ANAIS DO III CELLMS, IV EPGL e I EPPGL – UEMS-Dourados. 08 a 10 de outubro de 2007 FLAVIA-FLAVIA: A PROFESSORA “COM CARA DE ARCO-ÍRIS” DE LUÍS RAUL MACHADO Flávia Ferreira de PAULA (IC - FACALE/UFGD) Drª Célia Regina Delácio FERNANDES (FACALE/UFGD) O presente trabalho pretende analisar a representação da professora na obra Flavia-flavia, a professora ao contrário, de Luís Raul Machado (1984). Martha (1999) diz que se a representação da figura do professor na literatura destinada ao público adulto nem sempre foi idealizada o mesmo não se pode afirmar em relação aos livros de literatura infanto-juvenil. De fato, a professora Flavia-flavia, de Luís Raul Machado, não tem nada em comum com os educadores de Memórias de um sargento de milícias ou de O Ateneu. Flavia-flavia é uma professora que não ensina nada para seus alunos. Ela aprende com eles. Por isso que é uma professora ao contrário. A figura da professora é a de uma pessoa muito doce, que gosta de animais e sabe deixar as crianças felizes, transformando mesmo os assuntos mais tristes em assuntos alegres. A história conta ainda com mais um personagem: Carlos-carlitos, o poeta predileto da professora e seus alunos. A análise da obra indica a representação de uma professora que, com sua “cara de arco-íris” e sua metodologia diferenciada, tem uma boa relação com seus trinta e três alunos – ou melhor, com seus trinta e três professores, pois é ela que aprende com eles – e que consegue fazer com que os mesmos aprendam brincando. Uma representação bastante positiva da figura do educador na literatura infanto-juvenil brasileira. INTRODUÇÃO No que tange à figura do professor, se analisarmos a forma como escritores a descreveram, encontraremos imagens que ora priorizam a face iluminada do educador, ora acentuam a face opaca que é preciso desvelar. Contudo, a composição do tipo, na atualidade, é bem mais complexa do que o lado direito e avesso descritos por nossos autores no passado. (GILBERTO, 1999, p.06) Nas palavras de Zilberman, em entrevista concedida a Martha (1999, p. 01), “a representação do professor pela sociedade brasileira é ambígua e dual”, de forma que a literatura também acompanha essa grande variedade na representação da figura do professor. Desde professores como os de Memórias de um sargento de milícias ou de O Ateneu, os abomináveis mestres da literatura brasileira, até a Professora Maluquinha de Ziraldo, referência no modelo ideal de professora na literatura infanto-juvenil, são várias as imagens que se formam em relação aos educadores nas obras literárias. Na literatura infanto-juvenil, como aponta Silveira (1997, p. 152), a professora tanto é mostrada “sob uma luz favorável e amorável”, como “por traços que são o avesso dessa representação”. Em outras obras, ainda, o destempero da professora é um recurso utilizado pelo autor para dar um certo humor à obra, uma forma de atrair seu público leitor e motivar a leitura. Silveira (1997, p. 149) ainda chama a atenção para: uma espécie de “virada temática e estilística” que teve lugar na literatura infantojuvenil brasileira, a partir de meados dos anos 70, pela qual os autores e autoras intencionalmente deixaram de se alinhar a um padrão moralista e conservador, que pregava a obediência e a conformidade irrestrita da criança com os padrões sociais vigentes (desde normas de higiene até a adesão das virtudes estabelecidas), para plasmar suas produções por outros signos que chegavam ao imaginário da educação ANAIS DO III CELLMS, IV EPGL e I EPPGL – UEMS-Dourados. 