Prefácio [...] a verdade só é eterna enquanto evolução eterna da verdade. (Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem, São Paulo: Hucitec, 1979, p. 180) Estou dando ao público uma coletânea de artigos escritos em diversas épocas de minha vida acadêmica. Desde há muitos séculos, fazem-se compilações de textos considerados significativos de algum ponto de vista. Em nossa civilização, a mais antiga dessas seleções é a coleção de epigramas de diversos escritores, escolhidos por Meléagro de Gádara, que viveu no século i a.C. Esse poeta intitulou sua obra antologia, palavra composta de anthós, “flor”, e légo, “colher, escolher, reunir”: coletânea de textos escolhidos. No proêmio, ele definia sua seleta como uma guirlanda, ou melhor, uma coroa de flores (stéphanos). Os latinos chamavam a esse tipo de obra florilégio, tradução exata do termo grego antologia. Uma antologia é uma coleção de textos ou fragmentos unidos por determinada característica (por exemplo, pertencer a um mesmo autor, a um dado gênero, a uma determinada época, a um certo movimento literário, apresentar o mesmo tema) e escolhidos de acordo com certo critério (utilidade didática, perfeição artística, função ideológica, testemunho de uma época, de um movimento literário). As antologias podem ser individuais, quando são centradas num só autor, ou coletivas, quando apresentam diferentes autores. Dizia-se que a antologia era uma coletânea de textos literários em prosa ou verso. No entanto, ela surge num tempo que se considera literária qualquer produção escrita. Ela é, pois, qualquer conjunto de textos, embora ainda predominem as coletâneas de textos literários. As características básicas desse tipo de obra são a seleção dos textos e a qualidade do que é escolhido. 8 A seleção é sempre feita com base em algum critério. É o mesmo princípio que preside à elaboração das listas. Assim, o poema Homenagem, de Drummond, relaciona uma série de escritores, segundo um princípio exposto em versos: Jack London René Crevel Stefan Zweig Vachel Lindsay Walter Benjamin Virgínia Woof Sá-Carneiro Hart Crane Cesare Pavese Raul Pompéia e disse apenas alguns de tantos que escolheram o dia a hora o gesto o meio a dissolução (Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983: 477) Os fundamentos para a eleição do que vai figurar numa compilação são inúmeros: o autor (Melhores poemas de José Paulo Paes), o estilo (Antologia da poesia parnasiana), o gênero (Antologia do conto policial; Antologia pessoal de receitas para a Semana Santa), o público-alvo (Antologia de poesias brasileiras para crianças), a extensão do texto (Os cem menores contos brasileiros do século), o tema (Antologia do sadomasoquismo), a época (Antologia de textos filosóficos dos séculos xvii e xviii), etc. Como se observa, esses critérios cruzam-se, criando infinitas possibilidades. A antologia não se define apenas pela presença, mas também, e talvez principalmente, pela ausência, pelos nomes que foram descartados, como no caso das antologias que deixam de lado textos eróticos ou autores considerados não recomendáveis para os jovens. Seleciona-se aquilo que se julga de qualidade. Essa característica vem expressa nos nomes que receberam as coletâneas de textos ao longo dos tempos, principalmente na utilização de expressões florais, que revelam a idéia da beleza do que foi escolhido: antologia, florilégio, ramalhete, guirlanda, parnaso, seleta, crestomatia (de kréstos “útil” e mantháno “aprender”: coletânea de textos escolhidos para uso didático), tesouro... As antologias são também construídas segundo o princípio da representatividade. Considera-se que o que foi selecionado (parte) representa uma totalidade. Como se vê, uma vez elaborada, a coletânea torna-se uma obra nova e presta inúmeros serviços. Diferentes autores falaram sobre a função que as antologias tiveram em sua formação. 9 José Lins do Rego, em Doidinho, afirma: Era um pedaço da Seleta Clássica que até me divertia. Lá vinha o Paquequer rolando de cascata em cascata, do trecho do José de Alencar. Havia um pedaço sobre Napoleão. Napoleão que eu conhecia era o do Pilar; mas aquele tinha todos os caracteres e todas as religiões: católico na França, protestante na Alemanha, muçulmano no Egito. A Queimada de Castro Alves e o há dois mil anos te mandei meu grito das Vozes da África. [...] Esses trechos da Seleta Clássica, de tão repetidos, já ficavam íntimos da minha memória [...] (25. