si própria, perante Jorge, seus amigos e até mesmo diante dos vizinhos da sua rua. Outro exemplo, observado desde o início do romance são os constantes close ups nas alianças que Jorge usa como símbolo do casamento, sugerindo uma premonição de que algum conflito vai surgir para romper com o laço do matrimônio, considerado sagrado pelos cristãos. Estes indícios da decadência moral da personagem vão ser evidenciados a seguir. 3.2.1 – A decadência moral da personagem Luísa na minissérie A narrativa televisiva de O Primo Basílio basicamente utiliza os planos fixos para contar a história, predominando o primeiro plano e o plano médio e posteriormente o plano geral. Já os planos em movimento são pouco usados. Também é visível a similaridade desta com a obra original, o tempo, o espaço, os personagens e até mesmo a seqüência da narrativa televisiva poucas vezes difere da obra de Eça. Em se tratando dos indícios mais relevantes do processo de decadência moral da personagem Luísa, observa-se que na minissérie procurou-se chegar o mais perto possível das 74 descrições do autor textual. A louvável interpretação dos atores escolhidos para atuarem como personagens de Eça de Queirós permitem ao espectador associar as características dos seres textuais com os televisuais. Assim como no romance, um dos primeiros índices da decadência moral da personagem Luísa (Giulia Gam) é a cena em que esta recebe a visita da sua amiga de infância – Leopoldina (Beth Goulart). Considerada por todos os que a conhecem como a infiel, a devassa, a “Pão e Queijo”, Leopoldina questiona Luísa acerca do adultério, dando indícios ao espectador da possibilidade de Luísa vir a se tornar também uma adúltera. As características mostradas pela interpretação de Beth Goulart sugerem ao espectador que o comportamento da sua personagem difere das outras mulheres, consideradas de bem, casadas e fiéis, educadas para servir somente ao marido. Leopoldina aparece fumando e confidenciando suas aventuras amorosas, apesar de não se esquecer que continua casada com um marido que considera um ‘porco’, tem personalidade própria e seu único objetivo é ser feliz independentemente do que a sociedade comenta a seu respeito. A indumentária da personagem Luísa, no início da minissérie, é composta dos tons pastéis, um bege, um rosa muito desbotado e às vezes um azul muito claro. Aos olhos do receptor estas cores leves sugerem a delicadeza, a frágil personalidade da personagem e também o romantismo que rodeia o seu cotidiano. Contudo, a fragilidade de Luísa pode ser notada em toda a narrativa televisiva. A cena em que Jorge (Tony Ramos) pede a Sebastião (Pedro Paulo Rangel) que, na sua ausência, esteja sempre presente em sua casa para fazer companhia a Luísa, para adverti-la de que não deve receber a visita de Leopoldina por não ser boa influência, é um exemplo. Este comportamento de Jorge insinua a debilidade moral da esposa, a qual pode ser corrompida se ficar em contato com a amiga Leopoldina. Jorge afirma várias vezes que a “Luizinha é mulher, muito mulher!” assinalando a sua educação que é destituída de senso crítico, o que a impossibilita distinguir a realidade da fantasia, o certo – segundo a moral vigente na época – do que é considerado imoral. Observa-se nesta passagem que as características que compõem a estrutura da personagem Luísa estão sendo reveladas por outros personagens. E os índices do adultério tornam-se cada vez mais contundentes. Assim que Jorge viaja, Luísa recebe a visita do primo Basílio (Marcos Paulo). Nesta cena, Luísa aparece no topo da escada, toda formosa, bem penteada, numa roupa de cor clara, bonita e muito engomada, demonstrando o seu estado de esposa exemplar. Pode-se supor que a sua ação de descer as escadas até Basílio já insinua o seu contínuo processo de decadência moral. Depois de cumprimentá-lo, na seqüência a narrativa é envolta em uma analepse ou flash-back, Luísa 75 se lembra quando Basílio a deixou e partiu para o Brasil, em busca de fortuna. Esta bifurcação, usada para mostrar uma lembrança do passado da personagem, pela narrativa televisiva, expõe ao espectador o que ainda não havia sido mostrado com riqueza de detalhes, que Luísa fora apaixonada e abandonada pelo primo, no passado. Esta lembrança demonstra o caráter individualista e grotesco de Basílio, pois se compromete com a prima e não cumpre a promessa de voltar do Brasil e se casar com ela. Observa-se aqui que tanto na narrativa literária quanto na televisual, os personagens além de serem revelados um pelos outros também são construídos com a