“NO MOINHO” DE AMORES E VALORES
Carla Simone Lima Nerys1
Daianna Quelle da Silva Santos2
Alana de Oliveira Freitas El Fahl (Orientadora)3
1 INTRODUÇÃO
Sabe-se que o Realismo, movimento literário que se inicia ao final do século
XIX, corresponde a uma total ruptura dos padrões impostos pelo Romantismo. Por ser
uma escrita de fatos cotidianos e ainda a “imagem crua da realidade”, como a própria
expressão sugere, essa nova tendência literária realiza o consórcio entre a obra de arte e
o meio social:
[...] os realistas reagiram violenta e hostilmente contra tudo quanto se
identificava com o romantismo. Anti-românticos confessos, pregavam
e procuravam realizar a filosofia da objetividade: o que interessa é o
objetivo do não-eu. (MOISÉS, 1994. p. 166)
Os escritores realistas percebiam a necessidade de considerar a literatura um
produto social, condicionado a determinismos rígidos. No cenário realista, um dos
autores que mais se destacou foi Eça de Queirós, que publicou seus contos a princípio
em periódicos portugueses e brasileiros, dentre eles Gazeta de Notícias, Revista
Moderna e O Atlântico, em cujas páginas do dia 28 de abril de 1880 veio a público o
conto em análise.. Sobre esse aspecto Maria Helena Nery Garcez afirma que:
São doze os contos de Eça de Queirós que, organizados por Luís de
Magalhães e publicados dois anos após o falecimento do Autor, em
1902, compõem o livro Contos, de discreto e simples título. Quase
todos já haviam aparecido anteriormente em periódicos entre 1874 e
1898. Vinte e quatro anos e muitas águas separam a publicação do
1
UEFS, Graduanda em Letras Vernáculas.
UEFS, Graduanda em Letras Vernáculas.
3
UEFS, Professora Doutora.
2
ISBN: 978-85-7395-211-7
primeiro, Singularidades de uma rapariga loura (1874), do último
desse livro, O Suave Milagre (1898). Águas realistas/naturalistas/
positivistas
versus
águas
românticas/idealistas/neo-idealistas/
simbolistas. (2000, p. 239)
Em especial analisando o conto “No moinho” percebem-se as vertentes do
casamento no século XIX, bem como o desejo carnal que se fez presente a partir da
chegada de um personagem, que representa uma configuração social totalmente
diferente à da protagonista.
2 LA PIETÁ
Maria da Piedade nos remete à imagem da virgem Maria, no momento após a
crucificação de Cristo, quando essa toma o filho morto nos braços. Tal imagem foi
imortalizada por Michelangelo na famosa obra “La Pietá”. Partindo desse pressuposto
no conto “No Moinho”, de Eça de Queiroz, vê-se a protagonista Maria da Piedade
composta por sentimentos piedosos, pois era esposa de um velho doente e mãe de três
filhos “ duas rapariguitas e um rapaz, eram também doentes, crescendo pouco e com
dificuldade, cheio de tumores nas orelhas, chorões e tristonhos” (p.68). A tendência ao
puritanismo de Maria da Piedade, no contexto de cônjuge e de mãe, era tão grande que
sufocava os seus desejos mais carnais como pode ser visto no próprio conto: “Nunca
tivera casada uma curiosidade, um desejo, um capricho: nada a interessa na terra senão
as horas dos remédios e os seus doentes”. (p. 69)
Até os ambientes que permeavam a vida da protagonista eram características da
beatitude, pois se não estava em sua família, estava devota às missas aos finais de
semana. Embora a rotina da protagonista fosse árdua e monótona, a mesma não percebia
completamente o sofrimento que vivia, porque em relação aos seus doentes – os filhos e
o marido -, “todo esforço lhe era fácil quando era para os consternar: apesar de fraca,
passeava horas trazendo ao colo o pequerrucho, que era o mais impertinente [...]” (p.
69). Supõe-se que a rotina de Piedade nesse contexto de enfermidade, mesmo assim a
conformava, visto que quando solteira vivia com a mãe “criatura desagradável e azeda”
e o pai “sempre bêbado” e que costumava espancar a mulher todas as semanas.
Portanto, mais uma vez, se reportando ao espírito divinal casou-se com Coutinho,
4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013.