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984: 43). Manuel Bandeira, no Itinerário de Pasárgada, mostra que a Antologia nacional foi sua iniciação literária, quando percebe que a tessitura sonora dos poemas é mais importante do que aquilo que é dito: Do Camões lírico apenas sabia o que vinha nas antologias escolares, especialmente na que era adotada no Ginásio, a de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Eis outro livro que fez as delícias da minha meninice e de certo modo me iniciou na literatura de minha língua. Antes dos parnasianos, a cantata “Dido”, de Garção (meu pai me fez decorá-la), já me dera a emoção da forma pela forma, e era com verdadeiro deleite que eu repetia certos versos de beleza puramente verbal: E nas douradas grimpas/ Das cúpulas soberbas/ Piam noturnas agoureiras aves... E mais adiante: De roxas espadanas rociadas/ Tremem da sala as dóricas colunas... (Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983: 35-36). As coletâneas representam uma dada produção, sendo um lugar de memória discursiva. Elas, fundando-se num ponto de vista, abrem uma série de rotas para o leitor. Para evitar extravios, importa deixar clara a proposta que orientou a inclusão dos textos. No caso desta reunião de textos, fiz uma cartografia de meu trabalho acadêmico. O critério que guiou a escolha dos textos que nela figuram foram as três linhas de força que nortearam minha produção: a) a busca de expandir modelos teóricos; b) a abordagem discursiva de fenômenos examinados pela retórica ou pela lingüística frástica; c) o estudo do problema da enunciação. Por isso, os textos estão divididos em três grupos. Para a parte intitulada “Demarcação de campos”, escolhi três textos que mostram a preocupação de explorar as teorias até o limite de suas possibilidades: 1) Enunciação e Semiótica tem o objetivo de expor o lugar ocupado pela enunciação na Semiótica e mostrar o alcance dessa opção teórica; 2) Fruição artística e catarse procura desvelar as possibilidades de análise, do ponto de vista 10 da significação, das situações e experiências; 3) Três questões sobre a relação entre expressão e conteúdo discute o conceito de semi-simbolismo e examina todas as suas virtualidades para o estudo da textualização. Para o grupo denominado “Tratamento discursivo de questões de linguagem”, selecionei textos que buscam estudar discursivamente as figuras de palavras, o estilo e as modalidades: 1) Metáfora e metonímia: dois processos de construção do discurso; 2) Uma concepção discursiva de estilo; 3) Modalização: da língua ao discurso. Representando minha preocupação com questões de enunciação, elegi, na parte designada com o nome “Semântica das categorias da enunciação”, textos que estudam os investimentos semânticos que se fazem nas categorias de pessoa e de espaço. Assim, analiso a concretização do eu, em O éthos do enunciador; do tu, em O páthos do enunciatário; do ele e do espaço, em A construção dos espaços e atores do novo mundo. Existe um critério claro para a seleção dos textos. Entretanto, não tenho certeza de que se trata de meus “melhores momentos”. Deixo isso ao arbítrio do leitor. Não sei se hoje trataria essas questões da mesma forma. Afinal, um acadêmico deve ser conduzido pela frase do filósofo russo em epígrafe a este prefácio. Na ciência não há verdades, há apenas construções provisórias em sua busca. No entanto, as propostas feitas continuam, para mim, válidas, até que o embate das idéias, elemento essencial para a elaboração científica, mostrem que me equivoquei. Nesse momento, repetirei uma afirmação de Jakobson, lida em algum lugar: “É maravilhoso. A coisa mais importante de se dizer sempre é: eu me enganei”. * * * Nos últimos tempos, os autores de livros técnicos, científicos ou didáticos vêem-se tolhidos em seu trabalho, por exigências descabidas de autorização ou de pagamento para citar toda e qualquer obra alheia. Essas exigências são despropositadas, porque o item iii do artigo 46 da lei n. 9610/98, que trata do direito autoral, diz explicitamente que “não constitui ofensa aos direitos autorais”: a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra. 11 Ademais, o despropósito é tão grande que se começa a querer que se pague por citações de uma edição atual de obras que estão em domínio público e pelas quais uma editora nada paga a seu autor. A ameaça de processo, que implicaria perda de tempo e muitos gastos, tem levado as pessoas a evitar a utilização de trechos de obras ainda protegidas por direito de autor ou de excertos de edições novas. No caso dos trabalhos da área de Letras, isso é particularmente grave, porque esse domínio do conhecimento se dedica exatamente a estudar textos. A interpretação que está sendo feita da lei de direito autoral inviabiliza todo e qualquer trabalho da área de Letras. A proteção ao trabalho intelectual é importante, porque permite a liberdade plena de expressão, já que o autor não depende de mecenatos, mas vive de seu trabalho. No entanto, essa proteção não pode, em hipótese alguma, tornar-se um meio de cerceamento do trabalho intelectual. São Paulo, no final de uma tarde fria do outono de 2008. José Luiz Fiorin