1 Comunicações A PRODUÇÃO DE LITERATURA INFANTO-JUVENIL PELO CONCEITO DE DESIGN UNIVERSAL: CONTRIBUIÇÕES PARA UMA “EDUCAÇÃO PARA TODOS” Maria Luísa Bissoto Regiane Rossi Hilkner Andressa Guimarães (bolsista PIBIC) Bruna Oliveira (bolsista PIBIC) Resumo: Apresenta-se a primeira fase do projeto de pesquisa intitulado “A educação sociocomunitária e a educação para a autonomia”, que tem como objetivo a produção de uma coletânea de literatura infanto-juvenil planejada de acordo com os princípios do design universal, voltada mais especificamente para o desenvolvimento da autonomia e das competências psicossociais. A hipótese é a de que a autonomia não é uma competência que surge espontaneamente nos sujeitos, mas deve ser aprendida, e o é enquanto esses se inserem na teia de relações sociais em que convive. Nesse aspecto as crianças que apresentam algum tipo de comprometimento sensorial ou intelectual se mostram defasadas. Um passo inicial para a educação do sujeito autônomo é o de que esse acesse com independência, e se aproprie dos conhecimentos socioculturalmente constituídos, vigentes em seu entorno social. A literatura infanto-juvenil se mostra um material importante para essa apropriação, por estar fundada em valores e posicionamentos que refletem esses conhecimentos: são narrativas preparadas para “acavalar” o processo educativo. Metodologia: trata-se de uma pesquisa participante, em que, através dos princípios do design universal- que visam garantir condições de acessibilidade material para quaisquer sujeitos, considerando-se as especificidades das suas possíveis limitações-, planejou-se e produziu-se um protótipo de histórias infanto-juvenis. Esta produção contou com o envolvimento de pessoas com deficiências, artistas, professores e estudantes, configurando diferentes olhares sobre as problematizações postas à produção de um material tão complexo. Os referenciais teóricos se pautam pela psicologia histórico-cultural e pelo conceito de agência, como desenvolvido por Bandura. Como resultados iniciais observa-se que é premente a necessidade de pensar-se com mais comprometimento nas possibilidades ora colocadas para a educação dos sujeitos que se encontram à margem da “normalidade” se espera-se, de fato, sua inclusão numa “Educação Para Todos”. Palavras-chave: design universal- literatura infanto-juvenil- educação sociocomunitária Introdução O presente trabalho traz os primeiros resultados da primeira fase do projeto de pesquisa intitulado “A Educação Sociocomunitária e a Educação para a Autonomia”. O objetivo desse projeto é pesquisar formas de constituir teorizações e práticas educacionais, no âmbito da educação sociocomunitária, que promovam a autonomia dos sujeitos. Por autonomia entende-se o desenvolvimento de um sentido de agência, ou seja, a percepção individual de que estamos no centro- e na origem- de nossas ações; e que essas se referem, imbricadamente, aos interesses, valores e escolhas, por nós construídos e transformados no processo de nos tornarmos parte de um grupo social. Propor o desenvolvimento de um sentido de agência apresenta tanto mais validade quanto mais tratamos de sujeitos que, historicamente, vem se mostrando apartados desse: populações marginalizadas de/por diversas ordens. Por educação sociocomunitária entende-se o processo de escuta e da compreensão das diferentes influências e impactos que as 2 diversas “educações” têm sobre os sujeitos, decorrentes dos vários microssistemas com os quais esses interagem, ao longo do seu ciclo vital. Um sentido de agência ou a competência de ser autônomo não “chega” aos sujeitos “naturalmente”- é preciso ser construído, e o é pela educação, como praticada nesses diferentes microssistemas em que os sujeitos convivem. “Escutar” essas influências, analisar como, conjuntamente, modelam/impactam o desenvolvimento dos sujeitos, e das suas circunstancialidades, colocá-las numa posição dialógica e dialética, é essencial se pretendemos educar para a transformação. Essa é a função de uma educação sociocomunitária, como aqui entendida. Ao se pensar nas condições de favorecimento para a emersão de circunstancialidades propícias à autonomia consideram-se importantes: a) a possibilidade de acessar e interpretar os conhecimentos socioculturalmente constituídos e de, imbricadamente, ser produtor/autor desse conhecimento, ampliando-o, modificando-o e transformando-o, b) os meios materiais para que tal acesso seja efetivo, c) ter condições de desenvolvimento psicossocial, que favoreçam o entendimento quanto às regras do jogo social, a auto-determinação, o saber fazer escolhas e tomar decisões, o descortinar de perspectivas de ação e de (auto)organização e organização social, enfim, o envolvimento ativo na teia de relações, que constitui o viver em sociedade, d) o fomento a uma cultura da segurança, especialmente para crianças e jovens, ampliando as possibilidades de um desenvolvimento físico e mental propícios à constituição da vida e das subjetividades e e) a abertura de espaços sociais para a reflexão, a conscientização, a organização e a defesa do direito à autonomia daqueles grupos ou populações mais tradicionalmente exilados/alienados dessa (BISSOTO, 2011). Nesse sentido o propósito dessa primeira fase do projeto foi o de pesquisar formas de favorecer o acesso à informação, em especial àquela referente a valores, comportamentos e práticas psicossociais (escolhas, decisões, socialização, resolução de conflitos etc.) próprias à base cultural urbana do interior do estado de São Paulo, por sujeitos com necessidades especiais de aprendizagem. Essa opção assim se explica: crianças e jovens com necessidades especiais de aprendizagem, quer sejam provenientes de deficiências, quer por outros fatores, se mostram, historicamente apartados da base comum de conhecimentos construída em sua comunidade. As razões para tanto são múltiplas e variadas: o preconceito, a falta de compreensão e de sensibilidade para como as especificidades de seu desenvolvimento e comportamentos, educação formal, familiar segregada, grande restrição a espaços diversificados de vivências socioculturais, falta de recursos materiais adequados, dentre outros. Estudos feitos por Katz e Katz (2002), Drezett (2000), Sullivan e Knutson (2000) comprovam que esse afastamento da cultura vigente impacta negativamente o desenvolvimento psicossocial desses sujeitos, que encontram dificuldades em se constituírem como empoderados, limitando possibilidades de vida. A hipótese, então, é a de que favorecer o acesso a essa base cultural comum se mostra essencial para esse desenvolvimento, formando o ser autônomo. A metodologia dessa primeira fase da pesquisa foi de natureza bibliográfica e qualitativa/participante. Já no início pensou-se que uma importante fonte de acesso ao tipo de informação desejada podia ser encontrada na literatura infanto-juvenil, pois essa traz valores, conflitos, resolução desses, modelos de socialização e de tomada de decisão comumente vigentes numa determinada coletividade. Para aproximar mais esse material das bases culturais de Americana e região, locais onde vivem os sujeitos a serem pesquisados, foram usadas histórias escritas pelas alunas do curso de Pedagogia do UNISAL/Americana. Buscou-se, então, no conceito de design universal, o suporte para projetar-se uma coleção de histórias infanto-juvenis que teria, como característica principal, favorecer o acesso à informação, considerando por acesso do manuseio à compreensão e ao compartilhamento dessa. Por design universal entende-se conforme Correia e Correia (2006, p. 01): 3 um conjunto de preocupações, conhecimentos, metodologias e práticas que visam à concepção de espaços, produtos e serviços, utilizáveis com eficácia, segurança e conforto pelo maior número de pessoas possível, independentemente das suas capacidades. [...] Sempre que alguém concebe, desenvolve e produz algo deve ter preocupações de desenho universal e inclusivo: edifícios públicos, prédios habitacionais, meios de transporte, telemóveis e outros equipamentos electrónicos, electrodomésticos, mas também bens culturais, incluindo livros e software e a lista poderia continuar indefinidamente… Trata-se de uma questão de cidadania, de racionalidade de custos e de melhoria significativa da qualidade de vida para todos. No artigo 8 do Decreto n. 5296/2004, em seu inciso IX, encontra-se o conceito de desenho universal oficialmente definido como a concepção de espaços, artefatos e produtos, que visam atender simultaneamente todas as pessoas, com diferentes características antropométricas e sensoriais, de forma autônoma, segura e confortável, constituindo-se nos elementos ou soluções que compõem a acessibilidade Tal proposição exige que se conheçam as formas e os processos pelos quais os diferentes sujeitos com NEE acessam e se dispõem a organizar o conhecimento e a como pensar em produtos compatíveis com essas formas. Diretrizes para a produção de recursos educacionais pelo conceito de design universal apenas começam a ser traçadas, em nosso país. Aspectos importantes a serem respeitados asseveram que o material a ser assim produzido deva compor-se de: a) a apresentação da mesma informação em múltiplos suportes midiáticos, intercambiáveis, b) propor múltiplos modos de acessar a informação, de maneira compatível aos estilos cognitivos dos sujeitos, c) terem baixo custo, d) incorporar variedade de preferências, e) permitir o erro, f) requerer pouco esforço para o uso e ser usado confortavelmente e g) permitir variações no tamanho e posição (BOWE, 2000). De acordo com esses princípios decidiu-se planejar e estruturar as histórias nos seguintes formatos: audiolivros/radionovelas, escritas em Braille, traduzidas para LIBRAS, traduzidas para a comunicação aumentativa (boardmaker/PEC- Picture Exchange communication), convencional ilustrada, escrita simplificada ilustrada e multissensorial. Essa multiplicidade de formatos permitiria, conforme hipotetizado, que um amplo espectro de sujeitos, “normais” e/ou com limitações de diversas ordens, pudessem acessar a informação do material, apropriar-se dessa e, importantemente, compartilhá-la. A ideia do compartilhamento é fundamental para a pesquisa, pois, é nesse processo que os sujeitos se apropriam dos conhecimentos e se tornam, imbricadamente, produtores desses, figurando-se como seres de valor num grupo social. Abaixo se relata como um protótipo dessa coleção de literatura infanto-juvenil foi produzido e seus primeiros resultados. Detalhamento e desenvolvimento da pesquisa O primeiro passo da pesquisa foi realizar a transcrição das histórias infantis escritas pelas estudantes do curso de Pedagogia do UNISAL, u.e. de Americana, para uma versão em audiolivros. Esse formato foi pensado tanto para favorecer o acesso à informação daqueles com dificuldades visuais acentuadas como para dar suporte ao aprendizado/uso do material codificado simbolicamente (escrita/PECS/Braille). Para favorecer a compreensão conceitual, pensando-se em como os significados são “encavalados” nas possibilidades perceptivas dos órgãos sensoriais e em especificidades culturais, geralmente “estranhas” àqueles com dificuldades de aprendizagem, esses audiolivros assumiram o formato de radionovelas. Isso significou interpretar as histórias, com entonações de voz adequadas às situações, sonografia, adequação de 4 vocabulário, etc. As histórias foram gravadas nos estúdios do UNISAL pelas próprias alunas da Pedagogia, autoras das histórias. Passou-se, a seguir, para a transcrição das mesmas histórias para a escrita “simplificada”, seguindo o modelo das “Linhas Orientadoras Europeias para uma Leitura Fácil” e depois testálas com um grupo de crianças de 04 a 12 anos, sem necessidades educativas especiais e com um grupo de crianças e adolescentes de várias idades, com necessidades educativas especiais diversificadas, objetivando analisar o potencial de compreensão, de interatividade e de desenvolver habilidades psicossociais das histórias. A transcrição das histórias para a “escrita simplificada” permitiu que as mesmas fossem impressas em Braille, empregando o PEC e os sinais da LIBRAS. A medida mostra-se importante para auxiliar o aprendizado dos códigos linguísticos, tanto ao leitor iniciante ou daqueles com dificuldades para aprendê-los, e permitir o acesso à “leitura” /interpretação autônoma. As histórias simplificadas, para as crianças “normais” foram contadas no ambiente de uma EMEI (menores) e de um bairro da cidade de Americana. Não foram identificados problemas de compreensão ou de falta de interesse/atenção significativos. O local escolhido para testar a escrita simplificada com as crianças com deficiências foi o CPC (Centro de Prevenção a Cegueira), localizado na cidade de Americana – São Paulo. É uma instituição especializada em Estimulação Precoce, Educação e Reabilitação de Deficientes Visuais, mantido pelo Lions Clube Americana – Centro. Tem como missão oferecer atendimento multidisciplinar especializado ao deficiente visual (cego e baixa visão), mas também àqueles com deficiências múltiplas que incluem a deficiência visual, buscando o desenvolvimento de sua autonomia, inclusão e qualidade de vida. Tivemos a colaboração da funcionária do CPC, Claudia Maia, responsável pela Brinquedoteca. A contação das histórias simplificadas começou no dia 22/03/2012 com finalização no dia 17/04/2012. Eram feitas sessões de terça e quinta-feira com duração de 1 hora para não atrapalhar o tempo das crianças na brinquedoteca. Caracterização dos sujeitos e análise dos dados CRIANÇAS E ADOLESCENTES QUE PARTICIPARAM DOS ENCONTROS Os nomes foram modificados, como parte do compromisso de garantir o anonimato da identidade dos participantes, como exposto no termo de consentimento informado. 1. A. V. 6 anos, possui deficiência visual devido a um glaucoma. 2. V. 8 anos, 3º ano do ensino fundamental, possui síndrome de Peters (debilidade mental e grave deficiência visual, dentre outras anomalias) 3. T. 12 anos, 6º ano do ensino fundamental, possui deficiência visual devido a um glaucoma. 4. A. 12 anos, deficiente visual, estuda no 7º ano do ensino fundamental. 5. M. 13 anos, deficiente visual, estuda no 7º ano do ensino fundamental. 6. L. 16 anos, 9º ano do ensino fundamental, possui glaucoma congênito. 7. G. 10 anos, deficiente visual, estuda no 5º série do ensino fundamental. 5 8. D. 16 anos, deficiente visual, estuda no supletivo 4º/5º série. 9. M. 10 anos, deficiente visual, estuda no 5º série. 10. Dl. Deficiente visual, idade não informada. HISTÓRIAS CONTADAS (breve síntese dos dados coletados nos encontros) 1. Ana e Beto Crianças participantes: Dl, D., L. - Todos acharam que Beto era “relaxado” com os estudos e por isso não passou de ano. - Luana disse que Ana era dedicada e por isso passou de ano. 2. O Encontro com o Novo Crianças: L., G., M. e Dl. - G. pediu para todos sentarem e escutarem a história, mostrando muito interesse. - A história agradou a todos e tiveram como parte preferida: A busca pelo gato na floresta. - L. pediu para escrevermos mais histórias. 3. O Jardim Encantado Crianças: V., T., A. V., A. e M. - Todas gostaram da história, - Partes preferidas: a fada pousando no ombro de Sofia e quando o menino perde a memória. 4. Aninha e o Medo da Escola Crianças: L., G., M. e Dl. - Perguntamos se eles gostam de ir para a escola, apenas Gabriel alegou que não gostava muito. - Chamou a atenção à parte em que um dia antes de ir para a escola ela sonha com a diretora e com os amigos. 5. Mudança de Vida Crianças: L., D., M. e D. - Gostaram da história por envolver a natureza e por ensinar a respeitá-la, - Se identificaram com a personagem Alicia por parecer alguém da turma (comparado com o Mateus, que é teimoso), - Falaram que o título é muito importante para a história, pois é através dele que já imaginam a história. Todos prestaram atenção, porém, L. foi a mais comunicativa na hora das perguntas. 6. O Diamante da Amizade Crianças: A., M., V., A. V. e T. - Todas as meninas gostaram da parte do casamento e quando a princesa entrega o diamante da amizade ao príncipe, - A. V. não queria ir para o atendimento para ouvir mais histórias. 7. A Escuridão Crianças: L., D., M., D., A., M., T., A. V. 6 e V. - Acharam o título sem graça e acreditaram que a história era ruim antes mesmo de ouvi-la, porém, no fim todos mostraram apreciar muito a história. - M.* e A. pareceram não prestar atenção e M. estava com dificuldades em entender a história, - Tiveram como partes preferidas: o casamento, quando cortam o cabelo da bruxa com a faca e com a tesoura. - L. ressaltou que para ter o amor do príncipe a bruxa só precisa ser boa e não ter a beleza acima de tudo. *M. mesmo alegando que não queria ouvir a história deu risadas quando a bruxa fica careca e banguela. Crianças: L., G. D. e M.. - M. e G. não quiseram escutar a história e foram brincar, - L. e D. gostaram da parte em que o menino cai no poço e começa a chover e quando aparecem os animais da floresta. Crianças: L., T., M. e A.V. - Todos gostaram dos animais falantes, da vovó Naná e do balão voador; - Conseguiram entender a “moral” da história em que não devemos desobedecer aos mais velhos (sermos responsáveis). 8. As Aventuras de Zac 9. Os Panos da Vovó Observa-se que foi solicitado para esses sujeitos que informassem às pesquisadoras, termos e conceitos que, numa situação de deficiência visual, mais especificamente, tinham ficado com a compreensão prejudicada. Dessa forma as histórias foram corrigidas, de maneira a que contassem com um vocabulário que atendesse, a um só tempo, tanto àqueles sem dificuldade de compreensão semântica, como aqueles com tal dificuldade. Isso agregou muito valor às histórias, pois passou-se de um vocabulário eminentemente visual- portanto, relator de uma perspectiva das aparências do mundo- para um vocabulário centrado na “essência” dos fenômenos, ou daquilo que está presente, mas nem sempre visivelmente manifestado. Como base de avaliação para a compreensão das histórias foi empregada a “Escala de envolvimento para crianças pequenas (LIS-YC)”, concebida pelo Professor Ferre Laevers para o Projecto EXE, Leuven, Bélgica (Laevers 1994). Nessa escala o envolvimento- portanto, a atenção, o seguimento e a compreensão das histórias- são analisados através de indicadores como: Concentração, energia demonstrada pelo ouvinte, complexidade e criatividade das respostas às perguntas que são feitas enquanto se contam as histórias, expressão facial e postura, persistência na escuta da história, precisão das respostas, tempo de reação, linguagem e satisfação. Foi com base nesses parâmetros que observamos o nível de envolvimento da criança na atividade. Alguns aspectos foram particularmente observados e explorados mais profundamente: 1. Se com a entonação da voz Nosso entendimento foi o de que 7 conseguem perceber diferentes reações/ou sentimentos como: tristeza, alegria, cansaço, preconceito etc. 2. Se conseguem ser autônomos em acessar os materiais de leitura, ou se dependem de algum “ajudante”. percebem, e fazem disso auxílio para a compreensão das histórias. Observou-se uma dependência das crianças e jovens participantes no acesso à informação, pois mesmo o uso de sistemas de leitura “alternativos”, como o braile, demanda muita prática e preservação de habilidades cognitivas, nem sempre presentes nas crianças. Por exemplo, uma criança com alguma deficiência intelectual e cega terá muita dificuldade em aprender a acessar a informação com esse método. 3. Se elas conseguem diferenciar A resposta foi afirmativa, todos sonho/fantasia e realidade. responderam que sim e que existem dois tipos de sonhos: o que sonhamos dormindo e quando estamos acordados (ilusão). Isso é importante para investigarmos, mais adiante, como se processa a construção do imaginário (ilusão) nos sujeitos com deficiência visual e outras deficiências. 4. Memorização das histórias Sempre depois de uma semana pedíamos para alguma criança/ou adolescente para nos contar alguma das histórias já escutadas. O resultado foi muito bom, pois todas souberam contar a história apesar de algumas ficarem com vergonha no começo. 5. Expressão de Sentimentos Notamos uma diferença entre meninos e meninas em demonstrar sentimentos. Nas histórias com princesas, príncipes e casamentos as meninas se mostravam mais interessadas por esse lado (em se tornarem uma princesa, se casar). Os meninos já se mostravam mais interessados em momentos tensos como brigas, lutas etc. Após a testagem das histórias procedeu-se às necessárias adaptações para melhorá-las, principalmente em termos de vocabulário e complexidade das ideias. Entramos, então, numa outra etapa da pesquisa que foi aquela de “transpor” as histórias para um suporte multissensorial. Os procedimentos para a construção dos livros multissensoriais são sérios, pois não basta “ir fazendo” ilustrações em relevo, como geralmente se pensa. É preciso analisar quais são os atributos cognitivos mais relevantes das histórias e usar diferentes materiais para representá-los, usando recursos para estimular os mais diversos sentidos sensoriais, a imaginação, a compreensão das ideias, e aprender conceitos escolares e outros, relacionados à vida prática. Cada história a ser transformada num material multissensorial precisa ser então, bem planejada. A base técnica para o planejamento foi o trabalho desenvolvido pela ONG inglesa “Bag Books”, que há 25 anos vem produzindo livros multissensoriais para crianças e jovens com múltiplas deficiências. 8 Após esse planejamento começou-se, numa parceria com o CPC (Centro de Prevenção a Cegueira) e também com o NUMAPE (Núcleo Municipal de Apoio Pedagógico à Educação Especial, de Piracicaba) a realizar a montagem dos livros multissensoriais. Iniciou-se no mês de maio a produção da primeira história escolhida, “Ana e Beto”. Os encontros para a produção do livro multissensorial acontecem às segundas-feiras, no período da tarde, contamos com a colaboração principalmente da Pedagoga Maria Claudia Maia. O NUMAPE desenvolve outra história (Aninha e o medo da escola) na sede do próprio NUMAPE, com os profissionais de lá. É um processo lento, pois é necessário adaptar-se os materiais para garantir que o livro assegure a melhor aprendizagem possível, o desenvolvimento cognitivo, e também garantir que sejam seguros, fáceis de manusear e de manter a higienização. A transcrição das histórias para o sistema de comunicação aumentativa foi feita com o Board Maker System, disponibilizado pelo NUMAPE, de Piracicaba, com o auxílio de uma profissional dessa instituição. Várias dificuldades surgiram dadas às características próprias desse sistema, mantendo-se, na medida do possível, a correspondência de sentidos. A produção da história em Braille foi feita na impressora Braille do CPC e ilustrada por uma criança de 8 anos, com deficiência visual grave, frequentadora dessa instituição. Já a produção da transcrição para LIBRAS foi planejada por uma aluna surda, estudante do ensino superior e da intérprete de LIBRAS que a acompanha. A execução da transcrição foi feita por uma aluna do curso de Serviço Social, bolsista PIBIC associada ao projeto. A filmagem da história em LIBRAS foi feita por duas alunas do curso de Pedagogia do UNISAL, que tem domínio dessa língua pela convivência com pessoas da cultura surda. A ilustração das histórias escritas foi feita por um aluno do curso de Comunicação Social, também do UNISAL. Os referenciais teóricos que guiaram todo o trabalho, além dos já citados, foi a teoria histórico-cultural, defendendo-se a gênese social do conhecimento, a indissociabilidade entre desenvolvimento e apropriação da cultura em que o sujeito se encontra embebido, e os impactos que a apropriação dessa cultura assume na própria (re)estruturação da cognição desse sujeito. Considerações finais A produção de material “alternativo” de literatura infanto-juvenil vem se mostrando desafiadora, cheia de dificuldades e de aprendizados. Muitas das dificuldades encontradas se originam da falta de sensibilidade e de compreensão das pessoas- mesmo do meio acadêmico- em relação ao universo de necessidades daqueles “fora das normas”. O desconhecimento em relação à possibilidade de adaptarem-se as histórias para um formato simplificado, que garanta o acesso ao núcleo de significados de um determinado material escrito, mostrou-se total- para não dizer, então, do quanto o acesso à informação está longe de ser entendido como um direito. Que esse direito possibilite, então, o empoderamento dos sujeitos tradicionalmente afastados do saber, é uma ideia que parece extrapolar as expectativas socialmente existentes em relação è educação do sujeito com necessidades especiais de aprendizagem, com ou sem deficiências. Outras dificuldades se originaram da negação geral- culturalmente originada- que temos, enquanto sociedade- de outras perspectivas de compreensão do mundo, diferentes daquelas em que somos formatados. A descoberta de quantos significados do discurso cotidiano – novamente, para não dizer dos conceitos científicos- se mostram “fechados” à interpretação dos sujeitos cegos e surdos, mesmo na ausência de qualquer déficit intelectual, foi surpreendente. E entristecedora. Deu-nos a dimensão de como marginalizamos e oprimimos aqueles que deveriam nos ser semelhantes. Confirmaram-se as pressuposições iniciais de que há uma enorme lacuna na produção de material que favoreça àqueles com condições diferenciadas de aprendizagem o acesso à informação. Quando esse material existe se mostra inadequado- audiolivros que repetem os obstáculos conceituais, dificultando sobremaneira a compreensão, livros “táteis” projetados inadequadamente, repetindo “mitos”- contorno de elementos- que não consideram 9 especificidades cognitivas da cegueira, produzidos pelos parâmetros da cultura normativa, à qual todos são esperados a se integrarem, sem discussão em relação aos seus princípios valorativos, são uns poucos exemplos. Essa falta de recursos materiais onde o conhecimento socioculturalmente produzido possa ficar “fixado”, permitindo a sua revisão, reflexão e reentendimentos tem impacto extremamente negativo sobre o desenvolvimento dos sujeitos com dificuldades de acesso ao saber “normal”. Por outro lado, todo o processo de elaboração do material foi educacionalmente rico, para todos os envolvidos. Observa-se o número de pessoas diferentes envolvidas, e suas formas de acesso/gerenciar o conhecimento: o planejamento e confecção mesmo dos materiais propiciou tanto o colocar-se no lugar daqueles sujeitos com perspectivas diferenciadas de apreensão do mundo como a oportunidade para que esses sujeitos expusessem essas perspectivas na produção do material. Mostrou-se um verdadeiro exercício de educação sociocomunitária, no sentido aqui defendido: ouviram-se vozes que enunciaram vieses e concepções educacionais diferenciadas, organizando-as e promovendo a reflexão sobre essas. Espera-se, na continuidade da pesquisa, completar as histórias em todos os suportes de texto enunciados anteriormente e testar as histórias, em todos esses formatos: a. em salas de aula e com grupos de crianças em situações não escolares, sempre usando a diversidade de possibilidades de acesso à informação, para verificar o as oportunidades geradas de compartilhamento dos sentidos, quando histórias semelhantes são apresentadas em formatos de texto diferenciados. Acredita-se que a própria variedade de codificações de texto incentive que os sujeitos perpassem por essas diversas codificações, ampliando suas interpretações de sentido, favorecendo o aprendizado e a emersão de sentimentos e atitudes de empatia; b. especificamente em termos dos seus aspectos psicossociais e da efetividade em mobilizar o aprendizado de tais habilidades tanto em sujeitos com ou sem necessidades educacionais especiais e c. as possibilidades de serem usadas para o desenvolvimento da autonomia/sentido de agência. Respeitar especificidades que cada um tem de acessar e compreender a informação é importante para que a inclusão escolar e social dê certo, pois é só compartilhando símbolos e significados culturais que essa inclusão acontecerá. O passo inicial é garantir o acesso autônomo à informação e promover a sensibilização de que a realidade é multifacetada, assim como as formas de interpretá-la. Referências Bibliográficas BISSOTO, M. L. O pensamento contrafactual e o processo de tomada de decisão: aportes para a educação de jovens quanto a comportamentos de risco. Relatório de pesquisa pós-doutoral. Unesp, Botucatu, Instituto de Biociências, Departamento de Educação, fev de 2011. BOWE, Frank. (2000). Universal design in Education: teaching non-traditional students. Bergin & Garvey: Westport, 2000. BRASIL. (2004). Decreto n. 5296, de 02 de dezembro de 2004. Estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida e dá outras providências. Brasília, DF, 02 de dezembro de 2004. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/decreto%205296-2004.pdf CORREIA, S., CORREIA, P. Acessibilidade e desenho universal. Actas do Encontro Internacional de Educação Especial. Porto: Galilivro, 2006. DREZETT, J. (2000). Aspectos Biopsicossociais da Violência Sexual. In: Reunion Internacional Violencia: Etica, Justicia y Salud para la Mujer, agosto 2000, México, Monterrey, Anais... KATZ, SHLOMO; KATZ, SHIRA. (2002). Assessing the Loneliness of Works with Learning Disabilities. The British Journal of Developmental Disabilities, 48(2), 95, pp. 91-94. LAEVERS, Ferre. Escala de envolvimento para crianças pequenas (LIS-YC) - Projecto EXE. Bélgica, 1994. 10 MISHNA, F. (2003). Learning Disability and Bullying: Double Jeopardy. Journal of Learning Disabilities, 36, pp. 336-347. SULLIVAN, P., KNUTSON, J. (2000). Maltreatment and disabilities: a population-based epidemiological study. Child abuse and neglect, 24(10), 1257-1273. UNIÃO EUROPEIA. Linhas Orientadoras Europeias para uma Leitura Fácil. 1998. 11 O TELEFONE SEM FIO DA EDUCAÇÃO - UM QUESTIONAMENTO SOBRE FORMAÇÃO CONTÍNUA DOS EDUCADORES DE UM MUNICÍPIO NO INTERIOR DE SÃO PAULO. Cláudia Ângela Grota Mestre em Educação / UNISAL Orientador: Prof. Dr. Severino Antônio Moreira Barbosa Resumo: O eixo principal deste estudo é a investigação sobre o movimento de formação contínua dos educadores das séries iniciais do ensino fundamental da rede de educação de um município no interior do estado de São Paulo. A investigação objetiva elaborar algumas reflexões sobre o tema e intenciona trazer ao diálogo a problemática vivenciada na educação atual com relação à continuidade da formação do docente em ofício, sendo impulsionado pela atuação da pesquisadora durante doze anos como educadora nesta rede de ensino. Em cada formação contínua, novos e antigos questionamentos latejavam: quais seriam as intenções dos responsáveis pela educação naquele momento tão precioso, tão raro, em que se dispensam alunos e se convocam todos os educadores? As formações contínuas são momentos de desenvolvimento da autoria de pensamento e autonomia profissional ou de massificação do sujeito educador? Ao educador como ser pensante, que prazer pela educação está se preservando? Em que se transforma a utopia da chegada à educação pública? Em realização, decepção ou acomodação? Com as contribuições de pensadores contemporâneos, dentre os quais Nóvoa, Kramer e Fernández e Guattari, e a escuta feita na pesquisa de campo e em textos reflexivos sobre a formação contínua dos educadores, buscamos uma reflexão e uma compreensão para que se possa pensar a formação contínua como uma possibilidade de intervenção pedagógica e reflexiva, que fomente a ressignificação da atuação docente para além de meras aparências. Palavras-chave: educação contínua, formação de educadores, autoria de pensamento, subjetividade. Abstract: The main axis of this research is the investigation on the movement of teacher´s continuous graduation. Such teachers deal with elementary school’s initial grades within the whole education network of a municipality in the state of São Paulo. The research aims to develop some thoughts on the subject and intends to bring to the dialogue the problems experienced in the current educational environment regarding the continuous graduation of teachers at work, being driven by the my actions as a researcher, while an educator at this school system during twelve years. In each continuous graduation meeting, new and old questions came along: which would be the intentions of those responsible for education at such a precious and rare moment in which classes were suspended and all educators are summoned to that meeting? Are the continuous graduation meetings moments of thought development and professional independence or an attempt to establish a standard behavior to educators? Can the educator, as a thinking being, keep the pleasure of educating? Which expectations would educators meet at the end of a continuous graduation? Pleasure, disappointment or accommodation? With the contributions of contemporary thinkers, among them Nóvoa, Kramer, Fernandez and Guattari, and the listening done in the field research and in texts related to the subject, an understanding was sought in a way we can think on continuous graduation as an opportunity for educational intervention and critical thought, enhancing the redefinition of teacher performance beyond appearances. Keywords: continuous education, teacher graduation, development of thought, subjectivity. 12 O eixo principal deste estudo é a investigação sobre o movimento de formação contínua dos educadores das séries iniciais do ensino fundamental da rede de educação de um município no interior do estado de São Paulo. Discutiremos o processo de formação contínua, fazendo referência às formas de socialização do conhecimento que comportam uma função consciente de elaboração, construção e criação de saberes. Encontrando-se necessária a visão de educação a que se deseja atentar, apresento as contribuições de Jean Piaget, às quais o texto fará referência: O objetivo da educação intelectual não é saber repetir ou conservar verdades acabadas, pois uma verdade que é reproduzida não passa de uma semiverdade: é aprender por si próprio a conquista do verdadeiro, correndo o risco de despender tempo nisso e de passar por todos os rodeios que uma atividade real pressupõe. (1976, p.69) Do mesmo modo, apresento o conceito primordial sobre formação contínua discorrido por Fávero, ao qual serão feitas as reflexões ao longo dos capítulos: Formação continuada de professores, então, é o processo pelo qual se busca dar continuidade à formação inicial da mentalidade e/ou do caráter do profissional da educação. Ela acontece por meio da inserção desse profissional no conjunto de conhecimentos que dizem respeito ao seu campo de atuação e visa à construção permanente do “ser professor”. (2010, p.56) Buscando esclarecimentos sobre as formas que comumente ocorrem as formações contínuas, suas fragilidades e suas possibilidades de sucesso também nos apoiaremos nas análises de Demailly (1997), que nos apresenta quatro modelos de formação como modos de socialização profissional de educadores, sendo: a forma universitária, a forma escolar, a forma contratual, e a forma interactiva-reflexiva. Segundo Demailly, quando um responsável administrativo pela educação estipula a obrigatoriedade de participação dos educadores às formações contínuas, de um modo geral pensada sob a forma escolar, ou seja, cujo programa, duração e modalidades são previamente definidos. Essa ideia de formação é a transmissão de um conjunto de saberes externamente definido. Os formadores não podem ser considerados como pessoalmente responsáveis pelo programa que ensinam ou pelas posições que exprimem, pois ambos relevam de uma obrigação à qual, do mesmo modo do que os seus alunos, estão sujeitos. O referencial central da forma escolar é a escolaridade obrigatória, isto é, uma relação institucional, que liga o que ensina, o que é ensinado, o seu ambiente familiar e a legitimidade legal. (1997, p.143) Na forma contratual há uma negociação entre os envolvidos em relação ao programa de educação pretendido, das modalidades materiais e pedagógicas da aprendizagem, ou seja, a transmissão de saberes de natureza diversa, Demailly define: O modelo <formativo-contratual> como uma relação simbólica de tipo contratual entre o formando e o formador e, eventualmente, com outros parceiros. O contrato de formação é, com efeito, muitas vezes um polígono: entre a estrutura de formação que emprega o formador e a empresa cliente, entre a estrutura e uma instituição, entre o formando e a organização que o emprega e o envia em formação durante o seu horário de trabalho, etc. (1997, p.144) Como modelo de formação, a forma universitária aparece com a finalidade essencial de transmitir saberes e teorias construídas por mestres, em relação direta com a investigação e não somente difusão de conhecimentos. Enfim, há a valorização do caráter pessoal, das competências, do prestígio do formador. 