RELATO DE EXPERIÊNCIA DO PROJETO DE EXTENSÃO MINHA
ESCOLA LÊ: A FORMAÇÃO DE LEITORES NA ESCOLA ESPECIAL
Elisiani Vitória Tiepolo 1
Silvana Albertina Gea Fernandes Dalcin2
Suzane Salete Gruchouskei3
Grupo de Trabalho: Diversidade e Inclusão
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo
O projeto de extensão Minha Escola Lê, da UFPR, Setor Litoral, teve como objetivo
promover ações de leiturização na Escola Especial Municipal Ilha do Saber, no município de
Pontal do Paraná, no período de 01/03/2013 a 20/12/2014. Buscou criar uma cultura de leitura
não só na escola, mas na comunidade escolar como um todo, tendo em vista que ações de
leitura centradas apenas nos alunos parecem ter tido pouco efeito na constituição de leitores.
Dessa forma, o Projeto envolveu professores, funcionários, pais e responsáveis em torno da
leitura como uma prática cultural. A metodologia utilizada foi a roda de leitura e a contação
de histórias, sendo o livro elemento central na interação entre leitores e contadoras de
histórias. Isso porque, além de acessar o texto literário, o objetivo era criar uma relação de
afetividade entre os leitores e o livro, objetivando que eles, a partir daí, fossem de forma
espontânea buscar livros para ler. Por isso, o Projeto também ajudou a escola a dinamizar a
biblioteca como espaço interativo aberto a toda a escola. Um dos grandes desafios do Projeto
foi encontrar a metodologia adequada para interagir com as/os alunas/os especiais, tendo em
vista que na escola convivem crianças, jovens e adultos com diferentes síndromes e idades.
Além disso, a equipe do Projeto encontrou bastante dificuldade na pesquisa bibliográfica,
tendo em vista a quase inexistência de trabalhos que associem formação de leitores e
educação especial. Nesse sentido, o Projeto foi se desenvolvendo com a contribuição das
professoras, da equipe da pedagógica da escola e da adaptação constante das técnicas de
contação da escola regular para a escola especial.
Palavras-chave: Formação de Leitores. Literatura. Educação Especial.
1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação, da PUCPR. Mestre em Letras, pela Universidade Federal
do Paraná. Professora Adjunta da Universidade Federal do Paraná (UFPR) E-mail: [email protected]
2
Aluna da Licenciatura em Artes, na UFPR, Setor Litoral.
3
Aluna da Licenciatura em Artes, na UFPR, Setor Litoral.
ISSN 2176-1396
4593
Introdução
O Projeto de Extensão Minha Escola Lê – MEL - foi desenvolvido na Escola Especial
Municipal Ilha do Saber, no município de Pontal do Paraná, de 01/03/2013 a 20/12/2014.
Essa escola presta atendimento educacional especializado a pessoas com Deficiência
Intelectual, Transtornos Globais de Desenvolvimento e Deficiência Física Neuromotora –
Associada a Múltiplas Deficiências, com níveis moderado e severo. Atualmente atende alunos
de 0 a 55 anos de idade, distribuídos entre Educação Infantil, Ensino Fundamental e Educação
Profissional; conta, também, com oficinas de marcenaria, artesanato em EVA, pintura em
tecido, tear, bonecos de fuxico, talagarça e crochê. Também é propiciado aos alunos o
desenvolvimento em várias áreas como Artes Visuais, Música, Teatro e Educação Física, nos
projetos Banda 100 Limites, Fandango, Escolinha de Futebol, Casa Multiuso, Salão de
Beleza, Circuito Motor, Caminhada Orientada, Projeto TicTac, Teatro. Além disso, a escola
oferece atendimento Fisioterápico, Fonoaudiólogo e Equoterapia. A maior preocupação em
relação aos alunos é com a sua inclusão na sociedade, possibilitando-lhes realizar sozinhos
tarefas cotidianas, desde as mais simples como se vestir ou ir ao comércio próximo de suas
casas fazer pequenas compras.