seqüência e conseqüência das suas ações no decorrer da narrativa. “A imagem tem, portanto, seus próprios códigos de interação com o espectador, diversos daqueles que a palavra escrita estabelece com o seu leitor”137. Acredita-se que é necessário lembrar que na linguagem audiovisual [...] o tempo pode parar, inverter-se, repetir-se, fazer avançar ou retroceder a ação, dando forma à simultaneidade. Trata-se agora, do tempo da imagem móvel, que antecede o tempo da imagem ágil da televisão. Não mais o tempo da imagem fixa, do quadro ou da fotografia, que a narrativa literária realista imitava na sua prolixidade descritiva e que, a despeito de tantas transformações, até hoje presente, em maior ou menor grau138. Segundo Pellegrini, o tempo é a condição da narrativa e no caso da televisual, só é possível pela seqüência linear ou não linear das imagens. Todavia quando se pensa em tempo, o espaço também se faz presente. Na narrativa televisual, o espaço perde a estaticidade, “tornando-se ilimitadamente fluido e dinâmico, adquirindo uma dimensão temporal que repousa na sucessividade descritiva e/ou narrativa [...] assume a heterogeneidade do movimento do tempo que o conduz”139. Quanto ao espaço, na minissérie os ambientes são retratados geralmente em plano geral, porém observa-se que praticamente em quase todas as cenas é possível notar a presença de vitrais e espelhos, o que pode denotar que o objeto presente naquele espaço desmitifica a personalidade da personagem que ali vive. Na cena da segunda visita de Basílio à casa de Luísa, ele presenteia a prima com rosário e luvas. Enquanto ele dialoga com Luísa, a sua imagem é mostrada ao espectador através de um dos espelhos que compõe o cenário da sala da casa de Jorge. 137 PELLEGRINI, Tânia. Literatura, Cinema e Televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo: Instituto Abril Cultural, 2003, p. 15-16. 138 Id. Ibid., p. 21-22. 139 PELLEGRINI, Tânia. Op. cit., p. 21-22. 76 Na terceira visita que Basílio faz a prima, quando ele toca a campainha, ela está novamente na frente do espelho, penteando-se e cuidando da pele, o que demonstra a sua função de objeto decorador na casa. No seu vestido em tom pastel, passa um bom tempo a apreciar Basílio cantando e tocando piano. É quando Basílio usa de todas as artimanhas para conquistar novamente a prima. Como ele sabe que Luísa é uma romântica sonhadora, que vive a ler romances e a sonhar com uma vida ainda mais fútil, vale-se de um discurso romântico para conquistá-la. Nesta cena é possível notar através do olho mecânico, que enfoca em plano médio a expressão sonhadora da personagem - enquanto Basílio conta que sonhou com ela – que Luísa está totalmente propensa a cair na tentação do adultério, como previa Jorge ao pedir a Sebastião que sempre estivesse presente em sua casa, na sua ausência. Ao se imaginar nos sonhos de Basílio, Luísa levanta-se da poltrona e em passos lentos põe-se a caminhar sem direção pela sala, como se estivesse sonhando. Ao mesmo tempo, em close up uma das mãos de Luísa acaricia o medalhão com a foto de Jorge que carrega no pescoço, índice da sua instabilidade emocional. É possível notar a partir desta cena, que a personagem sonha com uma vida diferente da que vive com o marido, da mesma forma como é descrita no romance, há uma grande chance de ceder aos encantos de Basílio. Basílio beija-a. A decadência da personagem passa a ser mostrada abertamente, já não são mais indícios nem inferências. A partir de então suas vestimentas passam a mudar gradativamente para tons mais escuros até chegar ao vermelho e preto, cor que vai perseguir a personagem até o fim. Os encontros com o primo tornam-se diários. Ela aceita passear com Basílio e o beija novamente, ao voltar do passeio para a casa. Luísa mostra-se totalmente vulnerável aos apelos de Basílio, sem ao menos questionar as suas reais intenções, muito menos considerar as conseqüências que o seu ato adúltero poderia desencadear, caso fosse descoberto por Jorge. Luísa não pensa, apenas sonha. É então que se torna nítida a sua fragilidade e a facilidade que tem em se deixar levar pelo novo, pelo inusitado, o que também pode ser observado pelo desenrolar da narrativa televisual, por meio dos diálogos que são os mesmos da narrativa literária. Nota-se também, que quanto mais ela se relaciona com Leopoldina, mais ela tende a se degradar moralmente. Crê-se que isto se deve ao fato de que ela imagina que pode ter uma vida cheia de aventuras como a da amiga. Entretanto, não leva em consideração a sua formação frívola e totalmente