ITAÚ CULTURAL
O cotidiano quadro a quadro
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nov 2008 | itaucultural.org.br
ITAÚ CULTURAL
O plano-seqüência do dia-a-dia
As experiências humanas constituem vasto repertório que se encontra nas telas. São dores,
grandezas, amores e desamores, perdas e danos, pesadelos e sonhos, solidão. Na sala escura,
podemos estar muito perto de tudo isso, e são incontáveis os desdobramentos da vida como
tema do cinema.
No entanto, no mês de novembro, a Continuum Itaú Cultural, sob o título O cotidiano
quadro a quadro, procurou investigar o outro lado dessa relação: como o cinema está
presente na vida das pessoas, partindo da idéia de determinadas ações humanas estarem
impregnadas da narrativa e da linguagem cinematográfica. Quantas vezes não nos sentimos
integrantes de uma cena de filme, já que as histórias, não raro, nos ajudam a entender
questões que nos rondam, sem que sequer saibamos defini-las.
A reportagem de abertura faz um retrospecto
do cinema, ressalta alguns momentos em
que a vida foi decodificada pelo olhar de
grandes diretores e demonstra como essa
interpretação particular acabou afetando
nossa maneira de ver. Na Entrevista, a
multiartista Daniela Thomas fala sobre os
principais eixos que norteiam sua produção
– sendo o cinema transversal a todos eles.
Para debater a questão da realidade e da
ficção, duas matérias se valem dos recursos da
sétima arte. A primeira delas traz duas versões
para a mesma história e comprova que as possibilidades fílmicas de um fato real podem
ser infinitas. Em outro texto, a trajetória de um pequeno hotel, contada em flashback,
incorpora a verdade dos personagens que a contam.
Na Área livre, um storyboard assinado por Eloar Guazzelli dá corte final
à edição. Sua seqüência, no entanto, está em suporte digital, em
www.itaucultural.org.br/continuum. E os leitores, por
meio da ação História de cinema, estão convidados
a protagonizá-la.
sumário
.4
.10
Muito além da sala escura
A realidade imita a ficção: a presença cinematográfica no cotidiano
Uma vida para dois filmes (ou três…)
Como contar uma mesma história de diferentes maneiras
.14 Cinema 360 graus
Em entrevista, Daniela Thomas relata como o cinema está em tudo o que faz
.20 Histórias em trânsito
Os curtas-metragens do dia-a-dia nas ruas do Rio e de São Paulo
.24 À deriva do tempo
A trajetória de um dos símbolos da arquitetura moderna contada em flashback
.30 O primitivo efeito do susto
Uma velha atração que assusta mais que Drácula, Frankenstein e Lobisomem – juntos
.34 As incongruências cotidianas
Nos filmes e na vida: as falhas de continuidade são mais comuns do que imaginamos
.36 Continuum on-line
Ação História de cinema convida os leitores a relatar “suas” cenas cinematográficas
.38 Área livre
Storyboard de Eloar Guazzelli sobrepõe passado e presente
Continuum Itaú Cultural Projeto Gráfico Jader Rosa Redação André Seiti, Érica Teruel Guerra, Marco Aurélio Fiochi, Mariana Lacerda, Thiago
Rosenberg Colaboraram nesta edição Bruno Vilela, Cia de Foto, Eloar Guazzelli, Joana Amador, Mariana Sgarioni, Micheliny Verunschk, Patrícia
Cornils, Rodrigo Silveira On-line Karla Dunder, Pedro Henrique França Agradecimentos Anna Luiza Muller, Carlos Reichenbach, Cinemateca
Brasileira, Felipe Almeida, Fundação César Guinle, Helio Herbst, Isabel Amaral, Juliana Consoline
capa O cinema que não se restringe às salas de projeção | imagem: Cia de Foto
ISSN 1981-8084 Matrícula 55.082 (dezembro de 2007)
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Tiragem 10 mil – distribuição gratuita Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento
[email protected] Jornalista responsável Ana de Fátima Sousa MTb 13.554
16 nov 2008
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Muito além da sala escura
reportagem
O cinema que está na vida e a vida que está no cinema
Por Patrícia Cornils
É uma cena de três minutos, com som de madeiras estalando, passos na relva, filmada em super8. Mulheres ciganas com saias longas indo buscar lenha. O colorido de suas roupas se destaca
no fundo verde do campo. A cena parece vir de um passado longínquo, de um lugar de histórias
bíblicas, embora tenha sido registrada em 2005. Tudo acontece lentamente: caminhar pelo
campo, buscar a madeira, quebrar os galhos, amarrar os feixes, colocá-los na cabeça e voltar.
Elas conversam pouco. O que fazem juntas fala por elas. Como se catar lenha tivesse virado uma
dança ensaiada desde tempos antigos – e seja esse o diálogo daquele momento.
“Foi muito forte, senti que fiz parte de uma espécie de mágica, na qual o cinema era a ferramenta,
e o ritual ancestral daquelas ciganas seria a essência”, diz Julia Zakia, diretora do documentário
curta-metragem Tarabatara (2007), sobre o momento em que captou as imagens que encerram
seu filme. Tarabatara é o nome de um velho cigano, cuja família faz parte do grupo filmado por
Julia (e mais três amigos, Guile Martins, Gui César e Laura Mansur) no sertão de Alagoas.
Créditos iniciais
Mais de cem anos depois da primeira exibição pública de um filme, no Grand-Café (em 28
de dezembro de 1895, em Paris), o cinema ainda leva pessoas ao espanto, embora a natureza
desse sentimento tenha mudado com o passar do tempo. O filme então exibido, A Chegada
do Trem na Estação de Ciotat (L’ Arrivée d ’un Train à La Ciotat, dos franceses irmãos Lumière), era
uma película muda com 50 segundos, em uma sessão da qual faziam parte outros 16 registros
da vida cotidiana da capital francesa. Hoje, ninguém sairia assustado da sala, fugindo do trem
que vinha em direção à câmera, como se ele fosse atravessar a tela e atropelar a platéia.
Em 1902, os espectadores se encantaram quando Georges Méliès, um mágico francês, descobriu
como fazer truques com a câmera, criando assim a ficção cinematográfica e com ela transportando
as pessoas à Lua (em Viagem à Lua, Le Voyage dans la Lune). A platéia voltou ao espanto em 1915
quando o americano D. W. Griffith inventou a linguagem clássica do cinema: acabou com as
câmeras fixas e o enquadramento herdado do teatro, que apenas mostrava os atores de corpo
inteiro. Griffith foi o primeiro a fazer travellings (deslocamento da câmera em carrinhos e, mais
recentemente, na mão do cameraman) e closes. Mais do que isso, foi pioneiro ao montar em um
filme a imagem do rosto da heroína ocupando toda a tela e, em seguida, o herói em uma ilha,
distante dessa mulher amada. Ninguém tinha visto algo assim, até então. Custou trabalho a ele
convencer seus produtores, naquela época, de que isso, que nos passa hoje como um bê-á-bá,
seria, naquela época, inteligível.
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À frente de um projetor a vida se transformou em filme | imagem: Cia de Foto
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Enredo
O filme na vida, ou vice-versa
Em 1985, quando o aventureiro, poeta e
explorador Tom Baxter saiu do filme A Rosa
Púrpura do Cairo (do americano Woody Allen), apaixonado por Cecília, a linguagem cinematográfica já era dominada pelo público, que tinha avançado para outro estágio.
A frase “as pessoas querem vidas de ficção
e as da ficção querem suas vidas tornadas
reais”, dita por um funcionário do estúdio no
filme, expressa parte dessa mudança.
Uma das teorias sobre a presença dos filmes
no cotidiano, a do estudioso americano Neal
Gabler, defende que a própria vida se transformou em um filme. Em seu livro Vida – O
Filme (Cia. das Letras, 1999), ele constata que
as pessoas vivem cada vez mais num mundo
no qual a fantasia tomou conta da vida, sendo mais real do que a própria realidade. Gabler acredita que o cinema de entretenimento é um rearranjo de nossos problemas em
formas narrativas concisas, que os suavizam
e dispersam pela periferia de nossa atenção,
onde podemos esquecê-los.
Essa nova ordem dos problemas, na qual
estariam contidos sua apresentação, evolução, reviravolta, recomeço, clímax, além do
desfecho, claro, também foi criada por Griffith – e é, inclusive, uma das características
do cinema clássico. Uma história organizada
assim seria um descanso na loucura de informações, sentimentos e imagens cada
vez mais fragmentados a que estamos
expostos todos os dias – ainda que
não tenha sido esse seu objetivo inicial.
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Mas mesmo as narrativas clássicas podem
ter o poder de criar mais incômodo que
conforto. Os tamancos pendurados na árvore, no filme do italiano Ermanno Olmi (A
Árvore dos Tamancos, L’ Albero degli Zoccoli,
Palma de Ouro em Cannes em 1978), sempre voltam à memória da jornalista Denise
Neumann como um sentimento de perda
que nem ela sabe explicar. “No cinema, no
entanto, havia a presunção de que o escape
era temporário e que no final do filme era
preciso sair da sala e voltar ao turbilhão da
vida real”, retoma Gabler.
Com a contribuição da televisão, o escapismo tomou conta do cotidiano: a vida passou a ser exposta o tempo todo na tela. As
pessoas começaram, então, a enxergar seus
próprios enredos como se fossem as protagonistas de um filme – Gabler cita a princesa Diana e seus fãs no mundo inteiro como
exemplo. Em resumo, a vida se tornou outro
veículo de entretenimento. “Um dia inteiro
de vida é como um dia inteiro de televisão”,
diz Gabler, que recorre a Andy Warhol para
explicar-se. “Depois que começa, a televisão não sai mais do ar, nem eu tampouco.
No fim do dia, o dia inteiro será um filme. Um filme feito para a televisão”,
disse o artista americano.
O psicanalista italiano radicado no Brasil
Contardo Calligaris concorda que o cinema
transformou nossa poética da vida, embora
não acredite que a tendência a imaginá-la
como cenas tenha se iniciado com as imagens em movimento. Antes, observa ele,
foram populares as narrativas literárias no
século XIX, os romances de folhetim nos
jornais. O western foi um gênero popular de
romances baratos, que se vendia a números
absolutamente extraordinários, diz Calligaris, em uma entrevista publicada no jornal
gaúcho Zero Hora, em 2 de agosto de 2008.
Ao longo dos anos, no entanto, Calligaris
notou que seus pacientes traziam cada vez
mais histórias vistas no cinema para dentro
do consultório. “Graças ao cinema”, disse,
“qualquer sujeito da segunda metade do
século XX se apaixonou, se comoveu, se
indignou por uma diversidade inédita de
histórias. [...] Nunca como hoje tivemos a
sensação de que a imensa variedade das
experiências humanas (misérias e grandezas, sonhos e pesadelos) é apenas um repertório de vidas que poderiam todas ser a
nossa − a ponto de, por um instante, numa
sala escura, sentirmos facilmente seu gosto”.