13 A forma interactiva-reflexiva, em que os educadores mobilizam apoios técnicos para uma construção coletiva de saberes profissionais, abrangendo as iniciativas de formação ligadas à resolução de problemas da realidade cotidiana escolar, com o apoio de formadores, através do saber, da ciência, da crítica e da arte, esta forma permite gerar novas competências em atividades reflexivas sobre a teoria e a prática, reconhecendo o educador como sujeito pertencente ao processo pedagógico e não somente executante de projetos. Resumindo, Demailly nos diz que: As formações mais eficazes são do tipo interactivo-reflexivo. Em primeiro lugar, porque suscitam menos reflexos de resistência perante a formação (num espaço de liberdade é possível a explicitação da recusa do saber, do medo da mudança, do bloqueio perante os discursos prescritivos) e permitem gozar o prazer da fabricação autônoma das respostas aos problemas encontrados. Em segundo lugar, porque abordam a prática de maneira global, não encarando como mera aplicação de um somatório de saberes. Em terceiro lugar, porque permitem inventar novos saberes profissionais, o que é indispensável hoje em dia, uma vez que não há soluções pré-elaboradas que respondam adequadamente à maior parte dos problemas educativos e didácticos com que os professores são confrontados. (1997, p.157) As formações contínuas, como processo que se dá coletivamente, como prática que transcenda a mera transmissão de saberes e técnicas, sob a forma interactiva-reflexiva configurase como espaço de construção de saber, elas permitem a participação do educador tirando-o do “lugar do morto”, conforme Nóvoa (1999) ilustra, sendo a posição do indivíduo impossibilitado de interferir no desenrolar da situação, trazendo-o à reflexão de sua prática juntamente com as teorias que possam permitir a verdadeira formação profissional contínua. Na colheita, proveniente das formações, em que são oferecidas informações através de cursos, seminários, encontros pedagógicos, palestras e outros, parece evidente a ineficácia do processo de reflexão da prática docente. Esse processo tradicional de formação contínua, implantado há muitos anos e encontrado ainda hoje, subestima o educador e o coloca no “lugar do morto”, como entendemos com as palavras de Nóvoa: ... recorro à imagem do bridge, em parte já utilizada por Jean Houssaye (Le triangle pédagogique, 1988), na qual um dos parceiros ocupa o “lugar do morto”, sendo obrigado a expor as suas cartas em cima da mesa: nenhuma jogada pode ser feita sem atender às suas cartas, mas este não pode interferir no desenrolar do jogo. Imaginemos agora um triângulo no qual dois vértices criam uma relação privilegiada, representando o terceiro vértice o “lugar do morto”: está presente, tem de ser levado em consideração, mas a sua voz não é essencial para fixar o desfecho dos acontecimentos. (1999, p.7) Analisamos nos textos de Kramer a visão social dada aos educadores e as possibilidades infinitas de formação contínua baseadas nos indivíduos que são, chamando a atenção quanto à minimização do profissional professor e o encarando como alguém que tem pouco a dar, mas que por outro lado tem muito a aprender, perante os responsáveis pela educação. Somos professores, mulheres, homens, mães, pais, filhos, guerreiros-pela-sobrevivência; tantos papéis que por vezes nos arriscamos a perder algo que temos de mais precioso: nossa humanidade. E sabemos que não é nada fácil exercer essa humanidade num contexto social que animaliza o homem, expropria bens materiais e culturais, premia a corrupção e a falta de ética, exalta a impunidade, dilacera as relações estabelecidas nas mais diversas dimensões da vida de cada dia. Esse aspecto nenhuma política publica , nenhuma proposta de formação de professores 14 ou de mudança de cenário educacional pode desconsiderar, sob pena de agravar a desumanização crescente. (2007, p.11) Participando da conversa sobre educação, Fernández nos apresenta a aprendizagem como um vínculo envolvendo a inteligência e o desejo, dando especial atenção aos processos de autoria e criatividade envolvidos: A aprendizagem é um processo cuja matriz é vincular e lúdica e sua raiz corporal; seu desdobramento criativo põe-se em jogo através da articulação inteligência-desejo e do equilíbrio assimilação-acomodação. No humano, a aprendizagem funciona como equivalente funcional do instinto. Para dar conta das fraturas no aprender, necessitamos atender aos processos (à dinâmica, ao movimento, às tendências) e não aos resultados ou rendimentos. (2008, p.48) É imprescindível a atualização, a evolução, o aperfeiçoamento pedagógico, a formação contínua dos educadores após a graduação, porém do modo como isso tem sido oferecido, em vários casos, não se pode observar os benefícios objetivados no seu planejamento, deixando de suprir as necessidades e curiosidades dos educadores, subestimando a realidade enfrentada em salas de aula e ignorando a identidade do profissional a que se pretende atingir. Os educadores públicos passam regularmente por palestras, oficinas e cursos de atualizações pedagógicas, oportunizando-lhes o contato com clássicos e novos pensamentos sobre educação. As oficinas e cursos são atualizações oferecidas a todos os educadores para serem frequentados em horário inverso à docência, dificultando a participação da maioria dos educadores por terem uma jornada dupla de trabalho. São momentos criados visando à formação contínua dos educadores, porém quando são convocações e formações durante o período de trabalho, atingindo a todos os educadores, estas acontecem em forma de grandes palestras, o que segundo Guattari, pode ser um modo de subjetivação: A subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela é essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares. O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo um processo que eu chamaria de singularização. (1993, p.33) Nesta perspectiva, qual a relação existente entre a oportunidade desta formação profissional e as reais necessidades dos educadores? Houve o diálogo com estes educadores, para que se organizassem oficinas coerentes com seus desejos, suas incertezas, com suas diferenças? O frenesi da sociedade atual tem anulado as singularidades e devastado a universalidade humana, está se perdendo o vivido, as origens, as histórias e o foco nos objetivos comuns. Desse modo, Antônio comenta: A perda da subjetividade, cada vez mais acentuada em nossos dias, juntamente com a perda da universalidade, é uma das formas de desfiguração da existência, da degradação da vida pessoal e coletiva. Representa perda de conhecimento das coisas; perda de linguagem própria e também de pensamento próprio; perda de diálogo e de convivência; perda do gosto de interpretar e transformar a realidade. (2009, p. 115,116) 15 Ao pensar em educar um educador, nem sempre se reflete sobre o prazer que este movimento permitirá ao mesmo. Os desejos do educador também são capazes de gerar prazer e consequentemente aprendizado. É preciso abrir espaço para “o desejo legítimo de autocriação, próprio do espírito moderno”. (Hopenhayn: 2001, p.256) Tornamo-nos melhores pela educação, quando favorecemos o livre pensar e, consequentemente, a consciência de estarmos num processo sempre inacabado de construção pessoal. A formação contínua pode ser compreendida como momento oportuno para o desenvolvimento e aprimoramento da prática docente, deve gerar possibilidades de construção de sentidos para o professor, ser um momento de desejo e satisfação a partir de seu cotidiano escolar e para seu cotidiano escolar; porém, nas formações em forma de palestras, como observamos, há muitos anos, na referida rede municipal de educação, temos construído alguns questionamentos: Em que momento houve a participação do professor? Na indicação do tema ou do palestrante? Durante a palestra com exemplos baseados na prática docente? Após o momento, denominado formação contínua, com discussões pertinentes buscando a identificação e oportunizando reflexões formadoras e geradoras de sentidos? Percebemos uma falta de ligação entre o que o professor busca como formação e o que é oportunizado para seu aprimoramento profissional. Não é considerada relevante a subjetividade do educador nas ofertas de formação contínua ou a possível mudança micropolítica ou macrossocial, a que os responsáveis pela educação buscam, diz respeito também à questão da produção da subjetividade do educador. A formação contínua é oferecida como forma de subjetivação, ou seja, a capacidade de informar o que somos aos olhos dos outros, por meio do ponto de vista dos responsáveis pela educação do município pesquisado, em relação aos desejos dos educadores, suas deficiências e sonhos. Não é fomentada a participação dos educadores nesse processo de elaboração da formação contínua. Os educadores participam da formação contínua em uma conduta de tolerância, não questionam o que lhes é oferecido, produzindo a sensação de bem estar social a todos os envolvidos. Observa-se tal tolerância na apatia e desinteresse dos educadores durante as palestras. Sem deixarem registradas participações e suas reflexões sobre o tema abordado, se ausentam dos auditórios descrentes dos conhecimentos que lhes foi ofertado durante o momento caracterizado por formação contínua. Duschatzky e Skliar destacam que: A tolerância pode materializar a morte de todo o diálogo e, portanto, a morte do vínculo social sempre conflitivo. A tolerância, sem mais, despoja os sujeitos da responsabilidade ética frente ao social e libera o Estado da responsabilidade institucional de encarregar-se da realização dos direitos sociais. O discurso da tolerância de mãos dadas com as políticas públicas bem que poderia ser o discurso da delegação das responsabilidades às disponibilidades das boas vontades individuais ou locais. (2001, p.136) Para substituir a tolerância por novos olhares, conforme nos explica Hopenhayn (2001), é preciso haver o deslocamento de perspectivas e as propostas de um cenário de transculturação, pois para tanto é necessário olhar-se com o olhar do outro. Visando construir momentos de formação contínua para aprimoramento e enriquecimento profissional docente, observamos a necessidade de questionar o olhar que se tem 16 dos docentes na escolha de temas e dar relevância aos modelos de formações que levariam à resultados mais eficazes. Ampliando nossa compreensão em relação à construção e à transformação da consciência de um sujeito, buscamos algumas contribuições no tocante à identidade e subjetividade para, então, refletirmos sobre o autoconhecimento do educador e a importância de se respeitá-lo nos momentos de formação contínua a que é oportunizado. A permissão para o autoconhecimento do educador, através de possibilidades dele se relacionar com outros educadores, para descobrir-se e descobrir que há diferenças entre as pessoas é um movimento necessário para a elaboração da identidade pessoal e profissional do educador. A formação de professores é um espaço pertinente para a ressignificação da educação, onde o professor, através de reflexões, pode chegar a uma transformação de sua prática pedagógica pela sua transformação pessoal. Para tanto, é preciso que seja problematizada e explicitada a construção de uma identidade pessoal em relação à vida profissional do professor. Tudo o que se pensa para a massa não respeita as singularidades, devemos atentar ao processo de educação do educador simultaneamente aos objetivos estipulados para sua formação, pois o educador educa-se na prática, no convívio com outros educadores, nos diálogos com seus educandos, na reflexão de sua própria prática, mas não se educa se não houver interesse pessoal, prazer, satisfação e geração de sentidos. As formações contínuas, na maioria das vezes, são momentos desprezíveis razão da não observação ao processo, posto que o vínculo faz-se um fator de extrema relevância na autorização que se dá ao ensinante, provindo do reconhecimento que o educador faz de sua autoridade em relação à aprendizagem a que se propõe. Sendo que Fernández (2001, p.32) discorre: Sabemos que aprender é necessário um ensinante e um aprendente que entrem em relação. Isto é algo indiscutível quando se fala de métodos de ensino e de processos de aprendizagem normal; não obstante, costuma-se esquecê-lo quando se trata de fracasso de aprendizagem. Aqui pareceria, então, que só entra em jogo o aprendente que fracassa. Como se não se pudesse falar de ensinantes ou de vínculos que fracassam ou produzem sintomas... Necessariamente, nas dificuldades de aprendizagem que apresenta um sujeito, está envolvido também o ensinante. Portanto, o problema de aprendizagem deve ser diagnosticado, prevenido e curado, a partir dos dois personagens e no vínculo. Convergências de pensamentos sobre a autoria do sujeito, de Fernández (2001), nos levam à Kramer (2007), quando considera os espaços de reflexão que condicionam a construção social dos educadores. A necessidade da formação contínua é percebida nas vozes dos educadores, nos encontros pedagógicos e nas dificuldades encontradas no cotidiano escolar. Quem ouve a voz que chega ou a voz que não chega dos educadores em formação contínua? Os responsáveis pela formação contínua dos educadores da rede de ensino fazem esta escuta? Observo a demasiada desconexão no diálogo entre as necessidades da prática docente e a oferta de oportunidades auxiliadoras nas formações contínuas, sejam elas, palestras, oficinas pedagógicas ou cursos, que quase sempre tendem à técnica, ao treino para o ofício, e não à reflexão sobre a ação docente, sobre a prática cotidiana e seus objetivos educacionais quanto ao aprendente, o aluno. Em certa circunstância, em um dos momentos reservados para formação contínua dos educadores da rede municipal de educação, pareceu aparente a decepção destes em relação à oportunidade que estavam recebendo. Foi convidada uma palestrante de outra região a trazer ideias para o cotidiano escolar; porém, estando o referido município localizado num centro de universidades, grande parte dos educadores procura atualização em cursos de extensão universitária e de pós-graduação. Durante a palestra, houve muita desatenção e diálogos paralelos, 17 pois as ideias trazidas como novidades já eram efetivamente utilizadas. Desde o início da palestra já era possível observar a falta de informações que a palestrante tinha sobre o público que encontraria, apresentando uma falha de comunicação na contratação da palestrante, pois apresentou o uso de folhetos em aulas interdisciplinares de língua portuguesa e matemática como se aqueles educadores jamais o tivessem efetuado. Somente na reconstrução do modo como é compreendida a formação contínua, pelos educadores e pelos responsáveis pela educação, que haverá possibilidades de mudança de comportamento em relação a este processo. Por meio de reflexões e diálogos entre os envolvidos nesta relação, o professor estará inserido num contexto que condicione o desejar continuar se formando. Os valores que sustentaram a formação dos educadores, em decorrência da evolução social e das transformações ocorridas nos sistemas educativos, deixando a ação pedagógica e a profissão docente, desnorteadas. Nóvoa nos apresenta um norte possível: A produção de uma cultura profissional dos professores é um trabalho longo, realizado no interior e no exterior da profissão, que obriga a intensas interacções e partilhas. O novo profissionalismo docente tem de basear-se em regras éticas, nomeadamente no que diz respeito à relação com os restantes actores educativos, e na prestação de serviços de qualidade. A deontologia docente tem mesmo de integrar uma componente pedagógica, na medida em que não é eticamente aceitável a adopção de estratégias de discriminação ou de teorias de consagração das desigualdades sociais. É fundamental que a nova cultura profissional se paute por critérios de grande exigência com relação à carreira docente (condições de acesso, progressão, avaliação, etc.). Se os próprios professores não se investirem neste projecto é evidente que outras instâncias (Estado, Universidades, etc.) ocuparão o território deixado livre, reinvindicando qualquer legitimidade de pilotagem da profissão docente. (1999, p.29) Parece evidente, ser negado ao educador a participação na construção do conhecimento, especialmente quando são apostiladas aulas e implantadas nas unidades de ensino como projetos, sem participação alguma do educador em sua construção; parece ser negado o pensá-lo como educador. Em diversos casos, sem a formação específica para a aplicação dos projetos, os mesmos são fragilizados e perdem a vitalidade que partiria dos valores culturalmente determinados pelas histórias de vida, tanto de quem educa quanto de quem é educado neste processo. Enquanto pensar em formação contínua for pensar em conteúdos e cursos para implantação de projetos, não considerando os modelos de formação e suas implicações tratadas no primeiro capítulo; desprezando a participação do educador no processo de construção de cada projeto, minimizando-o a mero executor; à educação não restará outro olhar de seus dirigentes senão o de fiscalização e cobrança de resultados em avaliações externas à escola. A presente pesquisa se caracteriza como uma observação participante, construída por meio de um relato etnográfico e da premissa de que para compreender as pessoas e os fenômenos sociais, por meio da coleta de vozes em textos reflexivos sobre a formação contínua oferecida pela Secretaria Municipal de Educação, escritos por educadores de três unidades de ensino, sendo uma localizada na periferia, uma na área central e uma na área rural do município em questão. A caracterização profissional do grupo de oito educadoras pode ser visualizada com a idade entre 35 e 55 anos, educadoras concursadas e efetivas na rede municipal de educação do 18 referido município há mais de oito anos. Profissionais que trabalharam ou trabalham em duas redes de ensino, buscando suprir suas necessidades financeiras, superando obstáculos emocionais e sociais para fortalecer seu profissionalismo. Todas possuem curso de graduação e de especialização, participam das formações contínuas quando convocadas em horário de trabalho; atualmente uma delas está participando de uma formação contínua em horário inverso à sua atuação docente. A partir da leitura dos textos parece-nos evidente a necessidade de se abandonar o conceito de formação contínua unicamente como atualização científica e didática do professor e adotar-se um conceito de construção baseada na prática. Conforme podemos compreender nas palavras da Educadora R, quando nos fala que “penso que a formação do professor deveria estar atrelada à busca de conhecimentos que o levem a refletir, posicionar-se como ser social em busca de melhorias.”. Quando os educadores nos falam sobre seus sentimentos em relação à formação contínua oferecida no município em questão percebemos a ausência do vínculo genuíno, produtor de sentidos recíprocos: O que mais ouvimos falar durante as formações, é que nada de novo é acrescentado, que as formações são sempre para os professores em início de carreira. Quase sempre existe uma expectativa frustrada depois de um encontro ou formação em nossa rede de ensino. (Educadora M, p.64) O que é oferecido quase nunca contempla as expectativas da maioria de nós, que esperamos algo contemporâneo e que venha ao encontro com a necessidade, nos dias atuais, em perceber o aluno de forma mais atuante no processo de ensino aprendizagem. (Educadora A, p.50) Às vezes os profissionais tentam nos passar algo que nem eles mesmos acreditam e muitos nunca experienciaram aquela teoria ou método. (Educadora L, p.65) Já participei de algumas formações realizadas pela rede municipal, mas posso dizer que a maioria delas foi uma repetição da teoria que a rede quer que esteja em prática. (Educadora J, p.52) Minha opinião, hoje, as formações que nos são oferecidas pela instituição municipal de ... não seguem uma linha organizacional; não oferece estrutura física e ambiente próprio para tal; Não é reflexiva e organizada em grupos de trabalho; não se constrói um diálogo formativo e reflexivo; pouca troca de experiência; não se fundamenta nas exposições dos conteúdos e citações de educadores e pensadores; sem linha pedagógica definida. Onde o tumulto e desorganização se fazem presente, não é possível uma reflexão didática, pedagógica e sim discussões aleatórias, de interesse político. Enfim, são completamente desconexas da realidade docente. (Educadora I, p.67) Podemos observar no texto reflexivo da Educadora E uma violência simbólica perturbadora quando escreve: Nestes últimos anos a Secretaria Municipal de Educação deste município ofereceu de forma positiva o curso Letra e Vida, pois existe um contexto intimamente ligado ao cotidiano escolar. Fora isso, infelizmente, não houve nada de produtivo, pois todas as vezes que fomos convocados pela SME, apenas nos ofereceram palestras, com pessoas sem nenhuma relação com a educação. 19 Muitas vezes sem nenhuma ligação com a educação, as palestras já foram de autoajuda, palestras proferidas por advogados, mágicos ou shows musicais, palestras de intelectuais que desconhecem a realidade educacional do município e trazem propostas que a tempos são executadas. O que, segundo a Educadora J, observa-se que “As pessoas que aplicam a formação não se preocupam em inserir o professor no tema, não levam em consideração a realidade de sala de aula”. Num movimento constante, a educação exige atualização e os educadores não se recusam a aceitarem este fato, o que podemos ler no texto reflexivo da educadora C: Formação, algo necessário e que permite sustentação às ações pedagógicas. Vivemos em um mundo globalizado, dinâmico, de constantes mudanças, inovações, sendo assim necessário e de extrema relevância a busca por formação contínua. Encontramos duas certezas contraditórias, a primeira em relação à importância da formação como uma possibilidade de sempre proporcionar novos olhares à educação, nas palavras da Educadora C, e a segunda em relação à falta de importância dada pelo educador que não se sente envolvido no próprio processo de formação contínua observado no texto da Educadora J: Por outro lado, acredito que, mesmo que a formação seja repetitiva possibilita um novo olhar, pois como já citado estamos em constantes mudanças. (Educadora C, p.70) Em contrapartida, posso dizer que apesar dessa disseminação da teoria, sempre tem uma coisinha aqui ou ali que se possa aproveitar, mas a grande maioria dos professores como não está envolvida no processo de construção/formação, estão ali presentes apenas de corpo, cumprindo as suas horas de trabalho. (Educadora J, p.53) Observamos ao longo destes estudos a fragilidade na sequencialidade do processo de formação contínua, a fragilidade na estruturação e implementação deste processo, a fragilidade da visão primeira sobre os envolvidos, os educadores. Porém, se vítimas, também cúmplices. Os educadores apresentam uma coexistência de alienação e resistência em suas atitudes como observamos em dois encontros de formação contínua oferecidos pela rede municipal de educação em diferentes circunstâncias, o curso Educando com a voz e a apresentação cultural. Em abril 2012 foi oferecido um curso, Educando com a voz, com a possibilidade de participação por todos os educadores da rede de ensino do município, pelo fato de haver a opção de segunda, terça ou quarta-feira. A esta formação, que ocorreria fora do horário de trabalho, haveria remuneração em forma de reunião administrativa, atitude incomum da Secretaria Municipal de Educação, porém de grande importância para o estudo em questão. Contrariando as análises das pesquisas e as justificativas dos textos, a oficina foi reestruturada, “devido ao pouco número de inscritos”, sendo realizada somente na quarta-feira. O que houve nesta formação que não contemplou a necessidade ou possibilidade dos educadores de participarem? Ou o tema não obteve reconhecimento como importante ao educador por ele mesmo? O convívio entre educadores insere um pensar coletivo a cada novo indivíduo que chega à educação, passando o indivíduo a ser parte do controle, e quando isso ocorre, já não há mais controle. Os encontros de formação tornam-se convocações e mero cumprimento de horas de trabalho, independente da possibilidade de reflexão trazida pela formação contínua. Frente às representações legitimadas de saberes os educadores se calam, talvez por estarem ou sentirem-se excluídos dos processos de formação, talvez por somente não 20 participarem do planejamento destes processos ou por não sentirem que seus saberes são respeitados pela formação contínua legítima e assim não outorgarem o direito de lhes ensinarem. A formação contínua se faz em lugares e horários não instituídos para a produção de saberes, lugares onde os educadores sentem que têm voz, seu território, pois se não há condições de reflexão sobre a prática oportunizada nos encontros de educadores, há nos diálogos que ocorrem nos espaços de transgressão, nas portas das salas de aula, nos corredores das unidades de ensino ou nos intervalos de aulas, momentos de extraordinária riqueza, momentos de troca de experiências, momentos de apoio pedagógico e emocional, momentos de sabedoria às escondidas, algo ocorre fora dos lugares determinados. Parece ser necessário abandonar-se o conceito de formação profissional contínua unicamente como atualização científica e didática do educador para adotar-se um conceito de formação contínua que consista em organizar, fundamentar, descobrir, discutir, revisar e reconstruir a teoria de acordo com as necessidades advindas da realidade do cotidiano escolar atual. Referências Bibliográficas ANTÔNIO, Severino. Uma nova escuta poética da educação e do conhecimento: diálogos com Prigogine, Morin e outras vozes. São Paulo: Paulus, 2009. DEMAILLY, Lise. Modelos de formação contínua e estratégias de mudança. In NÓVOA, António (Coord.) Os professores e a sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1997, p. 139-158. DUSCHATZKY, Silvia e SKLIAR, Carlos. O Nome dos outros. Narrando a alteridade na cultura e na educação. In LARROSA, J.; SKLIAR, C. (orgs) Habitantes de Babel: políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autência, 2001. FÁVERO, Altair Alberto e TONIETO, Carina. 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Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. 21 O ENRIQUECIMENTO BRANCO COM O TRABALHO NEGRO: UM ESTUDO COMPARADO ENTRE ESTADOS UNIDOS E BRASIL Cesar Augusto Rossatto, Ph.D.* Prof. Ms. João Porto** Resumo: Os Estados Unidos e Brasil têm muitas similaridades e diferenças, mas tratando-se do legado deixado pela escravidão os dois países são muito parecidos. O Brasil historicamente deixou uma imagem no exterior e internamente, de uma democracia racial invejável ou ao menos uma imagem de que as pessoas viviam em harmonia racial; enquanto os Estados Unidos, na atualidade, mantém a imagem de uma sociedade não racista, especialmente com a eleição do presidente Baraka Obama – o qual é usado como “token approach”, ou seja, como um discurso de que há uma representação negra em todos os setores sociais. O aporte teórico para esse estudo é a Teoria Crítica Racial (TCR), que tem como um dos fundamentos principais o de que o racismo é uma condição que se mantém e se manterá de forma cultural e institucional ao longo da vida (TATE, 1997). Ele não é natural, é uma ideia construída socialmente e é autorreprodutível (BELL, 1995; BONILLA-SILVA, 1999). Introdução: Os Estados Unidos e Brasil têm muitas similaridades e diferenças, mas tratando-se do legado deixado pela escravidão os dois países são muito parecidos. O Brasil historicamente deixou uma imagem no exterior e internamente, de uma democracia racial invejável ou ao menos uma imagem de que as pessoas viviam em harmonia racial; enquanto os Estados Unidos, na atualidade, mantém a imagem de uma sociedade não racista, especialmente com a eleição do presidente Baraka Obama – o qual é usado como “token approach”, ou seja, como um discurso de que há uma representação negra em todos os setores sociais. Entretanto, é evidente que a cor da pele continua sua hierarquia, de clara para escura, em ambos países – quanto mais clara a cor da pele mais privilégios. Os dois países constituídos nas premissas da escravatura do negro e no extermínio indígena, não trataram de forma mais significante questões como a do enriquecimento e do poderio ilícito fundamentado na colonização branca. A história, comum a ambos os países, é de serem “colônias brancas” estabelecidas para a expansão do imperialismo europeu. Os dois países proveram grandes oportunidades para os europeus se estabelecerem, adquirirem capital e expandirem um domínio, não acessível naquele momento histórico, na Europa. Em outras palavras, desenvolveram um “sistema social racial” (BONILLA-SILVA, 1999) estruturado para manter a branquitude como fonte de oportunidades, privilegiando os grupos étnicos europeus (BENITO, 2002; CARONE, 2002; DU BOIS, 1935; ROEDIGER, 1999; SKIDMORE, 1990). A colonização europeia, associada a essa forma de consciência de identidade, construiu a escravidão, assassinando e colonizando grupos racializados, constituídos agora como “os outros”. Uma nova realidade sócio-comunitária nos EUA bem como no Brasil. Voltando-nos à contemporaneidade observamos que a questão das ações afirmativas, como meio político, causa grande tensão e impacto social tanto nos EUA quanto no Brasil. Esses países tiveram datas aproximadas na “abolição” da escravatura e também, ambos, na criação de ações afirmativas. Os EUA “terminaram” a escravidão em 1865 e escreveram as ações afirmativas, como lei, em 1974. O Brasil “terminou” escravidão em 1888 e, atualmente, está em processo de estabelecimento de ações afirmativas, como lei, políticas públicas e programas educacionais inerentes. Muito se têm escrito à respeito das possibilidades e limitações das ações afirmativas, no entanto, a ideia principal deste estudo se atém à formação, na atualidade, de uma política de identidade branca que, tanto nos EUA quanto no Brasil, se organiza a partir do discursos das ações 22 afirmativas. Dessa maneira, as ações afirmativas têm sido o prisma divisor dos inúmeros feixes ideológicos sobre as questões raciais. Pretende-se então, com esse estudo comparado, inicialmente, examinar como o domínio branco tem se estabelecido nos EUA e no Brasil desde o período colonial até a atualidade. Em seguida, discutir como as políticas de identidade branca estão se desenvolvendo como resposta às ações afirmativas nesses dois países. Finalmente, pretende-se argumentar sobre as relações desse estudo com as políticas e práticas educacionais. O aporte teórico para esse estudo é a Teoria Crítica Racial (TCR), que tem como um dos fundamentos principais o de que o racismo é uma condição que se mantém e se manterá de forma cultural e institucional ao longo da vida (TATE, 1997). Ele não é natural, é uma ideia construída socialmente e é autorreprodutível (BELL, 1995; BONILLA-SILVA, 1999). Para mais além, o racismo em TCR, aponta para a realidade da supremacia branca, que nada mais é do que um sistema social racializado que, injustamente, privilegia e dá poder àqueles que são identificados como brancos. A supremacia branca cria um sentido de superioridade e é aprendida por pessoas brancas que têm, como recompensa, vantagens no sistema social, aquisição de propriedades materiais e intelectuais e outras formas de suplantação sobre o outro, baseadas nos privilégios das questões raciais (HARRIS, 1995; MCINTOSH, 1997). Como tentaremos demonstrar, Brasil e EUA, são nações de domínio e supremacia branca. A história da branquitude no Brasil começou em 1500 quando os portugueses chegaram e deram início ao genocídio indígena. Eles acreditaram que os povos indígenas não eram uma força laboral de fácil subjugação, então começaram a institucionalização criminal da escravidão dos povos africanos no início dos anos de 1600. De acordo com Meyers (1999) mais de 3,5 milhões de africanos foram trazidos para o Brasil. Número superior a qualquer outro país da América (IDEM, 1999). Em 1888, o Brasil finalmente respondeu às pressões dos movimentos quilombolas e abolicionistas, como os da sociedade anti-escravidão liderada por Joaquim Nabuco e tornou-se o último país da América a encerrar com os processos de escravidão (IDEM, 1999). O fim da escravidão não significou o fim da opressão dos afro-brasileiros. Os brancos não compartilharam suas riquezas construídas à custa do trabalho negro e povos não brancos. Os afro-brasileiros tornaram-se a força laboral “livre”, mas nunca receberam reparação, recompensa material ou monetária por centenas de anos de tortura e trabalhos forçados. Temendo que os negros livres fossem causar uma erosão social, os brancos brasileiros implementaram um programa nacional de embranquecimento ou branquitude para dissolver o elemento negro da sociedade brasileira—fisicamente e culturalmente (DEGLER, 1971; TWINE, 2000; SKIDMORE, 1990). Esse elemento branco foi sistematicamente privilegiado pela imigração europeia e pelo decrescimento dos não europeus (MEYERS, 1999). A miscigenação foi encorajada como recurso de erradicação genética da negritude. Segundo Skidmore (1990), Joaquim Nabuco, em sua narrativa, dizia que terminar a escravidão significaria a criação de um Brasil dominado pela negritude porque as políticas de embranquecimento eventualmente resolveriam o “problema” da presença africana. Com a presença da ideologia de embranquecimento estabelecida, os imigrantes europeus vieram em massa ao Brasil no final do século XIX até meados do século XX. Durante esse tempo, os europeus construíram uma coalizão étnica dentro de uma força de trabalho e de uma política branca. A economia brasileira caminhou para a industrialização e afro-brasileiros foram sistematicamente excluídos de sistemas educacionais e força empregatista. Apesar desse ataque explícito da supremacia branca aos afro-brasileiros, Gilberto Freyre proclamou, em 1933, que o Brasil era uma “democracia racial” um lugar onde o racismo estrutural não existia (PEREIRA; WHITE, 2001). Hoje, ainda existem aqueles que acreditam na ideologia da negação estrita, da estruturação do racismo e se referem ao Brasil como uma democracia racial, apesar de ser evidente que os embranquecidos e brancos têm mais riqueza e poder do que negros e mulatos. 23 O legado da escravidão e embranquecimento deixaram a atual presença afro-brasileira na esfera mais baixa da hierarquia social. No decorrer da história tem havido uma consciência afrobrasileira que proveu resistência contra a supremacia branca (MOURA, 1959). O movimento negro hoje é a manifestação atual dessa presença ideológica racial crítica. Recentemente ela marcou passagem com lei que condena, como crime, a discriminação racial. Durante administração Sarney a lei No. 7.716/ 1989 punia o crime resultante de preconceito racial. Os predadores poderiam ser sentenciados com até cinco anos de prisão. Subsequentemente, a administração Cardoso modificou essa lei em 1997 no No. 9.459 incluindo uma punição de danos, adicionando a questão de etnia, religião e nacionalidade como categorias protegidas. Essas administrações cederam às pressões do movimento negro. Porém, essas leis, têm defeitos ou fraquezas. Elas tratam o racismo como atos individuais que uma pessoa de um grupo faz contra pessoas de outro grupo, como se fosse um crime passional ou crime de ódio. Nos EUA elas não tratam o racismo como forma estrutural ou como um problema institucionalizado. Elas tratam os mecanismos como a segregação residencial, acumulação injusta do enriquecimento branco e o agrupamento ilícito, deixando portas abertas para grupos brancos articularem ou reclamarem que grupos antirracistas, como os do movimento negro, estão “invertendo o racismo” para um sistema de ódio às pessoas brancas. Tem havido poucas condenações como resultado desta lei. De fato, a lei No. 7.716, basicamente, não tem condenado ninguém (TWINE, 2000). Em suma, essas leis não têm força, estrutura e apoio desde sua implementação. Tais leis, também atuam precariamente no sentido de interromper as formas cotidianas de racismo que ocorrem em lugares como as escolas. Por sua vez, as escolas têm funcionado, durante décadas, como reprodutoras – conscientes ou não – da desigualdade racial. A partir da percepção dessa reprodução do racismo no cotidiano escolar, os movimentos afro-brasileiros têm se engajado na revisão e aplicação dessas leis de abrangência limitada, na luta contra o racismo branco (TWINE, 2000). Na última década, o movimento afro-brasileiro atuou, ativa e intensamente, junto ao então candidato à presidência, Lula, propondo uma coalizão com o Partido dos Trabalhadores (PT). Sendo assim, uma das propostas de candidatura revisava a possibilidade de ressarcir a dívida para com os afro-brasileiros. Essa ação afirmativa foi uma iniciativa política fundamental para iniciar os processos de ressarcimento dessa dívida e também um suporte no combate à falsa ideia do racismo como um ato individual, colocando o tema num patamar de política pública e prática institucional. Com a vitória nas eleições, estabeleceu-se um Gabinete para a Promoção da Igualdade Racial, sob a Lei no. 10.678/2003, que atualmente trabalha investigando possíveis iniciativas de ações afirmativas. Apesar de discreto, em termos de política nacional, existem algumas situações em que o programa de ação afirmativa já tem se desenvolvido. Como exemplo dessas ações, algumas universidades públicas recentemente criaram um sistema de cotas raciais para tornar acessível o ingresso no ensino superior. Universidades como a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), entre muitas outras, aprovaram uma política de cotas na qual o corpo discente deve ser composto no mínimo em 20% de alunos de escolas públicas, 20% de negros ou membros de grupos étnicos minoritários e 5% de alunos com deficiências. Nota-se, portanto, que os alunos afro-brasileiros foram alocados junto a outras minorias étnicas. Essas iniciativas encontraram grande resistência e controvérsia entre a população brasileira. Em grandes cidades como São Paulo e Porto Alegre, entre outras, também se aprovaram cotas de ação afirmativa para empregos públicos. No Estado de São Paulo foram aprovadas, essas afirmações, para todas as cidades, mas ainda algumas universidades e instituições se recusam a fazer as reparações adequadas e implementações de tais iniciativas. Assim, nessa fase do processo, é apropriado dizer que o Brasil ainda está nos estágios iniciais de fundamentação dessas ações afirmativas. Ressalta-se que, caminhando com as ações afirmativas 24 em relação à problemática da desigualdade com os afro-brasileiros, membros da sociedade sóciocomunitária brasileira, ainda serão beneficiados, com o acesso ao ensino superior por alunos excluídos por questões sociais e distribuição de renda. Mesmo que os brancos no Brasil tenham pouca ou nenhuma experiência direta com as políticas de ações afirmativas, elas têm provocado reações negativas no público. Com a mera possibilidade de que venham a ser implementadas em âmbito nacional – não só em relação ao ensino, mas em áreas como emprego e outras – essas ações têm sido alvo de duras críticas pela população. A oposição branca às ações afirmativas como as de cotas, no Brasil, é investida de um déficit cultural e de argumentos pró-embranquecimento como: a) é antidemocrático, vai de encontro à Constituição, b) revigora ou reforça um racismo que não existe, muitas vezes com um discurso de reversão – racismo invertido, c) vai destruir o mérito e a competência exigidos para a entrada na universidade, d) é cópia das políticas dos EUA e a educação no Brasil é diferente da estadunidense, e) provoca discriminação contra os cotistas pela produção da ideia de incapacidade de aprovação no vestibular e f) as cotas são discriminatórias e injustas para com os brancos. Dessas falas e argumentos, reconhecemos, sem surpresa, que são produtos de uma estabilidade da superioridade branca, na educação, nunca antes desafiada por ações parecidas. Começa uma desestabilização do poderio branco. Um ataque comum, desfraldado pelo setor de esquerda marxista, é o de que as cotas e as iniciativas de ações afirmativas para os afro-brasileiros são reivindicações de apelo reformista e não revolucionário. Não encontramos dúvidas de que o sistema de cotas advém de uma natureza reformista e paliativa para os negros, bem como de que, historicamente, ele tem um caráter democrático advindo da burguesia francesa, inglesa e estadunidense. Assim, pergunta-se ‘por que os negros devem defender interesses de uma burguesia revolucionária?’ Porque, no contexto real em que se encontra o Brasil, essa defesa, de caráter progressivo, provoca e mobiliza a população deixando a classe social dominante brasileira de sobreaviso e, este, é um argumento válido para a solidificação da luta pela implementação das cotas num âmbito geral. Diante da visão desse sistema progressivo cabe ressaltar uma crescente conscientização e educação da comunidade negra brasileira quanto à mobilização política, acima de tudo, colocando em xeque a opressão racial, que é secular no Brasil. Portanto, o sistema de cotas não apresenta um fim em si mesmo, mas um conjunto de meios progressistas que, entre outros, denota um poder que dá visibilidade aos negros no país. Outra crítica, frequente no Brasil, é de que a entrada de negros nas universidades por meio da ação afirmativa de cotas subverte o mérito, entrando em campo a ideologia meritocrática. Essa ideologia é obscura quando se discute o que se define por “mérito” e se o mesmo não é baseado na vantagem que os brancos já têm, desde os ensinos fundamental e médio, sobre os afrobrasileiros. Também é recorrente a objeção da entrada dos negros no ensino superior, alegando-se que o sistema de cotas implica na redução da qualidade do ensino e da aprendizagem. Teoria que recai na constituição dos currículos, desde a sua base até o ensino superior. O que esses currículos abarcam? Eles são ou não apenas uma forma de reafirmarem a desigualdade e discriminação racial? O argumento de que as distorções raciais na educação brasileira têm como solução a melhoria da educação básica, também é muito utilizado em confrontos contra o sistema de cotas. As cotas são uma iniciativa provisória, para uma correção imediata, o que não anula a exigência de uma educação básica de qualidade, igualitária e acessível aos afro-brasileiros. Bem sabemos que, essa estruturação, exige um esforço em longo prazo, talvez de uma geração inteira onde os negros ainda continuaram sendo destituídos do sonho de entrar numa universidade. Os detratores alegam que um eventual programa de cotas vai acentuar o racismo na sociedade e no cotidiano universitário. O que de fato pode acontecer é um desmascaramento do racismo, que é real na sociedade brasileira e que já é intenso sem a problemática das cotas. O racismo sempre 25 foi e sempre será uma arma ideológica de dominação. No caso do nosso país, dissimulado, mascarado, velado, oculto e extremamente eficiente. O discurso da impossibilidade de se definir quem é negro no Brasil, uma vez que todos são mestiços, também caracteriza uma oposição às cotas e, esse discurso, é altamente perigoso. Sob uma perspectiva biológica, a mestiçagem existe em qualquer parte do mundo, uma vez que muitos pesquisadores desacreditam da pureza de uma raça. Mestiço não é uma característica genuinamente brasileira. Países, ditos brancos, possuem também uma dose de mestiçagem, uma mistura racial. A construção ideológica da figura mestiça – o mulato ou o moreno –, serviu para atenuar o choque racial no Brasil. Uma categoria intermediária entre uma maioria negra e uma minoria branca no período colonial. O mulato serviu como uma válvula de escape para amenizar a tensão racial existente. Essa alternativa, vista como providencial, trouxe a lume um híbrido que nunca poderia ser definido como branco, ou como negro. Tornou-se então, o discurso da mestiçagem, muito popular, de tal maneira que a população brasileira – diferente da estadunidense, por exemplo – não assume uma identidade racial. O sistema de cotas encorajou os alunos a abertamente se definirem como negros, mesmo a existência da raça sendo apenas uma construção ideológica, social e política. A implementação, dessa primeira ação afirmativa – a do estabelecimento de cotas – declara o fim do mito da democracia racial ou o mito da ausência de preconceito, racismo e discriminação no Brasil. A operacionalidade e execução de programas como o de cotas, por si só, é capaz de provar que existe racismo e que, ele, é um problema real para os negros no Brasil. Esse é um momento único e singular, na história brasileira, em que a sociedade civil não só se torna mais consciente sobre a problemática do racismo, bem como começa a contemplar soluções e alternativas reais para a questão racial no Brasil. Pela primeira vez são quebradas as barreiras do silêncio impostas pelo racismo. Felizmente, embora tardiamente, podemos enxergar alternativas para superar essas atrocidades tendo agora o amparo legal e constitucional do país. Evidentemente que as cotas não são a Panaceia para os problemas gerados pela desigualdade racial, mas é um começo. Entre tê-las ou não, de fato, é melhor tê-las e lidar com os desafetos. Opor-se às cotas e não apresentar alternativas para enfrentar as questões de desigualdade no campo educacional constitui-se numa aceitação e internalização da condição de opressor com o domínio de mais de quinhentos anos. A história da branquitude nos Estados Unidos tem muitas semelhanças com a do Brasil, mas as diferenças são significativas. Como colonizadores no início do século XVII, os ingleses invadiram o que são agora os Estados Unidos da América e deram início ao genocídio contra os povos indígenas (TAKAKI, 1993). A escravidão dos negros, legalizada, teve seu começo na Virgínia em 1600, espalhando-se por quase todo o país, embora a maior parte tenha se concentrado no sul (WILLIANS, 1961). A ideologia racial branca elencava os escravos como sub-humanos e geneticamente inferiores, descrito na Constituição Americana como equivalentes a três quintos do que era um ser humano. Embora hajam muitos tabus nos escritos históricos estadunidenses sobre a miscigenação, ela ocorreu. O choque que essa miscigenação causou, dentro de uma sociedade onde a pureza de raça era promovida publicamente, resultou em complexas e contraditórias medidas legais sobre quem poderia ou não assumir-se “branco” (HANEYLÓPEZ, 1996). Iniciou-se, em meados dos anos de 1800, o movimento abolicionista, que culminou na Guerra Civil Americana e na libertação dos escravos, em 1865. Como no Brasil, o fim da escravidão nos EUA não significou o fim da opressão contra os negros estadunidenses. Inicialmente, alguns negros ganharam poderio político em estados do sul, sendo eleitos para órgãos governamentais. Mas os brancos rapidamente organizaram a Ku Klux Klan (KKK) como um meio de reafirmar a dominação branca. Os EUA abriram as portas aos imigrantes europeus no final dos anos de 1800 e início dos anos de 1900 como estratégia para aumentar a política branca com vistas na dissolução do Black Power. Embora houvesse tensão entre os europeus e brancos estadunidenses, os mesmos se uniram para exterminar os negros, 26 bem como excluí-los dos campos de trabalho (ROEDIGER, 1999). Leis e regras formais de separação racial foram criadas nesse período, como a Jim Crow, sendo somente desmanteladas nas décadas de 1950 e 1960 pelo Movimento dos Direitos Civis. Como ainda não acontece no Brasil, nos EUA existe uma lei estabelecida como ação afirmativa onde, em seus termos, as empresas e as escolas podem ser processadas se impedirem o acesso de pessoa negras, pagando indenização por danos. Assim, muitas instituições têm elaborado projetos e programas de ações afirmativas para inclusão da diversidade. Entretanto, alguns críticos das ações afirmativas, argumentam sobre o fato de não ter sido dado um peso legal, nessas ações, às questões raciais, de maneira que não se faz valer a lei, que foi escrita incluindo também as questões de gênero, sendo assim beneficiadas mais as mulheres e famílias brancas que os próprios negros (YANCEY, 2003). A maioria das críticas produzidas procede de brancos que veem a ação afirmativa como uma forma de racismo reverso (GALLAGHER, 1997). Esses brancos têm os mesmos argumentos que os brancos, atualmente, fazem no Brasil. Parece-nos que, o medo inerente ao desafio do privilégio de ser branco tem impulsionado movimentos em prol da destituição da ação afirmativa. Como exemplo, a proposição 209 do estado da Califórnia que eliminou a ação afirmativa em algumas instituições educacionais. Em suma, a neo supremacia branca tem fomentado reações conservadoras contra as ações afirmativas (KINCHELOE, STEINBERG, 1998). A guisa de conclusões parece que o Brasil é uma nação que está tentando caminhar do século da ideologia racial branca para uma doutrina mais consciente de ações afirmativas. Em contraste, os EUA – apesar de também o ter feito – agora enfrentam a resistência da ideologia racial com as críticas dos brancos e com os movimentos contra as ações afirmativas. Infelizmente, os brancos no Brasil seguem um caminho parecido com o trilhado pelos brancos estadunidenses em suas oposições políticas, entretanto, as ações afirmativas, despontando no país, parecem mais suscetíveis em suportar os eventuais desafios. Pelas implicações iniciais sugere-se uma reformulação curricular, de políticas públicas e educacionais, bem como um estudo comparado para compreender e desafiar as tendências ideológicas de exclusão racial em ambos os países. O currículo deve incluir estudos antirracistas que desconstruam a interiorização do racismo entre brancos e negros, se aprofundando na supremacia branca como um fenômeno perigoso e expansionista dentro dos processos sociais e educacionais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BELL, D. (1992). Faces at the bottom of the well: The permanence of racism. New York: BasicBooks. BENITO, M. A. S. (2002). Branqueamento e branquitude no Brasil. In I Carone & M. A. S. Bento (Eds.), Psicologia social do racismo (pp. 25-57). 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New York: Russell & Russell. 28 TECNOLOGIA E PRÁTICAS EDUCATIVAS: O PROJETO MUNDO DO SABER Renato Kraide Soffner [email protected] Coordenador do curso de Mestrado em Educação-UNISAL-Americana-SP Maria Dorothea Chagas Correa [email protected] Mestre em Educação UNISAL – Americana –SP Resumo: Este trabalho teve por finalidade investigar se o uso constante das tecnologias oferecidas pelo software educacional Mundo do Saber, impulsionou um grupo de professores a mudar a didática em relação ao preparo de suas aulas e materiais de apoio pedagógico. O Mundo do Saber é uma solução de educação mediada pelo computador. Por meio dos módulos e jogos educacionais, o aluno tem a oportunidade de aprender de forma lúdica e atrativa e o professor de adquirir conhecimentos de informática. É uma ferramenta adicional pedagógica para revisar, avaliar, discutir e refletir sobre os conteúdos curriculares e extracurriculares. A cidade escolhida foi Casa Branca/SP, por ser no início desta pesquisa, a mais recente parceira do projeto. A metodologia escolhida foi a aplicação de questionário misto nos professores que fazem parte das duas escolas de Ensino Fundamental I da referida cidade. Os questionários foram recolhidos, os dados foram tratados e analisados tendo em vista os objetivos de investigação previamente definidos. Por fim, ficou claro que este software colabora para o aprendizado e impulsiona os professores a mudar a didática de suas aulas, porque têm como objetivo desenvolver a criatividade, a capacitação dos alunos, a reflexão e um olhar crítico sobre os meios de comunicação. Palavras-Chave: Mundo do Saber; Software Educacional; Tecnologia Abstract: This study aimed to investigate whether the constant use of the technologies offered by World of Learning educational software, spurred a group of teachers to change teaching in relation to the preparation of their lessons and teaching support materials. The World of Learning is an education solution mediated by the computer. Through the modules and educational games, students have the opportunity to learn through play and attractive and the teacher to acquire computer skills. It is an additional tool for pedagogical review, evaluate, discuss and reflect on the curriculum and extracurricular. The city was chosen White House / SP, being at the beginning of this research, the newest partner in the project. The methodology chosen was the application of mixed questionnaire on teachers who are part of the two schools of elementary school of that city. The questionnaires were collected, the data were processed and analyzed in light of the research objectives previously defined. Finally, it became clear that this software works for learning and encourages teachers to change their teaching classes because aim to develop creativity, empowerment of students, reflection and a critical eye on the media. Key-Words: World of Wonder; Educational Software; Technology Introdução: Este trabalho mostra o resultado de uma pesquisa feita após uma série de vivências ocorridas nos laboratórios de informática com o uso do projeto Mundo do Saber1. O Mundo do Saber é um programa que foi desenvolvido em parceria com a UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas). Trata-se de um projeto que visa trazer soluções educacionais avançadas que auxiliem no processo de ensino-aprendizagem de alunos de faixa 29 etária e nível socioeconômico variados, tornando-o uma experiência agradável através dos módulos2 e jogos educacionais3, cujo objetivo é avaliar e refletir sobre os conteúdos abordados em sala de aula. Tendo em vista o papel das Tecnologias de Informação e Comunicação na inclusão digital e no suporte pedagógico à educação formal, a Secretaria Municipal de Educação do Município de Casa Branca- SP, implantou em suas escolas municipais um espaço destinado à aplicação da Informática aos processos educativos. Desde o início do ano de 2010 foram instalados laboratórios de Informática, para que tais tecnologias sejam ferramentas complementares ao trabalho pedagógico do professor. Estabeleceu-se, também, um convênio entre a prefeitura da referida cidade e o Projeto Mundo do Saber, criado e desenvolvido no Larcom4, que se constitui em ferramenta de suporte pedagógico a qual visa melhorar os recursos didáticos para o professor, com o foco da aprendizagem centrada no aluno, através de módulos e jogos educacionais. ____________________________ 1 Software Educacional para uso de computador, criado e desenvolvido em 2001 no LARCOM – Laboratório de Comunicações da Unicamp – é formado por uma equipe multidisciplinar de pedagogos, web designers e programadores, que junto com os professores da rede municipal das cidades parceiras, desenvolvem aulas, que são transformadas em aulas virtuais e, posteriormente, disponibilizadas no portal do Mundo do Saber. 2 Nomenclatura dada às aulas, com conteúdos pontuais, desenvolvidas pelos professores da rede municipal, durante as formações presenciais oferecidas pelo Projeto Mundo do Saber e que, posteriormente, são transformadas em aulas virtuais. 3 Nomenclatura dada às aulas desenvolvidas por professores especialistas de cada disciplina. Os conteúdos são multidisciplinares e não se esgotam no período de 50 minutos. (tempo determinado para uma aula no laboratório de informática). 4 Laboratório de Comunicações situado na Faculdade de Engenharia Elétrica da Unicamp/SP. O projeto Mundo do Saber provê um ambiente de comunicação colaborativa, que segundo Moran (2000), através de um ambiente colaborativo, “podemos participar de uma pesquisa em tempo real, de um projeto entre vários grupos, de uma investigação sobre um problema na atualidade” e possibilita aos alunos modelos diferentes de aprendizagem. Os professores do município parceiro passam por formações realizadas de forma presencial (teoria e prática) e, posteriormente, ocorre um acompanhamento continuado à distância a fim de que ocorra a entrega de atividades e sejam apresentadas soluções de eventuais dúvidas e acesso no que se refere ao material utilizado no curso de forma digital. São qualificados não só para o uso do computador como auxiliar pedagógico, como também para a elaboração do projeto de um módulo, sendo que cada módulo é desenvolvido de acordo com os referenciais pedagógicos5 do município, diferenciando-os das aulas expositivas tradicionais, mas com a realidade e contexto dos alunos. Os módulos são ambientes virtuais que têm por objetivo estimular aquisições cognitivas, sensório-motoras e atitudinais, através de atividades lúdicas, interativas e desafiadoras, as quais são cuidadosamente ponderadas e posteriormente desenvolvidas de forma artesanal e peculiar de cada professor. Com a implantação nos laboratórios de informática e o uso semanal deste software educacional, professores e alunos do Ensino Fundamental I, situados na cidade de Casa Branca/SP, puderam vivenciar experiências distintas e com significados variados. E, sendo o Mundo do Saber ferramenta de suporte pedagógico, instrumento que visa auxiliar os professores, instrumento que visa melhorar os recursos didáticos com a aprendizagem 30 centrada no aluno, então, pode colaborar, também, com os professores quanto à mudança da didática no preparo de suas aulas abrangendo além do laboratório de informática. ___________________ 5 Resumo sobre o tema já definido e delimitado, enfatizando conceitos, características, justificativas de modo compacto com as fontes (autores, ano e página). Santaella (2004) sugere ao professor, quebrar o paradigma da leitura linear e ser um intenso navegador da internet, buscando alternativas para a construção de materiais didáticos, distanciando-se do livro físico e dos textos impressos. Usando essa argumentação como base e tendo o uso do Projeto como experiência, surgiram as seguintes inquietações: - Os recursos tecnológicos oferecidos pelo Mundo do Saber ajudam, de forma efetiva, os professores a mudar a didática em relação ao preparo de suas aulas e recursos de apoio à aprendizagem? - Seria o projeto Mundo do Saber, simplesmente, mais um software educacional? A mudança sempre foi fundamental na vida do ser humano. Na época atual, a mudança significa inúmeros riscos e inseguranças, mas também proporciona inúmeras possibilidades. Com o avanço da tecnologia e o desenvolvimento mundial da Internet, surgem alternativas para o aprimoramento e a implantação de novas ferramentas, as quais têm o propósito de auxiliar o ensino e a aprendizagem, o que incomoda velhos paradigmas, difíceis de serem quebrados. O desenvolvimento tecnológico oferece recursos para novas formas de ensino, e a tecnologia educacional mostra-se importante para integrar o aluno com a sociedade da informação e a educação, e o uso do computador, abre possibilidades para todos através da informática. Este fato traz benefícios para a área educacional, uma vez que permite que as paredes da sala de aula sejam ampliadas, pois proporciona compartilhamento de informações entre alunos e professores de outras cidades e países. “A comunicação, definitivamente, molda a cultura”. (POSTMAN, 1999, p.38). No mundo contemporâneo, em que a Internet proporciona tantas informações é imprescindível que o professor se proponha a realizar formações para o uso das novas tecnologias oferecidas na área da educação, uma vez que o uso, simplesmente, de novos métodos e softwares6 não promove uma revolução no aprendizado. ___________________ 6 O termo software é utilizado com o sentido de programa de computador. A educação deve fazer o ser humano capaz de transformar potenciais em competências para viver. (SOFFNER, 2005). Este estudo teve como objetivo avaliar se a utilização do projeto Mundo do Saber estimulou os professores do Ensino Fundamental I, da cidade de Casa Branca a mudar a didática em relação ao preparo de suas aulas e recursos de apoio à aprendizagem. Conforme Moran (2000), “todos estamos experimentando que a sociedade está mudando nas suas formas de organizar-se, de produzir bens, comercializá-los, de divertir-se, de ensinar e de aprender”. (p. 11) Formar para as novas tecnologias é formar julgamento, o senso crítico, o pensamento dedutivo, as faculdades de observação e de pesquisa, a imaginação, a capacidade de memorizar e classificar, a leitura e a análise de textos e de imagens, a representação de redes, de procedimentos e de estratégias de comunicação. (PERRENOUD, 2005). 31 Pensando em atingir o objetivo proposto, foi desenvolvido e aplicado um questionário, com todos os professores do Ensino Fundamental I, da cidade de Casa Branca. Os dados produzidos foram analisados a partir do método de Análise de Conteúdo que pode ser definido por Bardin (1979) como: Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens. Ensinar através do computador propõe um novo paradigma, que transcende o ensino tradicional e demanda, portanto, na construção de novos conceitos e práticas pedagógicas que respondam às necessidades de alunos e professores. Incorporar a construção de instrumentos e estratégias trazidas pelos ambientes digitais é tarefa que acontece com a evolução teórica e, também, com o amadurecimento de várias experiências concretas acontecidas neste novo modelo. “A educação é o caminho fundamental para transformar a sociedade”. (FREIRE, 1997, p.12). A escola precisa de professores interessados e alunos que aceitem projetos transformadores. O uso do computador, então, passa a ser defendido como auxiliar no processo de construção de conhecimentos, uma poderosa ferramenta educacional, com potencial de gerar ambientes onde se pode experimentar novas ideias e disponibilizá-las para outras pessoas. 2. Procedimentos Metodológicos 2.1. Escolha da cidade A cidade escolhida para o experimento foi Casa Branca-SP, que se situa no interior do estado, possui 28.189 habitantes, população esta, estimada no ano de 2009. Na cidade acima referenciada, o projeto teve início no decorrer do ano de 2010, impulsionado em inserir os alunos no mundo digital. Com este propósito, a Prefeitura Municipal de Casa Branca, por meio da Secretaria Municipal de Educação, firmou contrato com a Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, para desenvolver o Projeto Mundo do Saber e poder usar os recursos oferecidos por ele, em suas cinco escolas municipais. O laboratório de informática, para a Secretaria Municipal de Educação da referida cidade, funciona como uma ferramenta adicional para os professores nos processos de ensino e de aprendizagem. Entretanto, os alunos não têm aula de informática, apenas se apropriam do estudo, através do computador como complemento às atividades pedagógicas ministradas em sala de aula ou em outros ambientes escolares. Aprendem a utilizar o computador de forma lúdica e com propósito pedagógico. Após as formações pedagógicas e técnicas oferecidas, professores e alunos, do Ensino Fundamental I da rede, passaram a frequentar, semanalmente, durante uma hora relógio, os laboratórios de informática, navegando por módulos e jogos educacionais, previamente escolhidos por eles, de acordo com os conteúdos trabalhados em sala de aula. Os alunos participam das aulas no laboratório de informática, com entusiasmo e interesse e os professores relataram que, ao observarem as cadernetas de frequência, puderam perceber que o índice de faltas é bem menor no dia das aulas no laboratório. Moran (2000) alerta para: alunos motivados aprendem e ensinam, avançam mais, ajudam o professor a ajudá-los melhor. Com os alunos e professores trabalhando como sujeitos interativos no desenvolvimento e uso de conteúdos atravessados por conhecimentos, desconhecimentos e aprendizagens há quase 32 dois anos, já era tempo suficiente para averiguar e, se possível mensurar, se o uso deste software colaborou, de forma efetiva, impulsionando os professores a mudar a didática em relação ao preparo de suas aulas e recursos de apoio à aprendizagem, além de trabalharem as revisões e avaliações dos conteúdos abordados em sala de aula, através da navegação pelos módulos e jogos educacionais. 2.2. Metodologia Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram um no corpo do outro. (FREIRE, 1996) Nesta etapa da pesquisa, o objetivo é mostrar a metodologia escolhida, a técnica utilizada na coleta, na análise e discussão de dados. Minayo (1999) diz que metodologia é o percurso percorrido pelo pesquisador para atingir a sua meta. Este estudo começou com uma inquietação e, como consequência, surgiu a proposta de averiguar se o Mundo do Saber, software educacional, que nasceu para ser diferente, com os recursos tecnológicos que oferece, colabora com o trabalho dos professores, de forma efetiva, a praticarem mudanças na didática em relação ao preparo de suas aulas e recursos de apoio à aprendizagem. Desde o seu surgimento até os dias atuais, o Mundo do Saber está implantado em dez cidades, porém a escolhida para análise deste trabalho de pesquisa foi Casa Branca, situada no interior do estado de São Paulo por ser, até então, uma das últimas cidades parceiras do Projeto. A equipe pedagógica do Mundo do Saber, durante o ano de 2010, desenvolveu um intenso trabalho, presencial e a distância, com as professoras e coordenadoras do referido município, o que proporcionou admiração e respeito mútuo facilitando, assim, a realização da pesquisa com os professores das escolas municipais. Moran (2000), diz que o desenvolvimento tecnológico oferece recursos para novas formas de ensino e a tecnologia educacional mostra-se importante para integrar o aluno com a sociedade da informação. Estas tecnologias começam a afetar profundamente a educação, que sempre esteve presa e continua a lugares e tempos determinados: escola, salas de aula, calendário escolar, grade curricular. As decisões assumidas pelos professores, sobre as condições de ensino e o uso do computador como ferramenta pedagógica apresentam inúmeras situações com várias implicações para o aluno. Frente à evolução tecnológica, a educação se adapta e o computador passa a ser suporte para o professor, ferramenta pedagógica e, após o uso contínuo desta ferramenta, aliada ao software educacional Mundo do Saber, foi perguntado aos professores se poderiam colaborar com a coleta de dados deste estudo, através de questionário, que segundo Groppo e Martins, (2007, p.54), é uma relação de questões a ser apresentada a alguém que guarda informações sobre o tema e que, conhecidas, poderão ajudar a responder o questionamento manifesto pelo problema. Ao ler as perguntas presentes no questionário, esse alguém deverá respondê-las de acordo com a sua interpretação, sem a mediação dialógica do pesquisador. O questionário deve ter estrutura lógica (ser progressivo, preciso e formar um todo ordenado) e linguagem simples, eliminando o máximo possível as ambiguidades, evitando recusas e conseguindo respostas curtas, rápidas e objetivas (CHIZZOTTI, 2000). Conforme alertou Triviños, existem três tipos de questionários: aberto, fechado e misto (1987, p.137). Questionário aberto é aquele que propõe questões de respostas abertas. Este tipo de questionário proporciona respostas de maior profundidade, ou seja, oferece ao sujeito uma maior liberdade de resposta, podendo esta ser redigida por ele. No entanto, a interpretação e o resumo deste tipo de questionário são mais complexos. Pode-se obter variados tipos de respostas, dependendo da pessoa que responde ao questionário. 33 Questionário fechado: tem na sua constituição questões de respostas fechadas, em geral com alternativas a serem assinaladas, permitindo obter respostas que possibilitam a comparação com outros instrumentos de obtenção de dados. Este tipo facilita o tratamento e análise da informação, exigindo menos tempo do pesquisador. Os questionários fechados são bastante objetivos e requerem um menor esforço por parte dos sujeitos aos quais é aplicado. O outro tipo de questionário que pode ser aplicado – e foi o escolhido para esta pesquisa – é o questionário de tipo misto que, tal como o nome indica, apresenta questões de diferentes modalidades exigindo respostas abertas e respostas fechadas. Esta é uma pesquisa exploratória, que segundo Gil, (1999, p. 43) “visa proporcionar uma visão geral de um determinado fato, do tipo aproximativo”. “Possui, ainda, a finalidade básica de desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e ideias para a formulação de abordagens posteriores”. Assim, esse tipo de estudo proporciona um maior conhecimento acerca do assunto, a fim de que novos problemas possam ser formulados ou novas hipóteses sejam criadas para que possam ser pesquisadas por estudos posteriores. Com o objetivo de levantar informações sobre o tema em estudo, foi elaborado um questionário composto por dez perguntas. O mesmo foi aplicado a um grupo de vinte e cinco professores, do 1o ao 5o ano, os quais formam o corpo docente das duas escolas de Ensino Fundamental I, que ajudam a compor o conjunto das cinco escolas municipais da cidade de Casa Branca/SP. Antes da aplicação do experimento, foi solicitado à Diretora de Educação do município, Srª Carla Pavan e à Coordenadora Srª Tereza Cristina, um espaço na reunião de HTPC do grupo de professores das escolas, parceiras do Projeto Mundo do Saber, para conversar com os docentes sobre o estudo em questão, apresentar o cronograma de atividades e expor a forma de participação e colaboração de cada um dos integrantes. Os dados produzidos foram analisados a partir do método de Análise de Conteúdo que pode ser definido por Bardin como: Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens (1979, p.42). Bardin (2004) dividiu a Análise de Conteúdo em três fases: 1. Pré-análise: acontece a exploração do material e o tratamento dos resultados; é nesta fase também, que o esquema de trabalho a ser seguido é organizado. 2. Descrição analítica: será examinado o material coletado, através de leitura para elaborar as categorias. 3. Interpretação referencial: fase em que as respostas serão categorizadas para que os dados possam ser significados. Através da sequência metodológica: questionário misto, transcrição e análise do conteúdo, acontecerá a parte exploratória da pesquisa, seguida pelo problema, objetivos e hipótese. 2.3 Aplicação do questionário e coleta de dados No período que antecedeu a aplicação do questionário, reuniões semanais com o orientador foram realizadas cujo objetivo era analisar e decidir o teor das questões que seriam realizadas através do questionário, aos professores do Ensino Fundamental I, da cidade de Casa Branca/SP. 34 Durante todas as reuniões o projeto foi amplamente exposto e ficou decidido que seria pedida a permissão e a colaboração das Coordenadoras bem como dos Professores para que o questionário fosse aplicado. A solicitação foi muito bem recebida e todos se colocaram à disposição para colaborar com a pesquisa. O questionário elaborado foi do tipo misto, com 10 (dez) questões, contendo 8 (oito) mistas e 2 (duas) abertas, aplicadas aos professores do 1º ao 5º Ano, da rede municipal de Casa Branca, SP, onde todo o grupo teve a oportunidade de responder questões voltadas para a sua prática pedagógica. As questões formuladas para os professores responderem, tiveram como objetivo, verificar junto ao grupo, se o uso constante do software educacional Mundo do Saber os estimulou, através de seus recursos tecnológicos, a mudar a didática em relação ao preparo de suas aulas e recursos de apoio à aprendizagem. Cada questão foi elaborada para receber resposta negativa ou positiva e, também, foi disponibilizado um espaço para os professores registrarem suas opiniões, quais são as atividades realizadas no laboratório de informática e quais são realizadas em sala de aula. Excetuaram-se deste modelo, as questões 2 e 2.1, as quais foram elaboradas para que as respostas fossem 100% (cem por cento) abertas. Quanto à população que foi questionada, não houve critério de seleção, pois na cidade, dentre as cinco escolas existem, apenas, duas de Ensino Fundamental I, e sendo este, um número relativamente pequeno, todo o grupo de professores foi convidado a participar da pesquisa. O total de questionários distribuídos foi de vinte e cinco, abrangendo o total de professores, dos quais apenas vinte deles foram devolvidos. Os dados foram tratados e analisados tendo em vista os objetivos de investigação previamente definidos. 3. Resultado da aplicação do questionário Questão 1: Você usa o computador como ferramenta didática? Como? Respostas em % Professores Sim Não 100 0 Quadro 1: Respostas da questão 1 Fonte: Coleta de dados da pesquisa O grupo de professores respondeu de forma positiva que usa o computador como ferramenta didática no preparo de atividades lúdicas para realizar consultas, pesquisas, buscar novas metodologias, trabalhar a leitura, interpretação, navegar por sites educacionais, bem como apoio aos conteúdos ministrados em sala de aula e também como complemento dos objetivos das disciplinas. Com a Internet e outras tecnologias surgem novas possibilidades de organização para as aulas e os conteúdos dados tornam-se mais do que mera transferência de informação. Aproveitando aqui, para reafirmar a citação de Paulo Freire quando diz sobre a necessidade de sermos homens e mulheres do nosso tempo, que empregam todos os recursos disponíveis para dar o grande salto que nossa educação exige. Como? Questão 1.1 E como instrumento de melhoria da sua própria formação profissional? 35 Respostas em % Professores Quadro 2: Respostas da questão 1.1 Fonte: Coleta de dados da pesquisa Sim Não 100 0 O grupo respondeu que procura incrementar a formação profissional acessando a internet para buscar leituras, livros, atualizações através de cursos “online”, pesquisas sobre assuntos diversos, buscando novos conhecimentos para trabalhar novas estratégias com os alunos. Hoje, diante das rápidas mudanças na sociedade, na tecnologia, muitos educadores, perplexos, chegam a se perguntar sobre o futuro de sua profissão. À educação cabe, então, a formação de novos profissionais com desenvolvimento do raciocínio lógico, autonomia, articulação verbal, iniciativa, comunicação e capacidade de tomar decisões. O raciocínio deixando de ser linear, a aprendizagem se torna mais abrangente, diferente da lógica racional. As duas próximas questões: 2 e 2.1 foram elaboradas no formato “questões abertas” portanto, não apresentarão quadro de porcentagem. Questão 2: De que outras formas você aprimora a sua didática? A maioria dos professores respondeu que aprimoram a didática através de cursos, leituras, seminários, encontros pedagógicos, oficinas, trocas de experiências com outros colegas, cursos de capacitação, cursos de pós-graduação, cursos oferecidos pela rede, navegando por sites educacionais, leitura de artigos sobre educação e participando de palestras. Gadotti (1993) nos diz que a escola “se faz presente na cidade, criando novos conhecimentos e relações sociais e humanas, sem abrir mão do conhecimento historicamente produzido pela humanidade de forma científica e transformadora”. Toda a inovação tecnológica deve ser capaz de contribuir para que os usuários se tornem pessoas participantes da sociedade na qual vivem. Questão 2.1 E o seu processo de formação profissional? Para esta pergunta, todo o grupo de professores respondeu que não dá para parar, a formação é constante e o aprendizado não para de acontecer. Sempre existe um assunto novo para ser aprendido. E todo o grupo de professores afirmou que cursou há pouco tempo ou ainda estão cursando pós-graduação em educação inclusiva, em psicopedagogia, em ludicidade, formação em pedagogia plena, psicomotricidade, gestão educacional, cursos de capacitação oferecidos pela rede, leituras de livros ou artigos relacionados à educação. A globalização e a evolução tecnológica trouxeram mudanças significativas ao mundo do trabalho. A atividade produtiva passa a depender de conhecimentos e os profissionais devem ser pessoas criativas, críticas, reflexivas, preparadas para agir e se adaptar às mudanças dessa nova realidade. Questão 3: Você incentiva seus alunos a fazer pesquisas no computador, além das atividades do Mundo do Saber? De que forma? 36 Respostas em % Professores Sim Não 60 40 Quadro 3: Respostas da questão 3 Fonte: Coleta de dados da pesquisa A maioria dos professores respondeu que incentiva sim, mas encontram dificuldade, pois são poucos os alunos que têm computador em casa. As pesquisas, então, quando acontecem, são desenvolvidas no período de aula, no laboratório da escola. Também fazem pesquisas em grupo, utilizando o computador de parentes ou amigos. Em menor número, professores responderam de forma negativa, que não incentivam seus alunos a fazerem pesquisas, pois não possuem computador em casa e, sendo o curso apostilado, não usam outro tipo de ferramenta pedagógica. As dificuldades na produção das pesquisas, na elaboração dos trabalhos, não devem ser encaradas como obstáculos, mas como um desafio a ser transposto por todos os professores, que têm a preocupação de avançar nos caminhos da cidadania qualitativa, principalmente neste momento em que o uso da tecnologia tem sido muito importante na construção de saberes. A figura do professor é de fundamental importância dentro dos projetos pedagógicos. Questão 4: O uso semanal do Mundo do Saber provocou algum tipo de impacto na didática de suas aulas? Como? Respostas em % Professores Sim Não 80 20 Quadro 4: Respostas da questão 4 Fonte: Coleta de dados da pesquisa De todo o grupo, a maioria respondeu que o uso semanal do Mundo do Saber provocou impactos na didática de suas aulas. Por ser uma ferramenta atrativa, desenvolve nos alunos curiosidade, interesse por assuntos trabalhados de forma árida em sala de aula, despertar para a reflexão, associando a relação entre o conceito e a atividade, motivação para estudar e maior participação nas aulas. A minoria dos professores que respondeu de forma negativa disse que o uso semanal do software não causou impacto, mas serviu para remodelarem as atividades da apostila para coincidirem com as atividades do Mundo do Saber. Como diz Levy (1998), a construção do conhecimento passa a ser igualmente atribuída aos grupos que interagem no espaço do saber. 37 A era da tecnologia chegou. Sem ignorá-la, o professor deve tirar o máximo proveito possível, utilizando o computador como importante ferramenta para o ensino e aprendizagem, construção de saberes e conhecimentos. Questão 5: Através do uso da tecnologia em questão, você apresenta e aprofunda conteúdos curriculares? De que maneira? Respostas em % Professores Sim Não 90 10 Quadro 5: Respostas da questão 5 Fonte: Coleta de dados da pesquisa A maioria dos professores apresentou respostas positivas. Com o uso da tecnologia em questão, os conteúdos acabam se tornando mais interessantes, passam a ter novos significados, saindo muitas vezes, da superficialidade, o que leva os alunos à reflexão e os professores à busca de novos conteúdos, relacionados ao conteúdo trabalhado, tornando a aula multidisciplinar, tirando dúvidas, trocando ideias e, por fim, despertando, nos alunos, interesse pelo novo. O uso da tecnologia em si já representa uma oportunidade de mudança na educação. A prática docente passa a ser centrada nos alunos e os educadores começam a refletir sobre a educação frente às modificações pelas quais está passando. E, o uso da tecnologia em questão, amplia a possibilidade de ensinar e de aprender, além de oferecer novas e variadas formas para que esses processos ocorram. . Questão 6: Trabalhar com o Mundo do Saber despertou em você interesse para integrarse às redes sociais? Conte como foi: Respostas em % Professores Sim Não 40 60 Quadro 6: Respostas da questão 6 Fonte: Coleta de dados da pesquisa A maioria dos professores relatou que já participava das redes sociais. O uso constante do software educacional Mundo do Saber estimulou o uso da internet para pesquisas, estimulou a busca por outras ferramentas para melhorar a didática, estimulou a usar outros aplicativos como, por exemplo, Orkut, MSN, Facebook para interagir com os alunos e, também, com os amigos. Despertou enfim, a curiosidade para novas fontes de integração virtual. Mesmo os professores que já participavam das redes sociais relataram que o uso constante do Mundo do Saber os despertou para novas possibilidades de uso do computador, como por exemplo, descobrirem assuntos novos para darem novos significados à grande quantidade de informação que disponibilizam para os alunos. 38 O avanço das redes sociais em atividades como colaboração, troca de informações, fonte de pesquisas, por exemplo, ecoou com facilidade e a rápida e estrondosa aceitação chegou a surpreender a todos. Adquiriram características profissionais e impactaram todos os meios. Não é mais possível ignorar as redes sociais. Questão 7: O uso semanal do Mundo do Saber o estimula a transformar parte das aulas em processos contínuos de informação, comunicação e pesquisa? Como? Respostas em % Professores Sim Não 85 15 Quadro 7: Respostas da questão 7 Fonte: Coleta de dados da pesquisa A maioria dos professores disse que sim, procurando integrar os conteúdos dados em sala de aula com os conteúdos sugeridos nos módulos, nos jogos educacionais e esse elo torna-se interessante, pois reforça o interesse dos alunos, auxilia e complementa as informações recebidas. O despertar de uma nova postura nos alunos estimula os professores a pesquisar e levar para a sala de aula outros materiais didáticos, como por exemplo, livros, revistas, filmes. O ideal da educação é maximizar resultados e não aprender ao máximo; é aprender a se desenvolver e continuar a se desenvolver depois da escola. Os professores que fazem parte de uma pequena minoria são aqueles que ainda não acreditam totalmente, que a educação somente acadêmica não encontra mais espaço e precisam, portanto, não só conhecer, mas aceitar as inovações tecnológicas. O despertar de uma nova postura nos alunos estimula os professores a pesquisar e levar para a sala de aula outros materiais didáticos, como por exemplo, livros, revistas, filmes. O ideal da educação é maximizar resultados e não aprender ao máximo; é aprender a se desenvolver e continuar a se desenvolver depois da escola. Questão 8: Através do uso constante desta tecnologia, você explora novas possibilidades para a aprendizagem? Como? Respostas em % Professores Sim Não 90 10 Quadro 8: Respostas da questão 8 Fonte: Coleta de dados da pesquisa A maioria dos professores respondeu que sim, pois na medida em que a curiosidade dos alunos é despertada, novos conhecimentos passam a ser construídos, ao mesmo tempo em que oportunidades são criadas para ir além dos conteúdos dados em sala de aula. O professor, como mediador, cria, renova, busca novas possibilidades para o enriquecimento de suas aulas, abandonando de vez o estigma de detentor do conhecimento, de uma comunicação unilateral. 39 Questão 9: O uso do Mundo do Saber o estimulou a usar em sala de aula atividades com suporte em situações lúdicas de aprendizagem? Quais? Respostas em % Professores Sim Não 75 25 Quadro 9: Respostas da questão 9 Fonte: Coleta de dados da pesquisa A maioria dos professores disse que sim. O uso constante do Mundo do Saber despertou nos professores maior envolvimento com a ludicidade em sala de aula, para trabalhar os conteúdos pedagógicos com seus alunos através de jogos de raciocínio, cruzadinha, caça-palavras, bingo, jogo da memória, o que é-o que é, montagem de figuras, dominó, além do uso de revistas e livros. O uso do computador como ferramenta pedagógica, permite ao professor analisar o potencial de seus recursos para o enriquecimento das técnicas conhecidas e facilidade de acesso à rede com possibilidade de usufruir dos seus recursos, objetivando a melhoria do ensino. Questão 10: O uso semanal do Mundo do Saber o estimulou a mudar a avaliação dos conteúdos curriculares? Como? Respostas em % Professores Sim Não 80 20 Quadro 10: Respostas da questão 10 Fonte: Coleta de dados da pesquisa A maioria dos professores disse que sim. Depois do uso constante do Mundo do Saber, como ferramenta pedagógica e de complemento dos conteúdos trabalhados em sala de aula, as avaliações passaram a ser mais criteriosas quanto ao desenvolvimento e elaboração das atividades para serem avaliadas. Diversas atividades do software educacional passaram a ser objeto de avaliação também. Esta questão foi colocada como última para se distanciar das outras respostas, porque a avaliação da aprendizagem está estreitamente relacionada à abordagem curricular. E no currículo humanista, no qual o Mundo do Saber está pautado, a avaliação enfatiza o processo e não o produto; a avaliação é trabalhada de forma mais subjetiva, valorizando a expressão do aluno em pinturas, utilizando como exemplo, poemas, digitações, jogos e vários outros tipos de desafios. A avaliação e o planejamento são atividades inseparáveis e formam um processo único. Com a possibilidade do uso do computador como ferramenta pedagógica, a avaliação deixa de ser uma atividade burocrática e passa a ser valorizada nos seus aspectos educacionais, deixando de ser simplesmente um registro de notas. 