sentimental, enquanto Leopoldina apesar de não ter nenhuma moral, tem uma educação voltada para a razão. Leopoldina tem uma visão racional do seu modo de vida. Os seus amantes servem aos seus caprichos e necessidades, enquanto Luísa serve aos caprichos do seu amante além de ficar idealizando uma vida a dois. Estes 77 posicionamentos podem ser justificados na cena em que Leopoldina vai à casa de Luísa para jantar. Depois de comerem e beberem sem nenhuma etiqueta, recordando os tempos e os amores do colégio, Luísa totalmente solta numa poltrona diz que ser feliz é estar com o seu homem, com um filho. Enquanto Leopoldina contrapõe-se afirmando que um filho a impossibilitaria de ter prazer na vida. Nesta mesma noite acontece a consumação do adultério, quando Basílio chega sem avisar com o pretexto de se despedir da prima. Na euforia e no medo de perder o amante, Luísa se entrega a Basílio no sofá da sala da casa de Jorge e ainda deixa indícios do ato sexual, os quais são checados por Juliana, que desde a chegada do primo desconfia da possibilidade do adultério. Luísa fica totalmente encantada e alegre por ter um amante. Não consegue se ver só, esperando por Jorge. Numa manhã, no escritório de Jorge, começa a escrever uma carta para Basílio quando inesperadamente chega D. Felicidade. Luísa atira a carta ao cesto de lixo e Juliana encontra-a. É aqui que começa o processo de decadência moral da personagem Luísa no espaço doméstico, ou seja, perante as suas criadas. Embora ainda demore um pouco para que Juliana comece a chantageá-la. Neste espaço de tempo, Juliana consegue mais provas roubando as cartas que Basílio endereçou à prima. E ainda, Luísa começa a se encontrar com Basílio no Paraíso. Desta forma, o decurso da sua derrocada pode ser notado no comportamento de Juliana que aos poucos começa a folgar nos afazeres domésticos, a sair mais para visitar suas amigas. Outro fator que também confere a decadência de Luísa é a submissão que tem perante o amante que começa, depois de alguns encontros, a tratá-la como uma qualquer. Ela sente-se usada. Em uma das cenas, Luísa partilha com Leopoldina o sentimento de que está sendo usada pelo primo. Leopoldina com a sua experiência com amantes adverte-a que não pode ser assim, tem que falar e demonstrar que está chateada. O ápice da decadência de Luísa na próxima cena acontece quando Leopoldina comenta que o banqueiro Castro também a deseja. Aqui o espectador ainda observa a necessidade que Luísa – que reclama a Leopoldina que Basílio não tem ido todos os dias ao Paraíso - tem de se ver sempre envolta de uma pessoa que a trate bem, que a enalteça, que a note. Já no diálogo da cena em que Leopoldina está com o seu novo amante há indícios de que Luísa nunca mais vai voltar a ter uma vida como a que tinha com Jorge. A cena que com nitidez mostra a decadência de Luísa no espaço doméstico é a que narra a irritação de Luísa quando ao chegar do Paraíso, depara-se com a casa por arrumar, com seu quarto totalmente bagunçado e Juliana a cantarolar. As duas se descontrolam e 78 Juliana grita que nem todos os papéis foram para o lixo. Luísa desmaia. Para mostrar que Luísa estava acordando do desmaio foi utilizado o movimento de câmera chamado de ponto de vista, no qual a câmera se situa ao nível dos olhos da personagem dando ao espectador a sensação de estar olhando através dos olhos de Luísa. Começa o calvário de Luísa. Confiando que Basílio a socorreria naquele momento de desespero, faz as malas e vai para o Paraíso com o intuito de fugir para Paris com o amante. Ao contrário do que sonhara, Basílio trata-a com desdém e prontamente se recusa a acolhê-la em sua vida. Luísa termina por se sentir abandonada diante de uma situação que não tem idéia de como resolver. Por outro lado, apesar de Basílio mostrar-se extremamente machista e individualista, Luísa não tem consciência de que para fugir há a necessidade de dinheiro, que os homens têm negócios que não podem ser deixados de forma tão rápida. Ela ainda não tinha se dado conta de que Juliana só estava querendo dinheiro em troca das cartas. Basílio é quem diz isso a Luísa que, nervosa, rompe o romance com o primo, pois ele não demonstra nenhum comprometimento com o seu problema. Toda ruína da personagem pode ser vista pelo traje que veste há dois dias, pelos cabelos eriçados e pelas olheiras aparentes em seu rosto. Da mesma forma que foi demonstrada a decadência moral de Luísa na narrativa literária, na televisiva também há a cena em que Basílio conta sobre os fatos ocorridos ao amigo, o Visconde Reinaldo. É por meio