Calligaris acredita que as narrativas coletivas
(como a possibilidade de uma revolução socialista), mesmo as baseadas em ficções, se
fazem e se desfazem talvez com a mesma
leveza com a qual podemos fazer e desfazer
a escrita de nossa vida.
Antes de
a televisão se tornar o
principal meio de diversão de
massa e passar a concorrer com o
cinema, era mesmo na sala escura que
se aprendia a fazer coisas como beijar,
brigar, se entristecer. Para a filósofa Susan
Sontag (1933-2004), a experiência mais
forte do cinema, além dessas descobertas,
é simplesmente se deixar transportar pelo
que está na tela. E o pré-requisito para que
isso aconteça é ser dominado pela “presença física da imagem”. “Ver um grande filme
na televisão não é ver de fato esse filme”,
escreveu no livro Questão de Ênfase (Cia. das
Letras, 2005). “Para sermos seqüestrados,
temos de estar num cinema, sentados no
escuro entre anônimos.”
À sala escura comparecem os bons e os
maus fãs de cinema, dizia Vinicius de Moraes,
ele próprio apaixonado pela evasão possível
dentro da escuridão. O bom fã, falava ele,
senta-se sempre nas primeiras filas. “Da décima fila para trás é positivamente indigno.” As
poltronas da frente também eram as preferidas do diretor francês François Truffaut, que
sentia necessidade de “entrar” nos filmes. O
que ele fazia aproximando-se cada vez mais
da tela, para esquecer o restante da platéia.
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Zootrópio da Cinemateca Brasileira: do estático ao movimento
Ilustração:
| imagem:
Carlo
CiaGiovani
de Foto
A dança cotidiana se transforma em cena de cinema | imagem: Cia de Foto
Créditos finais
As primeiras lembranças
de Truffaut relacionadas ao
cinema vieram dos 200 filmes a
que assistiu até os 10 anos de idade,
fugindo da escola e entrando sem pagar.
Ou à noite, quando os pais saíam de casa.
“Paguei por estes grandiosos prazeres com
dores de barriga, estômago embrulhado e
eterno medo, invadido por uma sensação
de culpa que só se acrescentava às emoções proporcionadas pelo espetáculo”, escreveu ele, em seu livro Os Filmes de Minha
Vida (Cia. das Letras, 2004). As escapadas de
Truffaut o devolviam à sua vida. Para vivê-la
como num filme, como diria Gabler, ou para
incorporar em sua história aquelas da tela,
como acredita Calligaris. Talvez um filme
não exclua a vida, e vice-versa.
Simplesmente filmes
Algo é certo, no entanto. Gostar de cinema
e gostar de filmes pode ser diferente. Cada
arte engendra seus fanáticos, dizia Susan
Sontag, e “o amor que o cinema suscitou foi
mais majestoso”. Esse tipo característico de
amor chama-se cinefilia e sob sua bandeira
estão tanto os cerca de 200 mil espectadores que todos os anos assistem às centenas
de filmes da Mostra de Cinema de São Paulo como parte dos 6 milhões que fizeram
de O Homem Aranha 3 (Spider Man 3, do
americano Sam Raimi) o filme mais visto no
Brasil em 2007. A linha tênue que separa o
primeiro do segundo exemplo é apenas um
ponto de vista.
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A jornalista Bia Abramo, crítica de TV, acha
marcante as imagens iniciais do filme Apocalypse Now, do americano Francis Ford Coppola. “Vemos de cima a selva cerrada, da qual
se destacam palmeiras tão tropicais. Entram
os acordes lentos, expectantes, de guitarra;
de repente, a vegetação explode silenciosamente, ou melhor, a selva é tomada por
um incêndio sem que saibamos de onde ele
vem; não ouvimos o barulho da bomba; em
vez disso, entra a voz grave: ‘This is the end’. ”
O amor pelo cinema não tem muito a ver
com o gênero de filme que se aprecia, mas
com aprender a vê-los. Crescer, para a criança
que foi Truffaut, aconteceu ao mesmo tempo que amadureceu sua maneira de olhar,
observar, ver. Até os 12 anos, ele “rejeitava
os filmes de época, de guerra e faroestes”.
Gostava dos policiais e dos filmes de amor e,
ao contrário dos espectadores de sua idade,
não se “identificava com os heróis heróicos
e sim com os personagens em situação de
inferioridade e, mais sistematicamente, com
aqueles que estavam errados. Compreender-se-á que a obra de Alfred Hitchcock, inteiramente consagrada ao medo, me tenha
seduzido desde o início, depois da de Jean
Renoir, toda ela voltada para a compreensão:
‘O terrível neste mundo é que todos têm
suas razões’. (A Regra do Jogo, Renoir)”.
Deixar-se prender a gêneros, a nacionalidades, a estilos é uma maneira de ver menos
cinema. Cada filme renova o espanto de
cineastas como Julia Zakia, e a narrativa cinematográfica é tão enriquecida pela vida,
de maneira geral, e pela paixão de seus autores, de maneira específica, quanto a vida
é alimentada por ela. “Quando fui filmar as
ciganas, senti pela primeira vez que algo de
muito especial e espontâneo estava acontecendo. Via aquelas mulheres com vestes
coloridas no meio da caatinga verde à procura de madeira para fazer o mais essencial
do dia-a-dia delas, o fogo. Foi impressionante porque só tinha dois rolinhos de super-8,
o que exigia precisão, e não foi difícil apertar o gatilho nas horas certas porque estava
tomada pela beleza do real. Sabia que confiando no momento estaria fazendo a cena
mais linda do filme. Dura uns três minutos,
dos quais dois são com sons, madeiras estalando, mulheres conversando, passos na
relva. Depois entra a música, um coro de
mulheres sérvias. Outro universo, mas
que para mim fazia o fim do filme
voar para outras partes do espaço e tempo ali contidos.”
A imagem sintetiza a irrupção da violência
de uma guerra anônima, sem rosto. Ela vai se
tornando mais e mais notável em retrospectiva, tanto à medida que o filme se desenrola
como nas memórias que temos sobre a obra
e nas várias vezes que a revemos. Como se
aquela fosse a imagem-síntese de tudo o que
virá em seguida no filme, mas também de
tudo o que passamos a pensar sobre a Guerra do Vietnã. “Vale lembrar que esses minutos
iniciais de Apocalypse quebravam um silêncio
‘cinematográfico’ sobre o conflito no Vietnã
usando, justamente, o silêncio”, observa Bia.
Um olhar, portanto, um pouco mais amplo do
que simplesmente dizer que Apocalypse Now
é um filme de guerra e de ação – como se
apresenta nas prateleiras de locadoras.
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Frame do documentário Tarabatara (2005), de Julia Zakia
Uma vida para dois filmes
(ou três…)
reportagem
A história do profeta contemporâneo que mobilizou uma comunidade
O reino
Por Micheliny Verunschk
Uma das regiões mais exuberantes do interior pernambucano, nos arredores do Parque
Nacional do Catimbau, no município de Buíque (mesmo lugar em que cresceu o menino e
mais tarde reconhecido escritor Graciliano Ramos), viu surgir um líder espiritual cuja trajetória,
ao mesmo tempo fantástica e fascinante, não se apaga mesmo passados quase dez anos de
sua morte. Trata-se de Cícero José de Farias, também conhecido como Israel Alexandri de
Farias ou, ainda, Sadabi Alexandri de Farias Rei ou, simplesmente, Meu Rei.
Nascido possivelmente em 1884 no município de Garanhuns, Farias partiu em 1932 para a
vizinha cidade de Arcoverde, estabelecendo-se como proprietário de um armazém de secos
e molhados. Ainda naquele ano, ao inspecionar uma mercadoria que não coube dentro do
estabelecimento, teve, aos moldes dos antigos profetas, uma revelação. Quem conta é Edvaldo
Bezerra de Melo, comerciário aposentado e um de seus discípulos. Naquela noite, ao voltar para
casa, ele viu três estrelas de claridade maior que as outras. Uma delas aumentou de tamanho
e se aproximou da Terra até transformar-se num corpo humano que, falando telepaticamente,
lhe anunciou uma missão que só se completaria 20 anos mais tarde.
Em 1952, a missão se revelou por inteiro. Farias se encontrava na Serra do Teixeira, interior
da Paraíba, quando Deus lhe ordenou que construísse uma cabana e a cercasse com dois
círculos de madeira, um maior e outro menor. Ordenou ainda que estivesse com lápis e
papel nas mãos. A mensagem, conta Melo, dizia: “Prepare um povo para habitar a Terra no
terceiro milênio e procure uma caverna que dê condições de salvá-lo. Ao chegar a essa
caverna, você a reconhecerá. E mude seu nome, pois com esse que você carrega não
chegará a lugar nenhum”.
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Farias reconheceu a caverna na região do Catimbau, um dos sítios arqueológicos mais importantes de Pernambuco. Em sua vizinhança
fundou a Fazenda Porto Seguro, ou Fazenda
Metafísica e Teológica Princípio de um Reinado. Seguindo os valores da auto-sustentabilidade e da cooperação mútua, arregimentou
cerca de 40 famílias que, vivendo em torno de
seu palácio e das cisternas de água à sua volta, tornaram-se seu povo escolhido.
Proibição do futebol, liberdade para a prática da poligamia a homens e mulheres, veto
radical a qualquer sacrifício animal e vegetarianismo foram alguns dos preceitos do
reinado de Farias, que renderam curiosidade
e mistificação. No foco da mídia nacional
e regional nos anos 1990, ele chegou a ser
comparado a Antonio Conselheiro e seu
reino a Canudos, paralelismo fortemente rejeitado pelo mestre e seus seguidores. “Não
comparem Meu Rei a um beato que levou
milhares de pessoas ao assassinato. Conselheiro era um guerrilheiro. Meu Rei nunca
desobedeceu às leis do governo, sua mensagem nunca foi de guerra, mas sempre de
paz”, diz Melo, indignado.
Sem ligações formais com o
catolicismo ou o cristianismo,
sua missão foi várias vezes alvo de
combate em missas nos municípios
próximos. A professora de geografia
Mércia Machado, residente em Arcoverde,
conta que teve oportunidade de conhecer
Farias numa excursão que organizou com
seus alunos ao Catimbau. Ela relembra que
não era raro os sermões na igreja matriz daquela cidade girarem em torno do combate
aos preceitos da Fazenda Porto Seguro.