40 4. Considerações Finais Neste estudo buscou-se verificar se os recursos tecnológicos oferecidos pelo software educacional Mundo do Saber ajudam, de forma efetiva, os professores a mudar a didática em relação ao preparo de suas aulas e recursos de apoio à aprendizagem. Para isso, foi realizada uma coleta de dados, através da aplicação de questionário com todos os professores do Ensino Fundamental I, da rede municipal de ensino da cidade de Casa Branca, São Paulo. Os dados coletados contribuíram, de forma significativa para a pesquisa, pois, após leitura e registro de todas as respostas, foi possível constatar que com o desenvolvimento da sociedade tecnológica e o uso dos computadores nas escolas, um novo modo de ler e de escrever se impôs. Como diz Moran 2000, os avanços das novas tecnologias vêm afetando vários aspectos da vida cotidiana e escolar. Nesse sentido, a escola, como parte importante da sociedade e do mundo, não poderia ignorar esse processo. Esse mundo novo desenvolve nos educadores envolvidos inquietação e curiosidade, e isso faz lembrar uma citação de Paulo Freire (1994): Sem a curiosidade que me move, que me inquieta, que me insere na busca, não aprendo e nem ensino. Logo no início, ficou constatado que a maioria dos professores do grupo pesquisado usa o computador como ferramenta didática para preparar suas aulas e materiais de apoio pedagógico. Navegam pela internet em busca de novas possibilidades e diferentes caminhos para converter os conteúdos curriculares, para que estes não se transformem em mera transferência de informação. Ao serem questionados se usam o computador como instrumento de melhoria de formação profissional, a maioria do grupo respondeu que diante das rápidas mudanças tecnológicas, a atualização profissional se faz necessária. A educação e a tecnologia formam uma importante parceria. É através dessas inovações que acontece a inclusão no mundo digital, porém é necessária a conscientização da aliança que deve ser feita entre a educação e o ensino tecnológico, pois como diz Valente (1993), as possibilidades de uso do computador como ferramenta educacional estão crescendo e os limites dessa expansão são desconhecidos. Quando foram indagados de que outras formas aprimoram a didática e a formação profissional, a maioria respondeu que participa de cursos variados, faz leituras, participa de seminários, encontros pedagógicos, oficinas, trocas de experiências com outros colegas, cursos de capacitação, cursos de pós-graduação, cursos oferecidos pela rede, leitura de artigos sobre educação e, também, participa de palestras. O papel do professor está mudando, não é mais o único transmissor do conhecimento, o professor tornou-se um mediador entre o conhecimento e a realidade, portanto a renovação profissional se faz necessária independente do veículo transmissor. O incentivo ao uso do computador como fonte de pesquisa foi relatado de forma positiva em todas as turmas deste grupo de professores, porém, há um número razoável de alunos que não possui a máquina em casa, o que dificulta muito o desenvolvimento do trabalho extraclasse. Há necessidade dos professores fazerem uma programação antecipada, onde os alunos farão os trabalhos, as pesquisas solicitadas em casa de parentes, amigos ou mesmo na escola. O tempo estimado para as aulas de informática é de cinquenta minutos, muito pouco para navegar pelo Mundo do Saber e desenvolver uma pesquisa, por exemplo; então, usa-se, normalmente, o período inverso para os trabalhos extraclasse. Moran (2009) salienta que: As tecnologias nos ajudam a encontrar o que está consolidado e a organizar o que está confuso, caótico, disperso. Por isso é tão importante dominar ferramentas de busca da informação e saber interpretar o que se 41 escolhe, adaptá-lo ao contexto pessoal e regional e situar cada informação dentro do universo de referências pessoais. Ao grupo, também, foi feita a indagação se o uso semanal do software educacional Mundo do Saber, promoveu algum impacto na didática de suas aulas. A maioria disse que sim, por ser uma ferramenta atrativa, que desenvolve nos alunos curiosidade, interesse por assuntos diversos, leva à reflexão além de motivar para o estudo e participação nas aulas. Para Moran (2009), as tecnologias permitem mostrar várias formas de captar e mostrar o mesmo objeto, representando-o sob ângulos e meios diferentes: pelos movimentos, cenários, sons, integrando o racional e o afetivo, o dedutivo e o indutivo, o espaço e o tempo, o concreto e o abstrato. Ao professor, então, cabe o papel de tirar o máximo proveito possível e utilizar o computador como importante ferramenta para o ensino e aprendizagem e construção de saberes e conhecimentos. Sabendo-se que o grupo de professores usa, semanalmente, os laboratórios de informática, foi perguntado se aprofundam os conteúdos curriculares através da tecnologia. A maioria respondeu que sim, visto que com o uso da tecnologia em questão, os conteúdos acabam se tornando mais interessantes, passam a ter novos significados e os professores saem em busca de novos conteúdos, tornando a aula multidisciplinar. Para Moran (2000), a utilização das tecnologias, colabora com os processos educativos, de várias maneiras. Segundo o autor, o aluno aumenta as conexões linguísticas, geográficas e interpessoais, desenvolve o aprendizado cooperativo, a pesquisa em grupo, a troca de resultados; desenvolve a intuição, a flexibilidade mental e a adaptação a ritmos diferentes. Com tantas inovações tecnológicas, foi perguntado ao grupo de professores se, com o uso do Mundo do Saber, se sentiram despertados para a integração às redes sociais. A maioria relatou que já participava das redes sociais, devido ao forte apelo tecnológico. Papert (2007) relata que o computador mudou a situação porque ele é em si um objeto interessante para ser explorado e porque acrescentou dimensões de interesse a outras áreas de trabalho. Pensando no recurso da informática como um instrumento a acrescentar na formação dos alunos, o computador pode contribuir não apenas para a inclusão digital, mas, também, como recurso para apropriação de algo novo, uma motivação à aprendizagem, que encoraja e traz o desejo de explorar e de conhecer algo novo que pode transformar as aulas em processos contínuos de informação, comunicação e pesquisa, através das mais variadas mídias e softwares. Paralelamente, os professores repensam suas aulas, tornando-as mais dinâmicas, a partir da necessidade de transformá-las em aulas lúdicas, semelhantes às virtuais. Além disso, demonstram cada vez mais interesse em ampliar a autonomia diante do computador, ao sentirem a necessidade de um maior envolvimento, visto que a comunidade já está conectada. Foi perguntado, também, se houve algum tipo de mudança quanto à avaliação dos conteúdos curriculares estimulada pelo uso do software. A maioria do grupo disse que sim. Para Papert (2007), a aprendizagem é um ato natural, como comer, por exemplo, ou conversar face a face. O professor como mediador faz emergir, através da relação entre teoria e prática, o entendimento de que os problemas existentes não são resolvidos apenas por técnicas. A aprendizagem significativa acontece quando os alunos podem, também, participar do processo. Ainda de acordo com este autor, quando o conhecimento é distribuído pelos minúsculos pedaços, não se pode fazer mais do que memorizá-lo na aula e escrevê-lo em um teste. Quando ele está integrado em um contexto de uso, pode-se ativá-lo e corrigir falhas menores. O uso do computador como ferramenta propõe um novo paradigma e demanda, portanto, a construção de novos conceitos e práticas pedagógicas. A avaliação não é um momento de uma proposta pedagógica, mas um de seus componentes constantes é parte de um processo dinâmico, que influencia e é influenciado pelas respostas dos 42 alunos; é a parte mais importante do processo ensino-aprendizagem; é o momento de mostrar aos alunos que, podem e devem continuar integrados ao sistema educacional, mesmo se tiverem progressos rápidos ou lentos. E, com a possibilidade do uso do computador como ferramenta pedagógica, a avaliação deixa de ser um simples registro de notas. Em resumo, os pontos positivos são: O grupo de professores, na sua maioria, usa o computador como ferramenta didática como apoio dos conteúdos ministrados em sala de aula e como complemento dos objetivos das disciplinas. Incrementa a formação profissional acessando a internet. A maioria dos professores aprimora a didática. Todo o grupo de professoras respondeu que não é possível parar, a formação profissional é constante e o aprendizado não para de acontecer. A maioria dos entrevistados respondeu que o uso semanal do Mundo do Saber provocou impactos na didática de suas aulas. A maioria dos professores disse que com o uso da tecnologia em questão, os conteúdos são aprofundados. A maioria dos professores relatou que já participava das redes sociais. O uso constante do software educacional Mundo do Saber só veio acrescentar. O uso semanal do Mundo do Saber estimula a maioria dos professores a transformar parte das aulas em processos contínuos de informação, comunicação e pesquisa. Através do uso constante do Mundo do Saber, a maioria dos professores disse que explora novas possibilidades para a aprendizagem. O uso constante do Mundo do Saber despertou nos professores maior envolvimento com a ludicidade em sala de aula, para trabalhar os conteúdos pedagógicos com seus alunos. A maioria dos professores disse que, depois do uso constante do Mundo do Saber, como ferramenta pedagógica e de complemento dos conteúdos trabalhados em sala de aula, as avaliações passaram a ser mais criteriosas quanto ao seu desenvolvimento e quanto à elaboração das atividades para serem avaliadas. Os pontos negativos são: A maioria dos alunos não tem computador em casa. Isso dificulta, bastante, a continuidade das atividades extraclasse. Existem professores que acreditam e praticam, em grande parte, a educação acadêmica. Alguns professores acreditam que não deve haver mudança na rotina de crianças menores. A crença de alguns professores na prática de atividades lúdicas apenas em sala de aula. Alguns professores acreditam em avaliações feitas apenas em papel. Por fim, ressalta-se que o software educacional Mundo do Saber colabora para o aprendizado e estimula, impulsiona os professores a mudar a didática de suas aulas e, também, o material de apoio pedagógico, porque possui como objetivo desenvolver a criatividade, a capacitação dos alunos de atuar em um mundo informatizado, desenvolver a reflexão e um olhar crítico sobre os meios de comunicação. Valente (1993) aponta: A mudança da função do computador como meio educacional acontece juntamente com um questionamento da função da escola e do papel do professor. A verdadeira função do aparato educacional não deve ser a de ensinar, mas sim a de criar condições de aprendizagem. Isso significa que o professor precisa deixar de ser o repassador de conhecimento – o 43 computador pode fazer isso e o faz tão eficiente quanto professor – e passar a ser o criador de ambientes de aprendizagem e o facilitador do processo de desenvolvimento intelectual do aluno. Este estudo foi enriquecedor e permitiu compreender a interferência positiva do software educacional Mundo do Saber na didática dos professores em relação às suas aulas e deixou claro, também, que a democratização do acesso aos produtos tecnológicos é um grande desafio e para que todos tenham informações e utilizem-se das novas tecnologias, é preciso um grande esforço político. 4. Referências Bibliográficas BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979. CHIZZOTTI, Antônio. Pesquisa em ciências humanas e sociais. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2000 FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio. Sobre educação: diálogos. 2ª Edição Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. FREIRE, Paulo. 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Marcela Evelyn Serra Silva Caceres (Mestranda em Educação) UNESP – PPGE – Marília-SP [email protected] Tel.: (14)81166571 Resumo: O texto tem o objetivo de apresentar algumas considerações a respeito da implementação do modelo de Gestão Democrática nas escolas públicas. Quando pensamos em Gestão Democrática, pensamos na voz de toda comunidade participando ativamente das decisões a serem tomadas na realidade escolar. Embora este modelo de gestão esteja previsto em lei desde a Constituição Federal de 1988, percebemos que ainda há nas escolas grandes traços do modelo de administração empresarial, no qual predomina valores hierárquicos e a centralização do poder nas mãos de uma só pessoa, que no caso é o diretor. Tendo em vista que o modo de produção capitalista que rege a sociedade em que a escola está inserida influencia marcantemente estas relações, busca-se a reflexão a respeito das reais possibilidades deste modelo democrático de gestão, no qual todos os envolvidos tenham vez e voz. Palavras-chave: Gestão Democrática, Escola Pública, Educação. Abstract: The text aims to present some considerations about the implementation of the model of democratic management in the public schools. When we think of Democratic Management, we believe the voice of the whole community participating actively in the decisions to be made in the school. Although this management model is provided by law since the Constitution of 1988, we realized that there are still traces of the great schools of business management model, in which predominates hierarchical values and centralization of power in the hands of one person, in which case it director. Given that the capitalist mode of production which governs the society in which the school is embedded markedly influence these relationships, we seek to reflection about the real possibilities of this democratic model management, noqual all involved have time and voice. Keywords: Democratic Administration, Public School, Education. Introdução A política de Gestão Democrática na educação vem sendo discutida no Brasil desde os anos de 1980. Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, este modelo de gestão passou a ser garantido em forma de lei, visando a participação de todos os segmentos da comunidade escolar nos processos educativos pretendendo favorecer o processo de descentralização do poder de tomada de decisões por parte do diretor de escola através da participação de todos os envolvidos. De acordo com Vieira (2006), o capítulo da educação é o mais detalhado de que em todos os textos constitucionais anteriores que, de uma forma ou de outra, trataram da educação no Brasil. Podem ser destacados os seguintes artigos que apresentam a definição de educação e o principio da Gestão Democrática como ordem constitucional: 46 Art. 205 - A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Art. 206 - O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; V - valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei; VII - garantia de padrão de qualidade. VIII - piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal. (BRASIL, 1988, p.34) Em 1996, com a promulgação da Nova LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), o tema Gestão Democrática foi novamente colocado em pauta, com o objetivo de se construir um sistema educacional menos excludente e mais democrático, quebrando as barreiras do autoritarismo existente. Podem ser visualizadas no artigo 3º da LDB 9.394/96, as definições dos princípios em que o ensino deve ser ministrado, constando entre elas a Gestão democrática: Art. 3º. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância; V - coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; VI - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; VII - valorização do profissional da educação escolar; VIII - gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino; IX - garantia de padrão de qualidade; X - valorização da experiência extraescolar; XI - vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais. (BRASIL, 1996, p.2) Mesmo garantido por meio da legislação, tendo em vista que a escola está inserida em uma sociedade capitalista na qual são valorizadas as relações de poder e dominação, este processo de mudança de um modelo centralizador para um modelo descentralizador e participativo não ocorre tão facilmente. Há ainda grande dificuldade por parte dos diretores e das diretoras de escola, em romper com as barreiras que impedem esta forma de gestão, pois por muito tempo a administração escolar foi uma adaptação de um modelo empresarial de administração. 1. Gestão ou Administração Escolar? 47 Até os anos de 1980, os estudos referentes à administração escolar eram embasados em teorias da administração empresarial. José Quirino Ribeiro, um dos pioneiros na área, deixa claro esta afirmação quando aponta que: A escola é grande empresa enquanto visa atender clientela de milhões; reúne grupos de trabalhadores que somam centena de milhares; exige financiamentos astronômicos; exige 'produção em massa', 'alta produtividade' para atender às mais variadas exigências do mercado social, com o qual tem irrevogáveis compromissos de fornecimento, a tempo, à hora, em quantidades e qualidades que exigem técnicas aperfeiçoadas e complexas. (RIBEIRO, 1968, p. 27) Dessa forma, a administração escolar era pensada com ênfase na hierarquia, por meio principalmente da imposição de regras disciplinadoras tanto aos alunos quanto aos profissionais membros da instituição. O principal objetivo era o controle dos indivíduos que ali eram formados, tendo então também o controle dos formadores, buscando com que as decisões e comportamentos ali demonstrados fossem contidos por meio de rígidas regras impostas pelo diretor. Para Krawczyk (2002), os modelos e formas atuais de administração ainda continuam bastante semelhantes aos tradicionais modelos de administração empresarial, atribuindo atualmente ao diretor o papel de gerente de um negócio que precisa viabilizar-se: a escola. Para que a escola não fosse mais comparada com uma empresa, após a década de 1980, o termo Administração escolar caiu em desuso, foi substituído pelo termo Gestão educacional, embora presente, naquele momento, nos cursos de Pedagogia na forma de habilitação. Oliveira (2008), ao tratar da questão da mudança de nomenclatura, afirma que: Embora haja pouca pesquisa especificamente sobre o assunto, o que se percebe é um entendimento quase tácito entre os pesquisadores da área de que o termo “gestão” é mais amplo e aberto que “administração”, sendo ainda o segundo carregado de conotação técnica, o que predominou nas décadas anteriores como orientação para as escolas. Nesse sentido a gestão implicaria participação e, portanto, a presença da política na escola. Já o termo “escolar” vai sendo substituído pelo “educacional”, justamente pela compreensão de que a educação não se realiza só na escola e que, por isso, os sistemas não são escolares, mas educacionais. (OLIVEIRA, 2008, p.139) Ferreira (2009) aponta o termo “gestão” como sinônimo de tomada de decisões, organização e direção, ou seja, o gestor passa a ter o compromisso de dirigir as políticas educacionais desenvolvidas na escola de forma que a organização escolar possa atingir seus objetivos e cumprir com as suas responsabilidades. Nesta perspectiva, o gestor escolar deve assumir o papel de coordenador facilitador das atividades gerais da escola, não mais centralizando em suas mãos as tomadas de decisões, mas oportunizando a participação de todos numa perspectiva democrática e autônoma. Nesse sentido, Ferreira afirma que: A gestão democrática da educação é, hoje, um valor já consagrado no Brasil e no mundo, embora ainda não totalmente compreendido e incorporado à prática social global e à prática educacional brasileira e mundial. É indubitável sua importância como um recurso de participação humana e formação para a cidadania. É indubitável sua necessidade para a construção de uma sociedade mais justa, humana e igualitária. É indubitável sua importância como fonte de humanização. (FERREIRA, 2000, p.167) 48 Dessa forma, deve-se avançar a reflexão a respeito da organização e gestão escolar existente atualmente, com o objetivo de concretizar uma escola com caráter democrático, emancipatório da educação, favorável ao diálogo, respeito às diferenças e contrário ao mando e a submissão inerentes à produção capitalista. 2. Possibilidades Democráticas no Espaço Escolar Quando pensamos no ser humano como um ser histórico e social, entendemos que para aprimorar-se historicamente, este precisa apropriar-se do conhecimento já produzido pelas gerações passadas. No entanto, alguns conhecimentos que deveriam ser de acesso universal estão acessíveis a apenas uma minoria economicamente e socialmente favorecida. Diante desta situação, a educação passa a ter um papel fundamental na disponibilização deste conhecimento acumulado historicamente ás classes subalternas de forma democrática. Ao remetermos o termo democracia ao espaço escolar, não podemos esquecer que a escola, que pertence à sociedade capitalista, de certa forma acaba também reproduzindo as relações de poder e dominação do ideal burguês. É necessário resgatar a liberdade do homem como ser ontológico com vocação para ser sujeito. De acordo com Tragtenberg (2002), as relações entre os personagens que compõem o espaço escolar, ou seja, diretores, professores, funcionários e alunos, reproduzem em escala maior as relações de poder existentes na sociedade. Nesta perspectiva, a escola com seu poder disciplinador controla o cidadão de forma minuciosa, exerce o domínio sobre o seu espaço, tempo e movimento, tornando-o cada vez mais controlado e dominado, reforçando tendências existentes na sociedade regida pelo sistema capitalista. São empregadas práticas disciplinares baseadas na vigilância, na punição e na discriminação a todos os que pertencem a esta estrutura, ou seja, o diretor, os professores, funcionários e alunos. O diretor, que é considerado autoridade máxima em uma escola, é controlado pelo sistema em que sua escola está inserida, seja esta particular, estadual ou municipal. Este, por sua vez, controla os funcionários e professores que devem realizar seus trabalhos de acordo com a forma estrutural estabelecida também pelo sistema. O professor é submetido a uma hierarquia administrativa e pedagógica que o controla. Ele mesmo, quando demonstra qualidades excepcionais, é absorvido pela burocracia educacional para realizar a política do estado, portanto, da classe dominante em matéria de educação. Fortalecemse os celebres “órgãos” das Secretarias de Educação em detrimento do maior enfraquecimento da unidade escolar básica. (OLIVEIRA & ROSAR, 2002, p.15) Ao adentrar em sala de aula, o professor também reproduz a exclusão e as desigualdades. Podemos notar esta reprodução desde a disposição de carteiras em uma sala de aula, organizadas geralmente de forma linear seguindo modelos das linhas de produção industriais até as classificações dos alunos por meio de notas. O sistema exige que sejam distribuídos em séries, salientando suas diferenças, discriminando-os e retendo-os, reproduzindo exatamente o ideário burguês. Neste contexto, o aluno é cada vez mais reprimido e disciplinado a obedecer sem questionar, modo pelo qual provavelmente se comportará na sociedade no futuro, se sentindo inferior. O professor é visto como um gerente, com a missão de distribuir o conhecimento acumulado aos alunos e depois avaliá-los por meio de provas, que mais uma vez seleciona, 49 fazendo com que muitos alunos sejam excluídos das escolas por se sentirem incapazes de apropriarem-se do saber. Por outro lado, o professor, quando se sente controlado pelo estado, reivindica melhores condições de trabalho e questiona o sistema, gerando uma ambiguidade em que ao mesmo tempo em que exerce uma função de reprodutor social mediante os alunos, o professor se enxerga como um sujeito oprimido e dominado. De acordo com Arroyo (2002), a consciência do papel social e da identidade de mestre terá de articular o cotidiano de sua prática com as múltiplas determinações do social. É preciso pensar na escola, não como um espaço em que o professor vende sua força de trabalho como na empresa capitalista. A imagem que a sociedade faz do professor e que muitos ainda fazem de sua função, transmitir saberes escolares, ensinar competências e habilidades, preparar para concursos e vestibulares, aplicar provas, dar notas, aprovar, reprovar, credenciar, atestar para passar de ano, de série, de nível... tem pouco de profissional e de específico, qualquer um pode fazer desde que saiba esses saberes e seja treinado. Essa imagem tem pouco de pública, pois reproduz e segue a lógica do privado, do mercado. Mantendo esta imagem será difícil afirmar uma cultura profissional pública. [...] pouco adianta lutar por salários, por reconhecimento social se continuarmos vendo-nos a nós mesmos e sendo vistos como treinadores da juventude para concursos, provas e vestibulares. (ARROYO, 2002, p.193-194). Neste modelo empresarial em que a escola se pauta, acaba passando ao aluno desde a infância, a ideia de que ele deve acumular cada vez mais conhecimento de modo que possam competir entre si no futuro. Dessa forma são preparados desde cedo para o mercado de trabalho alienado do qual farão parte. Para Mészáros (2004), a escola como instituição inserida na sociedade capitalista, entende que os valores humanos não constituem conteúdo de ensino, pois não geram lucro. Dessa forma, o que as pessoas estão aprendendo como valores úteis são os valores comerciais ou de troca, visando à reprodução de valores e mentalidades que servem ao sistema de produção capitalista. De acordo com Mogilka (2003), não é possível pensarmos em uma educação democrática se esta continuar centrada na reprodução e exclusão, pois processos autoritários não conseguem servir de base para resultados democráticos. Dessa forma, para que possamos ter uma educação democrática devem ser definidas relações democráticas no interior da escola, ou seja, a inexistência de qualquer tipo de constrangimento, exploração, manipulação ou arbitrariedade. Neste modelo, o papel de professor recebe um novo significado, devendo agir como um orientador para o aluno, desafiando e estimulando a aprendizagem sem exercer qualquer forma de constrangimento. Quanto às relações sociais, elas representam a ponte para o processo de humanização da criança. Não só porque a relação social intermédia à relação da criança com a cultura, mas por causa da relação em si mesma, com seus fortíssimos aspectos afetivos que não podem ser transcendidos. A natureza e a qualidade das relações interpessoais representam um importantíssimo fator no processo de formação da criança, inclusive neste específico tipo de formação: a estruturação democrática do eu. Na estruturação democrática, no seu sentido mais amplo e não doutrinário, é onde residem as possibilidades mais plenas e 50 radicais de humanização, ao menos nos tempos contemporâneos. (MOGILKA, 2003, p.56) Nesta perspectiva, as práticas educativas devem ultrapassar o ensino de conhecimentos, não que estes não sejam importantes, mas a maior preocupação de uma escola com caráter democrático deve ser a formação de cidadãos capazes de transformar a sociedade em que vivem de forma criativa, crítica e participativa, promovendo um processo emancipatório. Portanto, os professores devem ser flexíveis, de forma que sejam capazes de estimular constantes problematizações dos saberes que buscam ensinar aos seus alunos, valorizando suas opiniões, conhecimentos prévios e a cultura na qual estão inseridos, desenvolvendo a consciência crítica. Mogilka (2003), afirma que o desejo e a participação dos estudantes , quando bem orientados pelo educador, fornecem alguns dos melhores subsídios para esta transposição. Dessa forma, percebemos que: Pensar em uma escola democrática implica pensar em alunos que são sujeitos do processo educacional. Uma escola democrática precisa ultrapassar os discursos e ter efetivamente hábitos democráticos. A participação na tomada de decisões e as relações entre aqueles que integram a comunidade escolar necessariamente precisam superar hierarquias. Uma educação para a democracia não pode caracterizar-se apenas em atos esporádicos de exercício do voto em determinadas decisões; ela precisa fazer parte da vida das pessoas. A formação para a democracia pressupõe ações efetivamente democráticas no cotidiano da escola. (MENDES, 2009, p.110). De acordo com Rosar (2008), a hegemonia do pensamento neoliberal invade a organização escolar, bem como outros setores da organização econômica e social, estabelecendo sempre parâmetros permeados pelo modo de produção capitalista, visando produtividade, competência, eficiência e concorrência. Conclusão Como fora abordado no decorrer deste texto, a influência da cultura globalizada, do capitalismo e das relações de poder são muito presentes nas práticas sociais e também na escola, e por mais que os discursos pedagógicos atuais estejam mais flexíveis e com ideias democráticas, muitas vezes as ações presentes na escola não tiveram grandes modificações, quando comparadas às práticas de dominação das décadas passadas. A partir da reflexão realizada, pode-se concluir que só haverá uma escola efetivamente democrática, se esta superar toda esta estrutura hierárquica de suas relações advinda do ideal burguês e passar a ter uma estrutura horizontal, na qual todos os sujeitos envolvidos possam formar uma comunidade real. Dessa forma, na sociedade atual, a escola deve favorecer condições para que se formem sujeitos autônomos, criativos, participativos, críticos e conscientes, não somente no discurso, mas na realidade, permitindo que os jovens saiam da escola, aptos a enfrentar com sucesso as adversidades da vida diária, capazes de solucionar seus problemas, respeitar o próximo e as diferenças, cumprindo seus deveres e reivindicando seus direitos buscando a conquista da cidadania e qualidade de vida. Tal proposta, só será possível mediante o resultado de muita luta e determinação. Um bom começo para este processo é o olhar para o aluno como um cidadão em formação, que com certeza reproduzirá no futuro o modo pelo qual foi educado. . 51 Referências Bibliográficas ARROYO, M. G. Oficio de Mestre: Imagens e Auto-|Imagens. Petrópolis, Rio de Janeiro. Vozes, 2002. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. _______ . 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Criada e propagada pelo psiquiatra e antropólogo Adalberto Pereira Barreto em 1987, essa intervenção, além de proporcionar a formação de redes solidárias e a dimensão terapêutica do próprio grupo, ela mobiliza recursos e competências, possibilitando a troca de experiências entre os participantes. Partindo desta perspectiva, este trabalho propôs-se a analisar a Terapia Comunitária a partir do enfoque da Educação Sócio comunitária, procurando encontrar as convergências que a fundamentem como uma prática educativa. Trata-se de um estudo bibliográfico, onde foram pesquisados obras e trabalhos publicados, bem como outras referências que possam auxiliar na compreensão do tema. Neste estudo, o conceito de terapia é utilizado no sentido de acolhimento e da afetividade, uma vez que esse é um dos caminhos apontados nesse trabalho, como facilitadores do crescimento humano. A Terapia Comunitária pode ser compreendida como uma possibilidade de intervenção dentro da práxis educativa sociocomunitária, uma vez que valoriza o saber legitimado pela comunidade, promovendo um diálogo entre os saberes ancestrais e os atuais como uma possível e eficaz forma de aprendizado. Além disso, auxilia na resolução de problemas, fortalece os vínculos, a identidade cultural e promove a cidadania, à medida que consegue suscitar nas pessoas a conscientização do seu papel social e o sentido de responsabilidade como autor da sua própria história. Palavras-chave: Educação sociocomunitária, Terapia Comunitária, Educação social Abstract: The Community Therapy is based on several pillars theorists such as communication theory, resilience, systems thinking, the pedagogy from Paulo Freire and cultural anthropology, which strengthen his practice. Created and propagated by the psychiatrist and anthropologist Adalberto Pereira Barreto in 1987, this practice, besides providing for the formation of solidarity networks and the therapeutic dimension of the group itself, it mobilizes resources and expertise, enabling the exchange of experiences among participants. From this perspective, this paper seeks to examine the Community Therapy from the viewpoint of the Social and Community Education, seeking to substantiate that the convergence as an educational practice. It is a bibliographical study, which were researched and published works as well as other references that may help understanding the subject. In this study, the concept of therapy is used in the sense of 53 acceptance and affection, this is one of the pathways that this work as facilitators of human growth. The Community Therapy can be understood as a means of intervening in the educational practice of socio-community, since values know legitimized by the community, promoting a dialogue between the ancestral and current as possible and an effective way of learning. In addition, it assists in solving problems, strengthens ties, cultural identity and promotes citizenship, as the people can raise awareness in their social role and sense of responsibility as author of their own history. Keywords: Education Socio-Community, Community Therapy, Social education A TERAPIA COMUNITÁRIA Ao consideramos o delineamento teórico de um autor, especificamente na área educacional, devemos levar em conta que os dilemas pessoais e políticos enfrentados pelo mesmo, estão intrinsecamente ligados na construção de seu pensamento. Desse modo, suas escolhas em aprofundar os seus posicionamentos, parte da análise e discussão da realidade educacional instaurada, evoluindo da linguagem crítica para uma pedagogia da esperança e práxis. (TORRES, 2000). Adalberto de Paula Barreto, criador da Terapia Comunitária, nasceu no Canindé, no estado do Ceará, onde a religiosidade se faz presente com as romarias e os peregrinos trazendo na sua fé e tradições populares, a contribuição para a cultura local. Durante a graduação em medicina pela Universidade Federal do Ceará, Barreto tomou contato com os paradigmas da ciência observando, de modo crítico, o quanto esse conhecimento, muitas vezes, tem um caráter excludente, rejeitando as demais explicações para os acontecimentos da vida. Por outro lado, o saber popular, com seu aspecto místico-religioso, pode trazer outro tipo de verdade absoluta e excludente sobre a vida, levando o indivíduo a aprisionar-se aos mitos. (BARRETO, 2008). Como professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, Barreto desenvolveu pesquisas sobre medicina popular e seus sistemas de crenças, propondo um sistema de cooperação entre a assistência médica e os curandeiros, conscientizando estes a cooperar para diminuir os casos de desidratação. É importante salientar que, em nenhum momento, houve a intenção de negar a identidade do curandeiro como agente educador da comunidade. Na construção de um modelo de intervenção, Barreto (2008) propõe a conjugação dos saberes, onde os membros da comunidade podem refletir sobre suas ações e acreditarem em si mesmos como agentes da mudança, mantendo, sobretudo, a sua identidade como indivíduo. Ao promover a conjugação dos saberes, mediadas pelo terapeuta comunitário, procura-se promover a autonomia das pessoas, de modo que estas se apropriem e beneficiem-se das informações técnico-científicas, conjugadas com as experiências de vida, sem, no entanto, perder o resgate também da sabedoria dos antepassados indígenas e africanos, tão presentes na cultura popular. 54 Com o projeto quatro varas, na favela do Pirambu, em Fortaleza, no estado de Ceará, Barreto propõe a criação de um Movimento Integrado de Saúde Mental Comunitária o que posteriormente tornou-se a Terapia Comunitária Sistêmica Integrativa. Em espaço livre, à sombra de um pé de cajueiro, reuniam-se pessoas que estavam vivendo uma situação de crise para falar das suas angústias, problemas e sonhos, dramas e necessidades. [...] Nossa ação procurava suscitar a capacidade terapêutica do próprio grupo ajudando o indivíduo a descobrir as implicações humanas e contextuais do quadro do sofrimento em que viviam. Dessa forma, nossa intervenção permitia a tomada de consciência do indivíduo em sofrimento psíquico, dentro do corpo social, estimulando a transformação de um e de outro, tratando assim, a saúde coletiva e recuperando, com ações individuais, a saúde do corpo social. (BARRETO, 2007, p. 21) Dentro desse modo de intervenção, o autor propõe a discussão e criação de novos paradigmas: A percepção do homem em uma rede relacional, identificando o potencial de cada pessoa, além de fazer da prevenção uma tarefa a ser exercida por todos os participantes da comunidade. A dinâmica coletiva que ocorre por meio dos encontros, promove uma pedagogia ativa, conjugando os saberes que cada um traz para a roda da Terapia, formando uma rede relacional, entremeando metáforas, músicas, poesias, histórias, heranças ancestrais indígenas ou africanas, juntamente com saberes atuais, ressignificando a vida das pessoas que talvez, pela primeira vez na sua vida, tem a sua fala valorizada como algo genuinamente seu. Na roda da Terapia, não se define hierarquia. Cada pessoa tem o destaque para contar os fatos da sua vida. Cada um pode refletir, assim como Barreto, buscando na sua história de vida, elementos integradores e essenciais da pessoa que se tornou. Nesse caminho, podemos ainda observar o valor do aprendizado diário, não rejeitando nada, antes de ser examinado em profundidade. A Terapia Comunitária propõe uma mudança de foco, fazendo com que a comunidade discuta os seus problemas e busque alternativas a partir da ideia da coparticipação e corresponsabilidade. A promoção da autonomia vai ocorrendo, gradativamente, a partir do reconhecimento das competências e do potencial de cada um. Por meio do resgate dos vínculos solidários e construção de redes de apoio, busca-se a horizontalidade das relações de modo que haja também a circulação das informações. Desse modo, cada um é considerado um parceiro na construção da coletividade. 55 Barreto (2008) pontua que a Terapia Comunitária, pode ocorrer em qualquer espaço comunitário como: postos de saúde, igreja, escolas, hospitais, sindicatos, espaços institucionais e, até mesmo na sombra de uma árvore. Após escolher o local, deve-se realizar uma ampla divulgação da data e horário do encontro, utilizando-se os meios de comunicação existentes na comunidade. O encontro pode ser iniciado com uma música conhecida, de preferência lúdica e alegre. O coterapeuta é responsável por acolher, dar as boas vindas, perguntar quem é aniversariante do mês e convidar todos para cantar os parabéns (gesto de valorização e celebração pela vida da pessoa). Enquanto uma pessoa fala os outros devem ouvi-lo; devem falar somente de sua própria experiência; quem está no grupo não está lá para dar conselhos ou ainda julgar o outro; entre uma fala e outra, quando um participante se emociona, o outro pode interromper a reunião e começar a cantar uma música como forma de acolhê-lo e, por último, respeitar a história de cada pessoa. Após as apresentações, o terapeuta faz uma pequena síntese da fala de cada um e o voto da maioria, indica a mobilização do grupo para o tema a ser discutido no dia. Escolhido o tema, o terapeuta e a comunidade fazem perguntas para a pessoa para que todos possam compreender o problema em seu contexto global. As perguntas feitas não podem ter a conotação de julgamento do que é certo ou errado. Cabe ao terapeuta, certificar-se de que todos estão ouvindo e participando, possibilitando que sejam feitas reflexões, procurando buscar o que há de positivo em cada gesto ou atitude. Além disso, o terapeuta pode apontar também que há alguns fatores decorrentes de outras instâncias, dentre elas, o descaso do Poder Público, por exemplo. Após a definição da situação-problema, pode-se lançar mão de um mais motes como citado por Oliveira et al (2007, p.337) : “Quem já sentiu falta do calor humano em relação aos profissionais?” ou “Quem já sentiu enclausurado como uma lagarta no casulo e como fez para virar borboleta?” Enquanto as pessoas vão respondendo os motes, o terapeuta vai anotando as colocações mais importantes para poder finalizar a terapia. Ao término da terapia procura-se de reconhecer, valorizar e agradecer o esforço, a coragem de cada um, a iniciativa e a vontade de superar as dificuldades encontradas. O encerramento é feito de maneira especial, com músicas, orações, poemas, cânticos, entre outros, procurando-se dar uma conotação positiva na história contada. Cada participante deve dizer ao protagonista da história, o que mais lhes tocou ou algo que tenham admirado nela. A seguir, as pessoas levantam-se, fazem um círculo com as mãos no ombro do outro e se balançam, trazendo uma idéia de equilíbrio, de pertencimento, de coesão e união do grupo. 