A Luta dos Tuaregues na Chapada
Diamantina
Os tuaregues habitam o norte da África há tanto
tempo que a memória de suas origens se desbota no
tom ocre do deserto. Montados em seus meharis,
uma raça de camelo veloz e resistente, dominaram
as areias do Saara cobrando altos tributos para que
as caravanas pudessem passar durante séculos.
Povo guerreiro, sua marca característica eram os
turbantes que lhes velavam os rostos para fugir das
simum - as tempestades de areia. Seu código de
honra era igual a dos cavaleiros medievais: palavra
dada é como dívida de sangue e, portanto, honrada
sempre.
Do deserto do Saara à Chapada Diamantina vão se
milhares de quilômetros e séculos de diferença.
Porém, quem entra pelas eserras, vales e rios que
compõe um dos mais belos cenários brasileiros se
depara com as mesmas figuras de turbantes. Não
cobram tributos, mas barram caravanas de turistas para lhes dar consciência
ecológica. Os velozes camelos foram trocados por um caminhãozinho que, mesmo
caindo aos pedaços, recolhe lixo reciclável. Os “tuaregues da Chapada”, como são
conhecidos os integrantes do Grupo Ambientalista de Palmeiras (GAP) são os anjos da
guarda deste parque nacional no interior da Bahia.
Brigada contra incêndios, horta orgânica e comunitária, assistência às famílias pobres
da região, arborização de cidades e vilarejos, trabalhos de conscientização ecológica,
denúncias contra os destruidores do meio ambiente. Isso só para introduzir o trabalho
desses 16 voluntários que fizeram da defesa da Chapada Diamantina sua própria vida.
Há 15 anos que os homens e mulheres de turbante deram sua palavra que guardariam
a região.
Davi versus Golias
Vista panorâmica dos vales e morros da Chapada
Diamantina
impossível.
O Parque Nacional da Chapada Diamantina
possui 152 mil hectares de área entre
escarpas montanhosas, enormes cachoeiras,
sítios arqueológicos, trilhas em vales, em
morros, por rios e córregos. Porém, de acordo
com José Carneiro Bruzaca, diretor do parque,
o Ibama dispõe apenas de quatro pessoas
para tomar conta de tudo. Essas testemunhas
têm que dividir o trabalho de gabinete com o
de fiscalização e prevenção - uma tarefa
Apesar de ter sido criado em 1985, só agora o governo federal está liberando recursos
para desapropriar os donos das terras. Ou seja, todos os pontos turísticos são
propriedades particulares. E por mais que a lei proíba qualquer destruição ou alteração
no ecossistema da região, boa parte dos fazendeiros não está muito preocupada com
isso. Mandam árvores a baixo e realizam queimadas para preparar o plantio ou criar
pasto.
É nesse contexto caótico que surgiu o GAP. O grupo atua em conjunto com o Ibama
em uma série de ações e substitui o órgão em várias outras. E as atividades dos
tuaregues geram insatisfação daqueles que desrespeitam as leis de preservação do
meio ambiente.
O poder local não aceita outro que não seja o deles. Ameaças são constantes e já se
tornaram parte de seu cotidiano. “Mas se mandarem me matar eu morro feliz, pois
morro pela causa”, declara Joás Brandão, líder
do grupo.
Fogo
Naquela dia, os tuaregues já haviam suado
muito para apagar o incêndio que consumia a
vegetação entre os vilarejos de Andaraí e Pati.
Foram seis horas de trabalho ininterrupto.
“Esse foi pequeno até”, analisa Joás Brandão.
“Tem alguns com linhas de fogo de dezenas de
quilômetros de extensão que a gente leva dias
em cima para apagar.”
Integrantes do Grupo Ambientalista de Palmeiraas
(GAP), os Tuaregsda Chapada, em frente ao terreno
que serve de sede para o grupo
A chuva não cai há vários meses na região, o
que secou árvores e arbustos. Boa parte da Chapada se transformou em uma grande
fogueira, esperando apenas as ordens de uma bituca teimosa ou de um raio
desavisado para nascer.