O Tibete é aqui
Em 1987, Farias recebeu nova revelação
de uma energia divina que se intitulava O
Eterno. Nesse chamado, a divindade contava seus planos de construir um reino na
Terra, para si, seu filho Jeová e para seus netos, Jesus e Sadabi. Farias trocaria de nome
novamente em 1996, nove anos depois da
revelação, tempo em que preparou a nova
identidade que assumiria ao passar a se chamar Sadabi Alexandri, filho de Jeová, irmão
de Jesus e neto de O Eterno.
Farias chegou a instituir o talento, moeda
forte, com valor superior ao da moeda nacional e que agregava três “poderes”: o monetário, o valor de ligar o homem a Deus e o
de salvar o corpo físico. No entanto, com a
aprovação rejeitada várias vezes pelo Banco
Central, o talento circulou na comunidade
mais como um conceito do que realmente
como dinheiro.
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Banho nas águas sagradas do reino, representação da história de Meu Rei, sugerida por Gabriel Mascaro | imagem: Cia de Foto
Uma cena imaginada por Mascaro dá a
dimensão do real que se quer alcançar:
“Convidaria o personagem póstumo a uma
dança, a desatar o nó. Continuar tratando
Sadabi de maneira utópica é negar o caráter urgente, possível e necessário de suas
reivindicações”, conclui.
Às vésperas do ano 2000, no entanto, Farias
morreu. Segundo seus seguidores, cinco
meses antes da morte, seu espírito já se alojava em uma criança que estava sendo gestada. Essa criança, hoje com 8 anos, é Sadabi
renascido para a comunidade remanescente, chamada Organização Sulami do Cristianismo Moderno. Melo explica que apenas
em 2040 o novo Sadabi estará pronto para
assumir suas funções. No momento, ele não
mora na fazenda e seu paradeiro não é divulgado. Essa data, 2040, será o marco da
fundação do reino do Eterno na Terra.
Infinitas possibilidades de leitura
Se a biografia de Farias fosse parar nas telas
de cinema, em um documentário, como ela
seria contada? Para responder a essa pergunta, foram convidados dois documentaristas, o pernambucano Gabriel Mascaro e o
paulistano João Wainer, para que oferecessem suas leituras e possibilidades narrativas
a essa história.
Tanto Mascaro quanto Wainer optaram por
apresentar Farias por meio do olhar dos outros, sejam eles os fiéis, as pessoas de fora
da comunidade ou mesmo o espectador.
De qualquer modo, o homem a ser retratado nas telas, a exemplo de todo profeta
ou messias, seria um personagem difuso
e aberto a múltiplas e contraditórias inter-
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pretações. Um personagem inesgotável.
O desafio de contar uma vida no curto espaço de um filme, ao que parece, só pode
ser resolvido assim, de forma fragmentária.
Parodiando o apóstolo Paulo, hoje vemos
em espelho, aos pedaços (ou pelas lentes
de um cineasta), mas chegará o dia em que
poderemos saber da totalidade. E, talvez, o
fim do mundo seja o fim de todo mistério.
João Wainer, diretor do documentário A
Ponte (2008), trataria o personagem pela
ótica de seus discípulos. “Eu iniciaria a narrativa viajando pelas impressões de seus
seguidores e deixando o imaginário do espectador criar seu próprio Sadabi. Situaria
o personagem falando mais sobre Buíque,
sobre a Fazenda Porto Seguro e suas figuras lendárias. Entrevistaria nesse momento
moradores que não são seguidores de Sadabi e evitaria qualquer comparação com
Canudos, a não ser que percebesse alguma
influência direta.”
Para Wainer, seria importante introduzir no
filme o novo Sadabi, o sucessor de Farias,
bem como investigar seu projeto e o tipo
de influência do profeta sobre seus seguidores. “Criaria um final sem juízo de valor,
deixando na mão do espectador a tarefa de
decidir se realmente o mestre Sadabi seria
ou não a encarnação de Deus”, finaliza.
Em 2003, Farias serviu de inspiração para o
personagem de um filme. Trata-se de Árido
Movie, ficção de Lírio Ferreira. Interpretado
por José Celso Martinez Corrêa, o personagem Meu Velho purifica seus fiéis com a
escassa água do sertão. Para os seguidores
de Farias, a criação de um personagem inspirado em Meu Rei segue a visão midiática
que se tem desse líder.
Como esta, toda história de vida pode ser
contada de infinitas maneiras. A multiplicidade de olhares e versões jamais deve ser
descartada, pois está vinculada à pluralidade de qualquer personagem, à sua
própria infinitude. Talvez a história
de Farias seja um bom início
para essa conversa.
Para Mascaro, diretor de Ao Norte (2006) e
KFZ-1348 (2007), a idéia principal seria não
alegorizar o ícone messiânico. “Tudo o que
ele propôs está em plena sintonia com as
políticas públicas urgentes e necessárias
para o Nordeste e não há nada de deificante
querer água, liberdade sexual, vida em comunidade, soberania econômica, agricultura familiar e sustentabilidade.”
O personagem de Mascaro, segundo suas
palavras, nada teria de mitológico. “Eu investigaria a cristalização e o impacto desses
pensamentos no imaginário da comunidade que hoje reside no reino e em seu entorno, para refletir sobre como esse ideário de
vida se relacionou no passado e se relaciona
no presente com as comunidades vizinhas.
É nesses encontros e choques de relações de poder que florescem infinitas
possibilidades de leituras do gigante tecido humano que veste o
personagem”, diz ele.
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Altar com porta-retrato de mestre Sadabi (Meu Rei), em representação pensada por João Wainer | imagem: Cia de Foto
Cinema 360 graus
Conte um pouco sobre sua formação.
entrevista
Por Marco Aurélio Fiochi e Mariana Lacerda
Profissional sem fronteiras e de trajetória híbrida, Daniela Thomas dedica-se
“geminianamente” ao cinema, ao teatro e a projetos cenográficos, com o objetivo de
oferecer sempre uma experiência inédita e intensa ao espectador. Em todas as produções,
no entanto, é o cinema quem dá elementos às escolhas conceituais. “Busco no teatro certo
selo cinematográfico [...]. Isso vem do amor que tenho por essa linguagem [...]. É algo que
me mobiliza desde menina e está em tudo o que faço. Mesmo o trabalho menos ligado
ao cinema transpira esse sentimento.” A arte conceitual, a arquitetura desordenada das
grandes cidades – com seus ícones como o Minhocão paulistano, paixão confessa da
diretora –, o cotidiano e os problemas sociais tecem a trama de suas obras, como o recémlançado longa Linha de Passe, mais uma vez em co-autoria com Walter Salles. De sua lavra
conjunta nasceu outro grande sucesso, Terra Estrangeira (1995). “O cinema para Walter é
como uma língua, uma escrita. Para mim é uma esfinge”, revela nesta entrevista.
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Daniela Thomas em seu ateliê, local onde concebe projetos cenográficos | imagem: Cia de Foto
Tenho uma formação informal. Freqüentei
duas faculdades: história, durante três semestres, e, quase dez anos depois, literatura
inglesa, por mais três semestres. Mas nunca
terminei curso nenhum e me sinto educada
pela minha casa. Minha formação é a casa
de infância. Não tínhamos uma sala de estar
ou de jantar. Era um estúdio. Repito tudo o
que meus pais fizeram na minha atual casa,
com meus filhos. Lá, a mesa de jantar era
uma prancheta, meu pai [o cartunista, jornalista e escritor Ziraldo] é uma pessoa muito
desapegada, todos os equipamentos eram
usados por nós sem nenhum problema.
Podíamos desenhar em cima do desenho
dele, usar qualquer lápis. Ele e minha mãe
[Vilma], que não está mais com a gente,
formavam um casal extremamente curioso.
Eles nos criaram [Daniela e seus irmãos Fabrizia Alves Pinto, também cineasta, e Antonio Pinto, compositor] de uma maneira
muito hippie, muito diferente. Minha casa,
nos anos 1960 e 1970, era um pólo no Rio
de Janeiro, todos a freqüentavam, era um
lugar muito vivo, e a gente participava de
tudo sem restrições. Convivi quando criança com Millôr Fernandes e outros intelectuais. Não havia aquela imposição de a criança se retirar em determinados assuntos, não
participar. Há histórias que talvez eu não
devesse ter ouvido, que me deixaram muito
angustiada. Por exemplo, sofri intensamente com a ditadura. Meus pais e seus amigos
falavam abertamente de seus medos, e eu
achava que a qualquer momento a gente ia
morrer! Meu pai sofreu três prisões, que foram traumáticas. Fui criada nesse universo
em que tudo era possível e acho que minha
vida é resultado disso. A falta de fronteiras
para a minha criação é uma vantagem e
uma enorme desvantagem. A falta da academia, dos títulos, dos diplomas, das setorizações me transformou nessa pessoa. O
trabalho que faço me obriga a especializações instantâneas. Por exemplo, eu e Felipe
[Tassara, arquiteto, seu marido e sócio] faremos [a cenografia de] uma exposição sobre
arte espanhola do século XVI. Sou obrigada
a conhecer isso. O hibridismo é da natureza
de nosso tempo. Circulo nessa falta de fronteiras, nessa globalização da arte.
Como foi seu início no cinema?
Quando fui buscar meu caminho fora do
Brasil – saí do país em 1978 e voltei em
1986, fiquei oito anos fora –, era muito ligada à política nacional, só pensava nisso.
No dia seguinte ao que cheguei a Londres,
esqueci a política, como se nunca a tivesse vivido. Passei a me dedicar ao cinema,
que era meu desejo real, e fiquei três anos
estudando-o. Tive uma produtora com
mais oito pessoas, chamada Crosswind
Films, onde fiz filmes, clipes. Em 1981, fiz
um média-metragem e fiquei totalmente embrenhada no cinema, pensandoo, aprendendo sua teoria, vendo filmes
três, quatro vezes por dia. Quando deixei
Londres, fui morar com [o diretor teatral]
Gerald Thomas [seu ex-marido] em Nova
York. Lá fizemos um média-metragem
com dinheiro próprio, em 1981. Quando o
filmamos havia a possibilidade de vendêlo para a CBS Cable, mas essa emissora
faliu, e o projeto não foi bem-sucedido
financeiramente. Aí minha vida fez
um desvio para a cenografia.
.15
A co-diretora de Linha de Passe (2008): amor pela linguagem cinematográfica | imagem: Cia de Foto
Como o meio em que você vive atualmente interfere em sua criação?
.16
Então, nesse momento, o cinema cedeu
lugar à cenografia?
Você acompanhou a produção brasileira desde o período pós-cinema novo...