da interpretação dos atores e dos diálogos que se pode notar o machismo predominante na sociedade da época. A cada dia que passa Juliana pressiona mais Luísa que sente medo da criada. Os papéis se invertem, Juliana passa a ser a senhora da casa, enquanto Luísa começa a servir, a varrer, a passar e a engomar. Seus vestidos engomados dão lugar aos roupões encardidos. Os penteados cedem lugar ao lenço de amarrar os cabelos. A pele clara e macia das mãos começa a ficar machucada. As olheiras tomam espaço no seu rosto e o cansaço transtorna o seu corpo. Nesta fase a iluminação denota a decadência da personagem, que passa a viver na penumbra, retratando o seu arrependimento por ter traído Jorge, um homem que a amava e que a tratava como uma princesa. Não suportando mais as ameaças de Juliana, Luísa procura Sebastião. Mas não tem coragem de contar a ele o seu caso amoroso com Basílio, que a estas alturas já tinha viajado há tempos para Paris, para se safar. Nota-se a angústia de Luísa pela expressão em seu rosto, pelo traje negro que veste e pelo lenço negro com que esconde o rosto, como se tivesse se escondendo da sociedade atrás dele. 79 É possível constatar que a educação que Luísa recebeu, foi voltada estritamente para o lar. Ela não sabe negociar, lidar com dinheiro, muito menos trabalhar para consegui-lo, o que também não era comum para uma integrante da sociedade burguesa. Mesmo com o abandono de Basílio e a ausência de Jorge, Luísa não amadurece, fato que confirma a caracterização desta como uma personagem plana. Luísa até tenta conseguir as cartas de volta dando vestidos de presente para Juliana, que por pouco tempo se acalma. Luísa tem muito medo de Juliana, por sua personalidade determinada, por ter seus objetivos próprios e por não se render aos presentes. Jorge chega. Em vez da barba cerrada, está com bigodes semelhantes aos de Basílio. E as chantagens continuam. Juliana exige um novo quarto e uma cômoda porque quer um pouco de humanidade. Jorge não quer deixá-la trocar de quarto porque acha que os seus ricos baús vão se deteriorar se ficarem no quarto de Juliana. Os baús, na sua opinião, tem mais valor do que um ser humano doente, no caso a criada. Aqui é possível mencionar que tanto o autor textual quanto os roteiristas mostram que Juliana é a personagem que exemplifica como a maioria da sociedade vive, ou seja, as pessoas menos favorecidas financeiramente, a desigualdade social, etc. Juliana começa a abandonar seus afazeres e obrigações. Em vez de fazer os serviços, as arrumações, veste-se com roupas boas, enquanto Luísa está descomposta, com olheiras, mal vestida. E quando se arruma, coloca os seus vestidos pretos, os amigos começam a notar o seu cansaço e Jorge começa a questionar o seu desânimo. Na cena em que Juliana assegura que não vai vazar as águas sujas e sugere cinicamente que Luísa mesma as jogue antes que Jorge chegue, ocorre a demonstração da decadência moral da personagem perante suas próprias criadas. Como Luísa não consegue, num primeiro momento, resolver a sua situação com Sebastião, a alternativa que sobra é procurar o banqueiro Castro, que há tempos demonstra grande interesse por ela. Mas a tentativa é vã. Luísa não consegue deitar-se com o banqueiro e o chicoteia com uma fúria intensa. Luísa continua sofrendo com as chantagens, os mandos e desmandos da criada Juliana. Mas não tenta mudar a situação, não se impõe como a dona da casa e submissamente cede aos caprichos de sua serviçal, tal fato é explicitamente observado na cena em que Juliana manda Luísa falar para Jorge não a tratar com voz alterada. A câmera mostra Juliana no topo da escada, enquanto Luísa acata as suas ordens de baixo, decadente, imóvel, desesperada e numa posição inferiorizada. 80 Para Jorge a mulher tem que estar sempre bela e disposta, como se fosse um adorno do lar. Ele não consegue vê-la cansada. Na cena na qual ele chega do trabalho e surpreende Luísa varrendo a sala com um lenço maltrapilho na cabeça e exausta, sai de si e grita com Luísa, que não consegue responder-lhe, pois está quase desmaiando. Juliana, na seqüência, cai doente e Jorge não a quer mais como criada e resolve despedi-la. O que provoca pânico em Luísa, pois ao dispensar da criada, a probabilidade de Jorge saber do seu romance com Basílio cresce. O medo, a insegurança e o pavor de ser descoberta fazem Luísa viver aterrorizada. O cúmulo da chantagem está representado na cena em que Luísa cede a mais uma das chantagens de Juliana e se ajoelha aos pés da sua criada Joana pedindo que ela se vá e não conte nada a