08 a 10 de outubro de 2007 (advindos não só das teorias psicológicas, mas também das teorias pedagógicas, e, ainda, da transformação de costumes que sacudia as classes médias do mundo ocidental): a valorização da criatividade, da independência e da emoção infantil, o chamado “pensamento crítico”, e, como lembra Perrotti, a ênfase à “criança, ativa, participante, não-conformista”. E é nesse cenário de renovação da imagem da professora na literatura infanto-juvenil que surge a professora Flavia-flavia de Luís Raul Machado (1984). Flavia-flavia aparece como uma professora diferente de todas as outras. Adorada por seus alunos, ela se utiliza de uma metodologia nova, um jeito de ensinar que faz da escola um lugar de descobertas, criação e não apenas produção do conhecimento. A figura da professora é tão positiva que não existem referências a pontos negativos atribuídos a ela na obra. Parece que tudo que Flavia-flavia faz agrada suas crianças. O presente trabalho pretende, com base em estudos de especialistas na área, como Cosson (2006), Gilberto (1999), Martha (1999), Silveira (1997), Ripoll (2002) e Trindade (2002), estudar aspectos como metodologia utilizada pela professora e seus atributos físicos citados na obra, além de identificar a existência ou não de diálogo com o leitor. 1. A PROFESSORA AO CONTRÁRIO Na classe de Flavia-flavia tem 32 professores e uma aluna: ela. Flavia-flavia é uma professora ao contrário: ela descorrige redações, faz recreio nas aulas, ensina brincando. Aliás, ela não ensina nada. Ela aprende com os alunos. (MACHADO, 1984, p. 5) Flavia-flavia, a professora ao contrário, de Luiz Raul Machado é um livro destinado ao público infanto-juvenil com uma representação muito positiva da figura da professora. A história conta com trinta e cinco personagens principais: Flavia-flavia, as trinta e três crianças e o poeta Carlos-carlitos. Na verdade, a professora é mais uma das crianças da turma do que um adulto no meio delas. Logo na primeira página do livro se percebe a peculiaridade da maneira de ensinar de Flavia-flavia. Diz o narrador que, com sua turma de trinta e três professores, ela é a única aluna da turma e não ensina nada em suas aulas. São as crianças que fazem descobertas e ela apenas as auxilia no processo de aprendizagem, fazendo com que elas aprendam brincando. Como bem aponta Silveira (1997, p. 159), “a questão do conhecimento escolarizado a ser transmitido pela professora e ‘aprendido’ pelos alunos, ocupa [na literatura infantil] um segundo plano em relação à questão dos sentimentos (amor, amizade, ódio, raiva...)”. A obra não faz referências “a questão do vestuário e da moda, muito marcada nas “novas” publicações infanto-juvenis, [que] levanta questões bastante interessantes sobre a regulação dos corpos e das sexualidades” (RIPOLL, 2002, p. 82). Assim, os atributos físicos da professora não são citados na obra. Sabe-se apenas o tamanho dela: “ela é pequenininha”, e descrevê-la “é difícil” (MACHADO, 1984, p. 06). A idade dela é algo desconhecido, pois “às vezes tem oitenta anos, às vezes tem oito” (p. 06). A maior parte do tempo, no entanto, “tem a idade do pessoal da classe: entre dez e doze anos” (p. 06), o que revela, assim, o bom relacionamento da professora com seus alunos e a interação entre ela e eles. Ela faz parte da turma e participa das brincadeiras das crianças como se fosse mais um deles, sem o ar de superioridade do mestre tão comum na literatura. Há apenas uma referência no livro à idade ANAIS DO III CELLMS, IV EPGL e I EPPGL – UEMS-Dourados. 08 a 10 de outubro de 2007 da professora, quando diz que: Flavia-flavia fica no piano e rege com a cabeça, os cabelos grisalhos dançando sobre a testa ao ritmo dos dobrados e chorinhos, sonatas ou mazurcas, valsas ou canções. Isabel no flautim, Fernanda na percussão, Paulo no violino, Carlos no violoncelo (muito maior que ele), Tatiana na flauta, Laís no xilofone, Zé sumido atrás da tuba e mais e mais e mais (p. 19) [grifo meu]. Pelos cabelos grisalhos, pode-se notar que não se trata de uma professora jovem como a de Ziraldo, mas sim uma mulher de mais idade, que, no entanto, se utiliza de uma metodologia moderna e fascina seus alunos com seu jeito de criança. Os olhos de Flavia-flavia são algo ainda mais significativo para as crianças e variam de acordo com o tempo, parecendo ser a representação do céu, tamanha a importância da professora para as elas. Assim, os olhos dela: geralmente são azuis. Mas quando é tempo de chuva, eles ganham um brilho cinzento quase prata. Quando o sol esta muito