Sim, mas a cenografia estava envolvida com
o cinema, de qualquer forma. Minha grande
descoberta como cenógrafa foi a questão das
transparências, o uso do filó e de espelhos,
que possibilitavam certos cortes em cena, inspirados na edição cinematográfica. No teatro,
há uma limitação atávica: ao terminar uma
cena, o ator tem de sair do palco. Pode-se
apagar a luz, deixar tudo preto, mas isso limita
o ritmo, o ator pode demorar a sair para a coxia. O uso dos filós permitiu montar uma cena
atrás deles, outra na frente. Podia-se cortar de
uma cena para outra instantaneamente. Isso
foi importante para Gerald, fazia parte de um
processo em que ele estava trabalhando, a
descontinuidade do ritmo, algo próprio do
cinema que estávamos trazendo para o teatro. Atualmente, se olharmos fotos de meus
trabalhos de cenografia em teatro, por exemplo em montagens dirigidas por Felipe Hirsch,
elas parecem stills de cinema. Busco no teatro
certo selo cinematográfico, uma gestalt de cinema, não sei explicar por quê. Isso vem do
amor que tenho por essa linguagem, que é
algo muito interiorizado, estou impregnada
dessa paixão. É algo que me mobiliza desde menina e está em tudo o que faço.
Mesmo o trabalho menos ligado ao
cinema transpira esse sentimento.
Acho que vi tudo o que foi feito no Brasil
dos anos 1960 em diante, e os cineastas
eram da turma de meu pai. Na criação “renascentista” da minha casa, o cinema era
imprescindível. Meu pai parava de trabalhar
à meia-noite e assistíamos à Sessão Coruja
juntos. Ele é do tipo comentarista. Os filmes
eram vistos com seus comentários sobre a
ficha técnica, sobre outras obras que determinados atores haviam feito. Ele adora falar
de roteiro, também. Em nossas sessões, ele
dizia, por exemplo, “se essa mulher é prostituta, vai morrer”, pois já sabia que no cinema
americano clássico o desfecho era sempre o
mesmo: um personagem como esse sempre fazia alguma besteira no começo do enredo e acabava por morrer nos dois terços
finais. Meu pai viveu o auge hollywoodiano
dos anos 1940; sua cidade [Caratinga], no
interior de Minas, era superpequena, mas
havia duas salas com mais de mil lugares.
Era uma época de ouro, com filmes americanos de guerra ou do pós-guerra. Já minha
mãe era uma “italianófila”, assistiu a todas as
produções de Fellini, Bertolucci, Antonioni,
De Sica, Visconti. E os filhos iam com ela às
sessões. Acho que meu pai nunca me levou
ao cinema – ele era da Sessão Coruja comentada –, mas a minha mãe, sim.
O meio urbano é uma referência muito
intensa em meu trabalho. Posso dizer que
existem quatro eixos na minha produção. O
primeiro deles é o cinema, por sua plasticidade e seu modo de contar, de estruturar
uma narrativa, de passar uma composição
estética. Outro eixo veio com a descoberta,
que fiz na Inglaterra, da arte contemporânea, da arte conceitual, do Duchamp em
diante. Fiquei muito impressionada quando
tive contato com isso. Dividi apartamento
com uma artista que estudava na Slade,
uma das escolas de arte de Londres, e ela
me guiou nesse caminho, o que foi muito
importante para mim, pois creio que não
consigo trabalhar em nenhum projeto sem
conceituá-lo. Um terceiro eixo é o fascínio
pelas formas de uma arquitetura não muito
racional, não muito estética, mas aquela resultante da projeção do homem na cidade,
a bagunça, que é uma espécie de espelho
deformado dos desejos e das aspirações humanas. As cidades são a realização concreta
das ambições que temos como sociedade.
Elas são o fato consumado. Sou apaixonada
pelo [viaduto paulistano] Minhocão, gosto
de olhá-lo tanto quanto gosto de olhar a Lagoa Rodrigo de Freitas [no Rio de Janeiro]
no final da tarde. Terra Estrangeira vem do
Minhocão, a origem do filme está identificada com esse viaduto, que também está em
minha produção sistematicamente. Fiz um
curta para Bem-Vindo a São Paulo [vários diretores, 2007] que é um percurso de seis minutos em que se alternam dia e noite, mas
sempre se continua andando e o Minhocão vai mudando de aspecto conforme a
passagem do tempo. Também sou órfã
do Muro de Berlim, que era outro lugar
incrível, um ícone, a materialização
de tanta coisa, algo fascinante.
Como o Muro de Berlim acabou entrando
em suas obras?
Tenho uma experiência epifânica com ele.
Na primeira vez que fui à Alemanha, em
1983, ao entrar em Berlim fui logo procurar
o Muro. Hospedei-me num bairro chamado
Kreutzberg, que naquela época era um reduto de imigrantes turcos. Ao acordar no outro
dia, olhei para fora e estava lá o Muro, pois
o hotel ficava numa rua dividida ao meio
por ele. Fiquei maravilhada. Desci para a rua
e havia umas torres de madeira, espécie de
mirantes em que se podia subir e ficar acima
do Muro para ver como era a vida do lado de
lá. Havia um muro, depois dele uns 100 metros de grama e à frente o verdadeiro Muro,
que incorporava prédios, os quais estavam
concretados, um junto do outro. Nesse gramado havia arames farpados e minas, supostamente. Se alguém pulasse ali, morreria. Eu
estava com a minha câmera, com teleobjetiva. Comecei então a “namorar” o guarda de
uma das torres, que estava com binóculos.
Havia uma banda punk ensaiando numa
garagem perto dali, dava para ouvir o som.
Quando me dei conta, havia ainda um gato
preto perseguindo um coelho branco no
meio dos arames farpados. Nem sei dizer
onde fui parar. Fiquei suspensa um metro no
ar, em êxtase! Parecia Alice no País das Maravilhas, literalmente um coelho branco e um
gato preto me levaram para esse lugar que
homens tinham construído para si. Aí passei
a colocar o Muro de Berlim em tudo o que
eu fazia! Até que realizei uma peça em Munique com Gerald Thomas, chamada O Jogo
da Tempestade, uma mistura de Fim de Jogo,
do Samuel Beckett, com A Tempestade, de
Shakespeare, e usei uma montanha de cacos
do Muro de Berlim no cenário.
.17
Daniela: “O cinema tem de correr atrás da realidade brasileira” | imagem: Cia de Foto
.18
Você se referiu a quatro eixos em sua
produção, qual é o último deles?
Como é seu processo de criação junto de
Walter Salles?
O quarto eixo é o cotidiano, no sentido das
relações afetivas e da força de uma espécie
de veracidade. Quando faço um cenário ou
um filme, meu objetivo é proporcionar uma
experiência inédita e verídica às pessoas.
É dar a alguém uma vivência de primeira
mão, é conseguir, por meio de um esforço
industrial, artesanal, conceitual, provocar
naquele que vai assistir, que vai participar,
a sensação de estar sendo privilegiado, de
estar vendo uma coisa como um voyeur.
Mesmo que haja 300 pessoas em uma sala,
a vivência tem de ser inédita. Vivo minhas
experiências com muita intensidade, é minha personalidade, sou dramática. Mas quero ainda acrescentar um quinto elemento,
um quinto eixo na minha produção. É algo
que vem da infância, que é o social. Trata-se
da empatia com o sofrimento alheio. Quero passar àquele a quem estou endereçando determinado objeto a força da minha
experiência de primeira mão ao ver, por
exemplo, uma criança pedindo esmola ou
vendendo algo no farol. Há coisas que me
deixam completamente louca, como ver
uma foto de pessoas fugindo, de refugiados
de guerra, um pai segurando duas crianças
no colo e pensando como vai fazer para
alimentá-las, para agasalhá-las. Quando
faço um filme, quero que ele tenha
a mesma força das imagens que
me impactam.
Consegui trazer o hibridismo para dentro
da minha relação com o Walter. Ao conviver comigo, ele foi vitimado por essa falta
de fronteiras. Ele mesmo percebeu que não
havia como separar: até aqui sou eu, dali
para a frente a Daniela. Nossa relação é uma
grande conversa. Inicialmente, ele me chamou para trabalhar como diretora de arte,
mas nossas conversas eram tão intensas,
havia trocas em todas as áreas, que Walter
concluiu que o que eu fazia não era bem
direção de arte, que aquilo se chamava direção de filme também. Então, ele resolveu
dar o nome certo às coisas e passamos a fazer tudo juntos. Em tese é assim e funciona
bem. Mas o Walter é muito mais focado do
que eu, ele tem uma intuição cinematográfica. A linguagem do cinema lhe é natural,
como se fosse um músico ao escrever uma
partitura. O cinema para Walter é como
uma língua, uma escrita. Para mim é uma
esfinge. Existe uma infinidade de maneiras
de se filmar uma cena, todas elas significativas e que, muitas vezes, se opõem. Tenho
de tomar decisões para transmitir o que
quero passar. Isso para o Walter é natural.
Ele sabe onde a câmera tem de estar, que
lente tem de usar, já antevê como a cena vai
ser montada, tem um catálogo de opções
disponíveis a qualquer momento. Nessa
relação, apesar de eu me meter em tudo,
sempre cedo à intuição dele em relação
à posição da câmera, à linguagem final. A
intuição do Walter é fascinante, ele sempre
me impressiona. Agora, o cinema é múltiplo, então aquilo que vai estar na frente da
câmera, os atores, as roupas, as locações, a
maneira como se vai filmar, que pegada o
filme terá, tudo isso é absolutamente comunitário. Quando trabalhamos juntos, envolvemos mais pessoas. Os profissionais têm
facilidade de acesso, podem opinar e alterar
coisas. A produção fica mais coletiva.
E quanto tempo antes vocês começam
a trabalhar?
Há algum aspecto que você acredita ter
aprimorado nesse último trabalho?
Muitos anos antes. Linha de Passe começou
em 2003 e o lançamos agora, foram cinco
anos. Não paramos nossa vida para fazer um
filme. Nesse tempo, ele fez Diários de Motocicleta (2004) e Água Negra (2005), e eu fiz um
milhão de coisas, não dá nem para enumerar.
Todos os aspectos! Tenho mais consciência
do que é fazer cinema do que tinha quando
comecei. Isso por um lado é bom, mas por
outro pode ser um pouco enrijecedor. Em
Terra Estrangeira, acredito que eu e Walter tínhamos menos consciência da quantidade
de coisas necessárias para dirigir um longa.