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embora não o amasse pretendia “salvar o casebre da penhora”, já que o seu futuro
esposo era rico e além de proporcionar de certa forma a ascensão social da futura esposa
– reflexão que se faz presente outras vezes nesse artigo -, Maria da Piedade tomaria esse
casamento como uma solução aos tormentos anteriormente mencionados.
3 AS CONCUPISCÊNCIAS DA CARNE
As tradições do casamento do século XIX eram seguidas pelo casal Coutinho e
nesse viés é pertinente citarmos Ronaldo Vainfas, o qual nos fala que: “No plano ideal e
originário, o amor se associava à virgindade e à castidade na busca da ascese. Rejeitar o
casamento e unir-se a Deus – verdadeiro casamento -, assim as mulheres deveriam
amar”. ( 1992, p. 50)
Porém, a visita inesperada do primo de João Coutinho, o romancista Adrião, fez
brilhar um pouco o rosto de Maria da Piedade. Sobre Adrião, Coutinho fizera inúmeras
propagandas, pois “sua fama que chegava até a vila, num vagar de legenda, apresentavao como uma personalidade interessante, um herói de Lisboa, amador das fidalgas,
impiedoso e brilhante, destinado a uma alta situação no Estado”. (p. 70)
Adrião propicia de certa forma a decadência do casamento de Maria da Piedade,
a começar pela excitação na casa de Coutinho, e quando de fato se aproximou da sua
esposa de Coutinho deixou impressões irrevogáveis, como podem ser vistas no
momento em que João Coutinho, por estar impossibilitado, apresenta a mulher para
resolver com Adrião algumas questões administrativas da família.
Assim o casamento entre Coutinho e sua esposa nada tinha de romântico, de
acordo a Alana de O. Freitas El Fahl (2009, p. 104) a união entre o casal de
protagonistas:
[...] em nada lembra o amor romântico alimentado pela tradição já
difundida no século XIX; não há sentimento, não há idealização,
apenas convivência, já que o casamento representava o caminho
possível para a mulher daquele período, única ambição no seu
horizonte. Para Piedade, casar era, portanto, ascender socialmente e
libertar-se do convívio familiar [...]
4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013.
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Enfim, Adrião “lamentava sinceramente ver o primo ali, sobre a cama” (p. 71)
mas também pensava que Maria Piedade devia ter momentos que desejasse alguma
outra coisa além daquelas quatro paredes impregnadas de bafo de doenças” (p. 72).
Adiante, constatam-se os desejos de Maria da Piedade influenciados pela postura
de Adrião, o que propicia um entrave entre a postura entre a postura santificadora de
esposa, mãe enfim, mulher da época vigente e as concupiscências de sua carne. “E de
repente, sem que ela resistisse, prendeu-a nos braços e beijou-a sobre os lábios, de um
só beijo profundo e interminável” (p. 74). Certamente o efeito do beijo, de imediato
trouxera a protagonista a sensação de medo, medo esse que não se perpetuou por muito
tempo porque o beijo no moinho, primeiramente mergulhados nas lágrimas de Maria da
Piedade logo consolidou a chegada de sensações e valores outros àquela mulher
considerada “santa” e desprovida de qualquer desejo.
Conforme o estudo do conto analisa-se que um dos pontos perceptíveis na obra
de Eça de Queiroz é a denúncia até que ponto há submissão da mulher e degradação da
mesma.
4 O AMOR CARNAL AGINDO IMPIEDOSAMENTE
Logo após beijo acontecido no moinho, Maria da Piedade vê-se abandonada por
Adrião. O mesmo se arrepende das promessas donjuanescas, porque leva em
consideração o momento que presenciou Piedade cuidando do filho e por essa razão
despede-se subitamente. Porém, como o próprio título do conto e local onde acontecera
o beijo entre os dois, instaurou-se um “moinho” dentro de Piedade, primeiro fato é que
ela:
Amava-o. Desde os primeiros dias, a sua figura resoluta e forte, os
seus olhos luzidios, toda a virilidade da sua pessoa se lhe tinham
apossado da imaginação. O que a encantava nele não era o seu talento
nem a sua celebridade em Lisboa, nem as mulheres que o tinham
amado: isso para ela parecia-lhe vago e pouco compreensível: o que
fascinava era aquela seriedade, aquele ar honesto e são, aquela
robustez de vida, aquela voz tão grave e tão rica; e antevia, para além
da sua existência ligada a um inválido, outras existências possíveis em
que se não vê sempre diante dos olhos uma face fraca e moribunda,
em que as noites se não passam a esperar as horas dos remédios [...]