lindo, aparecem outros dois sóis bem pequenininhos nos olhos dela. Mas aí também a gente não sabe se é o sol que faz isso ou se os solzinhos dos olhos dela se acendem porque ela gosta muito de sol. (p. 6) Assim, os olhos da professora são de extrema importância para as crianças, que estão atentas a qualquer mudança. O jeito de Flavia-flavia trabalhar com a escrita também é todo diferente. Ela “descorrige” redações guiada por regras que as próprias crianças foram criando com a ajuda dela. As crianças em sua aula podem escrever sobre qualquer coisa ou até deixar de escrever. Para tanto, a turma elege um tema e todos fazem poema, redação ou desenho, sendo o último “apenas outro jeito de fazer poemas” (p. 07). Essa forma inovadora de escrever deixa as crianças livres para criar, sem imposição de nada por parte da educadora, de forma que a criatividade ocupa um lugar mais importante do que o conhecimento escolar propriamente dito. Mais um ponto positivo atribuído à figura da educadora, que visa desenvolver um trabalho com seus alunos que não se restringe a decorar capitais e tabuada, mas sim, proporcionar aos alunos diversão e bons momentos para que eles desenvolvam todas suas habilidades. O livro mostra o que Silveira (1997, p. 152) chama de “harmonia e felicidade escolar, em que a professora se encaixa como peça ajustadora”. A obra apresenta apenas uma ilustração, a da capa, que representa a passagem final do livro: o momento que Flavia-flavia vai com as crianças até a praia e encontra com Carloscarlitos – o poeta mais querido de todos eles. Mas nem aí temos a imagem da professora, que aparece de costas atrás de um guarda-chuva. Diz Cosson (2006) que a as ilustrações da capa, assim como os demais elementos paratextuais – tais como orelhas, gravuras, etc – servem para introduzir a história e convidar o leitor. E a capa do livro traz a figura de Flavia-flavia indo em direção a praia com as crianças e um homem a beira-mar olhando para um navio ao fundo. Com certeza, uma figura que chama a atenção do leitor e desperta sua curiosidade para ler a obra e descobrir quem são aquelas pessoas e o que fazem ali. 2.A ESCOLA AO CONTRÁRIO ANAIS DO III CELLMS, IV EPGL e I EPPGL – UEMS-Dourados. 08 a 10 de outubro de 2007 Não é só Flavia-flavia que é uma professora ao contrário. A escola dela também é. E, por sugestão do João, no dia em que todos estavam brincando com as letras, a escola passou a se chamar a-l-o-c-s-e que é pra todo mundo saber que era mesmo uma escola ao contrário. (MACHADO, 1984, p. 8) Além de Flavia-flavia, a escola dela também é ao contrário. “É uma casa linda: branca com janelas azuis” (p. 08) com um monte de “plantas e bichos por todos os lados” (p. 08). De fato, as coisas são diferentes por lá: as aulas são geralmente ministradas no quintal, nos dias de tempo aberto, e, “quando a chuva não deixa, as crianças ficam dentro da a-l-o-c-s-e pintando, conversando, trocando idéias ou figurinhas, lendo ou – como prefere Marília – com o nariz amassado na vidraça vendo o mundo derreter” (p. 9). Essa passagem revela uma escola em que o importante não é o que se aprende dentro da sala de aula, ou seja, o conhecimento específico, mas sim o que se aprende fora dela, as experiências que se pode levar para a vida, tais como reflexão e sensibilidade. É por isso que as aulas de Flavia-flavia são realizadas no quintal, e quando “a chuva não deixa” (p. 09) as crianças fiam impossibilitadas de ter aula e ficam fazendo outras coisas dentro da a-l-o-c-s-e. É como se a chuva impedisse que a aula fosse realizada, pois barra a realização de tarefas e atividades extra classe, que é o que interessa para Flavia-flavia e seus alunos. Nessa perspectiva, os saberes escolares não são o mais importante nas aulas de Flavia-flavia, que opta por ensinar outros saberes para seus alunos. Conta o narrador que no fundo da a-l-o-c-s-e fica um enorme painel “cheio de elefantes verdes, girassóis roxos, cachoeiras que são arco-íris e mil coisas que não dá nem para contar. Só vendo” (p. 08). Nessa passagem temos