Mas os filmes são irmãos, têm uma afinidade, uma maneira muito próxima de se
posicionar, de pensar a linguagem, as pessoas. Linha de Passe é menos formal, menos
preocupado com a imagem do que Terra Estrangeira. Além de dirigir com Walter, escrevi com ele o roteiro de Terra. Havia naquele
momento entre nós certo prazer de cinéfilo,
de brincar com as convenções muito antigas do cinema. Ele foi feito quase como um
filme B, tinha uma trama policialesca, com
contrabando. Em Linha não há preocupação com isso. Tentamos fazer uma narrativa
que utiliza recursos clássicos, mas quase os
desprezando. Ela deixa o espectador várias vezes em suspense, aflito por algo que
tem de completar. Achei que, quando ele
passasse na Europa, as pessoas teriam dificuldade em completar essa narrativa. Mas
percebi que não. Vamos ver agora, quando
estrear no Japão.
Linha de Passe tem quatro histórias, uma
de cada personagem...
Cinco com a da mãe [interpretada por Sandra Corveloni], seis com a de São Paulo...
Uma delas, a do filho menor, é real. As outras também são?
Não. A origem delas é o repertório de documentários da Videofilmes [produtora dos
irmãos Walter e João Moreira Salles], especialmente os documentários de João. O Walter
começou fazendo programas na Manchete
[extinta emissora de TV], como entrevistas,
documentários, fez séries sobre o Japão, a
China. A equipe era formada por ele, um cameraman, uma pessoa responsável pelo som
e uma produtora. Eles deram a volta ao mundo fazendo esses programas por dez anos.
Esse é o berço de Walter. A gênese de Linha
de Passe são os documentários Santa Cruz
(2000), sobre uma igreja evangélica, e Futebol
(1998), sobre a saga desse esporte no Brasil.
Havia também um especial sobre meninos
que tentam a peneira para fazer parte de algum time de segunda ou terceira divisão. Há
outros filmes – não dirigidos pelo João, mas
feitos na Videofilmes e produzidos por ele –,
como Um Dia Qualquer (2000), de Zuenir Ventura e Izabel Jaguaribe, que acompanha uma
empregada doméstica grávida, por sorte, no
dia em que ela tem o filho. Eles filmaram as
dores do parto e o nascimento. Essa empregada é inspiradora da Cleuza [personagem
de Sandra Corveloni em Linha de Passe]. Há
também outro documentário, chamado A
Família Braz (2000), de Arthur Fontes e Dorrit
Harazim. Todas essas produções estão na gênese de Linha de Passe.
A realidade é mais rica do que a ficção?
Totalmente, necessariamente! No Brasil, então, a ficção tem de correr atrás. Outro dia
li uma matéria que contava que um pai, de
uns 70 anos, junto de seu filho, de uns 50
anos, contratou uma pessoa para matar a
filha. Essa pessoa atirou na moça num sinal
de trânsito, vestida de Papai Noel! Mas a
garota não morreu. Não preciso dizer mais
nada, não é? Se eu tivesse escrito isso, ninguém ia acreditar! Esse fato aconteceu em
São Paulo, é uma história recente, deve ter
ocorrido há uns dois meses. Não sei se ela
era uma filha bastarda ou não tão querida
pela família; talvez estivesse disputando
algo com o pai e o irmão. Então o cinema tem de correr atrás da realidade
brasileira. Nossa capacidade criativa e narrativa é imensa.
.19
Histórias em trânsito
reportagem
– Alguém quer declarar algo que esteja dentro das malas?, perguntou o policial.
Histórias rápidas, tal qual curtas-metragens, mostram a sobrevivência no longo tráfego das metrópoles
Antes que Vanda dissesse qualquer coisa, o
rapaz da poltrona 40, lá atrás, perto do banheiro, se manifestou:
– Estou levando um curió, vivinho da silva,
no bagageiro.
Ela ficou com vontade de rir – um passarinho
vivo bem ao lado da mãe morta, que coisa.
– Mas isso é crime ambiental. – disse o policial, já prendendo o sujeito. – Mais alguém
tem algo a dizer?
Por Mariana Sgarioni
Uma criança nasce dentro de um ônibus; um homem é confundido com assaltante em um táxi;
e uma mulher viaja com os ossos da mãe morta dentro de uma caixinha de fibra. Parecem até
histórias de filme. Mas não são. Aconteceram mesmo na vida de três brasileiros, de São Paulo
e do Rio de Janeiro. Todas elas têm como pano de fundo o trânsito terrível dessas cidades e o
tempo que ele consome. Tempo inútil? Nem sempre. Muita coisa pode acontecer enquanto se
reclama por estar preso em meio a buzinas e fumaça. Há gente nascendo, há gente morrendo.
Amizades começando. Talvez essa seja uma boa oportunidade para olhar os engarrafamentos
de uma forma diferente: como um terreno fértil que ajuda a entender melhor a vida urbana
– caótica, maluca, porém de uma beleza tão rara que é preciso lentes especiais para apreciá-la.
Afinal, esta é a nossa vida.
– Dona Vanda? Aqui é do cemitério do Irajá.
“Só faltava mais essa”, ela pensou. “Que diabos alguém do cemitério quer a essa altura
do campeonato?”
– Olha, dona Vanda, como sabe, a senhora
sua mãe foi enterrada aqui já faz três anos.
Está na hora de tirar os ossos da gaveta. Precisa ver o que vai fazer. Ou compra um jazigo
ou então...
.20
Terminado o “serviço”, Vanda colocou a caixa (com os ossos, evidentemente) dentro
da bolsa, deu adeus ao coveiro e voltou ao
ponto de ônibus.
Na manhã seguinte, cedinho, pegou a bolsa e foi direto para a rodoviária. Antes de
embarcar para Vitória, o motorista, ressabiado, perguntou:
Conversando com mamãe
Há uma década, a vida financeira da recepcionista Vanda Moreira, de 50 anos, moradora do Rio de Janeiro, andava de mal a pior.
Estava atolada em dívidas. Um dia ela estava
em casa, fazendo contas, no fim da tarde, e o
telefone tocou.
“Fomos até o cemitério e lavamos osso
por osso. A Marcia [uma das irmãs] botava
na água, eu secava e a Severina [a outra]
arrumava os ossinhos dentro da caixa de
fibra”, lembra.
– Então o quê, moço?
– Nós jogamos os ossos no lixo. Tá cheio de
osso aqui entulhado, dona Vanda.
Vanda entrou em pânico. Como poderiam
jogar sua mãezinha no lixo? Pois era isso
mesmo o que eles faziam com os ossos
que não tinham destino. Perguntou, então,
quanto custava um jazigo: 3 mil reais. Uma
verdadeira fortuna, eram seis meses de salário. Impossível.
– Eu tenho, sim, senhor. Estou levando minha mãe para ser enterrada em Vitória. Mas
ela já morreu faz tempo, viu? São só os ossos
que estão aí, disse Vanda.
O policial empalideceu. A mulher levava um
defunto. Ele respirou fundo e explicou que
aquilo se chamava tráfico de ossos. Vanda
chorou, chorou e chorou. Contou toda a
vida, as dívidas, a fortuna do jazigo, até que
o policial não agüentou mais e mandou que
o motorista – junto com Vanda e a mãe dela
– seguisse viagem. Em paz.
– A bolsa vai no bagageiro?
– Vai, sim, moço. Aqui dentro não tem nada
que quebre.
Para sair do Rio de Janeiro, no entanto, não
foi tão fácil. A Avenida Brasil estava toda parada, um engarrafamento dos diabos – que
a mãe de Vanda nos perdoe. O trânsito estava assim por causa de uma blitz da Polícia
Federal, que interpelou justamente o ônibus
de Vanda.
Conversando com as irmãs, ela se lembrou
de que a família tinha um túmulo no Espírito Santo. O único jeito seria levarem o
corpo pessoalmente.
.21
Táxi driver
O editor de vídeo Gustavo Gordilho, de 33
anos, acordou num dia daqueles. São Paulo
amanheceu chuvosa, o que prometia um
trânsito infernal. Justo naquele dia ele precisava sair de Pinheiros, zona oeste da cidade,
e chegar a Interlagos, zona sul, em míseros
20 minutos – uma proeza que nenhum velocista conseguiria. Levantou da cama, tomou
uma ducha voando e saiu correndo para o
ponto de táxi.
Havia uma fila de carros brancos, e Gustavo
não titubeou: abriu a porta do primeiro da fila,
pulou no banco da frente e ordenou, afoito:
– Vamos embora, vamos embora! Toca em
frente para Interlagos, depressa – disse,
quase gritando, ao motorista, que deu partida assustado.
Gustavo só pensava no problema que seria chegar atrasado àquela reunião. Por
isso, resolveu passar as coordenadas a ele
– assim não corria o risco de o rapaz errar
o caminho.
– Pare pelo amor de Deus! Tem um bebê
nascendo aqui! – gritava o cobrador.
O motorista parou no meio da rua, fechando o trânsito. Chegou perto de Tiana e viu a
cabecinha de Leiz já do lado de fora. Tirou a
camisa, forrou o banco do ônibus e disse aos
passageiros:
– Quem quiser pode descer. Vamos fazer o
parto aqui mesmo e depois vou direto para
o hospital.
Gustavo não contava que o caminho que
ele mesmo havia escolhido estava todo engarrafado. Quanto mais trânsito, mais crescia
seu desespero.
Entre as pernas
– Vire à direita agora, pode subir em cima da calçada, corte pelo posto de gasolina. Vai rápido!
– Você não acha melhor ficar mais calmo? Eu
prometo fazer tudo o que você quiser – retrucou o condutor praticamente chorando.
A conta já devia estar uma fortuna. Gustavo então olhou para o painel e começou a
procurar o taxímetro buscando os números
estratosféricos. Olhou, olhou, e nada. Pronto,
o taxista, no mínimo, havia se esquecido de
ligar o aparelho.
– Vire à direita, depressa. Na esquina, dobre
a esquerda!
– Amigo, onde está o taxímetro?
– O garoto está nervoso, melhor se acalmar,
pois alguém pode sair machucado – respondeu o homem, visivelmente abalado.
– Taxímetro? Como assim taxímetro? – respondeu o motorista, mais assustado ainda.
Não tem nenhum taxímetro aqui, não.
– Escuta, se você fizer direitinho o que eu
estou mandando, ninguém vai se machucar,
prometo. Eu só quero chegar logo.
– Espere um pouco. Isso não é um táxi?
– Não. E você não é um assaltante?
Depois dessa, Gustavo mandou a reunião às
favas e foi tomar uma cerveja com seu mais
novo (e aliviado) amigo – que até hoje jura
que vai vender esse carro branco.
Mãe de cinco filhos com idades próximas, a
diarista Sebastiana Alves, de 47 anos, do Rio
de Janeiro, se diverte ao se lembrar de suas
gestações. “O médico dizia que eu ia ao hospital só para comer – todo ano eu estava lá.
A mulherada ficava morrendo de dor e não
comia. E eu comia o bife de todas elas, cada
bifão!” Isso porque Tiana, como é conhecida,
sempre teve muita facilidade para dar à luz.