Para o incêndio de Andaraí, duas horas de caminhada carregando equipamento pesado
emprestado do Ibama até chegar ao foco. Bombas d’água, abafadores, tudo sob um
sol forte e escaldante de um verão fora de época em pleno sertão baiano. Porém, o
grupo não esmorece. Bem pelo contrário, na volta, mesmo cansados e esgotados
depois de terminado o trabalho, avistaram outro foco de incêndio e correram lá para
apagar.
Já brigaram com o fogo com as próprias mãos literalmente, sem equipamentos ou
roupas especiais. Queimaduras espalhadas pelo corpo são como marcas de batalhas
exibidas orgulhosamente ao som de histórias e mais histórias. Muitas vezes, por não
terem dinheiro para comprar uma bota, foram descalços para o meio do mato
arriscando a própria vida para impedir que o fogo vencesse a luta contra a terra.
Quando faltam instrumentos, usam o que o homem tem de melhor: a cabeça.
Ao longo dos anos, desenvolveram técnicas inéditas no cerco e combate a incêndios.
Um exemplo é o que aconteceu no ano passado quando um fogaréu consumia o
Parque Nacional de Monte Pascoal. Os bombeiros e a polícia florestal não estavam
dando conta e aí o GAP foi chamado. Em pouco tempo, controlaram a situação,
garantindo um final feliz para a festa dos 500 anos que seria realizada meses depois.
Em outra ocasião, foram resolver o incêndio que estava ameaçando destruir a Chapada
dos Veadeiros. Trabalharam horas, madrugadas adentro, dias inteiros sem parar. Só
aceitaram descansar quando tudo estava sob controle.
“Combater incêndio em serra é difícil. Bombeiro nenhum agüenta e eles sim. Dizem
que são a segunda melhor brigada de incêndio do país. Mas não conheço ninguém
melhor”, reconhece Bruzaca, diretor do parque nacional.
Água
À noite, conversávamos com Joás sobre os
problemas da região quando chegou a notícias
de que tinha sido avistado um foco de incêndio
próximo ao Morro do Pai Inácio, uma das mais
visitadas atrações da Chapada Diamantina.
Como não havia carro disponível (o
caminhãozinho do grupo estava quebrado e o
único carro do Ibama, uma Pampa 92,
Foco de incêndio próximo ao Morro do Pai Inácio
ausente) ficou um clima de ansiedade, de
sendo controlado à noite pelo GAP
impotência. Ofereci meu carro para levar o
pessoal até o local. E na escuridão avançamos morro acima até a linha de fogo.
Não deu nem tempo de estacionar e todos saltaram do carro alucinados em direção
das chamas. Na frente, os abafadores (longos cabos de madeira com placas de
borracha na ponta) extinguiam o fogo. Atrás as bombas d’água (bolsas com 20 litros
de água colocadas nas costas com uma pistola de pressão para lançar o líquido)
acabavam com as brasas que sobraram.
Em pouco tempo estava tudo normalizado. “Esse era apenas um foco. Mas se a gente
deixasse, talvez de manhã, teríamos sérios
problemas”, concluiu Joás.
Terra
“A gente vive dos restos da burguesia, do que
não quiseram mais e jogaram fora.” É assim
que Joás Brandão resume uma das maiores
atuações dos tuaregues: a coleta de lixo
reciclável. Toda a semana - e com mais
freqüência nos feriados e épocas de mais
movimento - eles passam com um caminhão
A Chapada Diamantina é uma das maiores
concentrações de cavernas do Brasil: os problemas
recolhendo latas, garrafas de plástico e de
opõem-se à beleza do lugar
vidro, papelão e todo o tipo de entulho não
orgânico que não será decomposto rapidamente pela natureza. O trabalho é pesado
pois há feriados em que essa região da Chapada chega a acumular duas toneladas de
lixo.
Depois, o material recolhido é levado a um terreno que serve de sede ao grupo,
separado e armazenado para depois ser vendido. A ação quase não conta com apoio
externo. A prefeitura de Palmeiras dá R$ 40,00 a cada coleta feita e um carnê, no
valor total de R$ 200,00, é distribuído entre os comerciantes do vilarejo de Capão,
como auxílio de custo. Nem todos contribuem em dia.