ninguém. A iluminação neste momento tem um importante papel, o de mostrar a derrocada da personagem, que parece um fantasma a vagar pelo corredor. Juliana dá as ordens domésticas e afirma que naquela casa quem manda é ela. Sem mais nenhuma alternativa, Luísa procura novamente Sebastião e conta ao bom amigo tudo o que aconteceu, da mesma forma como o autor textual, o roteirista conseguiu transmitir, através da imagem, a bondade e servidão do bom Sebastião e o imenso desespero de Luísa. A personagem volta a ficar alegre com a promessa de Sebastião de que iria resolver o problema ainda naquela noite. Luísa, juntamente com Jorge e D. Felicidade foram para o teatro, enquanto Sebastião e dois policiais foram até a casa de Jorge ameaçar Juliana e conseguir recuperar as cartas. Juliana grita e se desespera, vê naquela devolução o pão da sua velhice “ir-se por água abaixo”, tem um aneurisma e morre. Luísa queima as cartas. Embora estando livre de todas as ameaças que caíra sobre o seu casamento em conseqüência do adultério, cai doente. Depois de alguns dias melhora e novamente recebe, em sua casa, os amigos para o chá do domingo. Entretanto, dias antes, enquanto estava acamada recebeu uma correspondência de Basílio em resposta ao seu pedido, a qual revelava sobre seus encontros com o primo. Jorge abriu-a, leu-a e vendo Luísa aparentemente recuperada pede que ela a leia. Luísa desespera-se e adoece novamente. Tem inexplicáveis dores de cabeça, febre e delírios. Uma cena comovente é quando Julião Zuzarte, como médico da família, opta por raspar a cabeça de Luísa como uma possível alternativa para a cura da sua doença. Os cabelos compridos simbolizam a identidade da mulher e quando Luísa os perde, acaba perdendo sua própria identidade de mulher e esposa. E como Jorge sabe da verdade, ela perde perante o sacramento do matrimônio a sua dignidade e a sua vontade de viver. 81 Depois da sua morte, Jorge vai morar com o seu amigo Sebastião. Basílio retorna à Lisboa dias depois do falecimento da amante e ao saber da notícia comenta com o amigo Visconde Reinaldo que deveria ter trazido de Paris a sua outra amante, a Alphonsine. A decadência da personagem Luísa foi minuciosamente narrada pela câmera, levando em conta o seu modo e as suas características próprias, como um código diferente do texto original, mas que o retratou com uma clarividência notável, fazendo-se por reconhecer a genialidade do texto queirosiano. No decorrer da narrativa televisiva, foram utilizadas estratégias próprias do código televisivo para que fosse possível haver uma interação entre a adaptação e o espectador, as quais foram essenciais no processo de identificação entre o público e os personagens. 82 Considerações Finais É inquestionável a riqueza literária de O Primo Basílio, romance do português Eça de Queirós, escolhida como base para esta pesquisa. A imortalidade das obras de Eça pode ser observada pelos inúmeros estudos feitos por pesquisadores de diversas áreas, que ainda encontram nos seus escritos uma fonte inesgotável de questionamentos e de releituras. Todavia, estas não são as únicas evidências que as tornam imperecíveis. Os romances do autor têm caráter didático, sendo a sua leitura recomendada para todos os estudantes do Ensino Médio. Vale ressaltar ainda que é uma obra obrigatória no currículo dos estudantes que desejam prestar vestibular e ingressar no Ensino Superior. Considerado um clássico da língua portuguesa, O Primo Basílio, é um dos principais romances que representam o movimento Realista-Naturalista (1825-1865), o qual propunha a reprodução da realidade social através da arte literária. Publicado em 1878, O Primo Basílio retrata minuciosamente a sociedade burguesa lisboeta do século XIX. Para tanto, Eça enfoca um lar burguês aparentemente feliz e perfeito, mas com falsas bases morais, pois tem o intuito de questionar uma das instituições sociais tidas como uma das mais sólidas: o casamento. Embora o Romantismo já tenha trabalhado com o tema do adultério, o autor consegue inovar por meio da sua criatividade e imensa facilidade de mostrar através dos seus personagens, que representam a burguesia, a imoralidade e a ociosidade de uma sociedade que vive de aparências. Foi a partir da relevância do trabalho de Eça de Queirós e o profundo interesse em descobrir e apreender o sentido da atemporalidade de sua obra, que esta pesquisa se propôs a investigar a relação entre o romance O Primo Basílio e a sua transcodificação para o formato televisivo, a minissérie homônima produzida e veiculada pela Rede Globo de Televisão em agosto de 1988, tendo como objeto-recorte a derrocada moral da personagem Luísa. Quanto à obra literária, observou-se que O Primo Basílio é um romance dramático porque não há uma divisão notória entre enredo e personagens. Como o objeto-recorte estudado é a decadência da personagem Luísa nos espaços doméstico e do adultério, por meio de citações retiradas do romance foi possível fazer esta identificação. As características físicas e psicológicas da personagem revelam-se e interferem na sua maneira de agir e de se relacionar com a realidade, o que exemplifica algumas das particularidades deste gênero dramático. 