Os alunos são organizados em turmas pequenas, de acordo com o seu
desenvolvimento intelectual. Todos os professores da escola têm Especialização em Educação
Especial, e cada aluno tem atendimento direcionado a suas necessidades. A escola fez,
coletivamente, as adaptações curriculares necessárias para atender seu público.
A
responsabilidade da escola é da Prefeitura Municipal de Pontal do Paraná, com apoio da
Secretaria Estadual do Estado do Paraná.
O objetivo do Projeto Minha Escola Lê na Ilha do Saber foi proporcionar aos alunos,
professores, funcionários e comunidade em geral o acesso a livros de literatura, objetivando a
formação de leitores de textos literários. O pressuposto é de que o acesso à literatura, como
manifestação artística, contribui com a formação emocional, o desenvolvimento de
criatividade e a autonomia.
Fundamentação teórica do Projeto
Os índices de alfabetização e letramento nacionais mostram que a escola ainda
contribui de maneira tímida para a formação de leitores e Pontal do Paraná está nas mesmas
condições nacionais. Segundo dados do INAF/2011 (Indicador Nacional de Alfabetismo
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Funcional) a situação do alfabetismo entre pessoas entre 15 e 64 anos de idade, que estejam
ou não estudando, residentes em todas as regiões do país em zonas urbanas e rurais, era, em
2011, a seguinte: o percentual da população alfabetizada funcionalmente foi de 61% em 2001
para 73% em 2011, mas apenas um em cada 4 brasileiros domina plenamente as habilidades
de leitura, escrita e matemática.
Os dados apontam ainda que no Brasil havia 6% de analfabetos, 21% de alfabetizados
de nível rudimentar (conseguem localizar informações explícitas em textos muito curtos),
47% de nível básico (localizam informações em textos curtos a médios) e 26% de nível pleno
(domínio completo das habilidades): a) Analfabetismo: corresponde à condição dos que não conseguem realizar tarefas
simples que envolvem a leitura de palavras e frases ainda que uma parcela destes
consiga ler números familiares (números de telefone, preços etc.). Nesse nível
estão 6% da população pesquisada.
b) Alfabetismo nível rudimentar: corresponde à capacidade de localizar uma
informação explícita em textos curtos e familiares (com o um anúncio ou pequena
carta), ler e escrever números usuais e realizar operações simples, com o
manusear dinheiro para o pagamento de pequenas quantias ou fazer medidas de
comprimento usando a fita métrica. 21% da população pesquisada estão nesse
nível.
c) Alfabetismo nível básico: pessoas classificadas neste nível podem ser
consideradas funcionalmente alfabetizadas, pois já lêem e compreendem textos de
média extensão, localizam informações mesmo que seja necessário realizar
pequenas inferências, lêem números na casa dos milhões, resolvem problemas
envolvendo
uma
seqüência
simples
de
operações
e
têm
noção
de
proporcionalidade. Mostram, no entanto, limitações quando as operações
requeridas envolvem maior número de elementos, etapas ou relações.
Corresponde a 47% da população pesquisada.
d) Alfabetismo nível pleno: classificadas neste nível estão 26% das pessoas. Suas
habilidades não mais impõem restrições para compreender e interpretar elementos
usuais da sociedade letrada: lêem textos mais longos, relacionando suas partes,
comparam e interpretam informações, distinguem fato de opinião, realizam
inferências e sínteses. Quanto à matemática, resolvem problemas que exigem
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maior planejamento e controle, envolvendo percentuais, proporções e cálculo de
área, além de interpretar tabelas de dupla entrada mapas e gráficos.