um convite para que o leitor imagine o fundo da escola, deixando, no entanto, a impressão de que foi ele próprio quem formou essa imagem, sendo que essa foi direcionada. Outro convite ao leitor temos quando o narrador fala dos bichos de Flavia-flavia: “Penélope é absolutamente especial. É uma gata branca e você nem pode imaginar o que ela faz. Pergunta pra Flavia-flavia” (p. 14). O leitor é aqui convidado a ter uma conversa com Flavia-flavia, o que incentiva sua imaginação e o motiva a continuar a leitura. Passagens como “por sugestão do João” (p.08), “como prefere Marília” (p. 09) “o Thomaz adora contar a história dos babuínos” (p. 14), e “o Raul gosta mesmo é de aula de matemágica” (p. 16), criam no interlocutor a impressão de conhecer bem a turma, tamanha a intimidade que estabelece com as outras crianças, pois o narrador não explica cada um deles, apenas os citam. De modo que as crianças da turma parecem ser velhas conhecidas do interlocutor, o que possibilita uma interação entre quem lê e quem narra a história. Outra parte que se percebe um diálogo com o leitor é quando se fala das histórias de Flavia-flavia. “Ih, gente, é tanta história!” (p. 10) revela essa interação com o leitor, sendo ele guiado pelo narrador: “a gente chega devagarinho e fica na janelona olhando lá dentro Flaviaflavia cercada de meninos e meninas.” (p. 10) O leitor vai com o narrador até a janelona da escola só para observar a professora e seus alunos (ou a aluna e seus professores). Aqui o vocabulário usado também atrai quem está lendo: “pra quem olha de fora é um troço bacana de ver” (p. 10), estabelecendo uma proximidade ainda maior entre narrador e leitor. Flavia-flavia cria um monte de histórias para as crianças e elas a ajudam nessa tarefa, “mesmo porque, ela que é a aluna deles e não consegue fazer as coisas sozinha, coitada” (p. 10). Flavia-flavia surge, então, como uma professora que precisa de seus alunos, não são apenas eles que precisam dela. Nas aulas de história, a educadora não conta apenas história do mundo e história do Brasil, mas sim “histórias dos mundos e histórias do Brasil”, além de “histórias dos outros mundos”, e “as crianças adoram viajar pelas galáxias e viajar pelos tempos” (p. 11). Dessa forma Flavia-flavia desperta nas crianças um interesse por estudar ANAIS DO III CELLMS, IV EPGL e I EPPGL – UEMS-Dourados. 08 a 10 de outubro de 2007 história, ensinado de uma maneira descontraída e deixando que elas façam teatrinhos para representar momentos históricos. Uma maneira que ensina ao mesmo tempo que diverte, trabalha a concentração e criatividade dos alunos. Flavia-flavia sabe ainda “transformar coisas tristes em coisas alegres” (p. 12). No que se refere aos índios, ela deixa claro para as crianças que a vida deles nunca foi muito fácil, mas que eles podem ensinar muitas coisas, afinal de contas “índio sabe tudo sobre vida e é o nosso melhor professor” (p. 12). Esse é um assunto que “entusiasma e entristece Flavia-flavia ao mesmo tempo” (p. 12), pois ela realmente acha que as crianças devem saber sobre os índios e também sobre a história deles que “sempre foi muito dolorosa. Como diz a Juliana, a civilização deles não consegue vencer a nossa selvageria...” (p. 12). Houve até um dia que a professora levou uma indiazinha para conversar com as crianças. Maialu tinha vindo bem pequenininha morar na cidade grande, de modo que sabia falar muito bem a nossa língua. Mas não tinha esquecido a língua e as lendas da tribo dela. Foi Maialu que contou pras crianças a história dos gêmeos Sol e Lua e a história da invenção da noite. (p. 13) A indiazinha foi até a a-l-o-c-s-e para conversar com as crianças sobre os costumes de sua tribo e contar lendas de seu povo e foi muito bem recebida pelas crianças que até convidaram Maialu para outras visitas com mais histórias. Flavia-flavia “ama tudo que é vivo” (p. 14) e tem um monte de bicho em casa, desde gatos e cachorros até uma sapa e um “corujo” – todos soltos, claro – e tem uma relação muito boa com todos eles. A casa de Flavia-flavia