Esse dinheiro é usado quase todo com o próprio lixo e o excedente é destinado a
outros projetos do GAP, como, por exemplo, o criatório de mudas, a horta orgânica e a
assistência dada às famílias pobres da região.
Ar
Graças aos tuaregues, respira-se na Chapada
Diamantina idéias diferentes das de 15 anos atrás,
quando o grupo e o parque nasceram. A consciência
ecológica cresceu e o reconhecimento do ser humano
como parte integrante da natureza também. Além
deles, muitos estrangeiros que vieram morar na região
a partir da década de 70 ajudaram nesse processo.
“Porém, há muito o que ser feito”, explica Fátima
Gomes, membra do grupo. “Como você vai explicar aos
nativos daqui que um metro quadrado de área natural
preservada vai dar mais dinheiro que o mesmo espaço
destinado ao café. É difícil explicar que é possível
ganhar dinheiro com ecoturismo. Da mesma forma, é
difícil falar em preservação para um cara que está na
miséria.”
Os tuaregues lutam por consciência
ecológica
Falta infra-estrutura. Muitos acabam destruindo a
natureza, não porque querem, mas como solução para
a sobrevivência imediata. Se o governo - e aqui cabem as três esferas: municipal,
estadual e federal - desse mais valor à preservação ambiental e ao turismo ecológico a
situação dos moradores seria outra.
Estrutura não é necessariamente asfaltamento, como o que quase foi feito entre
Palmeiras e Capão e que iria causar um impacto ecológico sem precedentes se não
fossem os protestos que paralisaram o projeto. Estrutura é criar condições para o
desenvolvimento humano na região.
E isso passa primeiro pela melhoria no saneamento básico, na instrução de guias, no
fomento à produção artesanal local, na criação de políticas públicas que diminuam a
miséria sem agredir o meio ambiente. Já existem diversos estudos para a viabilização
econômica da região e que não custariam muito. Só falta vontade de colocá-los em
prática.
O preço de um ideal
Os tuaregues se dedicam quase que
exclusivamente à preservação da Chapada
Diamantina e na melhoria das condições de
sua gente. Não recebem salário, gratificação
ou qualquer outra forma de remuneração pelo
trabalho. Nem quando eles são chamados para
apagar incêndios em outros lugares, como no
Monte Pascoal ou na Chapada dos Veadeiros.
Nesses casos, ganham apenas alimentação,
hospedagem e transporte.
Vilarejo de Capão: tranqüilidade quebrada pelas
hordas de turistas que invadem a região no feriado
Uma saída para a sobrevivência tem sido o trabalho como guia turístico. Porém, o
objetivo do grupo era que houvesse uma verba para tocar esses projetos, sem
depender de favores ou da boa vontade alheia. A rádio comunitária, as hortas
familiares, o centro de triagem de lixo, um carro decente para recolher o lixo e apagar
incêndios. Está tudo empacado por falta de dinheiro.
E, pasmem, o valor é ridículo. “Com R$ 1.000,00 por mês a gente tinha como pagar
salário para todo mundo (16 pessoas), comprar e fazer manutenção de equipamentos,
instalar os novos projetos e continuar os antigos”, revela Joás. Apenas R$ 1.000,00.
A Assembléia Legislativa do Estado da Bahia declarou, há pouco tempo, o GAP como
organização não-governamental de utilidade pública devido aos serviços prestados à
sociedade.
Mas os tuaregues continuam sozinhos, dependendo de doações que acontecem uma
vez ou outra. E enquanto a ajuda não vem, o jeito é ir tocando por conta própria,
como sempre. Joás diz que, ao preservar a Chapada Diamantina, estão apenas
tomando conta da casa deles. “Se os próprios moradores não fizerem nada, quem é
que vai fazer.”
Boa pergunta, guerreiro Joás. Se vocês não fizerem, quem é que vai fazer?
Chapada Diamantina, Outubro de 2000
Texto e fotos por Leonardo Sakamoto. Pertencente ao site Repórter Brasil:
http://www.reporterbrasil.com.br
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