Além disso, nem todos os que se encontram no nível pleno de alfabetismo podem ser
considerados leitores. Ser leitor significa ter frequência de leitura a todo tipo de texto,
inclusive textos literários. É ler todo tipo de material impresso, inclusive livros. Outra
pesquisa pode ajudar nessa reflexão: Retratos da Leitura no Brasil, 2011. A população
estudada foi de 172.731.959 pessoas a partir dos 5 anos de idade e foram analisados leitores e
não-leitores. Entre os 77,1 milhões de não-leitores – 45% da população estudada-temos:
a) 28% não-alfabetizados
b) 35% cursaram até a 4ª série do ensino fundamental
c) 17% cursaram o ensino fundamental
d) 19% cursaram o ensino médio
Como podemos ver, ter frequentado a escola não é garantia de se tornar nem mesmo
plenamente alfabetizado, quanto mais leitor de fato. Entre os considerados leitores, 50% são
estudantes que leem livros indicados pelas escolas (inclusive didáticos). Outro dado
importante é o que mostra quem mais influenciou os leitores a ler:

Mãe (ou responsável mulher) 49%

Professora 33%

Pai (ou responsável homem) 30%

Outro parente 14%

Amigo 8%

Padre, pastor ou líder religioso 5%

Colega ou superior no trabalho 2%

Outros 3%
E não podemos desconsiderar ainda outro dado: 47,4 milhões (50%) leram livros
indicados pelas escolas (incluindo didáticos). Ou seja, a escola e o professor têm papel
decisivo na formação (ou não) do leitor, mas, ao mesmo tempo, temos muitos professores
dentre os considerados não leitores.
Jean Foucambert, do Instituto de Pesquisas Pedagógicas da França, define a leitura
como a formulação de um juízo sobre a escrita no ato de questionar e explorar o texto na
busca de respostas - textuais e contextuais - que geram uma ação crítica do sujeito no mundo:
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Ler significa ser questionado pelo mundo e por si mesmo, significa que certas
respostas podem ser encontradas na escrita, significa poder ter acesso a essa escrita,
significa construir uma resposta que integra parte das novas informações ao que já
se é. (FOUCAMBERT, 1994)
Esse autor criou o termo leiturização, e suas preocupações estavam centradas no fato
de que o processo de alfabetização, contraditoriamente, reduz muito as possibilidades das
crianças se formarem leitoras, ou seja, pessoas capazes de aprender que a linguagem escrita
não é a representação da realidade e sim um ponto de vista sobre essa realidade. Ele dividiu os
leitores a partir de três comportamentos diante do texto ou realidade a ser lida: o ledor/a
ledora (quem decifra linearmente os códigos e signos apresentados da linguagem escrita, sem
qualquer sinal de proatividade e interação com a mensagem ali expressa). Há também o
leitor/a leitora (a maioria das pessoas que teve acesso a um bom processo de alfabetização e
letramento e, na escola formal, teve oportunidade de ler textos diferenciados e literatura
interessante. Entendem a mensagem expressa no texto e são capazes de interpretar e resumir o
que o autor quis expressar. Costumam posicionar-se sobre o texto, expressando sua crítica).
Mas Foucambert propõe que todos sejam leiturizadores, o que exige uma leitura crítica de
intenções, dos entremeios, das entrelinhas, sob suspeição: “Olhar um texto é forçosamente se
perguntar o que pretende a pessoa que o escreveu”. (FOUCAMBERT, 1994, p. 34) Exige se
perguntar o porquê daquela palavra, daquela forma de expressar a mensagem, o que pode
advir dos significados ali expressos. É preciso ir além da linearidade do que está dito ou
escrito. É o que Paulo Freire (1985) chamava de “leitura de mundo”.
Porém, o processo de escolarização, que obriga os alunos a ler, vai afastando o leitor
da leitura. Daniel Pennac afirma que:
O verbo ler não suporta o imperativo. Aversão que partilha com alguns outros: o
verbo
“amar”…
o
verbo
“sonhar”…
Bem, é sempre possível tentar, é claro. Vamos lá: “Me ame!” “Sonhe!” “Leia!”
“Leia logo, que diabo, eu estou mandando você ler!”
—Vá para o seu quarto e leia!
Resultado?