abriga cachorros, gatos, papagaio (que chama Flavia-flavia pelo nome quando quer ir pra gaiola comer ou dormir, porque é claro que ele viva solto), passarinho de tudo que é cor e tamanho (tudo solto), tartarugas, a sapa Matilde, um jacarezinho chamado Raul, um corujo (Otto) e Penélope. Penélope é absolutamente especial. É uma gata branca que você nem pode imaginar o que ela faz. Pergunta pra Flavia-flavia. (p. 14) A forma com que Flavia-flavia aborda os conteúdos escolares é dinâmica e prende a atenção dos alunos, além de despertar a curiosidade deles. Para ensinar sobre os bichos, ela contou a história dos babuínos que “Thomaz adora” (p. 15). Babuíno é um macaco-quase-gente, vive em sociedade e – cá entre nós – vive mais em paz do que a gente. (...) Os babuínos gostam de andar no meio dos outros bichos, principalmente dos impalas. O babuíno ouve muito bem e o impala enxerga longe. Quando vem algum perigo, um ou o outro dá o alarma e a turma foge. (p. 15) Uma forma diferente de ensinar sobre a vida dos animais e que as crianças com certeza não irão esquecer. Diferente também é o jeito que ela ensina matemática, ou melhor, “matemágica”. “Quem inventou a palavra foi o Ronald e a turma adotou” (p. 16). As crianças podem brincar com os números e fazer suas descobertas à vontade nas aulas de matemágica. De fato, o jeito de Flavia-flavia ensinar matemática tem muito mais a ver com ANAIS DO III CELLMS, IV EPGL e I EPPGL – UEMS-Dourados. 08 a 10 de outubro de 2007 mágica. O pessoal brinca com os números e os conjuntos como brinca com as letras e as palavras. (...) Um dia, as crianças fizeram um oito enorme e colorido. Cortaram no meio no sentido vertical e surgiram dois 3 – um deles ao contrário. Dividiram o oito no sentido horizontal e descobriram dois zeros. Deitaram o oito e aprenderam o infinito. (p. 16) A professora também respeita e escuta sobre as descobertas das crianças. De modo que, quando uma das crianças vinham com uma novidade, ela dava espaço para a mesma expor a nova informação para a turma. Exemplo disso é quando Helena chegou com a idéia de que existem números femininos e números masculinos. Dessa forma, “o 1, o 4, o 5 e o 7 são masculinos”, “o 2, o 6, o 8, o 9 e o 0 são femininos” e diz ela que “o 3 é masculino e feminino ao mesmo tempo” (p. 16). Em outra passagem, o “Moreno (que é louro) descobriu que mar é feminino” (p. 26). Chegou feliz da vida na escola e foi direto contar a novidade para a professora. Quando as crianças vinham com uma dessas novidades, Flavia-flavia ficava um tempão olhando prum ponto distante, sem dizer nada, sem mexer, sem piscar até. Depois “acordava”, ria muito pra quem tinha inventado o troço e voltava ao normal. (p. 26) Para estudar planta e pedra, a turma toda sai para fazer descobertas e “é a maior felicidade” (p. 17). Como lembra Trindade (2002, p. 131), os recursos didáticos mencionados contribuem para a constituição das representações nas obras. Nesse sentido, a metodologia de Flavia-flavia – com diálogos, contação de histórias, viagens, teatro, reflexão, poesia etc. – mostra uma professora que faz com que as crianças aprendam brincando e queiram sempre aprender mais e mais, tamanho o prazer que encontram na escola. Os alunos também têm aula de música e tocam “direitinho, de modo que Flavia-flavia anda toda prosa dizendo que é maestro de uma nova e maravilhosa orquestra” (MACHADO, 1984, p. 19) que deu até um concerto. A professora “fica no piano e rege com a cabeça” (p. 19) e no dia da “estréia da banda (modéstia deles) de a-l-o-c-s-e, os músicos tocaram Bach, Beethoven, Beatles e Buarque, Chico” (p. 19). 