(p. 75).
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Entende-se que Piedade não amava Adrião pelas características que os fazia ser
amado na cidade de Lisboa e sim por outras características enquanto mulher de relações
conjugais castradas. Adrião era amado por ela por sua virilidade contrária a invalidez do
seu marido; o que Piedade mais desejava em Adrião era a “força do seu corpo”, esse
homem era por Piedade idealizado pela “ternura varonil e forte” então “Esse amor
latente invadiu-a, apoderou-se dela uma noite que apareceu com esta idéia, esta visão: Se ele fosse meu marido” (p. 75)
O amor que Maria da Piedade sentia depois do beijo modificou toda a rotina em
sua casa. Antes de conhecer Adrião lia “Vida dos Santos” aos pés do esposo inválido,
depois de Adrião, ou melhor, da partida de Adrião ele mesmo “tomara sua imaginação,
com um ser de proporções extraordinárias” (p. 76). Tudo o que se relacionava a Adrião
passara a ser interessante, assim “Leu todos os seus livros, sobretudo, aquela Madalena
que também morrera de abandono” (p. 76).
Cabe nesse contexto considerar que a “Madalena” presente nas leituras da
protagonista representa uma retomada aos evangelhos de João, uma vez que Madalena
revela a figura da mulher pecadora, levada pelos escribas e fariseus à presença de Jesus
no templo. Enfim, a esposa de Coutinho mudara radicalmente gostos e atitudes e
bruscamente impacta a sociedade da época a partir de (des)valores comportamentais.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse trabalho teve como objetivo principal fazer uma análise do sentimento
amororoso interligado às relações sociais. A análise do conto “No moinho” possibilitou
observar que o casamento representava uma forma de ascender socialmente. Enfim, as
múltiplas faces do amor carnal impregnado principalmente em Maria da Piedade,
consiste numa crítica aos códigos do casamento vigente e, por conseguinte uma reflexão
sobre o papel social da mulher no século XIX, que era punida por satisfazer seus
desejos amorosos. Demonstrando que a literatura é uma potente forma de ler a
sociedade que a produz.
4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013.
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RESUMO
Este trabalho tem por objetivo apresentar uma leitura do conto “No moinho” do escritor
português Eça de Queiroz, publicado em O Atlântico em 28 de abril de 1880. Pretendese interpretar tal conto na perspectiva do sujeito e do amor carnal, pois se observa, a
priori, que o amor da personagem feminina, Maria da Piedade, atende às exigências do
casamento do século XIX. Inicialmente, a única face do amor de Maria da Piedade tinha
o caráter de caridade, dedicação e dever, ou seja, o comportamento de Maria da Piedade
faz jus ao próprio nome que carrega. Porém, a chegada do personagem Adrião trará ao
enredo a descoberta do amor carnal. Sendo assim, pode-se analisar o casamento
interligado às relações sociais e também observar que as múltiplas faces do amor
representados pelas mudanças do comportamento da protagonista consiste numa crítica
aos dogmas sociais do século XIX, temática amplamente explorada pelo seu autor.
PALAVRAS-CHAVE: Eça de Queiroz. Periódicos. “Moinho de amores”.
REFERÊNCIAS
FAHL, Alana de Oliveira Freitas El Fahl. Singularidades narrativas: uma leitura dos
contos de Eça de Queirós. Tese de doutorado do Programa de Pós-graduação em
Letras da Universidade Federal da Bahia. Salvador, Ba, 2009.
GARCEZ, Maria Helena Nery. O amor e seus casos simples... Via atlântica n. 4 out.
2000. Disponível em:
www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via04/via04_20.pdf,acesso em 12 set. de
2010.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. Ed. Cultrin. São Paulo, 1994.
SOUZA, Iracy Conceição de. Moinho de frustrações. Revista Polidisciplinar
Eletronica da Faculdade de Guaiçara. Vol. I, julho, 2009. Disponível em:
<www.revistavoos.com.br>, acesso em 26 jul. de 2010.
QUEIRÓZ, Eça. Contos. 4 ed. Publicações Europa – América, 2000.
VAINFAS. Ronaldo. Casamento, Amor e Desejo no Ocidente Cristão. 2 ed. Editora
Ática, 1992.
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