“Os primeiros foram mais difíceis. O resto
veio tudo cuspido.”
Por “cuspido” entende-se que a criança “escorregou” sem nenhum esforço. Literalmente. Um de seus filhos nasceu no elevador do
hospital. Nem sequer deu tempo de chegar
à sala de parto. Já o outro filho foi “cuspido”
no ônibus mesmo, a caminho do hospital.
O parto de Leiz – nome em homenagem a
um ex-jogador do Botafogo –, hoje com 25
anos, desafiou todas as leis da saúde e da
assepsia. Já com nove meses de gravidez, a
jovem Tiana estava em frente de casa quando sentiu a bolsa estourar. Chamou a mãe e
uma irmã e lá se foram as três para o ponto
de ônibus, a caminho do Hospital Geral de
Bonsucesso, subúrbio do Rio de Janeiro.
O problema foi que o danado do Leiz não
queria nascer exatamente naquela hora. Entalou. “Ele ficou só com a cabeça para fora,
entre minhas pernas, e o condutor não conseguia puxar. Então ele voltou para a direção
e seguiu para o hospital”, lembra Tiana.
A situação do quase recém-nascido durou
ainda muito tempo. Quase uma hora no
trânsito da Avenida Brasil até chegar ao hospital. “Ele desviava, buzinava, e não chegávamos nunca”, diz ela.
Ao encostar o ônibus no Hospital de Bonsucesso, o motorista desceu com sangue nas
mãos e na camisa, gritando por socorro. Os
policiais que estavam numa viatura próxima
pensaram imediatamente que fosse um assalto e entraram armados no ônibus.
– Um médico, por favor! Tem uma moça
com uma criança entre as pernas aqui dentro! – disse o policial.
Os médicos entraram no ônibus e terminaram o parto ali mesmo. Minutos depois, já
com Leiz nos braços, Tiana recebeu flores e
aplausos dos passageiros. “É o filho mais bonito que eu tenho.”
Assim que pisou no Caxias–Praça Mauá, Tiana sentiu que a criança estava nascendo.
“Foi debaixo do viaduto de Parada de Lucas.
Gritei que a criança ia nascer ali mesmo. O
cobrador só acreditou quando chegou perto para ver.”
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.23
Infográficos: Rodrigo Silveira
Imagens de arquivo do Park Hotel, em fotografias de Lourenço Facchetti | reprodução: Cia de Foto
À deriva do tempo
reportagem
A história em flashback de um pequeno hotel mostra a grandeza da
arquitetura de Lúcio Costa
Por Mariana Lacerda
Quando o arquiteto Lúcio Costa viu finalizado o Park Hotel, em Nova Friburgo, região
serrana do Rio de Janeiro, prontificou-se, ele mesmo, a providenciar alguns detalhes antes
da inauguração. Em companhia do dono do hotel, o engenheiro e empresário César Guinle,
que lhe encomendara o projeto, foi “comprar louça, na rua Camerino, grossos cobertores de
padrão escocês de um lado e lisos do outro, espessas toalhas brancas de banho”. É o que diz
uma das anotações de seu precioso arquivo de memórias, publicado no livro Registro de uma
Vivência (Empresa das Artes, 1995). Narrar a história do projeto que “muito tocou o coração” do
arquiteto, como ele mesmo escreveu, significa, como numa seqüência cinematográfica em
flashback, incorporar a verdade dos personagens que a viveram e, portanto, a contam.
O Park Hotel foi construído entre os anos de 1940 e 1944. “Trata-se de uma síntese do
pensamento de Lúcio Costa”, diz a arquiteta Maria Elisa Costa, sua filha. Um projeto, portanto,
muito especial para aquele que, morto em 1998, nos legou ícones da arquitetura moderna
brasileira ao desenhar o edifício do Ministério da Educação e Saúde (no Rio de Janeiro, em1936)
e o Plano Piloto de Brasília, trabalho feito ao lado de Oscar Niemeyer em 1957.
Síntese porque, explica Maria Elisa, primeiramente, para o projeto do Park Hotel, Costa tinha
uma espécie de passe livre do seu cliente para a criação. Passe livre, diga-se, conquistado e não
dado por Guinle. A aproximação entre empresário e arquiteto se deu por conta daquilo que
Costa apelidou de “guerra santa” em prol da arquitetura moderna brasileira.
Foi assim: numa tarde do início dos anos 1940, Costa ficou sabendo que os herdeiros de Eduardo
Guinle, em suas palavras, “encaravam a contingência de ter que abrir uma rua no parque da
mansão para obter renda, e já estavam com um projeto de prédios de estilo afrancesado para
‘combinar’ com o palácio”. Em tempo, o palácio em questão foi erguido na década de 1920,
em estilo francês, e é onde funciona atualmente a residência do governo estadual do Rio de
Janeiro. “De fato, encarei que a vinculação de uma coisa com a outra resultaria numa espécie
de ‘casa grande e senzala’ ”, escreveu o arquiteto. Ele foi então conversar com César, filho de
Eduardo, e lhe propôs o projeto do que hoje constitui o Parque Guinle, conjunto de prédios
tido pela história da arquitetura como “a origem das superquadras de Brasília” e tombado,
desde 1986, como patrimônio histórico do Brasil.
.24
Uma paragem em Friburgo
O Park Hotel foi construído num trecho de
terra do Parque São Clemente, em Nova Friburgo. As cinco glebas de terra que formavam a propriedade pertenciam a Antônio
Clemente Pinto, o barão de Nova Friburgo.
Ali, o imponente barão do café ergueu o
seu chalé, circundado por jardins feitos pelo
artista Glaziou, paisagista que desembarcou
no Brasil na segunda metade do século XIX
a convite do imperador dom Pedro II. As
terras foram compradas em 1912 por Eduardo Guinle “para servir de casa de verão da
família e alguma criação de animais”, conta
Maria Helena Guinle, neta de Eduardo e filha de César.
Foi ele quem, formado em engenharia civil,
assumiu a administração da extensa propriedade. E então decidiu transformar o Parque
São Clemente em um bairro residencial. As
terras foram loteadas e, no início da década de 1940, postas à venda. Um simpático
fôlder anunciava o empreendimento e dizia
“há também um hotel [...], de madeira e pedra, ao natural, o seu conjunto se harmoniza
com a paisagem [...] em virtude das inovações introduzidas em sua construção, essencialmente modernas [...]”. Acompanhava o
texto, ainda, um desenho do hotel, surgido
para oferecer “uma paragem em Friburgo
aos potenciais compradores de terreno”, diz
Maria Helena. Para sua construção, Guinle
destinou um filete de terra com medidas
entre 2.500 e 3.000 metros quadrados. Essa
seria a única restrição ao projeto de Costa,
que nele colocou um tanto de sua história
de arquiteto.
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Os fundos do Park Hotel ontem e hoje | imagens: Lourenço Facchetti (à esquerda) e Cia de Foto
Em uma viagem a Diamantina...
Lúcio Marçal Ferreira Ribeiro Lima Costa nasceu em 1902 em Toulon, França. Filho de um
engenheiro naval natural de Salvador com
uma moça manauense, veio ainda bebê para
o Rio de Janeiro com seus pais mas, aos 8
anos, já estava novamente na Europa, onde
estudou. Definitivamente no Brasil aos 15
anos de idade, foi matriculado pelo pai, que,
como escreveu Lúcio Costa, “estranhamente
queria ter um filho artista”, na Escola de Belas
Artes do Rio de Janeiro. Formou-se em arquitetura e então começou a desenhar projetos
em estilo neoclássico e neocolonial.
“Mas, ao conhecer a cidade mineira de Diamantina, algo começou a mudar no Lúcio”,
conta sua filha. Ele tinha 22 anos e fazia uma
viagem de estudos. “Lá chegando, caí em
cheio no passado no sentido mais despojado, mais puro; um passado de verdade, que
eu ignorava, um passado que era novinho
em folha para mim”, escreveu o arquiteto.
Naquele momento, diz Maria Elisa, Costa se
apropriou de algo muito singelo, de uma
idéia de que as coisas poderiam ser simples,
puras, porém sem deixar de apresentar sua
riqueza. Tudo isso, para ele, estava representado na cidade, em suas “casas, igrejas, pousadas dos tropeiros, era tudo de pau-a-pique,
ou seja, fortes arcabouços de madeira”.
.26
No fim
da década de 1920,
Costa não se sentia nem um
pouco satisfeito com a arquitetura que fazia, “que estava dissociada de
uma verdade construtiva que ele vira em
Diamantina”, conta Maria Elisa. Por coincidência, nessa época, ele se deparou, numa
revista não especializada, com uma foto de
uma casa, existente em São Paulo, de traços
modernos e de autoria do arquiteto russo
Gregori Warchavchik. “Foi quando sentiu que
era possível fazer alguma coisa bonita com
arquitetura”, relata a filha do arquiteto.
Entre idas-e-vindas profissionais, contudo,
Costa se viu desempregado. Tempos de
“chômage”, forma menos chocante de dizer
“desemprego”, porque a clientela continuava a querer “casas de ‘estilo’ francês, inglês,
colonial, coisas que eu então já não mais
conseguia fazer”, escreveu.
Na falta de trabalho, ele começou a inventar
casas para terrenos convencionais, “de doze
metros por trinta e seis”. Apelidou-as de “casas sem donos”. No “chômage”, entre 1932
e 1936, entendeu que era o momento de
aprender, “por conta da dureza do tempo”,
conta Maria Elisa. Estudou então a fundo as
obras dos arquitetos Walter Gropius, Mies
van der Rohe e Le Corbusier – “sobretudo
este, porque abordava a questão no seu
tríplice aspecto: o social, o tecnológico e o
artístico”, escreveu Costa.
Pelo prazer puro e simples
Daí em diante, o tempo parece ter passado
rápido para o arquiteto. Voltou ao mercado para projetar o Ministério da Educação
e Saúde, no Rio de Janeiro, quando então
constituiu uma equipe na qual se incluía Oscar Niemeyer (que, na época, apareceu no
escritório de Costa pedindo trabalho. Tornaram-se sócios). Como se tratava da primeira
oportunidade no mundo de se construir um
edifício de grande porte seguindo o mestre
Corbusier, ele tanto fez que conseguiu trazer o arquiteto franco-suíço a terras guanabaras para avaliar o desenho (Corbusier não
somente aceitou o convite como atravessou
o Atlântico numa viagem de quatro dias feita em Zeppelin). A partir daí, sucederam-se
vários projetos. Até o momento de sua
aproximação com a família Guinle, por
meio de César, o qual teve a idéia de
fazer um conjunto residencial em
estilo, para desespero dos bons
arquitetos, neoclássico.
