Piano e voz em Glenn Gould, ou do que transborda na interpretação musical1
Renata Mattos de Azevedo
Ao se ouvir o pianista canadense Glenn Gould interpretando obras de
compositores clássicos, o que salta aos ouvidos é o modo único com que ele as toca.
Reconhecemos de imediato seu estilo, sua assinatura impressa nas obras, assim como um
fazer que, pela interpretação, “quebra” e reenlaça a própria estrutura da composição.
Porém, o que mais chama a atenção ao ouvi-lo tocar, em especial as suítes
inglesas de Bach, é que, com Gould, as suítes, peças para instrumento solo, se tornam
eminentemente a dois pelo acompanhamento de sua voz em vocalize. Instaura-se um
estranhamento ao se escutar uma voz que surge como ruído, algo que transborda do corpo
do intérprete e “abraça” a música descompassadamente.
Há a sensação de um “ouvir demais” a partir desta voz/ruído que abre para um
“ouvir a mais” ou um “mais ouvir” próprio da música pelo atravessamento do
imprevisível e inapreensível do real. O que se coloca como questão é a função deste
modo singular de saber-fazer com a voz para Gould, e, ainda, como ele, ao tocar, pode
transmitir o real.
Alguns elementos sobre a vida de Glenn Gould (1932-1982), não tanto sobre seus
aspectos biográficos, mas sim sobre suas escolhas dentro do campo musical, merecem ser
destacados. Filho único de pais musicistas, ainda que amadores, como nos destaca
Payzant (1986, p. 1), Glenn muito cedo, aos três anos de idade, passa a evidenciar
“habilidades musicais excepcionais”, tais como o ouvido absoluto e habilidade para
leitura musical, mesmo antes de ler palavras, passando a receber aulas da mãe pianista, o
que se manteve até que este completasse dez anos.
A carreira como pianista se inicia prodigiosamente aos seis anos, com
apresentações públicas em concertos, tanto solo quanto como solista em orquestras. E
antes mesmo disso, aos cinco anos, Glenn já compunha e apresentava, em âmbito
familiar, suas próprias peças. Aos dez anos, passa a ter aulas no Conservatório de Música
de Toronto, não apenas de piano, mas igualmente de órgão, o que lhe será marcante,
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Este trabalho parte da pesquisa de doutorado A radicalização do real na música pós-tonal e seus efeitos
para o sujeito, por mim conduzida no Doutorado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro.
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sobretudo no contato com as peças organístiacas de J. S. Bach, que ele, contudo, já as
tocava transcritas para o piano aos dez anos (Idem, p. 4), incluindo aí O cravo bemtemperado e um dos volumes das Partitas, peças de dificuldade extrema para o piano.
Payzant (Idem, p. 5), destaque que desde muito cedo, várias histórias, e mesmo
anedotas, sobre Gould foram criadas, algumas contadas por ele mesmo, o que “contribui
para o sucesso de Gould em proteger sua privacidade, e em conquistar a privacidade sem
a qual ele acredita que não conseguiria sobreviver como artista”.
A série de bem-sucedidos concertos e tournées pelo Canadá e por outros países
terá seu fim definitivo em 1964, quando Gould, aos 32 anos, decide se dedicar à música
somente pela via de gravações para rádio e em vídeo de suas interpretações, o que, de
fato, ocorre até sua morte. Gould passa a buscar “a” interpretação perfeita das obras que
toca, isto com o auxílio dos meios tecnológicos de gravação.
E se, por um lado, o público deixou de ter o contato imediato com a interpretação
de Gould, por outro, ficou-se mais claro uma certa distância próxima que já havia entre o
pianista e os fruidores quando este tocava, algo que não passa desapercebido nas palavras
de Peter Ostwald (1997, p. 19, grifos meus), ao rememorar um dos concertos de Gould:
O aspecto visual e aural da interpretação de Gould foi rapidamente transmitido
para a audiência, que se tornou logo atenta, quase transfixada. Seus
movimentos auto-absortos e expressão do som pareciam passes de mágica.
Era como uma sedução. Ele estava colocando seus espectadores em uma
órbita psicológica ao mesmo tempo próxima e distante dele, em algum
espaço etéreo. Sua interpretação do movimento lento do concerto de Bach foi
uma verdadeira revelação. Ele projetou a melodia como uma linha de prata
articulando cada frase com deliberação imensa e criando continuidades macias
entre as notas individuais. O resultado foi tão parecido com uma canção
que era difícil acreditar que estava-se ouvindo um piano.