56 EMBASAMENTO TEÓRICO DA TERAPIA COMUNITÁRIA A Terapia Comunitária não consiste em um processo psicoterapêutico, onde, na maioria das vezes a atuação apoia-se nas carências apresentadas pelas pessoas. É um espaço comunitário onde se procura partilhar as experiências de vida, levando-se em conta os elementos culturais, sociais e funcionando como um local de agregação social. Nesse contexto ocorre um ato terapêutico, onde a intervenção se dá de maneira simples, sem, no entanto, ser simplista. Embora não exija formação acadêmica anterior, a prática requer uma capacitação e acompanhamento da pessoa que está exercendo o papel de terapeuta. (BARRETO, 2008). Segundo Barreto (2008), a Terapia Comunitária está fundamentada no Pensamento Sistêmico, na Teoria de Comunicação, na Antropologia Cultural, na Pedagogia de Paulo Freire e na Resiliência. A partir desses pilares, foi desenvolvido o método, onde cada indivíduo tem a oportunidade de expressar suas dificuldades, necessidades e expectativas, compartilhando com o grupo os seus anseios. Neste encontro também tem a oportunidade de também aprender outras formas de lidar com seus problemas. Na terapia comunitária aborda-se simultaneamente, o indivíduo na sua singularidade e na sua inserção familiar, grupal e social. Portanto na terapia comunitária se exercita o domínio do espaço público pelo indivíduo (FUKUI, 2004). A visão sistêmica representa, atualmente, um novo paradigma para a ciência, onde passamos do pensamento linear ao circular, de uma relação de causa e efeito para um complexo olhar de interdependência entre os fenômenos. Vasconcellos (2005) aponta novas alternativas para compreender os acontecimentos sociais, acrescentando os pressupostos epistemológicos do pensamento sistêmico, levando-se em conta a crença na complexidade, em todos os níveis da natureza; a crença na instabilidade do mundo, em processo de tornar-se; a crença na intersubjetividade como condição de construção do conhecimento do mundo. Uma das características importantes a ser considerada é o fato de que os seres humanos devem ser compreendidos, a partir do seu universo cultural simbólico, que é constantemente recriado. Bertalanffy (1975) comenta que o homem tem valores culturais que transcendem a esfera do mundo físico. Desta forma, vislumbramos novas possibilidades dentro da prática educativa, uma vez que podemos utilizar e valorizar a linguagem metafórica e toda a simbologia que cada comunidade traz no emaranhado de seu arcabouço cultural. Outro aspecto considerado é o da comunicação como algo essencial à existência humana. Segundo Watzlawick; Beavin; Jackson (2007) é impossível não se comunicar, pois todo o comportamento representa um tipo de comunicação. Os autores definem que toda comunicação tem um conteúdo, um aspecto relacional e que, além do significado das palavras, há também 57 informações sobre como o emissor se vê e como ele quer ser compreendido pelo receptor. Afirmam, ainda, que o processo de comunicação envolve as modalidades digital (verbal) e analógica (não verbal) Todas as permutas comunicacionais ocorrem de forma circular podendo ser simétricos quando baseado nas semelhanças ou complementares, quando baseadas nas diferenças. Barreto (2008) destaca também que, muitas vezes, a comunicação é realizada por gestos e atitudes que ocorrem de forma inconsciente e não intencional. O autor chama a atenção para o dito popular que afirma “quando a boca cala, o corpo fala”, em que as mensagens não são transmitidas pela fala, porém, podem ser percebidas por um observador mais atento, por meio de recados sutis que o corpo transmite. Neste caso, o autor também afirma que a expressão inadequada ou mesmo a ausência da expressão de algo que incomoda o indivíduo, pode se manifestar por meio de sintomas físicos. Sobre a situação de ensino aprendizagem, Barreto (2008) destaca o exercício constante do diálogo e da reciprocidade. Ao buscar o fundamento pedagógico para a prática terapêutica comunitária, o autor faz um destaque especial à obra de Paulo Freire, realizando uma analogia entre a proposta de trabalho da terapia comunitária, com a pedagogia do oprimido. Segundo Freire (2005), o conhecimento não está separado do contexto de vida, mas centra-se no sujeito, permitindo a humanização do processo educativo, a apropriação de conhecimentos e a transformação das relações sociais. Nesse sentido, faz-se necessário que o educador proponha-se a reforçar a capacidade crítica do educando, para que o mesmo possa transformar-se em sujeito da construção e da reconstrução do seu saber. O educador deve estar atento ao fato de que somos seres históricos e que pensar certo, muitas vezes não significa estar em uma posição de conhecer a verdade absoluta. Devemos estar aberto às novas possibilidades a partir da análise das nossas ações no mundo, uma vez que podemos descobrir novas maneiras de produzir o conhecimento. A cultura também tem importante papel na construção da identidade de um grupo, pois este baseia seus pensamentos, ações e suas habilidades através dos seus próprios referenciais. Quando queremos entender uma comunidade ou até mesmo uma nação, faz-se necessário voltar no tempo para que possamos buscar as raízes onde estão registrados os fundamentos que nos trouxeram até o presente momento. É inevitável voltar o foco para as fontes ancestrais que mantiveram a sobrevivência de nossos antepassados e ainda nos guiam até hoje, apesar de estar diluído no emaranhado tecnológico que muitas vezes apresenta como novidade, algo já conhecido há muito tempo. 58 Outro conceito que embasa a Terapia Comunitária é o da resiliência, termo utilizado a princípio, pela física e pela engenharia. Tavares (2001), afirma que a resiliência é a qualidade de resistência do material ao choque, a tensão e a pressão. Neste caso, sempre quando uma barra de ferro, um elástico ou uma mola sofre uma pressão, a resiliência permite que o mesmo volte à sua forma ou posição inicial. Quanto a aplicação do conceito às pessoas, o autor descreve como resilientes as pessoas que possuem, dentre outras qualidades, uma maior capacidade de resistir às situações adversas, sem perder o equilíbrio. Dentro da perspectiva da educação, o autor acima citado, afirma que devemos proporcionar a formação do cidadão voltada para a nova realidade social, de forma que este se torne menos vulnerável e mais resiliente no sentido de promover uma ação mais eficaz na transformação da sociedade em que vive. Barreto (2008) resume a resiliência como a capacidade de resistir, sem perder o rumo, de vencer, apesar das dificuldades e circunstâncias difíceis. O autor descreve sua admiração ao ver grupos e famílias resistindo ao constante aniquilamento a que são submetidos. Entre alguns fatores que auxiliam no processo de superação das dificuldades estão a espiritualidade, a alegria e o senso de humo que, muitas vezes, dá comicidade a algo trágico e triste. Segundo o autor, essa é uma riqueza que deve ser explorada pelo terapeuta comunitário. A EDUCAÇÃO SÓCIOCOMUNITÁRIA Embora não pretendendo negar as outras formas de educar, é fundamental reconhecermos que neste estudo, não nos é possível adotar o caminho da neutralidade, pois, toda proposta metodológica traz em si uma intencionalidade. Nesse sentido, ao colocarmos em destaque à Educação Sócio comunitária, estamos fazendo um recorte no campo multidimensional da educação, onde há vários caminhos, dentre os quais esse que escolhemos para estudo. Para compreender o universo em que se encontram as diversas formas de intervenção educacional, busca-se novas conceituações, na tentativa de delimitar um objeto de estudo. Ao refletirmos sobre os muitos apontamentos e discursos, afirmamos que a Educação Sócio comunitária enquanto campo do saber, ainda está em construção, necessitando ainda de delimitações epistemológicas. Gomes (2008), afirma que a educação sócio comunitária está vinculada a uma prática educativa marcada por intervenções que articulam a comunidade para transformações sociais. Sobre a intervenção o autor reitera que, de certa forma, ela representa uma forma de ruptura com o modo de ser da sociedade, trazendo na proposta educativa, uma forma da comunidade buscar 59 mudanças na sociedade, podendo buscar para isso o apoio de entidades externas. O autor enfatiza os instrumentos comunicacionais e a linguagem estabelecida entre os membros da comunidade como base fundamental dos processos culturais e econômicos que se interrelacionam com as relações de trabalho. Ribeiro Junior (2006), afirma que a educação deve proporcionar vivências, mudanças vantajosas de conduta e experiências valiosas, que elevem a aprendizagem ao nível da consciência reflexiva. O autor ressalta que a educação tem a função de formar cidadãos ativos e conscientes da sua liberdade, ajudando a pessoa a buscar uma vida em comunidade sã e nobre e ainda, preparando-a para buscar a sua autonomia. Reconhecemos que se deve olhar de forma mais amplo para a educação, sócio comunitária, uma vez que procuramos entendê-la a partir da dimensão social em que os indivíduos se encontram. Faz-se necessário a compreensão das redes contextuais de relação interpessoal, onde nem sempre, as pessoas têm a consciência do seu posicionamento social e, consequentemente, não conseguem agir a partir da conjugação dos saberes existente na própria comunidade Um dos posicionamentos que muito enriquecem o presente estudo é o posicionamento de Carneiro (1985). O autor inicia, intitulando a Educação Comunitária como uma construção da pedagogia do cotidiano. Postula que a educação comunitária constitui em uma educação do povo e pelo povo, onde todos educam a todos Ressalta que um projeto educativo deve ter o objetivo transformador, assumindo o caráter prático e dinâmico da convivência social. A TERAPIA COMUNITÁRIA COMO PROPOSTA DE INTERVENÇÃO EDUCATIVA Grandesso (2007) destaca que a Terapia Comunitária não se caracteriza como uma psicoterapia. Apesar de ser uma prática simples, todos os terapeutas devem ser capacitados de forma teórica e prática, devendo os mesmos desenvolver o papel de facilitador do diálogo e , procurando promover o vínculo entre as pessoas da comunidade, onde são valorizadas as competências vindas da experiência, do saber local e da cultura Um dos aspectos importantes é a valorização do saber de cada pessoa na roda da terapia. Todos podem dispor do seu conhecimento, da sua experiência de vida, cabendo ao protagonista buscar as possibilidades. Além de permitir com que cada um fale da sua dor, a Terapia Comunitária possibilita também, a socialização do saber acumulado ao longo da vida de cada participante. Permite a construção de diálogos entre o moderno e o tradicional, oferecendo a 60 chance da pessoa fazer escolhas, além de ser apoiado para descobrir valores, potencialidades, tornando-se mais autônomo e menos dependente. A partir dos encontros sócio-educativos, constroem-se redes sociais solidárias, ocorrendo o reforço da identidade social e diversidade cultural das comunidades, possibilitando a ressignificação das vivências a partir dos próprios recursos, de forma que os participantes consigam perceber-se como sujeitos ativos e que a sua atuação traz reflexos no seu meio e viceversa. Ao proporcionar a conjugação do saber coletivo, o educador-terapeuta através da sua intervenção, possibilita a conscientização de cada participante e também a produção de novos conhecimentos. Nessa rede de relações, a experiência de educar torna-se enriquecedora à medida que ensina a comunidade a caminhar de maneira mais autônoma. Freire (2000) ressalta a prática educativa como possibilidade de mudança, destacando que a busca pelo sentido da existência humana, deve ser algo a ser considerado pelo educador. Dessa forma, ao pensarmos em maneiras de constituir a educação sócio comunitária, os argumentos nos apontam que devemos incluir abordagens integrativas e não diretivas que possam promover uma educação voltada para o ser, sem perder de vista o contexto relacional do qual emerge a construção da subjetividade humana. Se na práxis educativa, estamos focando o universo relacional e as sutilezas que constituem esse sujeito coletivo, as figuras do educador e do terapeuta se fundem, de forma até mesmo não intencional. O processo educativo pode conter em si, elementos terapêuticos, onde as pessoas entram em contato com outras possibilidades de tecer a teia da sua existência, aprendendo maneiras criativas de lidar com as situações para as quais acredita não haver solução. Leloup; Boff (1997) trazem algumas considerações pertinentes, quando ressaltam que não devemos ter atitudes fragmentadas ao olhar para o ser humano nas diversas dimensões que o constituem. Para alguns, só existe o mundo da matéria, do corpo e, para outros, só a alma é importante. Estas atitudes são reencontradas hoje e vão ter importância na terapia, na educação. Porque na terapia se cuidará do corpo lembrando-se que este corpo tem uma alma. E na educação trataremos de despertar a essência, de dizer que a finalidade da vida humana, no nível material, é o sucesso, mas também trataremos de conhecer a beleza de sua alma e a liberdade desta alma em relação ao corpo e à matéria. (LELOUP; BOFF 1997, p. 54) 61 Compartilhando desse direcionamento, destacamos a figura do educador-terapeuta ou vice-versa, trazem para a discussão, essa forma terapêutica de educar, levando-se em conta multiplicidade de fatores que compõem a vida e os infinitos sentidos que cada um possui sobre a sua própria existência. o contexto histórico e cultural, onde estamos inseridos, sem deixar de lado a questão do afeto entre todos os atores envolvidos no processo. Um aspecto importante a ser considerado é a abrangência que a Terapia Comunitária vem conquistando. Desde 2003, com a ocorrência dos primeiros congressos e a criação da Associação Brasileira de Terapia Comunitária (ABRATECOM), vários terapeutas passaram a divulgar as suas experiências na aplicação da Terapia em diversos contextos por todo o território nacional. Além disso, houve um aumento dos polos formadores, sendo realizada parceria com várias universidades, o que também têm colaborado para o surgimento de trabalhos acadêmicos na área. (LUISI, 2006). Devido à consolidação da sua prática, a Secretaria Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SENAD) em 2004, reconheceu a Terapia Comunitária como medida de educação, prevenção, tratamento e reinserção de usuários e familiares de dependentes de drogas. Em parceria com o Movimento Integrado de Saúde Mental Comunitária do Ceará (MISMEC-CE), publicou uma cartilha intitulada “A prevenção do uso de drogas e a Terapia Comunitária” direcionada para a formação dos terapeutas. Com essa iniciativa, o Governo Federal afirma a relevância deste trabalho comunitário, bem como da abordagem educativa, juntamente com a informação e a capacitação de pessoas em todos os segmentos sociais. Desde 2008, a Terapia Comunitária passou também a integrar a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) financiando a formação de terapeutas em diferentes estados do país. O baixo custo, a alta efetividade, o empoderamento das comunidades e a busca de soluções participativas alicerçam a TC como uma política pública adequada no atendimento das diversas e complexas demandas presentes no contexto social brasileiro. Em 2010, o Ministério da Saúde, definiu a Terapia Comunitária, como política pública, sendo incorporada às ações do Programa Saúde da Família (PSF). Nesse sentido foi realizado investimento para a formação de terapeutas comunitários em todo o território nacional. (BRASIL, Ministério da Saúde, 2010). CONSIDERAÇÕES FINAIS Percebemos, ao longo do estudo, que o entendimento da Educação Sócio comunitária ainda necessita de discussões e definições epistemológicas que consolidem a sua prática. Observamos que, embora alguns autores acreditem nas iniciativas educativas comunitárias que 62 surgem como um meio para conscientização e mobilização social, outros reforçam a ideia de que as mudanças só podem ocorrer a partir de ações na macropolíticas. Apesar das dificuldades, acreditamos no ideal de Paulo Freire, quando o mesmo diz que ensinar exige uma convicção de que a mudança é possível. Dentro da proposta deste trabalho, procuramos o entendimento da Terapia Comunitária como uma proposta de intervenção Educação Sócio comunitária, tentamos compreender os princípios que fundamentam a sua prática. Encontramos na figura do seu idealizador, o psiquiatra Adalberto Barreto e demais colaboradores, o alicerce para a discussão e consolidação desta inovadora forma de intervenção. Buscamos o confluir o entendimento das ações educativas contidas nesse processo, como crítica à atual coisificação das pessoas, que são tratadas como parte de uma engrenagem social, sendo-lhes tolhidas as chances de buscar a sua autonomia. Nesse sentido, destacamos a forma de intervenção na Terapia Comunitária que parte da relação que se estabelece entre àqueles que participam da roda, permitindo além do aprendizado de novas competências, a formação de uma rede de apoio na comunidade. Percebemos que o desvelamento e o compartilhar das histórias contadas e cantadas na Terapia estão ligadas a muitas outras, propiciando colocar no foco, temas pertinentes aos membros da comunidade que afeta direta ou indiretamente a todos. Na generosa troca de conhecimentos, é possível encontrar um caminho que não seja o de repetir de velhos comportamentos de forma cristalizada, pois a partir da relação com o outro, conseguimos a reflexão necessária para compreender a realidade e apoio para agir, no sentido de transformá-la. Sobre a figura do educador-terapeuta, ressaltamos a necessidade da ampliação do foco deste sobre o seu campo de trabalho, visto que ele pode contribuir de maneira preciosa com seu talento a favor do crescimento coletivo. Os membros de uma comunidade desacreditada podem estar aguardando a generosa intervenção do educador/terapeuta comunitário, não para ser o salvador da pátria, mas para ajudá-los a tecer a sua rede de solidariedade e conjugar os saberes, trazendo à tona respostas que se encontram na própria comunidade ou dentro de cada um. Um dos grandes méritos da Terapia Comunitária como processo educativo sóciocomunitário, é auxiliar a comunidade a sair do papel da vítima levando a conscientização da pessoa a agir como cidadão e coautor do sistema que o mantém e que é mantido por ele. A abordagem sistêmica mostra que a pessoa, a família a que pertence, a comunidade e o mundo fazem parte de sistemas que se influenciam mutuamente. Nesse sentido, ocorre também o aprendizado da cidadania, não mais como um termo utilizado em discursos políticos, mas como um empoderamento social, que mobiliza a todos em busca de uma solução coletiva. 63 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRATECOM - Associação Brasileira de Terapia Comunitária. Disponível em: http://www.abratecom.org.br. Acesso em 12/10/2010. BARBOSA, Severino A. M. Uma nova escuta poética: na atividade educativa dos terapeutas, na atividade terapêutica de educadores. Revista de Ciências da Educação. Ed. Stiliano, Unisal, ano 03, n. 04, p. 53 – 65, 2001. BARRETO, Adalberto de P. 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Está respaldado por uma pesquisa de mestrado, que apresenta um estudo de casos realizado em uma escola do interior paulista, que problematiza a produção da subjetividade infantil e sua metamorfose para a subjetividade do aluno, processo produtivo que culmina por revelar uma sequela: a emergência do fracasso escolar, sintoma que, por sua vez viabiliza a produção do aluno fracassado. Defende, acima de tudo, a necessidade de uma ação micropolítica voltada a ressignificação do ambiente escolar sob um parâmetro inclusivo, pautado pela ênfase na singularidade humana e pelo pressuposto da comunidade escolar, capaz de oportunizar a ampliação do território existencial de toda a comunidade escolar desarticulando a produção do sintoma. Palavras-chave: Fracasso escolar; Comunidade escolar; Inclusão escolar. Subjetividade; Singularidade; Território existencial; Abstract: This article establishes the necessary recognition of the basic principle of human being: the singularity, its implications in paradigmatic relations between subjectivity and learning and its direct impact on the design of educational inclusion by linking it to the theoretical contributions, especially of Foucault and Guattari . Is backed by a research which presents a case study conducted in the interior of a school, which discusses the production of child subjectivity and its metamorphosis to the subjectivity of the student production process culminating to reveal a sequel: the emergence of school failure, symptoms that in turn enables the production of student failure. Advocates, above all, the need for action aimed at reframing micropolitics of the school environment in a parameter inclusive, guided by an emphasis on human uniqueness and the assumption of the school community, able to nurture the expansion of existential territory of the whole school community disarticulating producing the symptom. Keywords: School failure; Subjectivity; Singularity, Existential territory; School community, School inclusion. Introdução o amor é a emoção que constitui as ações de aceitar o outro como um legítimo outro na convivência. Portanto, amar é abrir um espaço de interações recorrentes com o outro, no qual sua presença é legítima, sem exigências. (MATURANA, 2002, p.67) Para aprender é preciso sentir-se acolhido, aceito, respeitado e valorizado em sua singularidade. Em outras palavras, para aprender é preciso pertencer, estar, legitimamente, incluído. Há algum tempo, a temática da inclusão tornou-se recorrente e polissêmica, com entendimentos e práticas diversificadas. Todavia, o que se percebe é que o cerne da inclusão escolar não tem sido compreendido, dificultando às transformações necessárias a efetivação de outra concepção educacional, norteada por outra inteligibilidade e estética do que venha a ser o papel da escola e da aprendizagem no desenvolvimento do ser humano. Em outras palavras, um ambiente plural, mestiço e criativo de convívio, saberes e aprendizagem. Enquanto uma proposição educacional de abertura às diferenças, a inclusão escolar requer a mudança de lógica no ambiente escolar. Por lógica nos referimos à regência, agenciamento, mentalidade, modo de pensar, agir e subjetivar que reitera as práticas e seus efeitos. De uma lógica da identidade, dinâmica afirmativa do mesmo, idêntico, “espelho” naturalizando certo padrão de características estéticas, intelectivas e comportamentais, para uma lógica da diferença, movimento de rasura, legitimidade do “outro”, assim como a impossibilidade de pré-dizê-lo. A diferença refere-se ao devir, ao que não é previsível, capturável, estanque e replicável. Virtualidade dos possíveis que se atualiza no encontro, no acontecimento entre corpos. Nesse sentido, a inclusão escolar pautada pela diferença, enseja transformações micropolíticas, no âmbito dos arranjos operacionais e pedagógicos que movimentam o cotidiano escolar. Nas palavras de Guattari (2010, p.155) “a questão micropolítica é a de como reproduzimos (ou não) os modos de subjetivação dominantes”. Este entendimento da inclusão, em seu modo propositivo, fomenta um campo de possibilidades pedagógicas, aprendizagens e construções subjetivas e identitárias múltiplas. É comum ou politicamente correto o reconhecimento da legitimidade de que todos os cidadãos tenham acesso à escola. Embora, ao se tratar da efetivação desse direito constitucional, persistam vários obstáculos. Reconhecendo a existência de impedimentos de naturezas distintas, destacamos o recorte sobre o âmbito da subjetividade, no que diz respeito aos seus modos de modelagem, critérios e condições de pertencimento e não pertencimento ao universo escolar. Isto é, modos de produção de identidades e diferenças. Trata-se de refletir sobre os enunciados e práticas, em suas atribuições valorativas de sentido e significado construídas socialmente e ratificadas cotidianamente sobre a identidade e a diferença, que qualificam e posicionam os sujeitos sociais no âmbito do universo escolar, incidindo sobre as condições intersubjetivas de aprendizagem, convívio e desenvolvimento humano. É recorrente a ideia de inclusão ser ou estar relacionada às questões que envolvem as pessoas com deficiência, referente aos diversos âmbitos da vida social e as conquistas legais decorrentes da luta por condições de equidade. De fato, justifica-se a relação entre inclusão e pessoas com deficiência, assim como a relevância social e política da luta desse referido grupo, no que tange às conquistas legais de seus direitos constitucionais. Todavia, vale ressaltar que o movimento inclusivo não está circunscrito a um grupo social. A inclusão é um movimento mais amplo, cuja potência, destacamos - a problematização das condições e critérios de pertencimento social e institucional que forjam processos de subjetivação, produzindo, valorando e posicionando sujeitos, digitalizados em identidades e diferenças. No caso da inclusão escolar, tais processos são agenciamentos coletivos inerentes ao processo de escolarização incidindo sobre as condições de aprendizagem. Afinal, as relações entre aprendizagem, subjetividade e relações interpessoais estão, sobejamente, discutidas na literatura (TACCA, 2008; MARTINEZ E TACCA, 2009). Pautando-nos pela noção de diferença e singularidade, refutamos a naturalização e a fixação de uma identidade prescrita, cuja expectativa idealizada de desempenho intelectual e social afirma um sujeito previsível, (re)produtivo e normatizado - “o aluno normal, disciplinado, de constituição familiar tradicional”. Posto que, os que diferem do padrão normativo e idealizado pela cultura escolar são nomeados como diferente, implicando em atribuições de sentidos e significados negativos. Afirma-se 1 assim, uma noção de diferença estigmatizada, pejorativa, pertinente à lógica da identidade naturalizada, normativa e excludente. Apoiando-nos em Silva (2000a; b); Hall (2000) e Woodward (2000), em estudos já concluídos e em andamento, discutimos a produção social de significados, sentidos e posicionamentos de sujeitos sociais decorrentes de critérios de pertencimento e processos de subjetivação. Questionamos a produção de identidade e de diferença em contextos educativos que coisificam singularidades, por meio de nomeações estigmatizadas frente a quem difere do padrão normatizado. As ações e relações sociais agenciadas por referências hegemônicas estabelecem uma lógica social conservada na cultura escolar, por meio de uma idealização de uma identidade, o aluno ideal e a correlata expectativa de desempenho escolar, por exemplo. Esta práxis, ao incidir no âmbito subjetivo e social, interfaces cambiantes dos modos de existência, impede as transformações necessárias nas escolas, em prol de uma ética da diferença e da hospitalidade (LIMA, 1998, 2003, 2007, 2008, 2009). Ainda nesta perspectiva, evocamos em Jacotot (apud Rancière, 2002, p. 10), um pedagogo do século XIX, a crítica ao modelo e lógica pedagógica de seu tempo, quando adverte sabiamente: “a distância que a escola e a sociedade pedagogizada pretendem reduzir é aquela de que vivem e que não cessam de reproduzir”. Compartilhamos os argumentos do autor, pois, embora estejamos em pleno século XXI, sua voz ressoa pertinente e atual, quando afirma: “não há ignorante que não saiba uma infinidade de coisas, e é sobre este saber, sobre esta capacidade em ato que todo ensino deve se fundar.” Todavia, ressalta que o ensino pode embrutecer ou emancipar, dada a ambivalência possível no efeito do ensino, enquanto ato. Em suas palavras: O primeiro ato implica em confirmar uma incapacidade pelo próprio ato que pretende reduzi-la, ou, inversamente, forçar uma capacidade que se ignora ou se denega a se reconhecer e a desenvolver todas as consequências esse reconhecimento. (Jacotot apud Rancière 2002, p.11). Isto posto, a perspectiva inclusiva, da maneira como explicitamos, permite problematizar agenciamentos que forjam identidades, por meio dos procedimentos institucionais que incidem sobre as relações sociais e afetivas constituindo-as, produzindo subjetividades. Esse tem sido o recorte de discussões que fazemos acerca da inclusão, entendida e implicada num propósito de transformação, pautado na tensão e embate entre identidade e diferença, entre o mesmo e o outro, entre o familiar e o estrangeiro, entre o previsível e o possível, com vistas à efetivação de um ambiente educacional mestiço, plural e democrático, enfim, inclusivo. De acordo com Guattari (2001), a relevância de se engendrar novas práticas centradas no respeito à singularidade é fundamental, pois os efeitos do poder capitalista ampliam-se não apenas sobre o conjunto da vida social, mas, especialmente, infiltrando-se na interioridade dos indivíduos por meio de “componentes de subjetivação” que massificam. Nas palavras do referido autor: vetores de subjetivação não passam necessariamente pelo indivíduo, o qual, na realidade, se encontra em posição de “terminal” com respeito aos processos que implicam grupos humanos, conjuntos socioeconômicos, máquinas informacionais etc. Assim, a interioridade se instaura no cruzamento de múltiplos componentes relativamente autônomos uns em relação aos outros e, se for o caso, francamente discordantes. (GUATTARI, 2001, p.17). Portanto, discutimos relações entre aprendizagem e subjetividade, tendo como pressuposto, a concepção de inclusão escolar articulada a contribuições da filosofia contemporânea, especialmente, Foucault e Guattari. Compreendemos, assim, o sujeito como efeito de práticas discursivas e não discursivas empreendidas pela dinâmica que orquestra e agencia as relações sociais, afetivas e pedagógicas no ambiente escolar. Baseamo-nos, ainda, em uma pesquisa de mestrado, por meio de um estudo de caso realizado em uma escola do interior paulista, entre os anos 2009 e 2010, que empreendeu uma análise sobre o fracasso escolar a partir da discussão sobre os modos de subjetivação que produziram o sujeito/aluno fracassado quanto à expectativa de desempenho escolar. Problematizamos, então, a produção da subjetividade infantil e sua metamorfose para a subjetividade do aluno, revelando a sequela deste processo produtivo: a emergência do fracasso escolar, sintoma que, por sua vez viabiliza a produção do aluno fracassado. Enfim, defendemos a ressignificação do ambiente escolar como ação micropolítica, pautada pela ênfase na singularidade humana e pelo 2 pressuposto da comunidade escolar, capaz de oportunizar a ampliação do território existencial de toda a comunidade escolar desarticulando a produção do sintoma. A produção do sujeito ou prenúncio de um trajeto A escola é um espaço de diversas aprendizagens e produções, sobretudo, a aprendizagem social, por meio da qual, encaminham-se modos de subjetivação e, portanto, construções de identidades e diferenças. Ao mesmo tempo em que ocorre a aprendizagem formal de conhecimentos, operam-se os agenciamentos das relações sociais. Por agenciamento compreende-se, de acordo com o vocabulário crítico: ato de arranjar, organizar, dispor um conjunto qualquer de elementos. [...] O conceito é utilizado para dissolver qualquer noção essencialista de “sujeito” como entidade singular ou privilegiadamente “humana”, bem como para fugir de dicotomias tradicionais como as que separam o humano do não humano ou psíquico do social. (SILVA, 2000, p. 15) O interesse pelo estudo do fracasso escolar se justifica com base em experiências com o desvio escolar, sob a forma do fracasso e também do sucesso escolar, situações que oportunizam o levantamento de algumas hipóteses acerca do desvio escolar. A principal suposição diz respeito à existência da padronização do normal, considerando anormal todo e qualquer tipo de desvio. Por padronização, queremos dizer, um conjunto de características eleitas e legitimadas como referência (identidade desejável), como se fosse comum a todos. Neste sentido, ser normal significa estar incluído e adequado ao padrão/referência, na medida em que atende aos critérios de pertencimento e ser diferente representa não atender aos critérios desejáveis, portanto, ser/estar “naturalmente” excluído pela diferença, devido a ênfase de uma representação/valoração negativa. As enunciações proferidas como verdades únicas que produzem a subjetividade e compõe o repertório subjetivo, as enunciações sobre o desvio escolar pautadas pelo parâmetro normal/anormal, promulgam a segmentação dos indivíduos promovendo a culpabilização individual pela anormalidade e normalizam, ou seja, naturalizam a exclusão dos anormais por sua diferença e falta de adequação ao padrão. Para Guattari (2000), a subjetividade é constituída pela articulação entre diversos e diferentes vetores de subjetivação, que são as enunciações provenientes do campo social responsáveis pela produção do sujeito, de sua forma de ser e de agir no mundo. Sendo assim, os modos de subjetivação constituem-se como referências de normalidade subjetiva. Os modos de subjetivação são veiculados por agenciadores coletivos de enunciação que regem conjuntos discursivos conduzindo verdadeiros campos de significação e denotação. Deste modo, segundo o autor o sujeito é produzido pelo intermédio da enunciação. Logo, podemos dizer que, para Guattari (2000), a constituição do sujeito está muito mais relacionada com o ato de nomear do que com o “ser” a priori. Foucault (1979) também se ocupou em compreender os diferentes modos de subjetivação do campo social, especificamente aqueles que transformam os seres humanos em sujeitos e objetos de saber em sua relação intrínseca com posicionamentos de poder. Assim, existe uma circularidade entre saber e poder, por meio da qual a subjetividade humana é forjada. Neste sentido, o sujeito é um efeito das práticas discursivas em suas relações com o poder. Cabe esclarecer que o poder ao qual o autor se refere é um tipo de poder capilar, no sentido em que pode ser observado, cotidianamente, em microesferas sociais, ou seja, em todas as relações corriqueiras do dia-a-dia. Sendo assim, o sujeito constituído a partir dos efeitos do poder encontra-se em situação ambígua, pois ao mesmo tempo em que se sujeita ao poder também o exerce. Este tipo de poder, multifacetado e pulverizado nas relações sociais, utiliza a disciplina e seus mecanismos para fabricar o sujeito, sendo chamado, por Foucault (1979), de poder disciplinar. Segundo o autor, o poder disciplinar lança mão de mecanismos específicos que permitem o adestramento dos corpos, tornando-os objetos e instrumentos de saber e de poder. O autor defende que a disciplina, e não a repressão, permite a fabricação do sujeito enquanto objeto e sujeito do conhecimento. Foucault (1995) analisa o exercício do poder disciplinar enquanto uma prática social historicamente constituída, concebendo tal poder como produtivo, ao passo em que propicia a produção do tipo de homem necessário para a funcionalidade do sistema socioeconômico vigente. Foucault (1971) compreende 3 a subjetividade individual embasada pelos discursos de verdade que permeiam as relações de poder e produzem a subjetividade. De forma similar, Guattari (2000) concebe a relação do sujeito com os modos de subjetivação, onde o sujeito é produzido e produtor por/de agenciamentos de enunciação em suas relações cotidianas. Assim, o autor afirma que a subjetividade individual resulta de deliberações coletivas representadas pelos modos de subjetivação referentes aos grupos sociais dos quais os indivíduos se sentem pertences. Segundo Guattari (2000), a subjetividade se revela na(s) maneira(s) em que o indivíduo se articula no mundo, podendo ser esta articulação singular ou não. Para o autor, os modos como os indivíduos se relacionam com esta subjetividade estritamente capitalística, sendo se posicionando criticamente e superando-a ou assumindo-a e submetendo-se a ela, definem as possibilidades de desenvolvimento de um processo de singularização. Portanto, singularizar-se representa tornar-se singular/único. O processo de subjetivação pode reduzir-se a reprodução de modelos pré-concebidos ou permitir a singularização a partir da criação de modos de representação de mundo mais autênticos. Segundo Guattari (2000), ao singularizar-se, o indivíduo estabelece uma relação de expressão e criação, se tornando autônomo em relação à própria subjetividade e a sua produção. Para Foucault (1984), a construção da subjetividade pode ocorrer pelo assujeitamento do indivíduo ou por práticas de libertação que incidam sobre a ruptura existente entre o mundo social e o mundo das ideias. O autor declara crer “[...] por demais na verdade para não supor que existam diferentes verdades e diferentes modos de dizê-la.” (FOUCAULT, 1984, p.04). A teoria foucaultiana, grosso modo, procura demonstrar as diversas maneiras que, em nossa cultura, os seres humanos são “transformados” em sujeitos por intermédio de práticas discursivas. Assim sendo, se tornar sujeito significa se sujeitar aos modos de subjetivação, oriundos da transformação do homem em objeto de saber. Acredita-se que o processo de singularização subjetiva pode repercutir de maneira micropolítica, produzindo microrrevoluções que possuem a possibilidade de rejeitar os modos de subjetivação hegemônicos, e propiciar maneiras de representação de mundo mais autênticas e singulares. Desestruturar os discursos considerados legítimos explicitando sua parcialidade, considerar a íntima relação entre a institucionalização do saber e o exercício de poder e revelar a necessidade em se assumir a diversidade humana constituem fatores passíveis de conduzir a um engajamento micropolítico pautado pela pressuposição da singularidade humana. Por conseguinte, a compreensão de como ocorre o processo de produção da subjetividade explicita o caráter constitutivo do sujeito e revela que o assujeitamento está muito mais relacionado ao ato de nomear e ser nomeado do que com o ato de ser. Assim, enunciar propicia a linha tênue entre verdade e exclusão. A transformação da criança em aluno As enunciações acadêmicas sobre a criança, por possuírem o status científico, são consideradas verdadeiras e fidedignas, constituindo os modos de subjetivação que produzem a subjetividade infantil definindo seus desvios por intermédio do parâmetro de normal e anormal. Desta forma, o saber científico sobre a infância instituiu a transformação da criança em objeto do conhecimento. A criança da atualidade, desde tenra idade, vai sendo, paulatinamente, transformada em aluno. Devido a circunstâncias históricas e sociais contemporâneas, a criança precisa frequentar a escola cada vez mais cedo. Esta introdução prematura da criança na instituição escolar ocasiona a internalização de atitudes típicas ao ambiente escolar. A organização do tempo, do espaço físico, a seleção dos saberes e a metodologia de ensino induzem o infante à obtenção de uma série de comportamentos tidos como desejáveis ao ambiente escolar. Desde a educação infantil, a criança é modelada para se adequar a “rotina” escolar. Todo o período de frequência na escola, e parte do período em que passa fora dela, lhe é "roubado” em função da demanda escolar. O ritmo biológico e social infantil é disciplinado para estar em compasso com aquilo que é instituído pela instituição escolar. Desta forma, segundo a organização escolar, o tempo da criança não lhe pertence mais, suas necessidades fisiológicas devem ser controladas da mesma maneira como devem ser reprimidos seus impulsos. Comer, dormir, evacuar, urinar, falar, rir, brincar deixam de ser do domínio da criança em 4 função da rotina escolar. Desta forma, a escola modela o comportamento infantil conduzindo uma transformação sequencial da criança em aluno. Concluímos que, da mesma forma como ocorre a produção da subjetividade infantil, emergindo a criança e todo seu universo referencial, também ocorre a transformação da criança em aluno e a respectiva padronização do bom e do mau aluno, pois, em função deste processo produtivo demonstra-se corriqueira a idealização do aluno e de sua relação com os conteúdos escolares, bem como a exigência por um desempenho ideal. Sob as crianças que não se rendem aos ditames da instituição escolar pesam uma série de medidas que objetivam o enfrentamento da inadequação ao espaço escolar, sendo a diferença inadmissível em um sistema organizado sob a rigidez da homogeneidade. O diferente precisa ser capturado pelas redes do saber, que o identificam como anormal, e controlado pelas redes do poder, que postulam medidas para normalizá-lo. São inúmeras as medidas tomadas desde a avaliação, que formula a queixa escolar, até o diagnóstico clínico da diferença sob parâmetros meritocráticos, oferecendo a medicalização da diferença mediante a enunciação de fracassado. Tais medidas representam intervenções que, além de paliativas, concretizam a legitimação do diagnóstico de fracassado e colaboram para a perpetuação do “mito