Nulo. (PENNAC, 1993, p. 3)
Ao contrário disso, ele propõe que os pais deveriam:
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Sejamos justos. Nós não havíamos pensado, logo no começo, em impor a ele a
leitura como dever. Havíamos pensado, a princípio, apenas no seu prazer. Os
primeiros anos dele nos haviam deixado em estado de graça. O deslumbramento
absoluto diante dessa vida nova nos deu uma espécie de inspiração. Para ele, nos
transformamos em contador de histórias. […] Na fronteira entre o dia e a noite, nos
transformávamos em romancista, só dele (PENNAC, 1993, p. 23).
Porém, é sabido que os pais cada vez menos têm feito essa mediação entre as crianças
e os livros. Por isso a importância de que se criem momentos de compartilhamento afetivo de
leitura na escola. Um momento de gratuidade. Daniel Pennac parte do pressuposto de que é
o prazer de ler que preside todo ato de leitura e que, se ele existe, “não teme imagem, mesmo
televisual e mesmo sob a forma de avalanches cotidianas” (PENNAC, 1993, p. 12). Assim, o
papel da escola deve ser o de despertar a curiosidade, o desejo em ler.
O Projeto Minha Escola Lê parte desse princípio e procura criar espaços em que o
prazer em ler seja um motivo de encontro. E o contador de histórias a pessoa que possibilitará
esse momento:
Ele chegava desgrenhado pelo vento e pelo frio, em sua moto azul e enferrujada.
Encurvado, numa japona azul-marinho, cachimbo na boca ou na mão. Esvaziava
uma sacola de livros sobre a mesa. E era a vida. […] Ele caminhava, lendo, uma
das mãos no bolso e, a outra, a que segurava o livro, estendida como se, lendo-o,
ele o oferecesse a nós. Todas as suas leituras eram como dádivas. Não nos pedia
nada em troca (PENNAC, 1993, p. 45).
A literatura funciona de forma igual para a pessoa com ou sem deficiência como um
mediador capaz de permitir a elaboração de conflitos psíquicos e o enfrentamento das mais
assustadoras emoções. Ou seja, “Contar histórias não é apenas um jeito de dar prazer às
crianças: é um modo de ampará-las em suas angústias, ajudá-las a nomear o que não podia ser
dito, ampliar o espaço da fantasia e do pensamento” (CORSO, 2006, p. 56).
Além disso, “pelo tesouro dos contos e dos mitos, facilitamos as elaborações mentais.
[...] A utilização dos contos de fadas é muito importante, uma vez que “exploram
os conflitos internos da criança, que fará a interpretação conforme suas necessidades
emocionais” (CALDIN, 2002, p. 45). Ouvir histórias pode liberar sentimentos reprimidos,
apaziguar emoções e colocar a criança portadora de deficiência em contato com o mundo dos
livros, além é claro, de permitir uma maior interação entre ela, as pessoas e o meio. Bruno
Bettelheim diz que a criança precisa de metáforas mágicas para aprender a resolver suas
inquietações, superar dificuldades e perigos, suportar o que parece impossível, tomar decisões
e assegurar sua sobrevivência:
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O prazer que experimentamos quando nos permitimos ser suscetíveis a um conto de
fadas, o encantamento que sentimos não vem do significado psicológico do conto
(embora isto contribua para tal), mas das suas qualidades literárias – o próprio
conto como uma obra de arte. O conto de fadas não poderia ter seu impacto
psicológico sobre a criança se não fosse primeiro e antes de tudo uma obra de arte.
(BETTELHEIM, 1980, p. 20)
Por isso, ouvir histórias é importante não somente por sua função emotiva, mas
também por sua função pedagógica.
Desenvolvimento do Projeto
Antes de iniciarmos o Projeto na escola, fizemos pesquisas de livros e artigos sobre os
temas literatura, formação do leitor e educação especial. Percebemos o quão desafiador seria
desenvolver o Projeto, pois encontramos poucos estudos que associassem essas três áreas.
Partimos, então, para a pesquisa de campo, para ver como os professores da escola agiam e
assim tentar entender um pouco melhor a forma de interagir com as crianças, jovens e idosos
especiais. Observamos na escola a existência de uma biblioteca, mas que não era muito
utilizada.