Outro importante aspecto a ser destacado desta citação é o modo como, pela
interpretação, Gould manejava o material sonoro-musical de modo a conseguir algo
muito singular e preciso, que raramente se escuta em interpretações de outros pianistas.
Gould apresenta um saber-fazer-aí (savoir-y-faire) com o que há de mais estrutural da
obra, o lidar com o objeto voz, que faz com que uma desconstrução e simultânea
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reconstrução da linguagem musical se dê, em ato, a cada interpretação. É mesmo neste
ponto que o público se divide quanto às suas interpretações, em especial as de Bach, parte
alegando que se trata de um “verdadeiro” Bach, outros afirmando que não se trata mais
de Bach. O que vale pensar aqui é o modo como ele pontua as frases e maneja as notas,
criando um estilo único. Manejo este que não podemos, com a psicanálise lacaniana,
deixar de pensar em sua relação com o objeto a, neste caso, a voz. Lidando com o ritmo,
com a melodia, com os acentos nas notas, e mesmo entre as notas, há assim uma
pontuação na música que desvela o inaudito inédito do objeto voz que ali comparece por
sua ausência.
É possível mesmo pensar que é este inaudito que Gould visa quando toca, em
especial quando se retira do olhar do público para se dedicar exclusivamente a ser visto e
ouvido pela mediação não apenas dos meios tecnológicos, mas principalmente da
mediação de um apuro técnico que tenta alcançar a perfeição na arte da interpretação.
Lembro aqui a proposição de Lacan acerca do estilo na Abertura dos Escritos.
Respondendo à questão do Sr. De Buffon de que “o estilo é o próprio homem” (Lacan,
1966/1998, p. 9), Lacan (Idem, p. 11) escreve que “é o objeto que responder à pergunta
sobre o estilo”. Ou seja, o estilo, seria assim, o objeto, o modo como um sujeito maneja o
objeto.
É interessante notar que é para se dedicar com maior afinco a um manejo do
“objeto” musical, que Gould pára com suas apresentações, passando a se dedicar à
elaboração e refinamento de sua técnica na busca da interpretação perfeita. Acerca disso,
é o próprio pianista, em entrevista a Jonathan Cott, que nos esclarece, discorrendo
especificamente sobre os “aspectos idealizados das obras de Bach” (Gould apud Cott,
2005, p. 31, grifos do autor), que definiriam sua abordagem acerca da música:
(...) É maravilhoso, é um ponto interessante, e eu suponho que se alguém
colocasse isso em um computador, provavelmente esta frase – “meios ideais
de reprodução” – ou alguma variação dela, poder-se-ia muito frequentemente
chegar no que eu digo e escrevo. Eu não havia me dado conta antes, mas isto é
uma preocupação (...).
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Ao que Gould (Idem, p. 31-32) continua, explicitando um entendimento menos
físico e mais ideal da técnica e do fazer musical através do piano:
Dada meia hora de seu tempo e do seu espírito e um quarto silencioso, eu
poderia ensinar qualquer um de vocês como tocar piano – tudo o que existe
para se saber sobre tocar piano pode ser ensinado em meia hora, estou
convencido disso. Eu nunca fiz isso e nunca tive a intenção de fazer (...). Mas
se eu escolhesse fazer, o elemento físico é tão mínimo que eu poderia ensinálo se você prestasse atenção e ficasse muito quieto e absorvesse o que eu digo
e possivelmente você poderia gravar em um cassete de modo a reproduzir a
lição depois, e não precisaria de uma outra.
O elemento de dificuldade em aprender e tocar piano, para Gould, estaria neste
aspecto da idealização, da música e da nota ideal, algo que ele buscou durante toda a
vida, como também indica Payzant (1986, p. 6), ao apontar que, para Gould, havia um
conflito entre as características físicas específicas de um determinado instrumento
entendido como meio de produção física e acústica e a música como algo para além desta
característica material.
Do mesmo modo que todos os outros que tentaram pensar seriamente sobre
estas questões, ele encontra dificuldade em formular uma definição sobre o
que a música realmente é. Seja lá o que a música possa ser, Gould
aparentemente pensa que ela é mais mental do que física, mais uma forma de
cognição do que de sensação; ele pensava isso desde a juventude.
Será por aspectos como estes que Gould se recolherá no intuito de encontrar os
meios, não físicos, mas abstratos, imateriais, de aprimorar sua interpretação. E cabe
destacar que é justamente nos registros gravados de suas interpretações que mais ouvimos
sua voz em vocalise acompanhando as peças, fato que Gould dizia ser subconsciente e
que os técnicos de som se esforçavam em retirar ao máximo, sem contudo conseguir, das
gravações.