“Aquele hotelzinho Lúcio fez para ele, pelo
prazer puro e simples”, conta Maria Elisa.
“Como se fosse a síntese de tudo o que ele
almejara até aquele momento.” Porque, explica ela, nessa obra está referenciada a viagem a Diamantina – “naturalmente bonita
e que não informa algo como ‘olhem, isto é
bonito ’”.
Um hotel de dois pavimentos, com apenas
dez quartos, onde predominam a madeira (o
eucalipto) e as pedras recolhidas na região.
Tratava-se da adaptação em paredes, pisos e
telhados de um vocabulário essencialmente brasileiro, “mas sem o critério folclórico”,
ressalta Maria Elisa. Uma arquitetura feita de
linhas retas, mas que, internamente, se retorcem. No Park Hotel, também estão expressas
as “casas sem dono”, que até ali nunca haviam
sido construídas, fazendo desse projeto, por
fim, “um resumo singelo do que Lúcio desejava em arquitetura, embora ele não tenha
tido essa pretensão”, diz ela.
.27
Vista de um dos quartos do hotel | imagem: Cia de Foto
O salão que um dia abrigou um refeitório: sem turismo, sem suporte e sem cozinha | imagens: Cia de Foto (à esquerda) e Lourenço Facchetti
Além do cuidado
com o desenho e o uso dos
materiais, Costa projetou, ele mesmo, os móveis do hotel. Cadeiras, mesas, camas – que parecem estar suspensas do chão – foram cuidadosamente pensadas pelo arquiteto. “Com exceção de três
cadeiras”, comenta Maria Helena Guinle. Ela
se refere a três peças com estrutura de madeira, acentos de lona de tecido e amarras
fortes de couro. Essas, escolhidas por Costa,
foram desenhadas por certo Peter Wolko,
“um designer que, apesar de termos procurado muito, encontramos apenas uma referência: a citação dessa cadeira numa revista
estrangeira, na década de 1940”, segundo
Maria Helena.
Numa noite de 1944, enfim pronta, e “entregue aos cuidados de um hoteleiro suíço, a
pousada se iluminou para o nosso comovido e mútuo enlevo”, escreveu Costa.
A vida entre as paredes de pedra
Muito rapidamente, o Park Hotel virou mais
que uma simples paragem. Tornou-se um
cantinho para que fluminenses pudessem
passar feriados e fins de semana. Também
foi muito procurado por recém-casados,
inclusive pela própria Maria Elisa Costa. Recebeu personalidades políticas e artísticas:
Carlos Manga, Di Cavalcanti, Artur Moreira
Lima, Paulo Rónai. Todos eles um dia se hospedaram no hotel, que estava inserido em
um dos mais charmosos circuitos de turismo
do Rio de Janeiro: a Serra Fluminense, que
inclui, além de Friburgo, as cidades de Teresópolis e Petrópolis.
Após o primeiro arrendatário, o suíço Edmond Chevret, o Park Hotel ficou a cargo
do italiano Giovanni Facchetti, cuja gestão
se prolongou até o início dos anos 1960.
A partir de 1963, Irene Peterdi, de origem
húngara, cuidou do hotel. “Trouxe com ela
a culinária do país de nascença, que compôs com uma cozinha convencional que
agradava a todos os gostos. Além de uma
pâtisserie tão boa quanto a vienense”, lembra Maria Helena. Nessa época, o Park Hotel
recebia hóspedes não apenas do Rio, mas
também de Brasília, Vitória, Belo Horizonte e
de toda a Região Sudeste.
Dona Irene ficou à frente do Park Hotel até
1999. Nessa época, o turismo em Friburgo já
não estava mais em primeiro lugar no Rio de
Janeiro. O hotel, que então se sustentava graças
à cozinha da arrendatária, sofreu seu primeiro
grande baque quando ela se desligou da administração. César Guinle morreu em 1989. Sem
ele, que sempre dera suporte à manutenção
do hotel, e sem a cozinha de dona Irene, o que
se sucedeu foram tentativas frustradas de manter o estabelecimento funcionando.
Em 2002, o casal Nívea e Stefan Schmidt arrendou o hotel e ainda deu um pouco de
fôlego ao lugar. Mas os dois operavam driblando os problemas de infra-estrutura, sobretudo a situação precária do telhado. Em
2003, Maria Elisa Costa assumiu a presidência do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan) e, uma vez lá,
pôde lutar para destinar recursos para a
recuperação do imóvel, que, com o
Parque Guinle, foi tombado.
.28
Quarto que se transformou em depósito | imagem: Cia de Foto
Mas a história não raro faz curvas tortas. Mesmo com a filha de um dos maiores arquitetos do Brasil defendendo com unhas e dentes o legado do pai (deixado para o país), o
dinheiro para recuperar o hotel tardou a sair,
sempre encravado nas burocracias governamentais. Quando liberada a verba destinada
unicamente para a recuperação do telhado,
no fim de 2003, o casal Nívea e Stefan já tinha
perdido o fôlego. O Park Hotel fechou suas
portas. Naquele ano, as chuvas foram fortes.
O telhado foi substituído sob água, que maltratou o assoalho e a escada de madeira, os
móveis desenhados por Costa e tudo o que
estava embaixo do forro.
Agora, os herdeiros de César Guinle lutam para
conseguir recursos para a recuperação do Park
Hotel, que necessita de reforma do telhado,
descupinização, renovação das redes elétrica e
hidráulica, revisão da estrutura, recuperação de
pisos de madeira, esquadrias, caixilhos e forro.
Em um segundo momento, o restauro prevê a
capacitação de jovens de Friburgo para, com
a monitoria do designer Arnaldo Danemberg,
dar nova vida aos móveis desenhados por Costa. Aliado ao projeto de recuperação, estuda-se
um novo uso para o imóvel, como uma escola
de culinária ou mesmo um lugar para oficinas
de arquitetura.
Essas são as idéias para o futuro. Mas lembrar do passado desse hotel é como assistir
a um flashback da arquitetura moderna brasileira. Pois o projeto que muito tocou o coração de Lúcio Costa continua encantando
estudantes de arquitetura e todos aqueles
que, não raro vindos de lugares distantes,
visitam o lugar.
.29
O primitivo efeito do susto
reportagem
A Monga, antiga atração de parques de diversão, segue aterrorizando o
público com enredo e artimanhas que superam alguns clássicos filmes
de terror
Novos tempos, velhos medos
Por André Seiti
Lagarto gigante invade a cidade de Nova York. Alienígena em nave espacial extermina
tripulação. Garota endiabrada retorce o pescoço e vomita em padre. Extraterrestres em discos
voadores ameaçam destruir a Terra. Ser monstruoso que se camufla na selva dizima soldados.
Para alguns, personagens assustadores que se tornam ainda mais tenebrosos com a pirotecnia
sem limites dos efeitos especiais hollywoodianos. Para outros, criaturas que estão longe de
dar frio na espinha, ainda mais se comparadas ao terror primitivo, em todos os sentidos da
palavra, de um dos mais antigos – e ainda assim atuais – personagens do gênero, a Monga, ou
a mulher-macaco.
Há mais de um século espalhando medo e pânico em circos e parques de diversão de todo
o Brasil, a atração parece não sofrer as intempéries cronológicas. “Trata-se de um clássico do
terror, como Frankenstein, Drácula e Lobisomem, que adotaram diversos formatos ao longo
da evolução do tempo”, explica Juan Espeche, dono da Indiana Mystery, empresa responsável
pelo espetáculo no Playcenter, parque de diversão de São Paulo. “Quando algo mexe com o
emocional, você jamais esquece dele.” Assim como os famosos personagens de terror, a Monga
recebeu uma versão mais atual, devidamente adaptada para os dias de hoje. Mas o medo e a
pelugem continuam os mesmos.
.30
São menos de 15 minutos de duração. As
sessões estão sempre lotadas. O ambiente escuro muito lembra o de um cinema,
principalmente quando um filme começa
a ser exibido. Nele é contada a história de
Julia Pastrana, renomada bióloga mexicana
especialista em gastar a fortuna do pai em
pesquisas. Em uma de suas investidas científicas, ela descobre algo que nem Charles
Darwin imaginaria: criaturas africanas – os
famigerados mongas – capazes de alterar o
código genético humano com uma simples
mordida. Julia reúne sua trupe e parte em
uma expedição para o berço da humanidade. Sua equipe é capturada por uma tribo
hostil, os sunacos, e oferecida em ritual de
sacrifício aos mongas. Como não poderia
deixar de ser, a bióloga consegue escapar,
não sem antes receber uma mordida que
a transforma em mutante. Eis então que é
feito o convite ao público para que se dirija à outra sala, onde, vinda diretamente da
África, está Julia.
“ Vamos
embora daqui, eu não
quero ver isso”, a súplica de retirada, feita por um garoto à amiga,
logo após assistir ao vídeo, é comum.
Muitos, prevenidos, desistem de arriscar a pele. Os mais destemidos seguem
adiante por um corredor que desemboca
em outra sala escura. Lá, enjaulado e acorrentado, está o malfadado macaco gigante que, após receber uma injeção de uma
droga chamada Trix 50, se transforma em
mulher. Mesmo adequadamente trajada
com blusa e camisa brancas, shorts e botas,
como uma verdadeira expedicionária (as
versões mais tradicionais a apresentavam
apenas com um biquíni, uma vestimenta
não muito científica), Julia causa frisson nos
hormônios do público masculino. Alguns,
talvez confundindo medo com sentimentos mais carnais ou esquecendo do imenso
perigo que está à frente, arriscam elogiar as
formas físicas da garota. Mal sabem eles que
o efeito do Trix 50 é passageiro e a transformação da formosa fêmea em aterrorizante
símio é iminente. Por meio de efeitos visuais
repletos de luzes e de sombras, que dão inveja aos maiores estúdios cinematográficos,
o primata dentro de Julia volta a se manifestar e, sem hesitar, quebra corrente e jaula
e avança sobre o público. Em questão de
segundos a sala escura está vazia.
.31
A transformação da mulher em Monga | imagem: André Seiti/Itaú Cultural
A bela e a fera
Sempre seguindo um roteiro simples (e infalível), a atração continua a despertar a curiosidade e a fascinação de milhares de pessoas por dia. “A magia da Monga está na velha
fórmula da bela e a fera”, conta Espeche. “O
público se solidariza com a moça bonita ao
mesmo tempo que a teme. É um contraste
grande.” No entanto, solidariedade foi o que
faltou para com a verdadeira Julia Pastrana,
a mulher que inspirou a atração da Monga.