3. A MAQUININHA DE SABER Mas é claro que tem um montão de coisas que não dá para as crianças descobrirem sozinhas, isto é, só com a ajuda de Flavia-flavia. Milhões de descobertas através de muito tempo, muita sabedoria que a humanidade acumulou durante séculos. É claro. Mas o que você ainda não sabe é que na a-l-o-c-s-e tem uma maquininha do saber. Quando alguém quer saber um treco (...) entra na maquininha do saber. Quem inventou essa maquininha foi o Zeca, amigão de Flavia-flavia. Chama maquininha mas até que é uma máquina complicada e grande, cheia de botões, fitas gravadas, vídeo-fone e com lugar pra dez pessoas. A gente entra, liga, faz perguntas e quando sai está sabendo “tudo” sobre o assunto perguntado. (MACHADO, 1984, p. 20) Quando aborda a questão da maquininha do saber, o autor parece fazer uma alusão à escola regular, que mecaniza o ensino, como se os alunos fossem aprender mecanicamente ANAIS DO III CELLMS, IV EPGL e I EPPGL – UEMS-Dourados. 08 a 10 de outubro de 2007 mesmo. E, como o que Flavia-flavia priorizava no ensino de seus alunos não era a aprendizagem mecânica, colocou todo esse conhecimento na “maquininha do saber”, porque essa parte não era com ela. Existe ainda a maquininha do saber, desenvolvida por Flavia-flavia: Flavia-flavia anunciou que tinha inventado uma outra maquininha do saber. (...) Todo mundo queria ver ao mesmo tempo. Mas Flavia-flavia avisou que só podia ir uma pessoinha de cada vez. O Miguel foi o primeiro. Era uma caixa preta grande com uma porta pequena. Miguel entrou e levou um susto porque lá dentro era absolutamente escuro e não tinha nada. Quer dizer, tinha umas almofadas bem confortáveis pra pessoa ficar lá sentadona ou na posição que bem entendesse, sozinha sozinha de tudo com ela mesma. Miguel ficou lá um bom tempo. A turma já estava impaciente. Ele saiu de lá, não disse nada, só deu aquele sorriso malandro bem dele. A turma entrou na máquina de saber de Flavia-flavia – um de cada vez. Todo mundo entendeu a invenção linda dela. (p. 21) As crianças entravam na maquininha de saber de Flavia-flavia quando precisavam refletir e encontrar soluções que não podiam ser resolvidas pela maquininha de saber do Zeca, ou seja, quando o problema que tinham não podia ser resolvido pelo conhecimento e sim pelo exercício da reflexão. Assim, o conhecimento da maquininha do saber do Zeca transmitia os saberes escolares, ao passo que na maquininha de Flavia-flavia as crianças podiam “ouvir o silêncio, enxergar pra dentro, mergulhar no escuro, pensar” (p. 22) sobre seus problemas e acharem soluções que não puderam ser encontradas apenas com o conhecimento escolarizado: Com dados fornecidos pela maquininha de saber do Zeca e com coisas boladas na maquininha de saber de Flavia-flavia a turma viajava. (...) As viagens às vezes eram feitas no ônibus da a-l-o-c-s-e (...). Mas às vezes as viagens eram feitas sem sair da a-l-o-c-s-e. (p. 23) Destaca-se que as crianças bolavam muitos jogos “onde misturavam o prazer de aprender com o gosto de brincar” (p. 24). O preferido da criançada era um jogado sem regras, sem cartas, sem dados, sem peças, sem papel, sem lápis, sem nada. A turma formava um círculo, todo mundo sentava no chão, de olhos fechados e ficava um bom tempo sem falar nada. Só pensando. E procurava “ver” o que o outro pensava. Assim, a turma de Flavia-flavia fazia as viagens mais fantásticas. Maria chamou esse jogo de transmimento de pensação. (p. 24) As crianças também gostavam muito de teatro e cinema. E como o faz de conta e a vontade das crianças são prioridades na sala de Flavia-flavia, na a-l-o-c-s-e, “tudo era teatro. Histórias e mais histórias. Geografia dos mundos. Matemágica. Música. Bichos, plantas, pedras. Tudo que a criançada gostava no outro dia virava peça” (p. 25). Como a segunda-feira era considerado um dia muito chato, resolveram abolir esse dia, de forma que a semana na a-l-o-c-s-e já começava na terça. Houve, ainda, o dia que “Flaviaflavia e a turma decretaram um feriado-sem-motivo” (p. 28) e saíram andando pela cidade. “Era bonito ver aquele bando de 33 pessoinhas caminhando pela cidade” (p. 28). Acabaram por chegar a praia onde encontraram Carlos-carlitos, “o poeta mais querido de Flavia-flavia e das crianças” (p. 29). Na praia, Carlos-carlitos abraçou Flavia-flavia e o abraço deles foi bonito “como o movimento que o sol fez, se escondendo atrás da nuvem e voltando para ANAIS DO III CELLMS, IV EPGL e I EPPGL – UEMS-Dourados. 