Tal aspecto, assim como sua postura ao tocar, bastante diferenciada dos
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intérpretes clássicos, mais alinhados na vertical, enquanto Gould tocava praticamente o
mais horizontal e próximo ao piano possível, e também sua reclusão, renderam ainda
mais histórias acerca de sua figura. É comum encontrarmos comentários em biografias e
mesmo no meio musical de que Gould sofria de algum “distúrbio psicológico”, passando
nestas hipóteses diversas pela neurose obsessiva, pela psicose, pela síndrome de
Asperger, pela hiponcondria, e pela paranóia.
Para além de buscar um diagnóstico qualquer, o que me interessa aqui é poder
pensar que esta reclusão voluntária e a constante busca por algo imaterial que o faria
aprimorar sua expressão ao piano, pôde permitir a Gould a escrita de um nome e de um
estilo, fazendo isso a partir de um manejo com a voz.
De saída, surge como questão se a música poderia, em casos de psicose, por
exemplo, ter função de suplência do simbólico, uma suplência da ausência do significante
do Nome-do-Pai? E, para além de uma estrutura psíquica específica, se pensarmos, com
Lacan, na topologia do nó borromeano e naquilo que ele trás de conseqüências teóricas,
sobretudo no seminário O sinthoma (1975-1976), podemos pensar que a música pode ser
capaz de oferecer uma amarração possível a um sujeitto? Por ser uma criação artística
que trabalha fundamentalmente dando um destino à pulsão invocante, aquela que faz
justamente uma invocação à função paterna, e trazendo um saber fazer (savoir-faire)com
o objeto voz pelo músico, poderia ela, neste caso, pela escuta desta especificidade que ela
põe em jogo, fazer calar a voz do Outro e permitir uma amarração possível? Pretendo,
portanto, pensar aqui a questão da voz como objeto a e os efeitos que a música poderia
ter frente a ela, ou fazendo com ela.
Para tanto, se faz necessário destacar como a psicanálise, sobretudo a lacaniana, a
trabalha a voz. Se Freud não tomou a voz como objeto pulsional, tal qual fez com o seio,
as fezes e o falo, Lacan, partindo do estudo da psicose, acrescentou a esta listagem outros
dois objetos: o olhar e voz. Foi, portanto, através do encontro de Lacan com as
alucinações visuais e auditivas da psicose que foi possível a ele destacar estas duas
importantes incidências do objeto, neste caso, sem uma mediação simbólica, ou em
outras palavras, retornando diretamente do real.
Antes de avançar, é necessário demarcar que a idéia freudiana (Freud, 1915/2004,
p. 149) de que o objeto que poderia dar alguma satisfação possível à pulsão ser aquilo
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que de mais variável há dentre os quatro termos a ela relacionados (pressão, meta, objeto
e fonte) ganha uma radicalização em Lacan com o conceito de objeto a. Com ele, Lacan
(1964/1998, p. 170) sustenta a proposta de que este objeto é inexistente, “eternamente
faltante”, sendo seu vazio contornado pelo circuito pulsional quando este sai da fonte, a
borda corporal, indo ao campo do Outro e retornando ao sujeito.
Deste modo, o objeto a é concebido como causa de desejo, marcando aí uma
anterioridade deste objeto aos demais objetos comuns, com os quais é possível
estabelecer uma identificação, e trazendo, ainda, a dimensão de uma separação para com
o Outro e o desejo deste, fazendo emergir o sujeito como desejante e faltoso. Ou seja, o
objeto a surge como objeto perdido quando da constituição do sujeito no campo do
Outro. Há aí a dimensão de uma perda real no corpo, como testemunham as quatro
formas de incidência deste objeto (seio, fezes, olhar e voz), que evidencia igualmente a
proposição de Freud (1915/2004, p. 148) de que a pulsão é “uma medida de exigência de
trabalho imposta ao psíquico em conseqüência de sua relação com o corpo”.
Pode-se pensar, a partir daí, que cada um desses objetos que caem do corpo do
sujeito para que este possa emergir exigirão, posteriormente, modos de trabalho
específico, respostas singulares. Entendo que Lacan avança neste ponto em duas direção,
a primeira, ao relacionar, seguindo a lógica freudiana (Ibid., p. 153) de que a pulsão2, em
seu circuito, passa pelas vozes ativa, passiva e reflexiva, o movimento das pulsões
parciais a um “se fazer”, e a segunda ao trazer a idéia de que os objetos a se ligam a
diferentes modos de se relacionar com o Outro.