maldito” de que cabe à criança a responsabilidade pelo fracasso escolar. Podemos dizer que a metamorfose da criança em aluno opera sob uma série de modos de subjetivação pautados pela idealização de aluno e das relações escolares. A transformação da criança em aluno ocorre mediante o fato de que, no ambiente escolar, a criança perde sua característica infantil, sendo submetida a um regime de verdade típico da institucionalização do ensino. A produção de aluno agrega a emergência de um sintoma referente ao não assujeitamento: o fracasso escolar. Assim, é possível compreender que o fracasso escolar só existe em relação à produção de aluno. Fracasso, no sentido literal da palavra, pois se trata de um sintoma que emerge do fracasso da criança no processo de transformar-se em aluno, fracasso da instituição em compreender a singularidade humana, fracasso social em agenciar modos de subjetivação que assumam a diferença, entre outros fracassos que poderiam ser listados. Ressalta-se o fato de que a produção de aluno está intimamente implicada com a sequela enunciada como fracasso escolar. Sintoma emergente da fabricação de aluno pautado em um regime de verdade que valoriza a figura de aluno ideal. Ocorrência que evidencia o fracasso de todo paradigma que esteja sustentado pela idealização da homogeneidade e desconsideração da heterogeneidade humana. A conquista de novos domínios territoriais Segundo Guattari (2000), não é possível compreender como uma pessoa chegou a apresentar um sintoma sem investigar todas as articulações entre os modos de subjetivação que desenvolveram a vivência desse sintoma. Dessa forma, um tratamento meramente sintomático certamente não apresenta viabilidade para o sucesso, portanto, “[é] preciso ter cuidado para não tomar o sintoma pelo próprio mal.” (GUATTARI, 2000, p. 248). Nos casos de fracasso escolar, o sintoma incomoda tanto e expõe de tal forma a escola e seus agentes que medidas para contê-lo isoladamente são corriqueiras, a tal ponto que, atualmente, a busca por índices “atrativos” provoca sérios prejuízos a qualidade pedagógica com vistas na formação humana para a superação do assujeitamento. Podemos conceber o fracasso escolar como um sintoma que reflete todo um sistema particular de compreensão e concepção sobre a maneira humana de ser e de se organizar no mundo. Sendo que, tanto a compreensão de como ser no mundo quanto a concepção de mundo, originam-se pelas articulações entre os diversos modos de subjetivação que produzem o sujeito. O enfoque específico ao sintoma não permite a compreensão do processo produtor deste tipo peculiar de subjetividade que sofre com a vivência do fracasso escolar sem conseguir se desarticular dos agenciamentos que a produzem. Neste fato, justifica-se a importância de analisar caso a caso os modos de subjetivação que originaram o sintoma, a fim de compreender o processo que culminou na produção sintomática do fracasso. Em função das articulações ocorridas entre os modos de subjetivação são desenvolvidas zonas de possíveis que podem ser mais ou menos estreitas dependendo da forma como ocorreram os agenciamentos 5 que produziram a subjetividade. Essas zonas de possíveis conjugam territórios demarcados que, segundo Guattari (2000), constituem a cartografia subjetiva. Segundo o autor, tais zonas configuram as atuações possíveis em cada território, ou seja, dependendo de como e de quais modos de subjetivação foram introjetados subjetivamente será a atuação do sujeito em determinado território. Os territórios demarcados se caracterizam pela atuação de um ritmo repetido e contínuo de expressão que ocasiona uma sensação estática e limitada. A repetição provoca a perda da funcionalidade inicial e se torna uma forma de expressão das articulações ou agenciamentos que demarcaram o território. Assim, cada território carrega em si os modos de subjetivação que o produziram e, mediante a repetição de um único possível, apresentam a aparência da pré-determinação e da irreversibilidade. Um sistema de expressão somática que faz com que um sintoma [...] constitua um modo de semiotização que se repete sobre si mesmo, sem poder entrar em conexão com processos de expressão individual, de expressão coletiva, de práticas sociais, de pragmáticas de diferentes naturezas, tal sistema de expressão somática é uma espécie de estreitamento do possível, que desemboca num cerco da pessoa. (GUATTARI, 2000, p. 246). A vivência de um único possível marca a vida das três crianças, foco da pesquisa mencionada, com o sintoma do fracasso escolar. A atuação em seus territórios familiar, escolar e social apresenta-se estática e representativa de papéis sociais. Podemos dizer que a vivência do fracasso escolar resultou da produção de certo tipo de subjetividade que, por sua vez, limitou a zona de possíveis à única possibilidade de ser. Em cada um dos casos esta possibilidade representou o desvio. Inadequados demais, a opção pelo fracasso escolar representou a alternativa mais viável perante os modos de subjetivação internalizados. Desertar desta alternativa significaria a morte simbólica, a total desterritorialização, pois representaria a ausência de tudo que, para cada um deles, constituía a certeza, o verdadeiro. Somente a quebra dessa certeza, mediante experiências diversas, poderia lhes fazer vislumbrar o alargamento da zona de possíveis. Segundo Guattari (2000), tais experiências devem ocorrer mediante novos agenciamentos que proporcionem a quebra da estaticidade e a abertura para novos possíveis, processo que engendra o par binômio morte/vida por intermédio da desterritorialização: morte simbólica das certezas absolutas e vida pela viabilização de possibilidades mais singulares ao indivíduo, ou seja, “[...] [a] sensação de destruição (na ausência) é indissociável de uma esperança: a da sensação aliviadora da reconstrução (na presença) – condição de existência [...]” (GUATTARI, 2000, p.285). Inferimos que, o medo pela ausência manteve as crianças investigadas na vivência do sofrido fracasso escolar; mas, somente a ausência pôde trazer a presença de novas possibilidades, ou, uma existência menos vinculada aos estereótipos, até então, a eles atribuídos e por eles assumidos. Assim, somente a vivência da morte do eu anterior proporcionou a realidade da vida de um novo eu que, embora tenha emergido a partir do anterior, representava o novo. Logo, a morte, simbolizada pela ausência da certeza de verdade sobre o conhecimento de ser consigo e de ser no mundo, provocou a emergência de um conhecimento singular sobre si e sobre o mundo, promovendo a abertura para possíveis mais autênticos. Deste modo, a produção do sujeito como fracassado agrega todo um território existencial pautado pelo fracasso, as crianças investigadas conviviam com o fracasso cotidianamente. Esta convivência ocasionava o estreitamento da zona de possível impedindo novos domínios. A conquista de novos domínios somente mostrou-se passível de ser viabilizada mediante a quebra dos limites impostos pelos modos de subjetivação que impõe verdades unívocas. A destituição de tais verdades pôde seguramente ser viabilizada por agenciamentos que enfatizaram a singularidade humana e permitiram a vivência da comunidade. A ressignificação escolar Consideramos, pela referida pesquisa, a comunidade escolar como sendo composta por três grupos, ou seja, o grupo dos alunos, o grupo dos familiares dos alunos e o grupo de profissionais que atuam na escola. Nesta experiência particular, tais grupos se apresentavam dissociados pela compreensão restritiva da intervenção institucional responsabilizando-se reciprocamente pelos intercursos do processo 6 ensino-aprendizagem. Tais fatores apresentavam-se impeditivos para a reflexão, impossibilitavam a análise crítica e a comunhão de objetivos. Por isso, o confronto se fez necessário para a busca de superação e conquista de ações mais apropriadas. Subjetivamente, perceber-se enquanto integrante de um grupo restrito representa, segundo Guattari (2000), assumir os modos de representação que tal grupo define enquanto seu caráter identificatório; significa sujeitar-se aos modos de subjetivação do grupo em questão e compreender os demais grupos enquanto “o outro”. Assim, no ambiente escolar, o antagonismo entre os grupos acarretava a segmentação da comunidade escolar. Tal antagonismo, no caso exposto, evidenciava a busca da delimitação de territórios existenciais grupais e ocasionava a inexistência de discussões reflexivas. Portanto, somente após o embate reflexivo e crítico demarcado pelo pressuposto de que a obtenção do bem-estar coletivo encontrava-se vinculado ao cumprimento do objetivo de cada grupo e de cada indivíduo é que foi possível a compreensão de que o bem-estar de todos depende do bem-estar do indivíduo e vice-versa. Desta forma, foi evidenciada a incompatibilidade da coexistência do sucesso coletivo com o fracasso escolar sob a forma da segmentação grupal. Coube, deste modo, re-situar o papel de cada grupo enquanto integrante da comunidade escolar, ressignificando o papel do indivíduo em sua relação comunitária, agregando o conceito do comum à comunidade escolar. Pressupor a singularidade enquanto parâmetro norteador da prática institucional requer a ressignificação dos objetivos que agregam os indivíduos em um mesmo espaço e a reflexão acerca dos possíveis coletivos e individuais. Segundo Guattari (2000) não basta compreender os modos de subjetivação que produziram o sujeito, mas encontrar e oportunizar agenciamentos que lhe permitam conquistar graus suplementares de liberdade. Deste modo, mostrou-se evidente que o ambiente institucional representa espaço privilegiado para a emergência de contradições que oportunizem a ampliação do domínio territorial. Cada indivíduo traz consigo fatores múltiplos que o constituíram enquanto sujeito e objeto. Da mesma forma ocorre com a instituição escolar, neste caso, tais fatores referem-se ao saber sobre a infância e sobre o aluno agregados às questões sociais, políticas, históricas e culturais. A instituição que insistir em pautar sua intervenção em uma relação restritiva com relação à compreensão do sujeito, procurando enquadrá-lo em um padrão homogêneo incorrerá em erro por desconsiderar a singularidade do sujeito com o qual se “relaciona”. O fato é que “[...] os processos de institucionalização não podem funcionar em monodia; é preciso uma polifonia que, além disso, admita instrumentos inteiramente imprevistos.” (GUATTARI, 2000, p.254). Neste contexto, a instituição deve proporcionar alternativas referentes à trajetória coletiva de toda natureza, fazendo a opção pela reverência à heterogeneidade, considerando cada componente de forma singular. Este tipo de abordagem requer um exercício penoso, no sentido em que representa a contradição da própria instituição, que foi instituída sobre a égide da verdade universal conferida pelo saber científico. Optar pela singularidade, enquanto referência, representa assumir a heterogeneidade inclusive nas práticas discursivas e interventivas sem, no entanto, ser incongruente com o próprio discurso. Assumir a heterogeneidade representa oportunizar uma multiplicidade de opções, ou seja, considerar a diversidade de possibilidades de ser. Nesse sentido, o espaço institucional pode seguramente vir a ser um território da invenção e do culto a singularidade. Para tanto, mostra-se necessário correr o risco de ser diferente e contraditório com relação aos padrões hegemônicos. A não evidência subjetiva deve constituir o norte para as ações institucionais que, deste modo, estarão embasadas em parâmetros éticos fortemente comprometidos com o ser. Considerações finais Sendo assim, concluímos que a produção subjetiva encontra-se condicionada às enunciações veiculadas pelos modos de subjetivação, por sua vez, originados por agenciamentos inúmeros. Portanto, mostra-se necessário avaliar o papel institucional na ampliação da atuação subjetiva, em busca do 2 alargamento da zona de possíveis do sujeito por intermédio da conquista de novos territórios existenciais que oportunizem a elaboração de uma nova cartografia subjetiva. Não se trata de defender esta ou aquela prática educacional, ou de culpabilizar este ou aquele ator social ou institucional, pois a chave para o sucesso não se encontra em uma metodologia ou em práticas pedagógicas específicas. Na verdade, é preciso ressaltar a necessidade da leitura criativa do significado subjacente do fracasso escolar, enquanto um sintoma que denuncia o fracasso da produção subjetiva pautada pela homogeneidade. Em contrapartida, a pesquisa mencionada remete a reflexão sobre o impacto da atuação institucional pautada pela ênfase à singularidade na vida dos alunos que sofrem sob o estigma do desvio escolar. A questão da aprendizagem, ou melhor, da não aprendizagem de conteúdos escolares, seguramente, não apresenta relação direta com a capacidade cognitiva, tanto que, as crianças enfocadas pela pesquisa não apresentaram, em nenhum momento, déficit cognitivo. Podemos dizer, também, que a não aprendizagem de conteúdos escolares mostra-se independente da estruturação familiar, como também o é das condições sociais e econômicas do sujeito. Embora as crianças pesquisadas, como qualquer criança, apresentem problemas familiares e econômicos, não foram tais problemas que originaram o fracasso por elas vivenciado. Salientamos que, a vivência escolar e todas as suas particularidades encontra-se extremamente relacionada às possibilidades ocasionadas pelo processo de produção subjetiva, enfim, com a cartografia subjetiva e sua zona de possíveis. Assim, seria imprudente ignorar, frente às reflexões oportunizadas a partir dos estudos mencionados, respaldados por nossos referenciais teórico-metodológicos, a forte relação existente entre aprendizagem e produção subjetiva. Em função da cartografia subjetiva das crianças estudadas, os limites veiculados pelo território escolar não propiciavam a vivência do sucesso escolar para elas. Do mesmo modo com que a cartografia subjetiva impõe zonas de possíveis que limitam a atuação do sujeito, a cartografia institucional apresenta zonas de possíveis que limitam a atuação de seus atores. Assim, o entrecruzamento das zonas de possíveis [subjetiva e institucional] promove a atuação no território escolar. A intersecção entre os territórios existenciais de toda a comunidade escolar promove a zona de possíveis viável para o território escolar, tanto é que algumas atuações são inconcebíveis neste espaço. Acreditamos que a grande possibilidade ocasionada pela gestão institucional é a de realizar a leitura destas intersecções de forma a viabilizar a ampliação da zona de possíveis e a conquista de novos territórios existenciais transitáveis para toda a comunidade escolar. Notadamente, na experiência mencionada, o espaço de contato entre os territórios existenciais das crianças fracassadas e instituição escolar não permitia a mobilidade, ou a exploração, ou a conquista, ou o domínio em uma via dupla, pois, da mesma forma com que o território escolar atribuía estranheza aos alunos em questão, o território existencial de cada um deles parecia estranho sob a ótica institucional. Desta forma, no jogo do poder a “verdade” institucional exercia seu saber sobre o objeto, sem se dar conta da relação similar de estranhamento, pois, a “verdade” de um mostrava-se nula de sentido ao outro. Assim sendo, torna-se fato que, as microrrevoluções congregam a possibilidade de conquista da ampliação da zona de possíveis, oportunizando o domínio de novos territórios existenciais aos envolvidos no processo micropolítico. Portanto, a pesquisa citada apresenta-se em defesa da ressignificação da instituição escolar pautada pela ênfase à comunidade escolar e à singularidade humana, como forma de oportunizar a ampliação da zona de possíveis da comunidade escolar. Assim sendo, ao compreender que a invenção do aluno ideal oportunizou a emergência do fracasso escolar, torna-se apropriado dirigir a atenção para a produção subjetiva do aluno ideal e sobre todo o regime de verdade que o gerou enquanto referencial. Para isto, muito mais de se trabalhar em defesa desta ou daquela vertente, há que se batalhar pelo reconhecimento do princípio básico de ser humano: a singularidade e toda a compreensão paradigmática que ela engendra. Assim, referimos a inclusão escolar como a micropolítica necessária ao reconhecimento legítimo da diferença como eixo central e molecular das condições de aprendizagem no ambiente escolar. 3 Referências bibliográficas FOULCAUT, M. A ordem do discurso. Tradução de Edmundo Cordeiro. Disponibilizado em: http://www.scribd.com/doc/2520353/Michel-Foucault-A-Ordem-do-Discurso, 1971. ___________________ Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. 27ª reimpressão Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. ___________________ Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Editora Vozes, 1995. ___________________ As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas 8ª edição. 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Campinas, SP: Alínea, 2008. 4 TECNOLOGIAS SOCIAIS EDUCATIVAS E A PRÁXIS SOCIOCOMUNITÁRIA Renato Kraide Soffner Doutor em Educação Docente e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Educação UNISAL – Unidade Americana E-mail: [email protected] Maricê Leo Balducci Mestrando em Educação - UNISAL Docente FATEC de Americana – Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza E-mail: [email protected] Resumo: Este trabalho relata alguns resultados prévios do projeto de pesquisa em Tecnologias Sociais Educativas de aplicação sociocomunitária, conduzido no Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL. Tal investigação tem por objetivo entender o emprego educativo das novas tecnologias de informação e de comunicação como instrumentos de construção de autonomia das comunidades via práxis tecnológica e sociocomunitária. Justifica-se pela importância que o assunto tem nas questões do acesso (inclusão digital) e da geração de oportunidades de vida. Ainda, esta modalidade tecnológica e educativa está ainda por ser inventariada, sendo desconhecida em muitos dos seus aspectos, quais sejam, de referências teóricometodológicas, ético-políticas,ideológicas, tecnológicas, e didático-pedagógicas, o que amplia a justificativa para este trabalho. Do ponto de vista metodológico, conduziu-se, inicialmente, uma revisão de literatura, para depois discutirem-se propostas de ações para o levantamento de iniciativas baseadas em tecnologias sociais, que deverão ser continuadas na sequência deste trabalho, a fim de se produzirem indicadores para uma avaliação crítica destes tipos específicos de intervenções educativas com bases tecnológicas de cunho social e comunitário. Palavras-chave: Tecnologias sociais; educação; práxis sociocomunitária. Abstract: This paper reports some preliminary results of a research project on educational social technologies, carried out within the graduate program in education of the Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL. Such research aims to understand the educational aid of new information and communication technologies as tools for building community autonomy by means of technological and communitarian praxis. Justified by the importance that the subject has on issues of access (digital inclusion) and the generation of life opportunities, this technological and educational mode is still scheduled to be understood, being unknown in many of its aspects, namely, of theoretical-methodological, political, ideological, ethical, pedagogical and technological references, which extends the rationale for this work. Methodologically, we initially conducted a literature review to discuss proposals for the lifting of social technology-based initiatives, which are to be continued by further research, in order to produce indicators for a critical evaluation of these specific types of educational interventions with social and technological bases. Key-words: Social Technologies; education; communitarian praxis. 5 Introdução Tecnologias sociais educativas, foco deste trabalho, buscam a melhoria da qualidade de vida das comunidades mais necessitadas e em situação de risco do ponto de vista da educação sociocomunitária, e por meio de tecnologias de baixo custo e amplo acesso. Para isso, pretende-se fornecer um veículo educativo que permita às comunidades da região estudada o desenvolvimento de uma visão otimista das oportunidades que tais tecnologias oferecem para o desenvolvimento de autonomia social. Assim, nossa hipótese de trabalho é a de que as tecnologias sociais de origem digital podem ser agentes de transformação da educação, capazes de alterar a vida comunitária pela autonomia. Para a condução do trabalho, do ponto de vista metodológico, serão apresentadas inicialmente uma revisão de definições sobre os conceitos de tecnologias sociais e questões sociocomunitárias, numa visão de educação de práxis comunitária e social; como método de procedimento proposto, sugerem-se o levantamento (survey) e os estudos de caso, de forma a se identificar quais são as práticas tecnológicas de potencial para a proposição maior deste trabalho, e que geram, de fato, a práxis educativa sociocomunitária. Do ponto de vista de paradigmas teórico-metodológicos, e até mesmo epistemológicos, esta pesquisa não se filia a nenhum de forma objetiva e direta. Pretendemos, em termos de referenciais teóricos, discutir aqueles que a própria pesquisa acabará por identificar como válidos, o que nos proporcionará uma estratégia de análise comparativa de grande interesse metodológico. Colocaremos a questão da práxis dentro de uma ampla revisão de literatura, cuidando para que a questão da comunidade (e do comunitário) também esteja solidificada. Ainda em relação ao conceito de práxis, queremos aqui manter condição de neutralidade, embora citando como referencial do trabalho de pesquisa os paradigmas que poderão sustentar tal neutralidade do pesquisador proponente (citem-se, como exemplos, Karl Popper - e o conceito de engenharia social fragmentária, e Paulo Freire - e sua práxis comunitária). Nossa pretensão é a de que este trabalho possa abrir elementos para a discussão sobre os significados das tecnologias sociais, bem como seus usos e fundamentos – e não apenas uma aplicação prática de tecnologias, como se poderia inicialmente esperar, de um ponto de vista mais pragmático. A revisão de bibliografia e literatura exploratória nos revelou que tal discussão na área de educação é incipiente, e isto nos ajuda a justificar a importância deste projeto. É oportunidade de abertura de caminhos inéditos de investigação e práxis num tema de grande importância para o momento histórico em que vivemos, e que muito pode contribuir com a educação se discutido em suas áreas de abrangência e influência. Entendido aqui o comunitário como o predomínio das relações de interesses comuns, com características de intersubjetividade propiciadoras de modalidades organizacionais que podem construir a autonomia, e entendido o societário contemporâneo como a expressão da convivência caracterizada pelo conflito entre a normatização instaurada pela racionalidade burocrática e os direitos conquistados pela cidadania, este trabalho também se justifica quando propõe investigar as condições da práxis educativa apoiadas por tecnologias sociais que intensifiquem esses processos de autonomia e cidadania. É, portanto, a partir da concepção de práxis e derivando dela o conceito de autonomia social e da educação como apropriação-construção de conhecimentos socialmente significativos, que se busca a formulação das questões e do modo de respondêlas no âmbito desta pesquisa. Tecnologias sociais podem muito bem, e de forma inicial e baseada no senso comum, assumir uma visão um tanto pragmática, mas, alertamos, devem considerar também as preocupações teóricas e conceituais do tema. Neste início de século XXI, percebemos que a vida humana é, em grande medida, projeto – projeto da vida que 6 escolhemos para nós mesmos e para a comunidade em que vivemos. Possuímos uma intrigante capacidade de inventar tecnologias – e tentativamente apresentamos uma primeira definição do que sejam elas, mesmo que nos obrigando, posteriormente, a melhor elaborálas do ponto de vista conceitual. Tecnologia, por ora, é tudo aquilo que o ser humano inventa para tornar a sua vida mais fácil, ou, então, mais agradável. As tecnologias são ferramentas que ajudam a nos manter vivos: no plano dos meios, e no plano dos fins. E o que chamamos de educação é exatamente o processo mediante o qual os seres ignorantes e incompetentes que somos ao nascer se transformam, gradativamente, em seres menos ignorantes, relativamente competentes, capazes de definir, com um grau potencialmente elevado de autonomia, nosso projeto de vida e a estratégia necessária para transformá-lo em realidade. Estes são os ingredientes básicos do desenvolvimento humano, vale dizer, da educação. 1 Como pano de fundo desta discussão, sabemos que as revoluções científicas e tecnológicas da história moderna determinaram mudanças no comportamento e no desenvolvimento sócio-econômico-cultural de nossos dias, e a educação certamente não passaria incólume. A ubiquidade e onipresença da tecnologia em nossas vidas e em nossas atividades cotidianas, inclusive aquelas de cunho pedagógico-escolar, forçam-nos a repensar e adaptar alguns processos historicamente aceitos. Novos paradigmas epistemológicos, tecnológicos e políticos emergentes exigem uma nova análise de sua influência na prática educativa, em face da transitoriedade das novas demandas sociais. A instrumentalização de novas tecnologias e sua recepção de modo reflexo ou transformador pela prática educativa há que ser analisada de forma racional e científica, superando discussões empíricas e baseadas no senso comum, que têm sido a tônica do tema nos meios acadêmicos e comunitários. No que tange especificamente a tecnologia, há que se preocupar com os conceitos fundamentais que regem a aplicação desta invenção humana às práticas educativas, e, aqui, do ponto de vista sociocomunitário. Tecnologia, como visto, e do ponto de vista desta proposta, é tudo o que aumenta as capacidades humanas. Desta forma, a primeira tecnologia foi o pedaço de osso que um determinado hominídeo utilizou para se defender ou para atacar outro animal. Num histórico de evolução das tecnologias, elas tiveram inicialmente um papel de suporte às atividades operacionais do homem, seguido por uma utilização planejada e sistemática como aquela chamada pelos gregos de techné (do grego tictein: criar, produzir atividades práticas ou arte prática, o saber fazer humano, tendo como exemplos as técnicas de plantio e de caça, ligadas ao uso de ferramentas pessoais), quando foram repensadas em termos da Revolução Industrial (já no final do século XVIII e início do século XIX), quando a técnica passa a tecnologia (SANCHO, 1998; LITWIN, 1997). Tecnologia tem a mesma raiz etimológica de técnica, (techné + logos), mas diferencia um simples saber fazer daquele fazer com raciocínio, com ciência. Discute criticamente a técnica, e preocupa-se em melhorá-la, aperfeiçoá-la, compreendê-la. Em termos conclusivos, que trazem o sabor de descoberta, a técnica caracteriza a intervenção do ser humano na natureza. É o que o distingue dos demais seres vivos. Para efetivar tais ações intervencionistas, o homem cria ferramentas que ampliam seus sentidos, e a isto chamamos tecnologia. Já em termos educativos, esta marcante influência da tecnologia na sociedade não é apenas questão de se levar a tecnologia até a escola para que se obtenham melhorias na qualidade da educação, como parecem pensar alguns governos. O emprego inovador de tecnologia no dia-a-dia, pelas comunidades, pode ser a grande diferença para que se mude 1 A discussão em torno deste parágrafo é baseada no prefácio escrito por Eduardo Oscar de Campos Chaves ao livro Estratégia, Conhecimento e Competências, do autor deste trabalho (cf. SOFFNER, R. K. Estratégia, conhecimento e competências. Piracicaba: Degaspari, 2007). 7 radicalmente a centralização do processo educativo na educação formal e escolar, mas com bases não formais e sociocomunitárias, como defenderemos neste texto. Quando falamos de comunidades, podemos nos lembrar da definição de tecnologia de Bunge (1980): um corpo de conhecimentos só uma tecnologia se, e somente se, é empregado para controlar, transformar ou criar coisas ou processos, naturais ou sociais. Note-se o termo sociais, por ele citado. Castells (2001) considera que a tecnologia é dimensão fundamental de mudança social, já que a própria evolução e transformação das sociedades são feitas através da interação complexa de fatores culturais, econômicos, políticos e tecnológicos. Castells considera que estamos numa era paradigmática que poderia ser chamada de informacionalismo, em contraposição ao industrialismo, que cede espaço à primeira como matriz dominante da sociedade do século XXI. É a sociedade em rede, que tem ampla base tecnológica. Em trabalho que mobiliza o conceito de tecnologia, o filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto (PINTO, 2005) nos apresenta os quatro sentidos mais comuns do tema: o primeiro é o etimológico, onde definimos tecnologia como o logos ou discurso da técnica. Aqui faríamos a discussão da técnica, do ponto de vista das artes, do saber fazer, das profissões e o modo de se produzir algo; o segundo sentido é o clássico sinônimo de técnica ou know-how; terceiro, o sentido de ser a tecnologia um conjunto de técnicas de domínio de uma sociedade, ou seja, o nível de desenvolvimento produtivo de dada sociedade; finalmente, o sentido de que a tecnologia é a ideologia da técnica. Paulo Freire considerou a tecnologia como uma grande expressão da criatividade humana. Prova disto, desejou (ao contrário do que muitos pensam) ser visto como um homem de seu tempo, atual, e não afastado dele. Para Freire, a tecnologia é expressão do processo de engajamento do homem ao mundo, para sua transformação. Ainda, a tecnologia é meio de afirmação de uma sociedade, política devido ao fato de ser prática humana, e certamente influenciada por ideologias, pois serve a tecnologia a interesses múltiplos: ela não é, portanto, neutra - segue a visão de mundo da sociedade que a produz e a utiliza (FREIRE, 1987). Freire acreditava que nenhuma tecnologia é, em si, má, pois é a utilização e a manipulação das mesmas, pelas sociedades e pelos indivíduos, que realmente as caracterizarão. Consequência deste fato, a técnica e a tecnologia são fundamentais para a prática educativa, em seu emprego pelos oprimidos na luta de busca por promoção social e cidadania (FREIRE, 1996), em nítida dialética com os interesses escusos de quem as explora de forma dominadora. A contextualização da tecnologia auxilia em sua reinvenção, a fim de propor o poder do comunitário que a tecnologia oferece (PICKLER & SOFFNER, 2011). Do ponto de vista epistemológico e sociológico da tecnologia e do conhecimento científico, Castells adverte que “[...] a política social do conhecimento poderá representar – dependendo de como puder avançar na direção do combate à pobreza política, sobretudo – o processo de formação da competência humana de fazer história própria, individual e coletiva, dentro da concepção estratégica do desenvolvimento humano” (CASTELLS, 1999, p. 10). Ainda, que a “a redistribuição de renda, se ocorrer, não virá do mercado, nem da assistência (que apenas distribui, mas não redistribui), mas da política social do conhecimento, ou seja, da cidadania politicamente competente e adequadamente instrumentada pelo conhecimento” (op. cit., p. 12). Relação direta tem, portanto, o tema proposto neste projeto de pesquisa com a construção social do conhecimento (BERGER e LUCKMANN, 1995). Demo (2000) critica o discurso do distribuir (assistencialismo) versus o redistribuir (emancipação dos marginalizados: renda, poder, conhecimento, cidadania). Segundo o autor, a habilidade ou inabilidade das sociedades de manejar a tecnologia e particularmente 8 aqueles que são estrategicamente decisivas em cada período histórico formata vastamente seu destino ao ponto de podermos dizer que, enquanto a tecnologia ‘per se’ não determina a evolução histórica e a mudança histórica, a tecnologia (ou sua falta) incorpora a capacidade das sociedades de se transformarem a si mesmas bem como de decidirem, sempre em processo conflitivo, os usos de seu potencial tecnológico. Sendo a dita sociedade do conhecimento no fundo manipulada pela economia intensiva de conhecimento, podemos entender por política social do conhecimento, sobretudo o processo de reconstrução e uso do conhecimento para fins sociais, quer dizer, a serviço dos excluídos. Em termos práticos, coloca-se a questão de como prover os excluídos das mesmas armas usadas para excluí-los, tanto em sentido afrontoso (estratégia de confronto), quanto no de negociação democrática (emancipação solidária). Para Scatimburgo (2000), a tecnologia deve servir às sociedades e comunidades, e suscitar o límpido anseio de uma vida em que as liberdades sejam a primeira das condições. A partir daí cada sujeito do processo educativo pode, de forma autônoma, designar seu weltbild, seu weltanschauung e seu geistprinzip. Demo (2003) sugere que as novas tecnologias significam enorme potencialidade, em primeiro lugar para resolver o problema da informação, e, sobretudo, para afinar o desafio da formação. Embora este ambiente esteja eivado de contradições e falsas expectativas, representa marcante conquista humana tecnológica e contém horizontes promissores de acesso mais equânime ao conhecimento e à aprendizagem. Trabalhemos, a partir de agora, o conceito de tecnologias sociais. De acordo com Bava (2004), tecnologias sociais são métodos e técnicas que impulsionam processos de cidadania, tirando proveito de experiências inovadoras que possam defender os interesses da sociedade. As tecnologias sociais têm papel de estímulo às comunidades locais, com o objetivo de contribuir para a melhoria da qualidade de vida das mesmas e inserção social. Decorre que tecnologias sociais são um conjunto de técnicas e procedimentos metodológicos que visam à aplicação do conhecimento científico e tecnológico, produzido nas universidades, centros de pesquisa e organizações governamentais e não governamentais, em articulação com o conhecimento produzido pelas comunidades, para o desenvolvimento urbano regional e local sustentável. Para Pedreira e Lassance Junior (2004), tecnologias sociais são técnicas, materiais e procedimentos metodológicos testados, validados e com impacto social comprovado, gerados por demandas sociais reais, a fim de solucionar problemas sociais. Também enfatizam a localização da realidade social, e a relação com a inclusão social e a melhoria da qualidade de vida da comunidade. Tecnologias sociais devem, portanto, gerar soluções de transformação social, dentro de uma participação do coletivo. Embora o conceito maior possa abranger as mais diversas áreas do conhecimento como possibilidades de aplicação, este projeto de pesquisa considera o foco da educação. Consideraremos, portanto, para fins de delimitação da proposta, a somatória dos conhecimentos técnicos e científicos, de escopo comunitário. 2 Baumgarten (2006) considera que tecnologia pode ser definida como uma atividade socialmente organizada e baseada em planos e de caráter prático. O emprego do complemento social nos faz entender que esse conjunto de conhecimentos, processos e métodos estão à disposição da sociedade, em busca de desenvolvimento social. O uso conjunto dos termos social e tecnologia mostra a preocupação conceitual de se solucionarem as necessidades da sociedade, dentro da própria esfera de desenvolvimento tecnológico. 3 2 Cf. http://www.tecnologiasocial.org.br/bts. Acesso em abril de 2012. 3 Disponível em http://itsbrasil.org.br/conceito-de-tecnologia-social. Consulta em abril de 2012. 9 A definição de tecnologias sociais considera como mandatórios os processos de transformação social, autonomia, participação e inclusão social, em busca de melhoria da qualidade de vida e atendimento das necessidades sociais básicas, bem como o acesso e apropriação de tecnologias específicas. E em especial, para a proposta desta pesquisa, a ação educativa de práxis sociocomunitária. E citamos, ainda, a preocupação permanente de combater a tendência da tecnologia capitalista moderna de “[...] submeter os trabalhadores aos detentores dos meios de produção e países subdesenvolvidos a países desenvolvidos, perpetuando e ampliando as assimetrias de poder dentro das relações sociais e políticas" (DAGNINO, 2009, p. 18). A Rede de Tecnologias Sociais (RTS), do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), busca a construção do marco regulatório sobre tecnologias sociais no Brasil 4. Define tecnologias sociais como o conjunto de técnicas e metodologias transformadoras, desenvolvidas e aplicadas na interação com a população, representando soluções para a inclusão social e a melhoria das condições de vida. De acordo com Dagnino, Brandão e Novaes (2004), a tecnologia social deveria ser vista de dois diferentes focos: primeiro, o marco analítico-conceitual que conforma o que se chama de tecnologia social; segundo, o seu caráter de rede. Uma rede de tecnologia social se articula como uma alternativa eficaz para a solução dos problemas sociais relacionados a essa dimensão e como um vetor para a adoção de políticas públicas que abordem a relação ciência-tecnologia-sociedade num sentido mais coerente com a realidade e com o futuro que a sociedade deseja construir. Para Rodrigues e Barbieri (2008), um dos conceitos de tecnologia social atualmente em voga é o que compreende produtos, técnicas ou metodologias replicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade e que representem efetivas soluções de transformação social. Para Caliman (2012) 5, tecnologias sociais são resultado de projetos na área da pedagogia social, sendo esta entendida como uma ciência que produz tecnologia educacional, por meios de métodos, técnicas e soluções para problemas encontrados pelas pessoas, sobretudo crianças e jovens; e quando busca a melhoria da qualidade de vida dos indivíduos e grupos, e o desenvolvimento educativo integral das pessoas envolvidas na transformação social do ambiente ao qual se aplica. O autor acredita que tecnologias sociais estão diretamente relacionadas com a pedagogia social, sendo esta definida como disciplina que produz, para as instituições socioeducativas, soluções educacionais prioritariamente preventivas e curativas para situações conflituosas e problemáticas vividas por indivíduos ou grupos (CALIMAN, 2012). Considera a produção de tecnologias socioeducativas uma dimensão do conceito de pedagogia social enquanto ligada à necessidade de produzir soluções ou metodologias para o enfrentamento de situações limite como de situações de risco, vulnerabilidade, dependências, violências em níveis diferentes. Tendo trabalhado o conceito de comunidade, podemos agora especificar o que entendemos por educação sociocomunitária, foco maior desta proposta; esta seria a versão educativa que investiga articulações comunitárias, de caráter emancipatório ou instrumentalizado, que se expressam por meio de intervenções educativas para a consecução de transformações sociais (GOMES, 2008). Em suas origens históricas, “[...] ela se fundava na articulação de uma comunidade civil – de religiosos e cidadãos comuns – em torno de um projeto educacional, que participou e promoveu transformações sociais em seu tempo e lugar histórico” (GOMES, 2008). Pode também ser compreendida como a práxis direcionada para a “[...] problematização das possibilidades de emancipação de comunidades e pessoas em constituir articulações políticas, expressas em ações educativas, 4 5 Disponível em http://itsbrasil.org.br/conceito-de-tecnologia-social. Consulta em março de 2012. Comunicação pessoal em 20 de maio de 2012. 