Observamos, também, que os alunos tinham um pouco de dificuldade em se manterem
concentrados durante a leitura dos livros de literatura. A partir dessa observação, veio a ideia
da confecção de uma roupa colorida para a contação de histórias. A princípio uma roupa de
fada, com tule colorido, meio vestido meio avental; na confecção, pensamos em colocar
pétalas coloridas de tecido, como se fossem retalhos das histórias narradas por nós. Nasceram
assim “AS FADELHAS”, as fadas-abelhas, uma referência à sigla do nosso Projeto – MEL.
Na frente do avental colocamos um coração bem colorido, representando a alegria que as
histórias devem provocar aos leitores. A roupa é uma representação da concepção da contação
de histórias que adotamos no Projeto: trazer o mundo dos livros mais próximo aos alunos,
sem cobranças, mas por meio do afeto e do prazer de compartilhar leituras, sendo um pouco
Peter Pan ao colocar a Terra do Nunca ao alcance dos alunos. Porém, é importante destacar
que a presença do livro é uma condição nessa relação, pois queremos que os alunos associem
o lido e visto (as ilustrações) a esse momento especial e assim se aproximem da leitura dos
livros literários.
Partimos do princípio de que mesmo com toda a tecnologia existente no mundo
moderno, a importância do contador de história não diminuiu, pois mesmo utilizando de
poucos recursos (a voz, o livro e alguns objetos) ele promove a magia do viver a literatura,
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estimulando a imaginação de quem escuta. Ao ouvir uma história, os ouvintes entram em
contato com vários temas, emoções, reflexões, conflitos. O contador deve sempre manter o
contato visual com os ouvintes, e com os alunos especiais isso é mais importante, eles devem
se sentir parte da história, por isso devemos fazer pequenas adaptações para que eles se
reconheçam nesse mundo. Segundo Abranovich (1994), quando a criança escuta uma história
está dando início a sua formação psicológica, despertando o seu imaginário e buscando a
resposta a conflitos do seu cotidiano. É ouvindo histórias que as crianças sentem emoções
importantes como a tristeza, a raiva, a irritação, o bem estar, o medo, a alegria, o pavor, a
insegurança, a tranqüilidade, e tantas outras mais, e viver profundamente tudo o que as
narrativas provocam em quem as ouve, assim, sentem e enxergam com os olhos do
imaginário.
A escola onde desenvolvemos o Projeto possui um cantinho da leitura aberto, no pátio
interno. Ali encontramos estantes repletas de livros, todos ao alcance dos alunos com um
tapete e banquinhos coloridos feitos pelos próprios alunos: um convite para apreciar os livros
que ali se encontram. Mas, na verdade, esse espaço era pouco usado pelas professoras, que ali
só buscavam os livros e os levavam para a sala de aula. Após nossa chegada, esse cantinho
começou a ser mais frequentado, mais alunos passaram a buscar livros para que suas
professoras lessem para eles. Com um acervo bem variado, uma coleção nos chamou a
atenção: ela aborda temas referentes às necessidades especiais, em forma de fábulas e muito
lúdica, e essa coleção é muito apreciada pelos alunos, que se identificam muito com as
histórias.
A pedagoga salientou que gostaria que levássemos os alunos a conhecerem os livros e
aprenderem como manipulá-los. O fato de fazer a contação de histórias para crianças com
necessidades especiais é uma grande experiência. A responsabilidade não era apenas ensinar a
folhear, não rasgar, babar ou amassar, mas tentar mostrar que ali dentro mora uma aventura e
que a qualquer momento elas mesmos poderiam ter acesso a esse mundo mágico. O desafio
maior era despertar o interesse dos alunos para o livro, não como brinquedo, mas sim como
objeto cultural.