Temos, assim, no primeiro caso, cada uma das quatro pulsões parciais que se
ligam ao objeto a exigindo um posicionamento distinto, a saber: pulsão oral (objeto seio)
e se fazer chupar, pulsão anal (fezes) e se fazer defecar, pulsão escópica (olhar) e se fazer
olhar, e pulsão invocante (voz) e se fazer ouvir. No segundo caso, a relação entre sujeito e
Outro via objeto a se dá da seguinte forma: demanda ao Outro e seio, demanda do Outro
e fezes, desejo ao Outro e olhar, e desejo do Outro e voz.
A voz, este que é, segundo Lacan (1962-1963/2005, p. 279), o objeto “mais
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Cabe ressaltar que Freud (1915/2004, p. 152) faz traz esta idéia a partir dos destinos pulsionais da
transformação em seu contrário e do redicionamento contra a própria pessoa, tendo em mente
especificamente os pares de opostos sadismo-masoquismo e vontade de olhar-exibição. Lacan será o
responsável por pensar estes destinos como fundamentais e estruturais em toda pulsão.
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original” coloca em jogo, assim, a dimensão do desejo do Outro e é preciso que o sujeito
torne a voz do Outro inaudível para que ele possa se constituir podendo ter uma voz
própria. O desejo precisa, para ter sua função, ser falta (Ibid., p. 302). Neste sentido, a
voz precisa ser perdida, precisa cair do corpo do sujeito, marcando um vazio. Com isso,
Lacan (Ibid, p. 301) demarca que a voz deve ser incorporada, o que de dá “uma função
que serve de modelo para nosso vazio”. Vazio este que o sujeito porta e que diz também
de um vazio no Outro, já que “é próprio da estrutura do Outro constituir um certo vazio, o
vazio de sua falta de garantia” (Ibid., p. 300).
Podemos, então, concluir que a voz é um objeto que promove a separação entre
sujeito e Outro e que é na medida em que, pelo recalque originário, o sujeito cria um
ponto de surdez em relação à voz do Outro que o circuito da pulsão invocante pode
passar de um ouvir a um ser ouvido e, por fim, um se fazer ouvir. Há uma perda do
contínuo da voz que instaura, pela falta, um descontínuo. A voz tona-se inaudita e é
enquanto ausência que ela é contornada no circuito pulsional. Neste sentido, quando a
voz encontra-se inaudita o Outro não responde ao enigmático “Que vuoi?”, “Que
queres?”. Caberá ao próprio sujeito cunhar uma resposta singular ao desejo do Outro. E
podemos ouvir na música uma via de responder a esta questão que apresenta uma criação
mediada pelo simbólico frente ao vazio real da ausência do objeto voz.
É importante acrescentar que deste vazio o músico intérprete se servirá, podendo
tocar a música de uma posição própria, não sendo, portanto, um mero executante, alguém
que simplesmente lerá o que está escrito na partitura, executando a música com um
instrumento musical ou com a voz humana.
O intérprete possui uma relação com este enigma que a obra musical toca, o que,
aliás, podemos pensar, que é o que determina que ele tenha se tornado músico e não
pintor, por exemplo. Sua posição passa por um posicionamento específico diante deste
objeto voz que a música visa, em vão, capturar. E quando o músico está diante de uma
obra musical, ela é tomada por ele como causa de desejo, fazendo com que seu trabalho
se dê na direção de que, ao tocá-la, estudá-la e dar-lhe corpo, fazendo-a soar, suas
próprias marcas sejam postas em jogo e seu circuito pulsional seja movimentado.
Há no intérprete um ato que implica criação e endereçamento. Ao tomar uma
composição musical para interpretar, o músico criará a partir das relações do material
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musical já estabelecidas pelo compositor e, ainda, a partir de sua posição como sujeito.
Neste pólo, temos um trabalho que também parte de uma escolha, de um sim e não (ou
talvez de ser escolhido por uma música e consentir com isso), que será decisivo para o
modo como tal obra será tocada. Isto é estrutural na música, uma vez que ela não se
reduz, nem pode se resumir, à notação, ao que está escrito na partitura. Há algo que
escapa e é justamente esse algo que a move e de que o intérprete se utiliza para tocar ou
cantar.