83 Através de um narrador onisciente e extremamente minucioso, a história de Luísa Mendonça de Brito Carvalho e seu relacionamento adúltero com o seu primo Basílio de Brito é contada. A narrativa vai se desenvolvendo em direção a um fim enquanto constrói os personagens, caracteriza-os e os tipifica desencadeando o enredo, com pequenas pitadas de sarcasmo, caminhando rapidamente com a narração e muitas vezes demorando-se ao retratar cuidadosamente os espaços, as personalidades, os pensamentos e desejos dos personagens, pela descrição. O narrador onisciente, aquele que tudo sabe e que tudo vê, até mesmo os pensamentos mais íntimos dos personagens, também conta ao leitor e descreve o espaço em que estes vivem, bem como o tempo do discurso, que pode ser entendido como a conseqüência da representação narrativa e o tempo da história ou diegese que pode ser pluridimensional. Notase então que o tempo do discurso é equilibrado pela narração e pela descrição. Acredita-se que n’O Primo Basílio a descrição, num primeiro momento, é a responsável pela construção dos personagens e posteriormente a narração concretiza, por meio das suas ações o caráter descrito, tornando-os seres de papel que povoam um mundo possível. Contudo, esta pesquisa enfatizou basicamente, tanto na análise literária quanto na sua transcodificação para a minissérie televisiva, a personagem Luísa: uma jovem romântica, inconseqüente, ingênua e frágil. A heroína sem caráter, que pelo fato de ter tido uma educação calcada na frivolidade ao se deparar com a realidade, posterior as suas ações, não tem maturidade psicológica para sobreviver perante as conseqüências de seus ímpetos. Foi possível observar, de um modo geral, que os personagens agem uns sobre os outros e se revelam uns pelos outros e assim se apresentam perante o leitor com suas ideologias e personalidades. Quanto à minissérie televisiva, antes mesmo de se estudar os formatos, a linguagem e o processo de transcodificação, procurou-se apresentar ao leitor deste trabalho, um breve histórico da chegada da TV no Brasil, somente com os fatos principais que levaram este meio de comunicação, que é o suporte técnico para o objeto abordado, a evoluir e a conquistar com rapidez o público brasileiro. Concluiu-se que a linguagem televisiva permite a fácil transposição entre realidade e ficção, o que também pode vir a contribuir para que o processo de transcodificação, do código literário para o código audiovisual, seja possível. Na transcodificação, a narrativa televisiva que articula um complexo de elementos, próprios do meio audiovisual (palavra, imagem, som, movimento, luz e cor), desencadeia 84 novas relações entre o imaginário individual e coletivo, no que diz respeito a relação entre a obra literária e a sua adaptação. Em se tratando de adaptação, a narrativa televisiva transcodifica fragmentos da obra original oferecendo dinamicidade e identificação entre o mundo possível, da história, e o mundo real, do espectador, através da composição das falas, das imagens e do movimento dos personagens/atores, ou seja, a ação. Neste caso, é a partir do impacto dramático, que implica dificuldades, provação, reação social e ameaça, determinados pela obra original, que se constrói a estrutura da narrativa televisiva da minissérie, bem como os códigos sociais a serem utilizados neste processo (a cidade de Lisboa no século XIX), fonte e forma de aliança ou conflito entre a primeira e a que vai ser transcodificada. Portanto, apesar de ser baseada na obra original, na transcodificação reconstrói-se o tempo, o espaço e os personagens. A narrativa televisiva, neste caso, pode ser considerada como uma das releituras da obra original e ainda suscitar no espectador o interesse tanto pela obra, quanto para compreender a realidade vivida pela burguesia no século XIX. Além da problemática social desta sociedade e a luta de classes espelhada na personagem Juliana (Marília Pêra), no decorrer