Apesar de sempre planejarmos nossas ações, a cada dia enfrentávamos um desafio,
uma surpresa. Muitas vezes preparávamos uma história e durante a contação percebíamos
que a história não despertou o interesse, tendo que partir para uma outra. Entre tantas
situações, alguns fatos nos foram muito marcantes. Eis alguns deles:
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Uma menina de 8 anos de idade, autista severo, não falava e no início de nosso
trabalho não participava; a professora ficava na sala de aula com ela, pois não ela aceitava
ficar no cantinho da leitura onde aconteciam as contações.
Mas, ao longo do
desenvolvimento do projeto sempre a chamávamos para estar conosco, e, bem devagar, ela foi
chegando perto de nós e no final do projeto já vinha junto com a turma, sentava-se ao nosso
lado, ouvia as histórias e ao final tínhamos direito a beijos.
Outra aluna, já adulta, não parava dentro da sala de aula, fugia o tempo todo e ficava
andando pela escola e falando com ela mesma, sempre chamando a sua própria atenção: “não
faça isso, vai deitar, para de falar...” Ela não participava das contações, só passava pelo local;
mas com o tempo começou a parar por um período curto e ouvir um pedacinho das histórias.
Ao final do Projeto ela já se sentava junto com o grupo e acompanhava as histórias inteiras,
interagindo com todos.
A Turma das Princesas é formada por mulheres de idades e deficiências variadas, mas
com algo em comum: todas adoram histórias de príncipes e princesas. Elas se veem dentro
das histórias, e sempre queriam que contássemos histórias de fadas.
Outra turma muito especial é a dos alunos com paralisia cerebral, formada por cinco
meninos, todos cadeirantes, que se comunicam com gestos e expressões. Extremamente
carinhosos com abraços, beijos e muitos sorrisos, sempre participando das histórias.
Contamos João e o Pé de Feijão e foi uma festa, pois um deles, por causa do seu nome, se
identificou com o personagem; a animação foi tanta que a professora regente ajudou o menino
a plantar um pé de feijão, e, na semana seguinte, a primeira coisa que ele quis nos mostrar foi
o seu pé de feijão. Diante de tanta euforia provocada por essa identificação, passamos sempre
a colocar um dos alunos como personagem da história contada, o que motivava todos a
participarem das histórias.
Um aluno adulto com hidrocefalia, que passava a maior parte do tempo andando pela
escola, gritando sempre, não participava das contações, ficava por perto, mas não chegava a
se sentar com o grupo. A pedido da direção da escola fizemos algumas contações nas salas de
aula e começamos a perceber que ele ficava na sala, mas completamente alheio ao que estava
acontecendo. Sempre pedimos para os alunos interagirem com a história, fazendo sons,
batendo palma, cantando. E para nossa surpresa, em um encontro solicitamos para que
fizessem sons de animais, e esse aluno pediu para fazer o som do leão. Percebemos, então,
que mesmo ele parecendo apático e alheio, ele estava sim prestando atenção às histórias.
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Um adulto de 50 e poucos anos não faltava às contações, mas dormia a maior parte do
tempo. Em um dos encontros, pedimos sugestões de histórias para serem contadas nos
próximos e ele pediu para que contássemos a história de Lampião. A princípio ficamos
preocupadas em como levar o assunto sem chocá-los com a questão da morte, mas não tinha
outra forma, pois essa foi a história pedida. E assim foi feito, sendo um sucesso, pois o aluno
não dormiu e ficou muito atento aos detalhes. Ao final da história, outro aluno falou que “O
lampião e o vaga-lume, os dois têm luz!” Conversamos sobre a diferença entre o lampião a
gás, aquele usado para iluminar, e o Lampião cangaceiro, o rei dos sertões. E todos se
divertiram muito.
Outro aluno é uma criança em um corpo de homem, com mais de 1.70 de altura e 90
quilos, mas de uma delicadeza e inocência de criança de três anos, com fala infantilizada e
com um medo terrível de ouvir histórias. Depois de várias contações e de conversas com ele,
o medo foi passando e dando lugar à imaginação. E o menino que chorava e pedia para não
contar porque tinha medo, passou a participar e a querer sentar bem na nossa frente. E sempre
que solicitado, participava fazendo os sons dos animais, cantando, batendo palma. Chegou a
pedir temas para os próximos encontros.