10 que provoquem transformações sociais intencionadas” (GOMES, 2008, p. 7). A educação sociocomunitária é capaz, portanto, de viabilizar o diálogo entre os diversos elementos de convivência dos sujeitos, potencializando e transformando as ações educativas nesses transcorridas em emancipatórias. Nossa concepção de educação sociocomunitária diz respeito às intervenções socioeducativas praticadas por agentes de programas sociais dirigidos às populações de comunidades específicas, de forma organizada e planejada, buscando cidadania, autonomia, inclusão social e digital, qualidade de vida, oportunidades e solidariedade, ou seja, suprindo as necessidades da comunidade. Tem o apoio da tecnologia, mas foge do risco tecnocrático. Busca a dinâmica intervencionista proposta por Freire, e não a gracionista apresentada por alguns governos e grupos populistas. Respeita visões multiétnicas e multiculturais. Poster e Zimmer (1995) apresentam a educação comunitária como sendo atividade política, para capacitar o povo e transformar estruturas mentais e sociais, via “mudança por nós mesmos” (práxis geradora de esperança) e por meio de tecnologias sociais em oposição às tecnologias de massificação de nossos dias. Para Gadotti (1992), “A educação comunitária como novo paradigma, se ficar atenta ao impacto produzido pela microeletrônica, pela informática e pela globalização das comunicações, poderá ter um enorme desenvolvimento no país. Por isso, o futuro dela é se tornar uma educação de ponta e não uma educação à margem do desenvolvimento global da educação” (GADOTTI, 1992, p. 19). Para Martins e Groppo (2010), a educação sociocomunitária busca ser práxis educativa de diferentes sujeitos sociais (quais sejam, escolares e não escolares) – movimentos sociais, ONGs, igrejas, organizações sociais e comunitárias. Seu estudo deve traçar princípios, finalidades, métodos, contradições, limites e possibilidades do fenômeno educativo, dentro do novo contexto econômico, social, político e cultural em que vivemos, aquele da sociedade capitalista. Esta “práxis da educação não formal”, como denominada pelos autores, leva a comunidade para dentro da escola, ou a articula diretamente com esta (MARTINS e GROPPO, 2010, p. 2). E para Demo (1988), a educação comunitária e participativa significa que, de um lado, o Estado se compromete a sustentar a necessária rede de atendimento, e, de outro, que a comunidade a assume como conquista sua. Ainda de acordo com Gomes (2008), a educação sociocomunitária seria, portanto, uma “[...] tática pela qual a comunidade intencionalmente busca mudar algo na sociedade por meio de processos educativos. Nesta primeira visão, ao buscar essa tática a comunidade concretiza sua autonomia”. A educação sociocomunitária está estreitamente articulada à investigação dos processos de construção da autonomia social entendida como o processo em que se relacionam os âmbitos econômico, social e cultural e por meio do qual sujeitos históricos se associam e vão produzindo sua identidade como agentes das práticas que lhes dizem respeito na vida cotidiana, tendo como característica principal a capacidade de administrar suas vidas com independência e criticidade, construindo conhecimentos socialmente significativos, entre os quais encontramos os processos educacionais também provocados pelas necessidades históricas, sejam eles formais, não formais ou informais. A intervenção educativa sociocomunitária se dá pela socialização e culturação na construção de redes sociais. Estas tem aspecto dialético de integração e exclusão social. A proposta da educação sociocomunitária não defende a resolução de todos os problemas sociais e educativos, mas gera oportunidades de emancipação de comunidades e pessoas para as articulações políticas, na forma de ações educativas, com o objetivo de obtenção de transformações sociais. Cabe agora propor uma relação fundamental para os propósitos desta pesquisa, quais sejam, a junção do tema da educação sociocomunitária com o conceito de práxis. Este 11 deve aqui se associar às questões sociais da comunidade, com base no enfoque das tecnologias sociais. Para os propósitos deste trabalho, a expressão “ação transformadora" se aplica bem ao contexto educativo que pretendemos da práxis. De acordo com Freire, a práxis “é a reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (1987, p. 38). Assim, mudar o mundo por ações surgidas a partir da reflexão é uma práxis educativa, no sentido proposto por Freire. O conceito de práxis tem origem no pensamento aristotélico, para quem o termo significava atividade e ação (por exemplo, a ação de ver, julgar, dançar, entre outras). Em Ética a Nicômaco, Aristóteles (2007) considera a existência de três modos de relação entre o conhecimento e a prática: a atividade técnica, a práxis e a atividade teórica. Já para Marx, práxis é toda atividade por meio da qual o ser humano cria e transforma as relações sociais e sua existência (MARX e ENGELS, 1974). E para Gramsci, práxis é entendida como história, o processo que se dá com a interferência do gênero humano nas condições ambientais, para consecução dos seus propósitos e necessidades (GRAMSCI, 1978). Para o autor, a práxis verdadeira não é determinada por governos ou grupos dominantes, mas pelas classes subalternas que querem educar a si mesmas com o interesse de conhecer as verdades. Isto é de grande importância para justificar a educação comunitária e o tema deste projeto. Para Martins (2011), é preciso, inicialmente, distinguir os termos prática de práxis: prática é de uso corrente (e do senso comum), enquanto práxis é de uso mais restrito aos diálogos das comunidades acadêmicas. Mas, para o autor, esta não é a distinção mais importante. Também podem ser diferenciados os termos pelos significados distintos: embora relacionado ao empírico e ao concreto, e, portanto, ao prático, prática e práxis não são sinônimos, de maneira que não podem ser confundidas no que se refere aos seus significados. Para Althusser (1967), prática é todo processo de transformação de determinada matéria prima em produto determinado, por meio de trabalho humano, utilizando meios determinados. A prática social seria a unidade complexa das práticas existentes na sociedade (práticas educativas, política, ideológica, teórica); a educação é, portanto, prática social, ou atividade humana que se processa em uma situação histórica, caracterizada e regida por certas condições econômico-sociais básicas (ALTHUSSER, 1967). Na pedagogia, práxis é o processo pelo qual uma teoria, lição ou habilidade é executada ou praticada, convertendo-se em parte da experiência vivida. Enquanto no ensino uma lição é apenas absorvida em nível intelectual no decurso de uma aula, as ideias são postas à prova e experimentadas no mundo real, seguidas de uma contemplação reflexiva. A práxis de Paulo Freire instiga o aluno a questionar o mundo, problematizar a realidade para descobrir seus perfis. A reflexão sobre as práticas tem o objetivo de desmistificar as ilusões sociais coletivas e revelar os mecanismos ocultos de dominação que constituem as estruturas e processo sociais e políticos. Práxis busca uma interpretação do mundo, e sua transformação; ou seja, a teoria e a prática que transformam, e a educação que não reproduz, mas transforma; não se trata do caráter utilitário da prática (VÁZQUEZ, 1977). Freire (1987) disse que ninguém educa ninguém, mas ninguém se educa a si mesmo. O processo de educação vem, portanto, da comunhão dos homens, mediatizados pelo mundo. A tecnologia tem sua função como parte deste meio, já que pode promover a colaboração e interação entre os homens; é, portanto, fundamental nos processos educativos sociocomunitários, e ponto chave desta proposta de pesquisa. A relação entre a tecnologia e a práxis precisa ser analisada: pode a tecnologia afetar as comunidades carentes de recursos e acesso? Qual o papel da inclusão digital, em condição de desigualdade social? 12 Para Marx, a tecnologia é práxis quando faz a interação entre a atividade teórica e a prática, buscando a transformação da realidade socioeconômica alienadora. Os meios de produção capitalistas fomentariam, então, as desigualdades entre classes. Mas defendemos nesta proposta a ideia de que o domínio das modernas tecnologias pode gerar nos sujeitos comunitários o papel de elaboradores, quando a tecnologia deixa de ser ameaça e passa a representar um componente de emancipação social, desde que garantidos a apropriação e o acesso aos meios tecnológicos e informacionais. A tecnologia é um componente de práxis, e pode beneficiar comunidades inteiras, desde que se garanta a democratização de seus benefícios a elas. Práxis tecnológica é, portanto, uma atitude criticamente curiosa, indagadora, crítica, vigilante, passível de constante reflexão. A tecnologia moderna deve auxiliar na resolução de problemas sociais, pelo acesso da comunidade à informação. Deve proporcionar ambiente de diálogo, como proposto por Freire, quando alerta para o falso dilema humanismo-tecnologia: estes não se excluem, mas se completam – o primeiro implica a segunda e vice-versa – “Se o meu compromisso é realmente com o homem concreto, com a causa de sua humanização, de sua libertação, não posso por isso mesmo prescindir da ciência, nem da tecnologia, com as quais me vou instrumentando para melhor lutar por esta causa” (FREIRE, 1983, pp. 22-23). Mas não se pode, da mesma forma, reduzir o homem a simples objeto da técnica, ou como o chamou Freire, um autômato manipulável. Atenção será dada à potencial e nefasta idolatria pela técnica, característica de nosso tempos, a quem Freire denominou tentação tecnicista, fruto da mitificação da técnica (FREIRE, 1983). O próprio Freire criou o projeto de Educação e Informática, da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, quando secretário da educação da administração de Luiza Erundina, fundamentando-se na tese de que "[...] uma sociedade informatizada está passando a exigir homens com potencial de assimilar a novidade e criar o novo, o homem aberto para o mundo, no sentido que lhe confere a teoria piagetiana quando se refere às assimilações mentais majorantes; da mesma forma, exige a presença do cidadão crítico e comunitário, onde os artefatos tecnológicos, especificamente o computador, possam ser ferramentas auxiliares para a construção de uma sociedade mais igualitária e justa". 6 O objetivo maior do projeto era o de integrar a informática ao currículo como uma ferramenta interdisciplinar, trabalhando com temas geradores. Este projeto procurava criar condições para “contribuir para uma mudança da postura pedagógica do professor e para um repensar deste sobre a sua própria prática”, portanto práxis tecnológica (MENEZES, 1993, p. 17). E para evitar que o computador abrisse ainda mais o fosso cultural entre os diferentes níveis sociais da rede de ensino, o Projeto buscaria diminuir esse impacto diferencial distribuindo equanimemente os equipamentos pelas diversas regiões da cidade, e procuraria que fosse atendido o maior número possível de alunos. 7 Como queria Freire, “A escola que queremos é aquela em que em vez de adaptar o educando ao mundo dado, procura inquietá-lo para que perceba o mundo dando-se, o qual pode ser mudado, transformado, reinventado." 8 Para Lévy (2003), e podemos relacionar o que se segue à práxis tecnológica, é necessário forjar instrumentos – conceitos, métodos, técnicas – que tornem sensível, mensurável, organizável, em suma, praticável o progresso em direção a uma economia do humano. Tecnologias sociais nãopodem desprezar o cabedal prévio de uma comunidade, ao se apresentar como “engenharia de laço social”. Gadotti (2000) destaca o papel das novas tecnologias de informação e comunicação nos processos educativos contemporâneos, ao afirmar que “com o rápido crescimento e a Fonte: http://acervo.paulofreire.org:8080/xmlui/handle/7891/517 PMSP. Projeto Gênese: A Informática chega ao Aluno da Escola Pública Municipal. São Paulo: Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, 1992. 8 Ibidem, p. 24 6 7 13 evolução tecnológica da Web, a educação a distância baseada na Internet está sendo considerada como importante e apropriado espaço de formação para resolver demandas educacionais que os sistemas tradicionais de ensino têm dificuldades de atender. Como consequência, todas as instituições que se dedicam à educação deverão iniciar movimentos para oferecer cursos pela Web nas suas áreas de competência” (GADOTTI, 2000, pp. 231241). Algumas estatísticas de cunho social podem ilustrar esta questão, e nos ajudar na determinação de alguns indicadores que serão utilizados na seção de metodologia do trabalho. De acordo com pesquisa realizada pela Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas (EAESP-FGV) 9, em 2011-2012 o Brasil possui 99 milhões de computadores, enquanto os EUA apresentam 2,9 bilhões. Isto dá ao Brasil a marca de 1 computador para cada 2 habitantes, o que é expressivo. Mas a questão é: qual é a real distribuição dessa tecnologia? Essas pesquisas nos parecem bastante tendenciosas, quando tentam mostrar uma realidade de inclusão digital que pode estar mascarada pelo critério de homogeneidade da distribuição pelo país e pelas categorias sociais. Dados do Comitê para a Democratização da Informática (CDI) 10 mostram que 79% da população mundial ainda se encontram digitalmente excluídos, sendo a tecnologia cada vez mais importante e urgente para o desenvolvimento sustentável, já que habilita as pessoas e as comunidades no acesso às oportunidades de vida. Nota-se, facilmente, a importância da problemática aqui apresentada, quando se pensa a redução destas estatísticas tão desfavoráveis do ponto de vista da sociedade. Materiais e Métodos (Metodologia) Embora não pretendamos que este espaço tenha por função aprofundar o debate teórico-metodológico que norteia a proposta deste trabalho, trataremos de sua metodologia considerando resumidamente o pressuposto epistemológico associado. Defendemos a orientação de que o método de pesquisa pode ser inicialmente formulado e, na sequência, ter seus procedimentos e técnicas de pesquisa associados, em sua leitura do objeto de pesquisa. Cabe citar que trabalhamos, aqui, o conceito de comunidades, e como tal deve ter os métodos de abordagem e de procedimentos ajustados, por se tratar de pesquisa essencialmente qualitativa. Assim, declaramos o método de abordagem da Pesquisa Qualitativa de Campo, e os métodos de procedimentos de Pesquisa Exploratória e Estudos de Caso. Segundo Yin (1988), a preferência pelo uso do método do caso deve ser dada quando do estudo de eventos contemporâneos, em situações na quais os comportamentos relevantes não podem ser manipulados, mas é possível se fazer observações diretas e entrevistas sistemáticas. Para o tema em discussão, o método permite identificar as decisões importantes tomadas pelos agentes envolvidos dentro de uma realidade complexa, descrever o contexto dessa realidade e explorar situações que não estão claramente definidas. É apropriado, portanto, para confrontar uma realidade específica com os conceitos discutidos na revisão conceitual, bem como para revelar aspectos novos sobre os temas tratados. Assim, a pesquisa aqui considerada parte da identificação da situação concreta das experiências educativas suportadas por tecnologias sociais, em espaço delimitado, e, a partir de suas características constitutivas e constituintes, conceituar e classificar tais iniciativas, a 9 Disponível 10 em http://www.fgv.br/cia/pesquisa. Acesso em 24 de abril de 2012. Disponível em http://www.cdi.org.br. Acesso em 24 de abril de 2012. 14 fim de que possamos obter subsídios para sua análise e compreensão, e mais, para seu levantamento em estudos de caso. Adotaremos para fins metodológicos o quadro de referência teórico baseado nos conceitos de práxis comunitária de Paulo Freire (já tratada anteriormente) e da tecnologia social fragmentária de Karl Popper. Como visto, esta investigação tem como objetivo maior interpretar os significados, as possibilidades e os limites das experiências educacionais sociocomunitárias baseadas em tecnologias sociais, com base no referencial teórico-conceitual proposto pela sociologia da educação sociocomunitária (que por sua vez é fundamentado nas concepções de comunidade e sociedade passíveis de determinação de sua autonomia), bem como no aprofundamento, acabamento e mesmo na ampliação daquele referencial por meio desta nova proposta de inclusão do suporte das tecnologias sociais de foco educativo (em especial, buscando fazer uso de teorias que sustentem a práxis tecnológica). A investigação sobre as iniciativas de tecnologias sociais e práticas educativas sociocomunitárias, delimitada a partir do conceito de práxis e de dado limite geográfico proposto, procurará respostas a um problema que se constitui a partir da articulação de um conjunto de questionamentos. Entre os quais se destacam: 1. Quais os objetivos enunciados pelas comunidades quando protagonizam iniciativas educativas baseadas em tecnologias sociais? E quais os objetivos subjacentes às ações educativas baseadas em práxis propriamente ditas? 2. Quais as estruturas física, humana, tecnológica e organizacional envolvidas nesse processo educativo? Existe a necessidade de fontes de financiamento? 3. Quais as referências teórico-metodológicas que embasam as propostas educativas desenvolvidas a partir de tecnologias sociais? Norteada por esses questionamentos que procuram orientar a investigação não apenas na direção de uma descrição fenomênica da ação educativa sociocomunitária, mas também identificar seus fundamentos, perspectivas e métodos, sugere-se produzir um mapeamento de uma amostra das tecnologias sociais educativas identificadas na região estudada. De modo que o referido mapeamento tem a pretensão de contemplar uma análise das motivações econômicas, sociais, políticas e culturais das iniciativas educacionais desenvolvidas dentro dos critérios aqui estabelecidos. Dando sequência à composição da amostra e coleta de dados, a próxima etapa da proposta de pesquisa faria a aproximação das comunidades regionais que estão desenvolvendo iniciativas educativas baseadas em tecnologias sociais, para conhecê-las, e também as atividades que estão desenvolvendo. Entre as organizações que podem ser estudadas, podemos adiantar que as fundações municipais para a educação comunitária, e os centros profissionais são instituições que fazem educação sociocomunitária efetivamente, pois vão ao bairro sob a demanda das comunidades que necessitam de seus serviços educativos visando ao público de jovens e adultos. Ainda, as escolas, igrejas, associações de moradores, e centros comunitários da região deverão serão identificados e visitados buscando dados para este estudo. Como proposta de instrumentos de coleta de dados, teríamos: - Observação direta do funcionamento das experiências educativas comunitárias baseadas em tecnologias sociais, desenvolvidas na região estudada; - Aplicação de questionário e diálogo (entrevista) com os protagonistas dessas iniciativas comunitárias e associados; 15 Resultados e discussão Tendo este trabalho uma finalidade de metapesquisa, ou seja, a pesquisa que discute uma proposta de pesquisa, com o objetivo de propor alternativas metodológicas e epistemológicas, e mais especificamente delimitadas pelo conceito de tecnologia e seu papel social, apresentamos como resultados o que se segue, considerando que esta seção tem por objetivo declarar as condições iniciais para a proposição de indicadores de avaliação do emprego de tecnologias sociais em comunidades educativas. Temos por objetivo uma proposta ulterior às considerações finais que esta pesquisa possa fornecer – queremos, na verdade, propor uma metodologia de avaliação inédita e inovadora, que terá por base tudo o que será comentado e discutido nas próximas linhas. Para Lipnack e Stamps (1997), uma comunidade baseada em tecnologia bem sucedida é tão dependente da cultura de trabalho em grupo quanto de tecnologia. Tal cultura deve permear as atividades de compartilhamento e socialização de informação, além da aprendizagem dinâmica, permitindo a melhoria de processos dos vários componentes da rede, num movimento emergente. Para isso, devem ser verificados: - o provimento de recursos para o ato criativo (dentro de processos de desenvolvimento e uso da criatividade, da reflexão sistemática, da solução de problemas, e de atividades colaborativas); - o nível de sujeito crítico (o pensar de forma emancipativa, e não apenas a recuperação automática de informação, perigo maior da ampla disponibilidade de informação que temos nos dias atuais), criativo, autônomo e competente – devemos determinar de que forma a tecnologia social auxilia na formação deste indivíduo; - os aspectos sociais e culturais, bem como aqueles de natureza política e ideológica; - o contexto de descentralização dos processos de educação, contribuindo para a efetiva realização da educação do ponto de vista sociocomunitário; - possibilidade de uma aprendizagem global, dentro do conceito de uma notável inteligência coletiva 11. Se considerarmos os requisitos que permeiam a avaliação de tecnologias sociais de cunho educativo, consideraremos a importância precípua da aprendizagem e da participação da comunidade como processos de real transformação social. Gohn (2001) sugere as seguintes ações como decorrência das atividades da educação não formal, que para os objetivos desta proposta podem ser consideradas indicadores de tecnologias sociais: - aprendizagem política dos direitos dos indivíduos enquanto cidadãos; - capacitação de indivíduos para o trabalho, por meio da aprendizagem de habilidades e/ou desenvolvimento de potencialidades; - aprendizagem e exercício de práticas que capacitam os indivíduos a se organizar em objetivos comunitários, voltadas para a solução de problemas coletivos cotidianos; - aprendizagem de conteúdos da escolarização formal, escolar, em formas e espaços diferenciados – aqui a comunidade tem o poder de interferir na delimitação do conteúdo didático ministrado, bem como estabelecer as finalidades a que se destinam aquelas práticas (GOHN, 2001). 11 A inteligência não é um fenômeno apenas individual; ela tem uma dimensão coletiva extremamente importante, dimensão esta que, pela popularização das tecnologias de informação e comunicação, que permitem a criação de comunidades virtuais e de aprendizagem, coloca um grande desafio para a educação de natureza presencial, em especial aquela baseada em modelo mais tradicional (SOFFNER, 2005, pág. 101). 16 Espaços privilegiados para os propósitos desta pesquisa são o bairro-associação, as organizações de movimento sociais, as igrejas, os sindicatos, os partidos políticos, as organizações não governamentais (ONG’s), os espaços culturais, e as próprias escolas. Também podem ser consideradas a educação popular (alfabetização e aprendizagem de populações que não sejam clientes típicos das ações educativas) e a educação de jovens e adultos (ações coletivas não voltadas para o aprendizado de conteúdos da educação formal). A aprendizagem, na educação não formal, acontece no nível social, e não naquele individual que caracteriza a educação escolar. Eis aqui o aspecto comunitário envolvido, e de grande interesse para as aplicações das tecnologias sociais. Bonk (2009) apresenta dez possibilidades que podem contribuir com o aculturamento das oportunidades de aprendizagem descentralizada e não formal baseadas em tecnologias sociais: - buscas na Internet a partir de livros digitais; - e-Learning e o modelo de blended learning 12 - disponibilidade de open source e free software 13 - recursos de opencourseware 14 - repositórios de objetos de aprendizagem e portais - comunidades de informação aberta - colaboração eletrônica - aprendizagem em realidade alternada - portabilidade e mobilidade em tempo real - redes de aprendizagem personalizada Para avaliarmos o emprego educativo e pedagógico da tecnologia na dimensão comunitária, podemos também pensar a influência social do ponto de vista da exclusão social e digital, dando atenção aos resultados que a experiência de emprego da tecnologia pode trazer: aquisição de informação, comunicação, competências e estratégias de solução de problemas comunitários, capacidade de raciocínio, modelagem e simulação de situações reais que afetam a comunidade, e a eficácia de colaboração. Mídias sociais permitem a criação de comunidades de prática: qualquer pessoa da comunidade deve estar apta a publicar ou editar textos e artigos redigidos nos temas de interesse para a comunidade; estes serão socializados e submetidos a discussões comunitárias, como numa ágora eletrônica 15; as pessoas precisam de redes sociais sólidas e um fluxo constante e confiável de informação prontamente disponível, relevante e pertinente aos problemas da comunidade; esta informação deve contribuir com a criação de conhecimento útil para a comunidade; algumas ferramentas a serem identificadas ou propostas para tais fins: blogs, grupos de discussão de tópicos de interesse comunitário, modelos de análise de processos para a solução de problemas ou tomada de decisão. O ethos proposto para o uso de mídias sociais é que qualquer participante da comunidade pode dizer o que quiser, mas é responsável por isso; não se deve incentivar o 12 Associação de educação presencial tradicional e atividades a distância. Modelos de desenvolvimento de programas de computador em que o código fonte do programa é socializado, e o núcleo do programa pode ser obtido e utilizado sem custos para o usuário. 14 Modelo de disponibilização de conteúdos na Internet, e de forma aberta para o público; foi iniciativa pioneira do MIT – Massachusetts Institute of Technology, agora seguida por outras escolas. 15 Referência à Ágora grega, local onde os cidadãos da polis se reuniam para debater problemas e tomar decisões democráticas. 13 17 uso anônimo das ferramentas e meios, por ser tal prática prejudicial à comunidade, do ponto de vista do valor social. O engajamento da comunidade com as tecnologias sociais deve garantir que as ferramentas são relevantes para as pessoas e para seus objetivos; devem-se ouvir as expectativas das pessoas, e entender suas necessidades, seus desejos de metas a serem atingidas; deve-se, também, prover ferramentas que possam expressar a personalidade; facilidade de acesso e flexibilidade de uso do portfólio de ferramentas. Redes de conhecimento, de acordo com Hildreth e Kimble (2005), geram e definem comunidades de prática (redes sociais baseadas em aprendizagem, que aumentam a eficácia dos processos de ensino e aprendizagem). Seus membros compartilham uma história comum, interagem com frequência, trocam experiências. São fontes de criação de conhecimento e de construção de capital social. A natureza informal destas redes deve ser predominante, e não pode estar subordinada às necessidades formais da educação – daí seu potencial interesse em educação não formal. Harasim et al (1995) conceituam redes de aprendizagem como alternativas além da sala de aula, ponto de vista este condizente com os propósitos deste trabalho. Defendem, para isso, a utilização de vários meios e mídias, sendo que o participante da rede aceita conscientemente a inexistência de certificação ou acreditação das atividades realizadas. A chamada World Wide Web (WWW) traz consigo ferramentas e recursos de colaboração bastante interessantes para a educação, criando verdadeira base para as chamadas comunidades virtuais de aprendizagem. A interação contínua e permanente de um grande número de agentes geograficamente isolados pode viabilizar o que Lévy (1999) chamou de Inteligência Coletiva, capaz de criar, utilizar e compartilhar conhecimentos. Redes sociais baseadas nestas tecnologias são extremamente populares na primeira década do século XXI, e exigem estudos que as habilitem a coordenar processos de educação. É de suma importância conduzir esta discussão para o território da educação não-formal, dadas as amplas possibilidades de aplicação. Dentre as principais ferramentas e tecnologias disponíveis hoje para o estabelecimento de redes sociais, citamos os blogs, os wikis, as listas de correio eletrônico, os fóruns de discussão, as comunidades de interesses comuns, os sistemas de mensagem instantânea, os podcasts, os repositórios de vídeo online, os gerenciadores de documentos virtuais, todas dentro do conceito maior de cloud computing, ou seja, computação distribuída e ubíqua. A atuação social em rede foi tratada por Menezes (2007, p. 67): “Rede pode ser entendida como uma estratégia que conecta, simbólica e solidariamente, sujeitos e atores coletivos, que vão se construindo num processo dialógico de identificações éticas e culturais, intercâmbios, negociações, definição de campos de conflitos”. Para Felipe (2007, p. 247), redes sociais são sistemas organizacionais capazes de reunir indivíduos e instituições, de forma democrática e participativa, em torno de causas afins. É estratégia de desenvolvimento sustentável e dinâmico que traduz a integração de diferentes atores em ações frente às necessidades comuns. Finalmente, propostas de indicadores deste trabalho em relação às questões socioeducativas seriam: - potencial de atuação junto às famílias em situação de risco social; - relação entre família, escola, igreja, estado, governo, associações culturais e profissionais, sindicatos, rádios, televisão e demais meios de comunicação (como componentes da realidade social) – visão da educação social e da educação não formal; - articulações comunitárias, de caráter emancipatório ou instrumentalizado; - identificação da educação sociocomunitária como tática pela qual a comunidade intencionalmente busca mudar algo na sociedade por meio de processos educativos; 18 - intervenção educativa sociocomunitária via socialização e culturação na construção de redes sociais; Todos estes critérios e afirmações serão considerados quando da proposta de indicadores para a avaliação dos produtos desta pesquisa. Considerações finais Acreditamos que a possibilidade de uso de tecnologias sociais no âmbito comunitário poderá trazer benefícios para as comunidades aprendentes, num patamar nunca visto. É preciso compreender a profunda alteração epistemológica que a tecnologia moderna nos oferece, qual seja, o emprego criativo e o desenvolvimento de novas tecnologias de suporte aos processos de aprendizagem participativa, colaborativa e inventiva. Um grupo de pessoas que trabalha de forma colaborativa e auto-organizada na rede, como no caso de uma comunidade virtual, gera informação de valor para os indivíduos e para a comunidade, permitindo que esta se auto-organize ao redor de informação compartilhada. A partir de indivíduos que tomam a iniciativa de compartilhar informação de valor emergirá uma comunidade inteligente que aprende e se adapta a novas condições de ambiente em mutação. Este trabalho apresentou uma proposta de pesquisa acadêmico-científica de relevo e bastante pertinente – diríamos até mandatória - dado o momento histórico de necessidade de suporte às comunidades que pretendem fazer da educação sociocomunitária uma força social capaz de colaborar no processo de transformação da realidade que se nos apresenta nesse cenário mundial produzido pelo modo de produção capitalista em sua atual fase de desenvolvimento. Entendido o comunitário como o predomínio das relações de interesses comuns, com características de intersubjetividade propiciadoras de modalidades organizacionais que podem construir a autonomia, esta pesquisa propõe investigar as condições da práxis educativa que intensifique esses processos de autonomia e cidadania, por meio das tecnologias sociais. Propusemos um marco referencial sobre tecnologias sociais de aplicação educativa para a práxis sociocomunitária, por meio de conceituação própria a partir de amplo levantamento de literatura de estado da arte, e de autores de referência na área; este poderá proporcionar um mapeamento das iniciativas de tecnologias sociais de cunho sociocomunitário, em qualquer área delimitada para pesquisa, e também indicadores para a avaliação do tema em estudo. Referências Bibliográficas ALTHUSSER, Louis. Análise crítica da teoria marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 1967 ARISTÓTELES (384-322 a.C.). Ética a Nicômaco. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2007. BAUMGARTEN, Maíra. Tecnologia. In: CATTANI, Antonio; HOLZMANN, Lorena. Dicionário de trabalho e tecnologia. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006. BAVA, Silvio Caccia. Tecnologias Sociais e Políticas Públicas. In: FUNDAÇÃO BANCO DO BRASIL. Tecnologia social: uma estratégia para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundação Banco do Brasil, 2004. 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Entende-se que esta proximidade se legitimaria pela abertura e escuta da escola dos sujeitos que ali vivem, e para juntos, pensar no processo transformador para a garantia da cidadania, que surge então como resultado de um processo histórico de lutas no qual a mudança gradual e lenta da cultura política é fator e resultado do exercício da cidadania, sob a forma ativa, que interfere, intervém, interage e influencia na construção dos processos democráticos em curso, segundo os princípios da equidade e da justiça. Palavras-Chave: HTPC, formação docente, educação sociocomunitária. Abstract: The following text is the result of reflections by means of a literature review on the subject of research linked to the Master's Program in Education Socio Salesian University Center of St. Paul, Our Lady Help of campus, in the city of Americana, and aims to reflect on teacher training in HTPC with a view to education socio comunirtária, being a privileged space training because the training hours are contained in teacher workload and locus of formation is close to the community. It is understood that this proximity is legitimize the opening of school and listening to the guys who live there, and together, thinking about the transformative process to guarantee citizenship, which then arises as a result of a historical process of struggle in which gradual change and slow political culture is a factor and outcome of citizenship, as active, which interferes, intervenes, interacts and influences the construction of democratic processes, according to the principles of equity and justice. Keywords: HTPC, teacher training, education Socio Introdução Parte importante do processo de formação educativa do professor transcorre no interior das próprias instituições escolares, naquilo que é comumente chamado de Horas de Trabalho Coletivo (HTPC). De acordo com a Portaria CENP n° 1/96: o HTPC é desenvolvido dentro da unidade escolar, com os professores sob a orientação do professor Coordenador Pedagógico, com a seguinte finalidade: articular os diversos segmentos da escola para a construção e implementação do seu trabalho pedagógico, fortalecer a unidade escolar como instância privilegiada do aperfeiçoamento de seu projeto pedagógico, (re)planejar e avaliar as atividades de sala de aula, tendo em vista as diretrizes comuns que a 22 escola pretende imprimir ao processo ensino-aprendizagem. (SÃO PAULO, SEE, CENP, 1996). Nesta perspectiva, compreender a comunidade como parte essencial do universo escolar, visto que seus sujeitos é que representam a própria existência da escola. Em decorrência da globalização e mudanças na forma de produção capitalista, muitas famílias foram subjugadas á um processo de marginalização, exclusão, encontrando na “práxis comunitária” uma alternativa para sua sobrevivência. Uma das formas de intervenção social é a educação, por meio de ações educativas que visam ensinar as classes menos favorecidas a suportarem as crises e se adaptarem a elas, superarem os desafios que lhes ameaçam cotidianamente a vida, desenvolvendo ações de acordo com a própria lógica de funcionamento da acumulação flexível do capitalismo. Nesse contexto, o processo de formação docente precisa ser repensado, o espaço para esta preparação é dentro do próprio lócus de trabalho, no entanto, este precisa estar aberto à comunidade, e à outras formas de educar (não formal, informal), estar à escuta de suas necessidades e assim planejar estratégias de metodologias de aprendizagem que sejam mais significativas ao sujeito, uma vez que este é o único caminho para a concretização de uma educação sociocomunitária e formação cidadã. Esta pesquisa por meio da metodologia de revisão bibliográfica tem como objetivo refletir a formação docente no HTPC visto ser um espaço de direito, previsto na carga horária docente, com a possibilidade de este ser uma formação voltada a educação sociocomunitária. HTPC: formação em serviço A prática docente por si só já se constitui, potencialmente, um lócus de aprendizagem, o que se pretende assegurar quando se institui, de forma sistematizada, a formação continuada, principalmente aquela transcorrida “em serviço” - HTPC é a oportunidade de reflexão do confronto das questões do âmbito do conhecimento, psicológico, social, político, pedagógico e cultural, com as relações intra e interpessoais do cotidiano escolar e estas com a comunidade. Significa que as tramas, saberes, contradições, as práticas vivenciadas e refletidas pelo professor no seu dia a dia, são compreendidas como elementos fundamentais para o processo de formação, em seu cotidiano, aprende, desaprende, reestrutura o aprendido, faz descobertas para aprimorar sua formação (CANDAU, 1997b). Nesta construção, mediada pela interação social e a linguagem, é preciso perceber o coletivo no espaço profissional. Pois somente no terreno do coletivo é possível construir novos saberes, que levem ao aprimoramento da práxis, revertendo os conhecimentos apreendidos não em saberes técnicos, mas, em processos reflexivos contínuos de transformação da escola e de seus sujeitos. Não se perdendo de vista o contexto sociopolítico e histórico cultural no qual os sujeitos estão inseridos e as relações existentes entre a cultura escolar com a da comunidade. Caracteriza-se, a possibilidade como aquela que transcorre no e para o cotidiano da escola, espaço (re)vitalizado constantemente pela teoria e a prática, que ressignifica o embate da realidade num contexto mais amplo, a democratização do ensino e da própria sociedade. O cotidiano escolar, na sala de aula, tem se mostrado um campo fértil para as reflexões e aprofundamentos nos conhecimentos que justificam a formação continuada. A complexidade atual do processo de formação docente quer na forma de produção de trabalho ou nas relações estabelecidas nesse, exige um posicionamento social e político dos envolvidos, pois na exposição dos interesses, ideias e concepções particulares, emergem as expectativas do confronto com o coletivo e as próprias resistências inerentes ao processo formador. 