da minissérie o espectador consegue identificar por meio dos demais personagens/atores, que apesar de terem se passado muitos anos desde a publicação do romance, as situações vivenciadas pelos personagens são muito parecidas com a realidade atual do Brasil. Entretanto, para que haja este processo de identificação entre o que é veiculado na minissérie e o espectador é necessário que as escolhas feitas na montagem, que vai desde o roteiro até a edição final, sejam pertinentes. Os atores e as suas interpretações, as locações e o som, as cores e a iluminação, o ordenamento do tempo (cortes), os enquadramentos, objetos e os detalhes são elementos essenciais para a concretização eficaz do processo da narrativa televisiva. Em ambas as narrativas nota-se a excelência de um trabalho bem elaborado. Em relação a obra de Eça de Queirós pode-se afirmar que O Primo Basílio representa a interação do homem com seu meio físico, histórico e social, correlacionando sempre uma ação particular com o estado geral do mundo, com a totalidade da sua época, com o terreno substancial em que ela se insere e se desenvolve. Por isso, na sua narrativa assume valor tão relevante a representação daquele meio, das coisas e das instituições que constituem elementos de mediação da atividade humana, dos costumes de uma época e de uma classe social, dos fatos rotineiros de que se entretece a vida individual e coletiva dos personagens que refletem a sociedade lisboeta do século XIX. Já a recriação do romance O Primo Basílio 85 para a linguagem televisiva é uma adaptação propriamente dita, pois, consiste em ser o mais fiel possível à obra. Não há alteração da história, nem de tempo, nem de localizações, nem de personagens. Os diálogos refletem apenas as emoções e conflitos presentes no original. Acredita-se que a genialidade de Eça foi integralmente preservada na transcodificação. O roteiro, a direção de câmera, a interpretação dos atores, os cenários e a indumentária caracterizaram imagética e verbalmente as descrições da obra original. Ao final desta pesquisa percebe-se que ainda há muito do que analisar e aprender com os objetos escolhidos como base deste estudo, pois o estilo de Eça de Queirós é inigualável e a sua fórmula literária engrandece-se e se firma com o passar do tempo. Da mesma forma, a minissérie também oferece diversas releituras, principalmente pelo fato de se manter o mais fiel possível à obra original. Todavia, crê-se que esta investigação, aqui feita, venha a contribuir para a pesquisa em Comunicação no que tange aos questionamentos sobre a relação existente entre a literatura e a sua transcodificação para a minissérie televisiva, principalmente quando se trata das disparidades e semelhanças entre narrativas literárias e narrativas televisuais. 86 Referências ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História Social da Literatura Portuguesa. 3. ed. São Paulo: Ática, 1985. AGEL, Henri. O Cinema. Porto: Livraria Civilização, 1983. AGUIAR e SILVA, Vitor Manuel. A Estrutura do Romance. Coimbra: Livraria Almedina, 1974. ___________________________. Teoria e Metodologia Literárias. 1. ed. Lisboa: Universidade Aberta, 2002. ARBEX JR, José. Showrnalismo: a notícia como espetáculo. São Paulo: Casa Amarela, 2002. ASSIS, Machado de. Eça de Queirós: O Primo Basílio. In: ___________. Crítica & Variedades. São Paulo: Globo, 1997. BALOGH, Anna Maria. Conjunções Disjunções Transmutações: da Literatura ao Cinema e à TV. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2005. BARBERO, Jésus Martin. Dos Meios às Mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. BARTHES, Roland. Retórica de La Imagem. Buenos Aires: Ed. T. Contemporâneo, 1970. BONFIM, Gustavo Amarante. O Mercado de Bens Simbólicos de Pierre Bordieu. Rio de Janeiro: Depto de Artes e Design da PUC, 2003. Disponível em <http://72.14.209.104/search?q=cache:meWTj4m096oJ:www.fmemoria.com.br/teoriaecritica/ img/mercado_dos_bens_simb.pdf+bens>. Acesso em: 24 de agosto de 2006. BORDIEU, Pierre. Sobre a Televisão: a influência do jornalismo e os jogos olímpicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. _______________ A economia das trocas simbólicas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1999. BRAIT, Beth. A Personagem. São Paulo: Ática, 1985. BRASIL JUNIOR, Antonio da Silveira; GOMES, Elisa da Silva; OLIVEIRA, Maíra Zenun de. Os Maias, a literatura na televisão. Revista Habitus: revista eletrônica dos alunos de graduação em Ciências Sociais – IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, v.2, n.1, p. 5-20, 30 mar. 2004. Anual. Disponível em www.habitus.ifcs.ufrj.br. Acesso em: 01 dez 2006. CAL, Ernesto Guerra da. Linguagem e Estilo de Eça de Queiroz. Lisboa: Editorial Aster, 1953. 