Em certa ocasião fomos à sala dos bebês fazer a contação. Levamos um livro com
muitas ilustrações, com figuras em ordem alfabética e conforme íamos lendo procurávamos
uma figura correspondente; até que ao chegar no tambor um aluno ficou inquieto e apontava
para cima de um armário. Nós não entendíamos o porquê, até que a professora lembrou que
ali estava um tambor de brinquedo. Foi, para nós, mais uma experiência mágica e muito
recompensadora.
Em certo dia parecia que nenhuma história empolgava e ficamos um pouco perdidas,
até que no meio dos livros encontramos um de cantigas de roda. Começamos com Atirei o
pau no gato, em seguida cantamos Alecrim dourado, Ciranda cirandinha, Terezinha de Jesus,
A canoa virou, Caranguejo não é peixe; e foi a maior diversão. Nesse dia, até o pessoal da
limpeza veio participar, e sempre que podiam os alunos pediam o livro que canta.
Tivemos a oportunidade também de participar de um projeto inovador desenvolvido
na escola, o Tic-Tac, no qual os alunos do Centro de Educação Infantil (CEMEI), que
funciona ao lado da escola, vêm fazer aula de musicalização infantil. Ali as crianças pequenas
do CEMEI participavam de atividades com os alunos menores da Ilha do Saber. São
oferecidas várias músicas e cada uma com uma atividades que estimulam todos os sentidos.
Antes de terminar o Tic-Tac, fazíamos a contação de histórias. Para o fechamento, a
4602
professora, a estagiária, a auxiliar e nós ficávamos com um aluno. Era passado um creme em
nossas mãos e ao som de uma música relaxante fazíamos massagem na criança e algumas
acabavam dormindo. Essa última atividade era para estimular o afeto, pois muitas dessas
crianças a única manifestação de carinho que recebiam era essa. Aliás, afeto era a base da
nossa metodologia. E afeto foi o que mais recebemos.
Considerações finais
Foram muito gratificantes os resultados obtidos, pois os alunos interagiram conosco e
sempre queriam mais histórias. Não somente os alunos, mas os professores e funcionários
ficavam prestando atenção às histórias que contamos. E o objetivo inicial proposto pela
escola, que era de os alunos aprenderem a usar o livro e não o estragá-lo foi alcançado, mas
alcançamos muito mais do que isso, pois os alunos passaram a ir até o cantinho da leitura e
buscar os livros para ler sozinhos e para que os professores lessem para eles. O projeto
também proporcionou a interação dialógica entre diferentes níveis de ensino e envolveu
pessoas de diferentes idades, escolaridade e profissões, integrando a escola.
Além disso, contribuiu para a indissociabilidade do tripé ensino-pesquisa-extensão,
pois pesquisamos, planejamos, executamos e registramos as ações durante todo o processo de
execução do Projeto, construindo uma práxis pedagógica. Nossa formação também aconteceu
nos encontros do Círculos de Leituras, Fuxicando Livros, constituído por bolsistas de outros
projetos e professores de outras escolas do município. Nesses encontros trocávamos nossas
leituras e experiências leitoras e realizávamos atividades culturais diversas.
O Projeto de Extensão Minha Escola Lê comprovou que só será possível contribuir de
fato para a modificação dos precários resultados relativos à leitura se os professores também
se constituírem como sujeitos leitores e se envolverem como sujeitos apaixonados pela
leitura. Além disso, que apenas ações integradas e constantes em torno da leitura possibilitam
a formação de leitores: professores, alunos e comunidade. Todas essas instâncias devem estar
presentes no processo, caso contrário, pouco avançaremos na competência leitora em nosso
país. E, por fim, comprovou também que estar em uma escola especial coloca alguns desafios
para quem vai fazer a mediação entre os alunos e os livros, mas que esses desafios
proporcionam compartilhamentos amorosos em que o que conta é nossa essência humana e
não nossas diferenças.
4603
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relato de experiência do projeto de extensão minha escola lê