08 a 10 de outubro de 2007 espiar” (p. 30). Depois abraçou cada uma das crianças que ali estavam. Elas se sentaram na areia e enquanto se lembravam de alguns dos poemas de Carlos-carlitos, o mar fazia um som suave. Silêncio. Todos se lembraram ao mesmo tempo (transmimento de pensação) de uma frase escrita na parede a-l-o-c-s-e. Frase de um poema de Carlos-carlitos, claro. “A vida é um verso, sem sentido talvez, mas com que música!” Juro que, naquela hora, a mar resolveu fazer um som mais suave. Juro que o sol resolveu brilhar mais lindo naquela hora, começando a mergulhar n’a mar, vermelhado tudo. Juro que naquela hora, nos olhos de Flavia-flavia, aquela chuvinha miúda não era choro. Não era não, porque o riso que ela abriu fez aquilo que tempos depois a meninada batizou de cara de arco-íris. (...) Flavia-flavia, (...) Carlos-carlitos (...) tinham dado de presente pra criançada uma chave da complicada máquina do mundo. (p. 31) CONSIDERAÇÕES FINAIS O livro traz uma representação muito positiva da figura da professora na literatura infanto-juvenil brasileira. Flavia-flavia é diferente de todas as outras. Em suas aulas, mais importante do que aprender a resolver problemas de matemática ou decorar fatos históricos, é desenvolver a sensibilidade e a criatividade, por meio da interação com os colegas, em certos momentos, e reflexão, em outros. Por isso mesmo se utiliza das “maquininhas do saber”. Uma – a “maquininha do saber do Zeca” – com a qual as crianças podem pesquisar sobre os mais variados assuntos que não podem aprender sozinhas, ou seja, os conhecimentos específicos, e outra – a “maquininha do saber de Flavia-flavia” – que possibilita às crianças um momento solitário para pensar e refletir sobre os mais variados problemas, que não encontrou solução na maquininha do saber do Zeca. A relação das crianças com a professora também é muito boa, suas aulas são dinâmicas, os alunos gostam muito dela e de sua maneira diferente de ensinar as coisas, que prende a atenção e desperta a curiosidade da criançada. Flavia-flavia também gosta muito de bichos, o que mostra a sensibilidade da professora. A imagem da escola também é muito positiva, “uma casa linda: branca com janelas azuis” (p. 08) com um monte de “plantas e bichos por todos os lados” (p. 08). Com certeza, um ambiente muito agradável, onde as crianças sentem-se muito bem. A maneira de ensinar, por meio de histórias e teatro, faz com que as crianças nem percebam que estão estudando, tamanho o prazer que encontram ao desenvolver as atividades na escola. O poeta Carloscarlitos também ocupa papel de destaque na obra, porque, com seus versos, propicia aos alunos de Flavia-flavia momentos de paz e alegria. A passagem final do livro mostra o momento em que o poeta e a professora se encontram na praia, juntamente com as trinta e três crianças, no qual pouco é dito, pois a sensibilidade é que fala mais alto nessa última parte. REFERÊNCIAS COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006. GILBERTO, I. J. L. Representações do professor na literatura brasileira. In: Proleitura. Assis: UNESP, 1999, N. 24, p. 06. ANAIS DO III CELLMS, IV EPGL e I EPPGL – UEMS-Dourados. 08 a 10 de outubro de 2007 MACHADO, L. R. Flavia-flavia: a professora ao contrário. Rio de Janeiro: Editora de Orientação Cultural, 1984. MARTHA, A. A. P. O professor: entre o quadro verde e o sino - Uma entrevista com Regina Zilberman. In: Proleitura. Assis: UNESP, 1999, N. 24, p. 01-03. RIPOLL, D. “Formosura parelhada na inteligência”: a beleza que ensina nos livros infantojuvenis. In: SILVEIRA, R. M. H. (org.) Professoras que as histórias nos contam. Rio de Janeiro: DP & A, 2002, p. 67-92. SILVEIRA, R. M. H. “Ela ensina como todo amor e carinho, mas toda enfezada, danada da vida”: representações da professora na literatura infantil. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 2, p. 147-159, jul./dez. 1997. TRINDADE, I. F. Alfabetizadoras de papel. In: SILVEIRA, R. M. H. (org.) Professoras que as histórias nos contam. Rio de Janeiro: DP & A, 2002, p. 109-133.