87 CANDIDO, Antonio (org.). A personagem de ficção. 9. ed. São Paulo: Perspetiva, 1995. COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. DEFINA, Gilberto. Teoria e Prática de Análise Literária: síntese de princípios de análise literária aplicados ao romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. São Paulo: Pioneira, 1975. Dicionário da Língua Portuguesa on line. Disponível em: <http:// www. Priberam.pt>. Acesso em: 12 de setembro de 2006. FERREIRA, Edda Arzúa. Integração de Perspectivas: contribuição para uma análise de personagens de ficção. Rio de Janeiro: Cátedra, 1975. FIELD, Syd. Os Exercícios do Roteirista. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. FORSTER, Edward M. Aspectos do Romance. 2. ed. São Paulo: Globo, 1998. FLORY, Suely F. V. Entre textos e código, uma leitura da abertura de Os Maias: do romance à minissérie. Comunicação & Veredas, São Paulo: Editora Unimar, v.1, p. 64-79, 2002. HOWARD, David; MABLEY, Edward. Teoria e Prática do Roteiro. São Paulo: Globo, 1996. MACIEL, Pedro. Jornalismo de Televisão: normas práticas. Porto Alegre: Sagra-D.C. Luzzatto, 1995. MARCONDES FILHO, Ciro. A Saga dos Cães Perdidos. São Paulo: Hacker Editores, 2000. _______________________ Televisão. São Paulo: Scipione, 1994. MARTIN BARBERO, Jesus; REY, Gérman. Os exercícios do ver: hegemonia audiovisual e ficção televisiva. Tradução de Jacob Gorender. São Paulo: Senac, 2001. MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensão do homem. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 1999. MENDONÇA, Aniceta de. Da descrição aos objetos: personagens nos romances de Eça de Queirós. Revista de Letras. Assis-SP, 19: 9-38, 1997. ______________________ O Primo Basílio, romance exemplar do realismo queirosiano. Revista de Letras. Assis-SP, 14, 72-85, 1972. MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa em Perspectiva. Vol III. São Paulo: Atlas, 1994. ___________________. Dicionário de termos literários. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 1985. MOSCARIELLO, Ângelo. Como ver um filme. Lisboa: Editorial Presença, 1985. MUIR, Edwin. A Estrutura do Romance. 1. ed. Rio de Janeiro: Globo, s/d. 88 OTIZ, Renato (org.). Telenovela: história e produção. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1988. PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de Televisão. São Paulo: Moderna, 1998. PATERNOSTRO, Vera Íris. O texto na TV - Manual de Telejornalismo. São Paulo: Brasiliense, 1987. PELLEGRINI, Tânia (et. al.). Literatura, Cinema e Televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo: Instituto Abril Cultural, 2003. QUEIRÓS, Eça. O Primo Basílio. 18. ed. São Paulo: Ática, 1997. REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Teoria da Narrativa. São Paulo: Ática, 1988. SILVA, Juremir Machado. As Tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2003. Livros Grátis ( http://www.livrosgratis.com.br ) Milhares de Livros para Download: Baixar livros de Administração Baixar livros de Agronomia Baixar livros de Arquitetura Baixar livros de Artes Baixar livros de Astronomia Baixar livros de Biologia Geral Baixar livros de Ciência da Computação Baixar livros de Ciência da Informação Baixar livros de Ciência Política Baixar livros de Ciências da Saúde Baixar livros de Comunicação Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE Baixar livros de Defesa civil Baixar livros de Direito Baixar livros de Direitos humanos Baixar livros de Economia Baixar livros de Economia Doméstica Baixar livros de Educação Baixar livros de Educação - Trânsito Baixar livros de Educação Física Baixar livros de Engenharia Aeroespacial Baixar livros de Farmácia Baixar livros de Filosofia Baixar livros de Física Baixar livros de Geociências Baixar livros de Geografia Baixar livros de História Baixar livros de Línguas Baixar livros de Literatura Baixar livros de Literatura de Cordel Baixar livros de Literatura Infantil Baixar livros de Matemática Baixar livros de Medicina Baixar livros de Medicina Veterinária Baixar livros de Meio Ambiente Baixar livros de Meteorologia Baixar Monografias e TCC Baixar livros Multidisciplinar Baixar livros de Música Baixar livros de Psicologia Baixar livros de Química Baixar livros de Saúde Coletiva Baixar livros de Serviço Social Baixar livros de Sociologia Baixar livros de Teologia Baixar livros de Trabalho Baixar livros de Turismo