Provavelmente descendente de índios mexicanos, Julia nasceu em 1834. Portadora
de uma doença rara, a hipertricose, que fazia nascer pêlos por todo o corpo, a garota
foi “descoberta” pelo comerciante Theodor
Lent, que a exibia em circos de horror pelos
Estados Unidos e pela Europa, na primeira
metade do século XIX. Julia morreu aos 26
anos devido a complicações no parto. Seu
filho, que também sofria da doença e era fruto do casamento com o comerciante, sobreviveu apenas três dias. Mas isso não foi problema para o espírito empreendedor e nada
oportunista de Lent: ele mandou mumificar
a esposa e o filho para prosseguir com seu
espetáculo. Hoje, as múmias estão no Instituto Forense de Oslo, na Noruega. (Em tempo: Lent morreu em 1880, em um hospício.)
A atração e o alvoroço chegam ao fim,
mas ainda é possível ouvir alguns poucos
gritos de pavor – misturados com outros
de ansiedade do público, em sua maioria
estudantes, que aguarda do lado de fora
uma das 50 apresentações diárias da Monga. Pessoas que não mais buscam ver anomalias humanas, mas, sim, uma alegoria
tipicamente latino-americana. Pessoas que
querem ver algo belo que se transforma
em algo feio. Pessoas que estão à busca de
sustos efêmeros – para o deleite da atriz
Ana Sampaio, que interpreta a bióloga Julia
e que confessa sentir “certa satisfação em
ver o medo nos olhos do público”. Pessoas
que sabem que não viverão experiência
semelhante em outro lugar, como numa
sala de cinema. Afinal, que atire a primeira pedra quem já viu os espectadores
fugir amedrontados de uma sala de
projeção após assistir ao filme
do Lobisomem...
***
.32
A bela que vira fera: efeitos especiais primitivos | imagem: André Seiti/Itaú Cultural
.33
As incongruências
cotidianas
reportagem
Falhas de continuidade nos filmes e em nosso dia-a-dia
Por Thiago Rosenberg
Scarlett O’Hara (Vivien Leigh) se dá conta de que ama Rhett Butler (Clark Gable), com quem
se casou por interesse, e em meio à neblina da rua corre para a residência do casal. Chegando
lá, empurra a pesada porta e, sem se dar ao trabalho de fechá-la, sobe a escadaria que conduz
aos quartos. Cansado do egoísmo e da frieza de Scarlett, seu marido está decidido a deixá-la, e
diz que é tarde demais. Na cena seguinte, o rosto do casal ocupa o primeiro plano e, ao fundo,
vê-se a porta que Scarlett deixara aberta. Curiosamente, quando Rhett começa a descer os
degraus e a seqüência é mostrada em outro ângulo, a porta encontra-se fechada.
Esse é um detalhe quase imperceptível a muitos que assistem a essa cena de ...E o Vento
Levou (Victor Fleming, 1939), mas que faz a alegria dos que se divertem caçando falhas de
continuidade nos filmes. Seja como for, se esses perspicazes espectadores apontassem tal
deslize do continuísta aos autores da obra, é possível que ouvissem como resposta algo
semelhante à fala final de Rhett, que reduz as súplicas de Scarlett a pó: “Francamente, minha
querida, eu não dou a mínima”. Afinal, falhas como essa são naturais – e ocorrem não só nos
filmes, mas também em nosso cotidiano.
Geralmente, as imagens de um filme não são gravadas na ordem da narrativa. Para atender às
demandas de cronograma e de orçamento, é mais conveniente à equipe, por exemplo, rodar
de uma só vez todas as cenas que se passam em determinada locação, ou que apresentam
os mesmos integrantes do elenco – ainda que estejam desconectadas na história. Além disso,
uma mesma cena é filmada diversas vezes, para captar ângulos diferentes, detalhes etc. E, para
que esses vários momentos façam algum sentido quando dispostos na ordem correta, alguém
– no caso, o continuísta – precisa organizar em relatórios, cadernos de anotações, fotografias o
encadeamento preciso da narrativa. Evita-se, assim, que personagens surjam ou desapareçam
sem explicação, que objetos do cenário movam-se misteriosamente (como a porta da mansão
de Rhett e Scarlett), que a iluminação do ambiente se modifique entre um corte e outro.
.34
Montagem de rua em Castro, cidade chilena: a continuidade na vida e na arte | imagem: Joana Amador
Zelar pela harmonia de todo um universo
– mesmo que fictício – não é tarefa das mais tranqüilas. E, como se
não bastasse a sobrecarga que o ofício
lhe impõe, o continuísta deve se conformar com um pequeno detalhe, que torna
sua profissão uma das mais injustiçadas do
meio cinematográfico: seu trabalho, quando bem feito, não é notado por ninguém.
Agora, se algo lhe escapa, é bom que esteja
preparado para as críticas e as troças do público. Um público que culpa o continuísta
pelas incongruências dos filmes, mas que
não sabe a quem culpar quando se depara
com as incongruências do dia-a-dia, as falhas de continuidade cotidianas, tão ou até
mais enigmáticas do que as do cinema.
Quebras na linearidade
Se, nos filmes, os cenários, os personagens
e o enredo estão sempre sujeitos a falhas
de continuidade, o mesmo vale para o lado
de cá da tela. Atualmente diretor de curtasmetragens e professor em cursos de continuidade e assistência de direção, Eduardo
Aguilar começou sua carreira como continuísta – nessa função atuou, entre outros,
em Extremos do Prazer (1983), de Carlos Reichenbach. Ele conta que, quando não estava trabalhando, tentava se distanciar das
preocupações do set de filmagem, mas “é
inevitável ser contaminado pelas necessidades que o trabalho impõe”. Por isso, não
deixava de notar quebras na linearidade
do dia-a-dia. “Um dos exemplos é o dejà
vu”, diz ele. “Quando tenho essa sensação,
quando acho que já vivi determinada cena,
costumo pensar como continuísta. Procuro recriar todo o momento que acredito já
ter vivenciado, para ver se se trata de uma
falsa sensação ou se há de fato uma falha
de continuidade.” Aguilar dá outro exemplo:
“Às vezes perdemos alguma coisa e, para
descobrir onde ela pode estar, tentamos
lembrar nossos movimentos anteriores. Se
encontramos o objeto em um lugar diferente daquele que imaginávamos, talvez tenha
ocorrido uma falha de continuidade”.
Encontros que, embora marcados, nunca
ocorrem; relacionamentos afetivos que, sem
motivo expresso no roteiro, terminam de
uma hora para outra – ou de um corte para
outro –; hematomas que simplesmente surgem em nosso corpo, sem que tenhamos
vivenciado alguma cena de ação; a chuva
que resolve cair de um céu ensolarado e
sem nuvens (o dito “casamento de viúva”) e
altera bruscamente o cenário em que esperávamos passar o dia. Quem é o continuísta
responsável por essas falhas? E, se elas existem em nosso cotidiano, por que não poderiam ocorrer nos filmes? Nesse sentido,
Aguilar entende como algo positivo certas
falhas de continuidade no cinema, já que
elas aproximam o universo da ficção da
vida cotidiana. “Quando vou ao cinema
e sinto a idéia de perfeição”, comenta
ele, “não gosto do que vejo. Gosto
de perceber o humano por
trás dos filmes”.
.35
Silhueta do coveiro Lilita, o “cabra” que cuida da “porta larga” | imagem: Cia de Foto
Retratodedadocumentário,
imigrante espanhola
Marina
Meseguer,
há três me
A catadora de lixo Estamira, que foi protagonista
em 2006
| imagem:
divulgação
ON-LINE
Sua história daria um filme?
Você já viveu uma cena de cinema? Já foi ou conhece o protagonista de alguma situação que
caberia perfeitamente em um filme – seja ele um drama, um romance, uma comédia, um
suspense, um trash? Em caso afirmativo, participe da ação História de cinema e conte esse
seu causo cinematográfico à Continuum Itaú Cultural.
Os textos podem ser enviados até o dia 23 de novembro ao e-mail participecontinuum@
itaucultural.org.br e devem contar com, no máximo, 2.500 caracteres. A melhor história será
publicada na edição de dezembro da revista (impressa e on-line) e, posteriormente, servirá
de base para a segunda etapa da ação, que selecionará versões audiovisuais da narração –
transformando-a, enfim, em uma história de cinema! O autor do melhor relato também ganhará
o livro Ainda Cinema − que reúne ensaios sobre a presença da linguagem cinematográfica nas
artes visuais − e os catálogos da exposição e da mostra Cinema Sim, em cartaz no Itaú Cultural
até 21 de dezembro. Confira o regulamento:
•Os textos devem ser enviados a [email protected] até 23 de
novembro de 2008.
•Cada participante deve enviar apenas um texto, com, no máximo, 2.500 caracteres.
•O texto precisa ser criação própria. O participante será responsável por danos ocorridos a
terceiros e assume toda e qualquer responsabilidade civil e penal. Caso isso ocorra, responderá
isoladamente, ficando o Itaú Cultural isento de qualquer obrigação.
•O participante deve concordar com a difusão de seu depoimento nas versões impressa e
on-line da revista Continuum Itaú Cultural e com sua adaptação (pelo próprio selecionado ou
por terceiros) para uma futura versão audiovisual.
Você já parou para pensar onde está Estamira – do documentário homônimo produzido
em 2004 por Marcos Prado – ou Rodrigo Pimentel – ex-capitão do Bope, que participou de
Notícias de uma Guerra Particular (1999), de João Moreira Salles, e de Ônibus 174 (2002), de José
Padilha? E você já refletiu sobre o que muda na vida de uma pessoa quando participa de um
documentário? Em reportagem, saiba o que aconteceu com esses personagens reais depois
que o cinema invadiu suas vidas.
***
“O filme Um Convidado Bem Trapalhão (The Party, 1968) mudou a minha vida no instante em que
saí do cinema, no Guarujá. Eu tinha 5 ou 6 anos. Quando olhei para a rua, os carros passando, as
pessoas andando, estranhei aquilo tudo e percebi que tinha passado as duas horas anteriores
em outra dimensão.” O documentarista Carlos Nader respondeu, de forma apaixonada, à
enquete “Qual filme mudou sua vida?”, proposta pela Continuum. Confira outros depoimentos,
entre os quais os dos cineastas Domingos de Oliveira e Murilo Salles, em nosso site.
•O texto selecionado poderá ser editado.
Envie sugestões, elogios e reclamações a [email protected]. Você também
pode publicar seus textos (contos, crônicas, reportagens etc.) sobre cinema e vida. Para saber
como, acesse o site da revista.
•Não haverá qualquer tipo de retribuição financeira, apenas menção da autoria.
www.itaucultural.org.br/continuum
•Devem ser indicados, no e-mail, os seguintes dados: nome civil, cidade, endereço eletrônico
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