Assim como o compositor, o intérprete se direciona ao ouvinte, quer se fazer
ouvir, e a peça que toca e/ou canta será, igualmente, endereçada ao Outro, como uma
resposta que lhe foi possível elaborar e oferecer. E será com o seu “acervo” próprio que
ele cunhará a interpretação singular que dará de determinada obra musical, obtendo, daí,
algum prazer possível.
No caso do intérprete, a questão do gozo e da mobilização do corpo fica mais
evidente, mesmo que este, como Gould, não dê muita importância a este aspecto. Por
exemplo no canto, há um além do sentido da fala se torna notório tanto pelos ornamentos
musicais que o compositor indica na obra como pela acentuação e prolongamento das
vogais, característica do canto, que, assim, se distingue da fala, como pontua o
compositor Luiz Tatit (1996: 14).
Não somente no canto. No próprio estilo “cantado” de Glenn Gould, e na
pontuação que ele confere às frases musicais, observamos nitidamente a implicação do
corpo do sujeito no ato de interpretação, seja pelo seu modo singular de tocar o piano,
quase debruçado nele, quase literalmente o tocando com toda parte superior de seu corpo,
seja por essa voz que “sussurro-cantada” que transborda em sua interpretação. O que
transborda ali é o próprio real que escapa e insiste. Seja pelo estranhamento entre o
descompasso de música e voz cantada de Gould ou por aquilo que nos agarra em sua
interpretação, sem que seja possível uma localização material precisa, o real nos é
transmitido pela assinatura que Gould imprime em suas interpretações.
Não apenas o compositor possui um estilo, o músico que interpreta também o
tem, efeito de sua forma singular de lidar com a obra e com a linguagem musical,
assinando-a diferente e singularmente. Stravinsky (1996: 113) a esse respeito, que nos diz
que “o compositor corre um risco inegável a cada vez que sua música é tocada, já que, a
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cada vez, uma competente apresentação de sua obra depende de fatores imprevisíveis e
imponderáveis”, nos quais, certamente, o intérprete tem grande participação.
O trabalho do intérprete não é o de um leitor que se debruça sobre o texto
apresentado nas notações gráficas de uma partitura. Se podemos comparar a música a
uma escrita, é de uma escrita que não está no papel que se trata, de uma escrita pulsional.
Deste modo, a única forma de aproximarmos o intérprete de um leitor é no sentido em
que, para além da partitura, ele poderá ler a música que se dispõe a ser tocada,
mesclando, nesse ato, suas próprias inscrições. Assim, como ressalta Stravinsky (Ibid.:
112), não há para o intérprete um texto unívoco a ser lido pelo músico. Damos a ele a
palavra (Idem):
Costuma-se achar que o que é colocado diante do músico é a música escrita
onde a vontade do compositor está explícita e facilmente discernível a partir de
um texto corretamente estabelecido. Porém, por mais que seja escrupulosa a
notação de uma peça musical, por mais cuidado que se tome contra qualquer
ambigüidade possível, utilizando as indicações de andamento, nuances,
fraseado, acentuação e assim por diante, ela sempre contém elementos ocultos
que escapam a uma definição precisa, pois a dialética verbal é impotente para
definir a dialética musical em sua totalidade. A realização desses elementos é,
assim, uma questão de experiência e intuição; em suma, do talento daquele a
quem cabe apresentar uma obra.
É bastante interessante notar que Stravinsky (Ibid.: 113) define a diferença entre o
executante e o intérprete como uma diferença de “um caráter mais ético do que estético”.
Entendemos, com esta indicação, que é a posição ética do sujeito em relação a seu desejo
e ao Outro, que terá conseqüências cruciais em sua posição diante da música, que é
colocada em cena, portanto, quando um músico interpreta uma obra musical, tendo
também efeitos para aqueles que o ouvem.
Também o intérprete ocupa uma posição de fazer uma criação com os sons
musicais e o tempo diante do enigma do desejo do Outro, e, assim, de seu próprio desejo.
O trabalho do músico com os sons musicais, significantes, nos dá o testemunho que é
possível ao sujeito ouvir a voz do Outro, e dizer sim ao convite à alienação que ela traz
pela via da fala musicada da mãe, e igualmente dizer não a ela, separando-se do Outro
por intermédio do Nome-do-Pai. Assim, o que o músico nos oferece aos ouvidos é este
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vazio da voz e que, diante dela, é possível ao sujeito fazer uma criação, transmitindo um
real que sempre escapa, transborda e volta a nos causar.
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STRAVINSKY, Igor. Poética musical (em 6 lições). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
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TATIT, Luiz. O cancionista. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.
322 p.
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