23 No entanto, isso não significou que as práticas pedagógicas e administrativas se voltassem, necessariamente, para a consolidação do acesso à Educação, à qualidade do ensino e à convivência com a diversidade. Segundo Beisiegel: Quem defende a democratização do ensino não pode recusar, não pode criticar a qualidade do aluno de nossa escola... não podemos mudar a população... Precisamos fazer com que a escola passe a responder a essa população. (BEISIEGEL, 1980, p. 56). Nesse sentido, a escola não seria o centro isolado das decisões de tudo que se refere ao acesso ao conhecimento científico na sociedade, mas uma das instâncias em que esse conhecimento é produzido e circulado, permeada por vários interesses sociais, tais como o fortalecimento do sentido de “cidadania”. Neste aspecto a formação docente no HTPC estaria para além dos muros escolares, desempenhando o papel de educar para a sociedade. Pois sua função social estaria para além da socialização do patrimônio de conhecimento acumulado, o saber sobre os meios de obter o conhecimento e as formas de convivência social, mas para a tomada de consciência e o exercício dos direitos e deveres do cidadão. Educação Sóciocomunitária O contexto social, econômico, político, em que vivemos sob a ideologia globalizadora e mercantil, trouxe também um sistema de desigualdade e exclusão de amplas camadas sociais da população. “As diversas formas de resistências de classe encontram barreiras na ausência de direções dotadas de uma consciência para além do capital.” (ANTUNES, 1995, p. 36). Um meio de suprir esta deficiência é pela Educação, e quem teve a iniciativa foi o chamado terceiro setor, entendida como um segmento organizado da sociedade que não é nem estatal nem privado, e pelo viés da educação não formal: [...] aborda processos educativos que ocorrem fora das escolas, em processos organizativos da sociedade civil, ao redor de ações coletivas do chamado terceiro setor da sociedade, abrangendo movimentos sociais, organizações não governamentais e outras entidades sem fins lucrativos que atuam na área social; ou projetos educacionais, fruto da articulação das escolas com a comunidade educativa, via conselhos, colegiados etc. (GOHN, 1999, p. 7) Percebe-se assim que apesar da ausência da escola formal e de uma formação docente que abranja formas mais significativa e produtiva na tentativa de entender esta comunidade e ajudá-la por meio de um ensino mais eficiente e emancipador, é dela, escola institucionalizada que se espera a formação do cidadão. Esta ocupa um lugar de destaque na promoção de projetos de desenvolvimento junto às comunidades, pois são polos de atividades e de intervenção social, visto que as crianças e adolescentes desta comunidade independente da situação social e econômica precisam obrigatoriamente estabelecer um vínculo com a escola formal. É possível pensar a escola formal como espaço para concretizar estratégias de mobilidade social ascendente, voltada para uma educação sociocomunitária com o objetivo de aproximar-se dos problemas das classes marginalizadas, excluídas, não somente para conhecê-las, mas também para formular-lhes alternativas para uma nova vida. No entanto é imprescindível que esta educação parta do pressuposto de que as iniciativas da escola com a comunidade, da comunidade com a escola e da comunidade com ela mesma devem ser centrados nas necessidades efetivas destas populações e devem 24 ser elaborados tendo em conta que se destinam a resolver os problemas concretos (CANÁRIO, 1995). Diante desta realidade que não tem como ser velada, retornamos a um aspecto importantíssimo seja para qual for o modelo de escola e ensino, o papel dos professores e educadores, partindo da ideia de que a Escola é o conjunto das pessoas que a constituem, é deles a maior responsabilidade quando falamos da escola como elemento de desenvolvimento social. Aos professores e educadores cabe, na maioria das vezes, a efetivação dos projetos educacionais e iniciativas locais, à dinamização de atividades tradicionais, à valorização do patrimônio ambiental e cultural e à mobilização das pessoas e instituições para o desenvolvimento de um determinado espaço geográfico. A formação docente para atender esta demanda cada vez mais crescente em números e variáveis de situação social, precisa estar ancorada em: formar e conscientizar o aluno, de acordo com a sua cronologia e as reações psicológicas próprias de suas realidades sociais, culturais; de sua idade e contemporaneidade; transformar a educação numa educação voltada ao exercício da exigência de seus direitos; da cidadania e dos valores humanos por meio da cultura do cuidar, enquanto ser social-político, que não conseguiu cumprir sua escolaridade e por isto sente-se excluídos socialmente e do sistema organizacional vigente na educação e na sociedade; conduzir o jovem a ser líder, militante humanista e, participante das causas sociais estabelecendo relações saudáveis com seus grupos comunitários, de forma a ser respeitado como cidadão integrante de sua e de outras questões sociais e assim resgatar sua autoestima e respeitar seus pares (ARAUJO, 2006). Pensar em novas formas e metodologias de formação docente, em que coloque a escola e os professores em contato mais direto com a comunidade, de modo que possam intervir de maneira mais eficaz e eficiente, de modo que resgate no aluno sua autoestima, desenvolva a autonomia, estimulando-os com seus desempenhos (LDBN n° 9394, artigo 1°, §2°). Desta forma tanto professores como alunos deveriam ter a oportunidade de: participar de cursos de formação em psicologia do adolescente em situação de risco com referenciais para a prevenção; participar de grupos de estudos sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e as formas de defesa; participar de oficinas de elaboração de trabalhos com a característica de educação não formal (arte, esporte, etc.); elaborar material didático – pedagógico, alternativo para as práticas dentro e fora da sala de aula; organizar reuniões com os jovens com dinâmicas de grupo, de interações sociais ou ofertas de cursos que enriqueçam os conteúdos escolares, como literatura, comunicações (jornal comunitário), música, teatro e dança; reunirem-se com os pais e responsáveis com dinâmicas de interações sociais e formações sociopolíticas; efetuar um maior contacto e conhecimentos das realidades dos jovens e suas famílias, através de visitas domiciliares, entrevistas, questionários e observações comparativas (ARAUJO, 2006). O professor neste sentido, também precisa ter a eficácia, ser autônomo na busca por sua autoformação, atualizar seus conhecimentos formais e teóricos continuadamente, investigar e desenvolver novas formas de ensinar. Pautar-se nas condutas de um mediador de todas as ações educativas planejadas, incorporar em seu trabalho os valores construtivos para o resgate da autoestima; orientar na resistência às pressões sociais e ao risco envolvendo os alunos de tal forma, para que sejam sujeitos de uma nova história. Desta forma decisiva e afirmativa, todos serão a rigor, agentes transformadores de uma nova sociedade: a do direito inerente, a da comunicação e informação, a da educação e a da participação social crítica e solidária (ARAUJO, 2006) Considerações Finais Estamos numa nova era econômica, política e social na qual os conflitos sociais não se limitam a distribuição de trabalho e renda, mas onde fundamentalmente surgem conflitos de interpretação sobre o sentido dos direitos humanos. Isto implica um 25 importante papel a todos os sujeitos na construção e participação de processos de gestão social e política para a convivência em sociedade. À educação reserva importante papel, o de educar para a sociedade. Desta forma deve-se fazer um esforço para pensar em uma educação que valorize a condição humana, considerando ser o caminho para a formação de um cidadão crítico, reflexivo, solidário e emancipador, no sentido de buscar alternativas que melhorem a condição de vida de si e da comunidade. Para esta questão, perpassa a formação docente, atrelada a atualização constante dos conhecimentos teórico-metodológicos que viabilizem a nova concepção de ensinar e aprender, atendendo à demanda dos sujeitos em suas situações sociais, econômicas, políticas e culturais em que estão inseridos. Desta forma, esta pesquisa buscou refletir sobre a possibilidade da formação docente no HTPC ser o espaço de discussões e reflexões de uma educação voltada ao sociocomunitário, sendo que a escola e os professores estão mais próximos da comunidade. Esta proximidade se legitimaria pela abertura e escuta da escola dos sujeitos que ali vivem, e para juntos, pensar no processo transformador para a garantia da cidadania, que surge então como resultado de um processo histórico de lutas no qual a mudança gradual e lenta da cultura política é fator e resultado do exercício da cidadania, sob a forma ativa, que interfere, intervém, interage e influencia na construção dos processos democráticos em curso, segundo os princípios da equidade e da justiça. Referências Bibliográficas ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho. São Paulo, Cortez, 1995. ARAUJO, Inês Olinda Botelho de. A função da educação social e a intervenção sóciocomunitária a partir da formação do professor. Ano, 1, Congresso Internacional de Pedagogia Social, mar. 2006. Disponível em: G:\projeto Mestrado\PESQUISA QUALITATIVA\FORMAÇÃO DOCENTE PARA O SOCIO COMUNITÁRIO.htm. Acesso em 29 de out. 2012. CANÁRIO, Rui. Desenvolvimento Local e Educação Não formal, Educação e Ensino, nº 11, Setúbal, AMDS, 1995, pp. 31-34. DEBESSE, Maurice. Um problema clave de la educácion escolar contemporânea. In: DEBESSE, Maurice.; MIALARETY, G. (Eds.) La formación de los ensiñantes. Barcelona: Oikos – Tau, 1982. CANDAU, Vera Maria. Formação Continuada de professores: tendências atuais. In: CANDAU, Vera Maria (Org). Magistério: construção cotidiana. Petrópolis, RJ: Vozes 1997b. GOHN, Maria da Glória. Educação não formal e cultura política: impactos sobre o associativismo do terceiro setor. São Paulo, Cortez, 1999. (Coleção Questões da Nossa Época, v. 71) SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Coordenadoria de estudos e normas pedagógicas - CENP. Portaria CENP n. 1/96. São Paulo: SE/CENP, 1996. 26 AS BONECAS- ALUNAS: O JOGO DE FAZ-DE-CONTA DENTRO DO ESPAÇO ESCOLAR Cristina Decico Lobarinhas Pedagoga Mestre em Educação pela Faculdade de Educação –UNICAMP Vice-diretora de Creche Municipal de Campinas [email protected] Fone: 19 – 32717427 / 91298710 End. Avenida Engenheiro Augusto Figueiredo, nº 707- Bloco H – apto 11. Swift – Campinas-SP – Cep. 13045-905. Resumo: O presente trabalho está pautado nas experiências vividas em sala de aula, como professora de crianças de terceira série do ensino fundamental, em uma escola particular de Campinas. Estas experiências resultaram na minha dissertação de mestrado “Professorpersonagem: o jogo de faz-de-conta nas relações de ensino” - Unicamp- 2006. Para a apresentação desta comunicação, escolhi alguns episódios para destacar a importância e os efeitos do jogo de faz-de-conta nas atividades escolares, como a presença de bonecas trazidas no “dia do brinquedo”, às sextas-feiras. Estas bonecas serviram como estopim para criar com a turma de alunos um ambiente do imaginário e faz-de-conta, tornando-os aquelas bonecas as novas alunas, surgindo uma nova forma de se relacionar, de aprender, de estudar e de brincar. Com base nessas experiências, registradas em caderno de anotações, fotografias, desenhos e bilhetes feitos pelas crianças e, partindo dos pressupostos da teoria histórico cultural, dos estudos sobre o imaginário e o faz-de-conta, desenvolvemos uma análise e reflexão acerca da importância da continuidade do jogo de faz-de-conta nas séries iniciais do ensino fundamental. Com as análises e reflexões percebemos as transformações que o jogo de faz-de-conta suscita no seio das relações escolares a transformação do ambiente da sala de aula, favorecendo o desenvolvimento cognitivo e afetivo da criança. Palavras-chave: jogo de faz-de-conta, imaginário, personagem, relações de ensino, sala de aula. Abstract: This job is concerned on experiences lived at classroom, as school teacher for children who attended the basic classes, in a private school of Campinas.These experiences ended on my master degree dissertation: “Teacher-Character: The make believe game in teaching interactions” – UNICAMP – 2006. For this presentation, I chose some facts to emphasize its importance and the effects of the “make-believe” game at classrooms activities, such as showing up toys brought by the kids on “Toys Day”, on Fridays. Those dolls started growing up an imaginary and “make-believe” environment among the children, then the dolls became the new students. Children approached near the dolls and read to them books from the classroom library, studied math and talked. Thus showed up a new way to interact, learn, study and play. Taking base on these experiences, which were written up on a handbook and illustrated with pictures, drawing, tickets made by the children, from the supposing statements of historic cultural theory, and studies about the imaginary and “make-believe”, we developed analysis and reflections about the “makebelieve” game, its importance and continuity in the school at beginning classrooms. By analysis and reflections we noticed the transformation that the “make-believe” game provides in the heart of students and teachers interactions and, as consequence, it changes the classroom environment, promoting the cognitive development and children affectivity. 27 Key-words: “make-believe” game, imaginary, character, teaching interactions, classroom. Introdução O presente trabalho está pautado nas experiências vividas em sala de aula, como professora de crianças de terceira série do ensino fundamental, em um colégio particular e confessional de Campinas, em que o jogo de faz-de-conta se fez presente em diversas situações do cotidiano escolar. Com base nessas experiências e, partindo dos pressupostos da teoria histórico cultural, dos estudos sobre o imaginário e o faz-de-conta, voltei-me para a análise da importância da continuidade do jogo de faz-de-conta nas séries iniciais e as transformações que ele suscita no seio das relações escolares, como: relação do professor consigo mesmo, do professor/aluno, aluno/aluno e consequentemente a transformação do ambiente da sala de aula, As situações escolhidas aconteceram no ambiente escolar e foram registradas em caderno de registros. O caderno de registro ficava diariamente aberto na mesa da professora, no qual eram registradas imediatamente a fala e atitudes das crianças, na tentativa de ser fiel às mesmas. Este trabalho resultou na dissertação de mestrado “O encanto do encontro: o jogo de faz-de-conta nas relações de ensino” – Unicamp- 2006. Desenvolvimento Cadê o faz-de-conta que estava aqui? O menino perdeu. Cadê o menino? Foi para a primeira série. Cadê a primeira série? Está fechada em uma sala. Cadê a sala? Está na escola de ensino fundamental, onde não há mais parque, balança, tanque de areia, brincadeira de roda... Podemos afirmar que há uma grande ruptura, seja na escola pública ou na particular, na passagem da criança da educação infantil para o ensino fundamental. Temos a impressão de que, ao iniciar a primeira série do ensino fundamental, a criança tem que deixar para trás os momentos de brincadeira que aconteciam em grande parte do tempo em que estavam na escola de educação infantil. Ao entrar na primeira série, a brincadeira restringe-se aos poucos minutos reservados para o recreio, que, segundo as regras da maioria das escolas, é o tempo suficiente para ir ao banheiro, tomar lanche e só depois brincar, isso apenas no pátio, que geralmente é cimentado e oferece poucos atrativos. Alguns estudos em Psicologia do Desenvolvimento tendem a apontar a brincadeira de faz-de-conta como própria do desenvolvimento pré-escolar e os jogos de regra como uma atividade lúdica que vai se tornando predominante a partir dos sete anos de idade. Vygotsky, nos seus estudos, nos aponta que o jogo de regras e o faz-de-conta caminham sempre lado a lado, pois “sempre que há uma situação imaginária no brinquedo há regras – não as regras previamente formuladas e que mudam durante o jogo, mas aquelas que têm sua origem na própria situação imaginária” (VYGOTSKY, 1998, p.215). Portanto se a criança está representando um papel na brincadeira, ela deve obedecer as regras de comportamento desse papel. Quanto ao jogo de regras, diz o autor, o jogador deve imaginar as várias possibilidades de ações. 28 Embora afirme que o jogo de regras e faz-de-conta caminham lado a lado, Vygotsky sustenta a ideia de que a brincadeira evolui e se modifica ao longo do desenvolvimento da criança. Tal evolução se deve a mudanças que ocorrem na interação das crianças com o seu meio social, em razão das diferentes posições que ocupa e das diferentes tarefas que lhe são colocadas. Ele situa o desenvolvimento do brinquedo em duas fases: a idade pré-escolar e a idade escolar. Na idade pré-escolar a criança envolve-se em um mundo ilusório e imaginário, para satisfazer os seus desejos que não podem ser imediatamente realizáveis: O brinquedo cria uma zona de desenvolvimento proximal da criança. No brinquedo, a criança se comporta além do comportamento habitual de sua idade, além do comportamento diário; no brinquedo é como se ela fosse maior do que é na realidade (VYGOTSKY, 1998, p.134). Portanto, no brinquedo, a criança cria uma situação imaginária, age de maneira contrária à que poderia agir e se submete a regras que a própria situação imaginária impõe. Assim, o brinquedo ensina a criança a relacionar os seus desejos ao seu papel no jogo e suas regras. Nos primeiros anos de vida, o brinquedo é muito mais uma lembrança do que aconteceu em torno da criança do que imaginação, daí o fato de ser regido por regras, a fim de se aproximar do real. Na idade escolar surgem as brincadeiras com regras, em que o propósito decide o jogo e justifica a atividade. O propósito como objetivo final determina a atitude da criança no brinquedo, através da qual ela também usará situações imaginárias no jogo de regras. Conforme Vygotsky e outros autores como Leontiev e Elkonin, a transição do jogo de fazde-conta para o de regras, e o declínio do jogo de faz-de-conta, quando passa a ocupar um lugar secundário na idade escolar, podem ser entendidos como um processo psicológico natural. Entretanto, o que não foi colocado em questão por estes autores e que gostaria de destacar são os elementos históricos e culturais que interferem nos processos psicológicos. Se o desenvolvimento da atividade lúdica está articulado com as interações das crianças com seu meio social, o desinteresse pelo jogo de faz-de-conta conforme o desenvolvimento da criança está relacionado ao próprio contexto social e cultural em que ela vive. Influenciados de forma direta ou indireta pelos meios de comunicação e pelo consumismo, as crianças estão, precocemente, deixando de brincar com as bonecas e carrinhos e aderindo a outros jogos, ao mesmo tempo em que os adultos, também influenciados por estes fatores, deixam de oferecer brinquedos que proporcionam a brincadeira de faz-deconta, acreditando que a criança não se interessa mais por eles. Neste ambiente em que vivem, a brincadeira de faz-de-conta está cada vez mais ocupando o segundo plano, quando deveria ocupar um lugar de destaque, em função da importância que tem no desenvolvimento da criança, uma vez que, conforme Vygotsky, Quando a criança assume um papel na brincadeira, ela opera com o significado de sua ação e submete seu comportamento a determinadas regras. Isso conduz ao desenvolvimento da vontade, da capacidade de fazer escolhas conscientes, que estão intrinsecamente relacionadas à capacidade de atuar de acordo com o significado de ações e de controlar o próprio comportamento por meio das regras (VYGOTSKY, 1998, p.128). Através da brincadeira, a criança está se conhecendo, se preparando para situações de escolhas e controle de comportamentos nas várias situações. Neste sentido, a escola é um espaço privilegiado para se brincar com o jogo de faz-deconta, pois conta com dois elementos importantíssimos: o grupo de crianças e os adultos. 29 Gianni Rodari (1982) considera que os jogos com grupo de crianças permitem que todas sejam, a um só tempo, autores, atores e espectadores de tudo que acontece, uma vez que a situação da brincadeira favorece sua criatividade a cada momento e em diversas direções. Quanto ao adulto, este tem um papel fundamental durante a brincadeira, uma vez que dispõe de vasta experiência, vai mais longe com a imaginação, enriquecendo o jogo na organicidade e duração, abrindo-lhe novos horizontes. Ao brincar com a criança, o adulto não vai ocupar o seu lugar, deixando-a como espectadora, mas vai se colocar a seu serviço, deixando que esta comande o jogo, brincando com ela e para ela, a fim de estimular sua capacidade criativa, dando-lhe novos instrumentos, que serão usados quando brincar sozinha. Portanto, Os adultos de boa vontade não se cansarão de aprender com as crianças os princípios essenciais da “dramatização”: e serão eles que, depois, levarão a dramatização a níveis mais altos e estimulantes, já que, com suas forças ainda limitadas, o pequeno inventor não pode fazê-lo (RODARI, 1982, p.93). Daí a importância do papel do adulto durante a brincadeira com a criança, pois com suas intervenções ele pode ampliar o imaginário vivido por ela. A atividade criadora da imaginação encontra-se em relação direta com a riqueza e variedade de experiência acumulada pelo homem, porque esta experiência é o material com que se constrói a fantasia. Quanto mais vasta a experiência humana, tanto mais amplo será o material que dispõe essa imaginação, por isso a imaginação da criança é menos abrangente, variada que a do adulto, por ser menor a sua experiência. Ao proporcionar brincadeiras de faz-de-conta em sala de aula, o professor cria uma situação imaginária, o que a criança por si só não faria, ou faria com menos recursos, já que conta com menos experiências. Este pode ser mais um valor da importância da brincadeira em sala de aula, pois o professor, com sua farta bagagem de experiências vividas, principalmente com crianças, pode ser um instrumento importante para ampliar a atividade criadora. Rodari (1982) relata uma situação que ocorreu com o professor Bonamvo, que ensinava na “Badini” de Roma e tinha um fantoche-professor no “teatrinho” de sua classe de quinta série. As crianças diziam a este fantoche tudo aquilo que não ousariam dizer ao professor verdadeiro, que ficava sentado em frente ao palco ouvindo tudo o que as crianças realmente pensavam dele, e dizia “assim aprendo os meus defeitos!”. Esta é uma questão que não podemos perder de vista em sala de aula: o envolvimento das crianças durante as aulas depende de um objetivo, de um disparador que possa envolver e entusiasmar tanto as crianças quanto a professora para o conhecimento, para a descoberta. Esse objetivo pode ser encontrado também no âmbito da brincadeira de faz-de-conta. E esta constatação desafia, mais uma vez, o conflito entre a seriedade escolar e o lúdico. Para desenvolver este aspecto, vamos considerar que uma atividade muito comum nas escolas é a prática da leitura em sala de aula solicitando a uma criança que leia um trecho de um texto enquanto as demais o acompanham com seu livro; cada parágrafo é lido por uma criança e, quando chega a vez daquela que é mais introvertida, ela não consegue desempenhar bem essa leitura. Essa prática não oferece nenhum atrativo para a criança, mas durante uma brincadeira, ela pode ser muito mais significativa, como é relatado no episódio a seguir, retirado do caderno de registros. Este episódio ocorreu em uma sexta-feira, dia estipulado para todas as crianças trazerem de casa seus brinquedos e compartilhá-los com seus amigos na hora do recreio: “Sexta-feira é dia de trazer brinquedo para a escola! É o único dia em que as crianças podem trazer de casa seus brinquedos preferidos, desde que não sejam com rodas (patins, patinete, bicicleta) e bola, para serem usufruídos apenas na hora do recreio. Minhas alunas 30 costumavam levar bonecas, que ficavam ao fundo da sala, junto às lancheiras, até a hora do recreio. Neste dia, Camila levou uma boneca de pano bem grande. Começou a aula e aquela boneca continuava em seu colo. Percebi que ela estava se atrasando com as atividades, pois toda hora se ajeitava na carteira com a boneca e algumas vezes conversava com ela. Aproximei-me de Camila. Prof.: Que boneca linda, qual o nome dela? Camila: Rírili. Prof.: Ela é linda e bem grande! Sabe que ela poderia ser a nova aluna da classe? Camila: Como assim, professora? Prof.: Deixe-me pegar a sua boneca. Peguei a boneca e a coloquei sentada em uma carteira. Peguei um livro e o deixei aberto em cima da sua mesa. As crianças da classe riram, e Camila adorou a ideia. E, assim, não se distraiu mais com a boneca, continuando a sua atividade. Esta foi a forma que encontrei para tirar a boneca dos seus braços e, ao mesmo tempo, criar um ambiente de faz-de-conta na sala. Não imaginaria que as crianças entrariam tanto na brincadeira, percebi que algumas se levantavam de vez em quando e mudavam a página do livro da boneca. Isabel: Professora, faz um tempão que ela leu aquela página, a gente tem que virar para ela, senão ela enjoa de ficar lendo toda hora a mesma coisa. Depois outra criança colocou alguns lápis e papéis sobre sua mesa. Daniela: Ela não veio para a escola só para ficar lendo, vai fazer atividade também. A maioria dos alunos ficou entusiasmada com a boneca, tratando-a como se realmente fosse a nova aluna da classe. A diretora estava passando pelo corredor e entrou em nossa sala, viu a boneca e perguntou o que era aquilo. As crianças responderam que era a Rírili, a nova aluna da classe, então a diretora voltou-se para ela e conversou. Diretora: Olá, Rírili, seja bem vinda à nossa escola! Você vai adorar seus amiguinhos e a professora! Camila: Ela é a aluna mais comportada da sala. Ela é super quietinha! As crianças e a diretora riram muito com esse comentário. Diretora: É mesmo. Vocês devem ficar quietinhos na sala de aula também, prestando atenção às atividades! Prof.: Claro que não tão quietos quanto a Rírili, tem que participar, falar na aula fazendo questionamentos, sugestões, sair do lugar quando necessário. Daniela: É mesmo, a Rírili é muito parada. Camila: Mas a gente faz ela se movimentar. Daniela: Isso mesmo. Realmente as crianças fizeram a Rírili se movimentar, aquelas que terminavam suas atividades, se aproximavam dela e escreviam a mesma atividade no seu papel, às vezes até explicando a atividade. Ao final do dia as crianças pediram para a Rírili voltar outras vezes. Prof.: Pessoal, é regra da escola trazer brinquedo apenas na sexta-feira, se as crianças de outras classes perceberem que vocês estão trazendo, vão querer trazer também, vai ser uma confusão! Camila: Mas, professora, a gente fala que é a nova aluna da classe, ela precisa vir todos os dias. Prof.: Então vamos fazer um acordo. Você traz a Rírili, mas ela não poderá sair para o recreio, ficará apenas dentro da sala, para que as crianças de outras classes não a vejam. E assim ficou combinado. Na segunda-feira, Rírili chegou com uniforme e uma mochila com caderno, estojo e livros de histórias infantis. Ao entrar na sala, Camila ajeitou 31 sua boneca na mesma carteira em que eu a havia colocado na aula anterior, tirou da mochila o estojo e o caderno da Rírili e em seguida foi para o seu lugar. Novamente as crianças interagiram com a Rírili como se ela fosse uma nova aluna. Aproximavam-se dela, pediam lápis emprestado, viravam páginas do seu caderno ou, então, a colocavam perto da biblioteca da classe16 para lerem livros com e para ela.”(Caderno de Registros, out/2003). Neste episódio mais uma vez fica evidente o conflito entre a seriedade escolar e o lúdico. Ao ver aquela boneca nos braços de Camila, que estava se atrasando com sua tarefa, a primeira atitude que nos ocorre é retirar a boneca de seus braços. Mas a questão é o como tirá-la. Há várias maneiras. Entre elas, chamar atenção da criança e pedir para guardar, ou então, encontrar nas brechas entre a seriedade e o lúdico uma forma de manter a boneca, sem perder de vista a magia da brincadeira e ao mesmo tempo garantindo a responsabilidade da realização da tarefa escolar. Embora apoie-se amplamente no já conhecido e/ou no já experimentado pelo sujeito, o jogo de faz-de-conta envolve, a meu ver, a abertura de possibilidades de criação de novas relações entre os sujeitos, a atribuição de significados originais a determinados objetos, a representação de ação de formas diferenciadas, a construção de papéis e de temáticas novas que podem sempre conter o inesperado” (ROCHA, 2000, p.185). Neste caso, o inesperado foi o fato das crianças estabelecerem uma relação tão forte com a boneca Rírili a ponto de reivindicarem sua presença constante na sala. Foi inesperado também o consentimento da diretora em permitir a presença da Ririli em outros dias além daquele de brinquedo, o que abriu possibilidade para outra relação das crianças com a diretora e desta com o meu trabalho, no qual depositou sua confiança e credibilidade. Enfim, foi inesperado que uma forma diferente de retirar a boneca com o intuito de não atrapalhar a aluna em sua atividade contribuísse para a continuidade do jogo de faz-de-conta na sala de aula. Poder-se-ia dizer que a boneca-aluna foi um importante elemento disparador para o jogo de faz-de-conta em sala de aula e também auxiliador na superação de dificuldades que algumas crianças apresentavam com a leitura e a escrita. A boneca Rírili foi de grande importância para Caroline, uma aluna que apresentava resistência com a leitura, dizendo que não gostava de ler, e que quando era solicitada para ler em voz alta, sentia muita dificuldade e se inibia perante os colegas. Um dia, após terminar as suas atividades, Caroline se aproximou de Rírili, que estava sozinha na biblioteca da classe, pegou um livro e começou a ler para ela. Logo, outras crianças foram se aproximando e Caroline continuou com a leitura, sem a inibição que apresentara em outras ocasiões. Incentivei a leitura de Caroline solicitando a ela que, logo que terminasse sua atividade, fosse à biblioteca e lesse para a Rírili. Esse episódio se repetiu várias vezes, e aos poucos Caroline foi se tornando mais segura com a leitura, até que ao final do ano estava lendo fluentemente, com segurança e entonação. Outro fato interessante foi com Bianca, que aproveitava para estudar tabuada com a Rírili, colocando em sua mesa uma tabela de tabuada, sendo algumas vezes interpelada por seus amigos “Credo, Bianca! Vai dar tabuada para a Rírili, coitada, dá um livro para ela ler!” Ao que ela respondia prontamente: “mas ela precisa estudar tabuada!” Na realidade, Bianca estava sendo muito cobrada por seus pais pelo fato de não dominar a tabuada, então aproveitava para estudá-la com a Rírili, na biblioteca da classe. 16 A biblioteca da classe ficava no fundo da sala, onde os livros trazidos pelos alunos ficavam à disposição de todos durante o ano inteiro, dispostos em cima de uma mesa. Ao longo do ano, as crianças ou a professora colocavam mais livros para serem lidos na classe ou em casa. Este espaço era usado quando as crianças terminavam suas atividades e tinham que aguardar outras crianças que ainda as estavam realizando, antes de passarmos para a próxima atividade. 32 Mais uma vez fica evidente a importância destes elementos do universo imaginário nas atividades escolares, tornado-as mais significativas e prazerosas. Ao incluir as bonecas-alunas durante as aulas, pude perceber as transformações que ocorreram nas relações entre as crianças e destas comigo, e a partir desta experiência, compartilho com Rodari a seguinte conclusão: “Comunicar por meio de símbolos não é menos importante que comunicar por meio das palavras. Aliás, algumas vezes, é o único modo de se comunicar com a criança” (RODARI, 1982, p.96). A boneca Rírili não foi a única “nova aluna” da turma. Mais tarde outros “novos alunos” passaram a freqüentar as aulas. Os “novos alunos” eram as bonecas que as crianças traziam todos os dias. Eles não tinham lugares fixos para se sentarem, geralmente ficavam no fundo da sala ou então no lugar onde um aluno havia faltado. E assim a classe ficou lotada de alunos como relato neste episódio: “Hoje apareceram mais quatro ”novos alunos”: o Kelvin, Laurinha, Diego e Emília. Alguns uniformizados, com a camiseta do colégio e com material escolar. As respectivas “mães” dos “novos alunos” pediram para que eles freqüentassem as aulas todos os dias e o acordo foi o mesmo que se havia feito com a Rírili. Todas as carteiras da sala ficaram ocupadas de modo que dava a impressão de que realmente aquelas bonecas e bonecos eram novos alunos. Eles pareciam ter vida, pois as crianças lhes davam vida, ao lhes emprestar materiais, ler um livro, escrever alguma atividade no seu caderno ou ainda dizer “a Rírili faltou”, o “Kelvin não veio” quando eu fazia a chamada e perguntava se alguém havia faltado naquele dia. Ou ainda parecia que faziam das bonecas verdadeiras companheiras. Prof.: Camila, deixe para terminar depois a lição, agora vamos todos para a quadra... Murilo: Deixa ela aí na classe, professora, quando ela terminar ela vai para a quadra... Prof.: Mas é regra da escola não deixar criança sozinha na classe. Murilo: Mas professora, ela não vai ficar sozinha, ela vai ficar com a Rírili, com o Kelvin.” (Caderno de Registros, Nov/2003). Às vezes eu me esquecia que aquelas não eram apenas bonecas ocupando um lugar na carteira. Eram bonecas-alunas que no âmbito do imaginário estabeleciam relações de amizade e companheirismo com os alunos e a professora. Várias vezes enganei-me de fato passando em suas carteiras e deixando alguma folha de atividade, ou algum bilhete, e só percebia que havia feito isso quando algumas crianças ficavam sem a folha, e então víamos que as folhas estavam com as bonecas. Essa situação causava muitos risos em todos nós. Outras pessoas que passavam pela porta também achavam que as bonecas fossem crianças, principalmente na hora do recreio. Certo dia chegaram a me chamar na sala dos professores avisando que na sala havia crianças fazendo lição, e outras vezes me perguntavam se havia deixado algumas crianças sem recreio, dentro da sala. Foram situações engraçadas que causavam ora espanto, ora curiosidade nas pessoas, algumas que apoiavam, outras que repudiavam esse trabalho com as bonecas e as crianças, dizendo que estas ficavam muito infantis para a sua idade. “Onde já se viu, meninas deste tamanho ainda brincando com bonecas!” ouvi dizer uma professora, provavelmente ela, assim como muitas outras, acreditam que a criança não se interessa mais por este tipo de brinquedo após os sete anos de idade, como é apontado por vários teóricos, como Vygotsky, Elkonin, Piaget e outros. Daí o seu estranhamento ao ver aquelas meninas ainda brincando com boneca. O que não é levado em consideração nesses casos é o fato de que o aparente desinteresse pela boneca, pela brincadeira de faz-de-conta, está relacionado ao meio em que a criança vive, às influências da mídia, do consumismo que direciona o interesse das crianças para outros tipos de brinquedos, geralmente jogos eletrônicos. 33 O fato das minhas alunas, com idade entre nove e dez anos, ainda brincarem com boneca pode ser explicado pelo direcionamento dado para a brincadeira. Ao criar um ambiente de faz-de-conta na sala de aula, o professor transforma-se em um promotor e incentivador da criatividade. Quando passei a tratar a boneca fazendo de conta que era uma nova aluna, conversando com ela, o jogo de faz-de-conta instaurou-se na sala, as regras e o desempenho de papéis de cada um foram se estabelecendo e, independentemente da idade de cada um, a brincadeira de faz-de-conta envolveu a todos da sala, proporcionando novos desafios. O primeiro desafio encontrado foi o de justificar com a direção da escola a presença de brinquedos fora do dia estipulado. A diretora demonstrou sua cumplicidade por este trabalho ao não se opor ou contestar que as crianças levassem o brinquedo em outros dias. Ela apenas solicitou que se comunicasse às outras professoras a razão da presença daquelas bonecas, considerando que algumas delas pudesse se interessar por realizar o trabalho ou ainda que pudessem ser questionadas por seus alunos sobre os motivos por que os alunos da terceira série levavam boneca todos os dias. Feito isso, nenhuma professora se mostrou contrária ao trabalho, assim como nenhuma aderiu ao mesmo. Penso que tal desinteresse tenha se dado pelo fato de que quem não está inserido na brincadeira não vê significado nas ações, nas falas e gestos. Pois, como aponta Leontiev, “a ruptura entre o sentido e o significado de um objeto no brinquedo não é dada antecipadamente, como um pré-requisito da brincadeira, mas surge no próprio processo de brincar” (LEONTIEV, 1988, p.128). Ou ainda porque, como dizíamos, a maioria dos professores não vê relação do lúdico com a aprendizagem, conforme aponta Cruz (2002): Em nossas escolas, o pensamento está instituído como razão. Os “para quês” e sentidos do conhecimento, e todas as construções imaginárias aí implicadas, via de regra, permanecem à margem do processo educativo da criança. Os aspectos cognitivos da elaboração do conhecimento parecem estar sendo privilegiados, em detrimento dos seus aspectos éticos e estéticos, que a relação com a imaginação põe em evidência. Busca-se conter a imaginação, disciplinando-a, o que talvez produza, entre outras coisas, um saber (saber?) que se constitui pela lógica ou pela repetição e que passa ao largo da motivação, desejos e necessidades das crianças que, afinal e sempre, são crianças que vivem “na carne” relações com o mundo e a cultura (CRUZ, 2002, p.77). Assim, no meu modo de entender, não fazia sentido, repentinamente, as professoras permitirem as bonecas na sala, uma vez que não viam a relação do lúdico com os aspectos cognitivos. Outro desafio encontrado diz respeito à mediação do professor com o tempo e o modo de realização das atividades. As crianças brincavam com as bonecas na sala, mas seguiam determinadas regras próprias do jogo de faz-de-conta. As bonecas eram como colegas de classe, portanto em alguns momentos da aula, durante uma atividade que exigia maior concentração, assim como não era permitido conversar com os colegas, também não era permitido conversar com as bonecas. Após a realização das tarefas as crianças poderiam ir ao fundo da sala para ler um livro, conversar em voz baixa com o colega ou com as bonecas. As bonecas, como relatado, tornaram-se vivas, parceiras de atividades e companheiras na sala, dentro do jogo de faz-de-conta. Levei a máquina fotográfica para registrar alguns momentos das crianças com as bonecas e, ao final da aula, entreguei-lhes uma autorização para que os pais assinassem permitindo o uso das fotos em um trabalho de pesquisa. 34 “Vitor: Professora, pra quê isso? Não precisa, a gente deixa você usar as nossas fotos. Prof.: Vitor, não é bem assim, preciso da autorização dos seus pais... Pedro: Ah, então você precisa pegar autorização da Camila, Renata, Silvana, Karina e Isabel, porque você está tirando fotos das “filhas” delas. Prof.: É mesmo, vocês me autorizam usar as fotos das suas “filhas” em meu trabalho? Silvana: Claro, professora. Faço agora mesmo a autorização. Silvana arrancou uma folha do seu caderno e começou a escrever a autorização, as outras alunas também procederam da mesma forma e me entregaram orgulhosamente, como se realmente fossem as mães daquelas bonecas.” (Caderno de Registros, Nov/2003). Toda essa situação de brincadeiras na sala pode produzir estranhamento para muitas pessoas. Assim, ao ser chamada de “louca” por vários colegas que me viam conversar com bonecas, não me surpreendia e nem os repreendia, pois, compreendendo que A professora, na sala de aula, organiza suas inserções e suas mediações pedagógicas, tendo, como referência, o que sua cultura lhe oferece como âncoras sobre o seu papel e sobre que sujeitos se deseja que ela constitua. Isso pode ser entendido, num sentido mais geral, do sujeito necessário e desejado pela sociedade [...] Em uma e outra dimensão a atividade lúdica de jogos de faz-de-conta e o imaginário não têm sido os caminhos mais desejáveis (ROCHA, 2005, p.176). Para muitos educadores a brincadeira de faz-de-conta, a imaginação são valorizadas somente para a educação infantil, como se estas fossem posteriormente perdidas, não mais fizessem parte da capacidade cognitiva do ser humano. Isto pode ser observado, como se disse, quando a professora recrimina o fato de crianças ainda brincarem de boneca. A importância do brincar, ainda que apontada por teóricos como Vygotsky, Elkonin, Freinet, entre outros, parece não ter sido suficientemente assumida pela maioria dos pedagogos, que ainda vêem o brincar sob a ótica da pouca seriedade, da não utilidade, da oposição trabalho versus brincadeira, ou seja, não vêem a importância do brincar no momento da aprendizagem, como afirma Rocha (2005): Neste sistema de constituir sujeitos adaptados ao sistema mais amplo, o jogo de faz-de-conta e o imaginário podem representar mais facilmente o espaço da criação, e isto não tem sido muito desejado em nossos sistemas escolares e sociais. Como o jogo não é uma atividade produtiva (no sentido capitalista do termo), ele é um campo em que a criança está livre, de certa forma, do controle de produção, de avaliação e da determinação estrita dos caminhos que se pode/deve percorrer. Como já vimos, no jogo a criança se orienta pelo processo, e não pelo produto (ROCHA, 2005, p.177). Ao orientar-se pelo processo, sem se preocupar com o produto, a criança pode chegar a este, pela brincadeira. Como no caso relatado de Caroline: a princípio era só uma brincadeira, entretanto ambas, escrevendo e lendo, respectivamente, orientando-se pela brincadeira, conseguiram vencer barreiras na aprendizagem chegando ao resultado esperado ao final da terceira série, ou seja, dominando a escrita e a leitura. Assim, a brincadeira, o jogo de faz-de-conta podem ser instrumentos pedagógicos indispensáveis na atividade do professor, pois entrelaçam o trabalho escolar com o fazer livre, responsável e lúdico. O jogo possibilita o desenvolvimento criativo, pois os seus caminhos não são dados de antemão, as regras se formam e se acertam por acordos 35 e, no desenrolar do jogo, novas regras, novos jogos e novos caminhos se constroem coletivamente. Considerações finais Com base nas experiências vividas, poder-se-ia afirmar que o jogo de fazde-conta não perde a sua força quando a criança passa dos sete anos de idade, como afirmam alguns teóricos da educação, tais como Vygotsky, Leontiev, Elkonin, Piaget. Poder-se-ia afirmar que não é a criança que se desinteressa pelo faz-deconta, mas o próprio ambiente em que ela vive, os meios de comunicação, o fato de os adultos cobrarem a seriedade, o apelo ao racional em detrimento ao fantasioso, a exigência do compromisso a regra estabelecida das instituições de ensino, enfim, vários fatores que deixam de valorizar e dar a devida importância à infância quando a criança ainda é criança. Se não lhe for oferecido um momento ou um ambiente que a leve para o faz-de-conta, ela não vai se interessar, portanto, nós adultos, somos responsáveis por proporcionar esse mundo de magia e encantamento não apenas na fase pré-escolar, mas em qualquer fase de nossas vidas. Se estivermos trabalhando com crianças, se quisermos que elas nos entendam e vice-versa, precisamos entrar em um mundo sem dogmatismo e austeridade. Precisamos criar um ambiente que seja da criança e para a criança, uma vez que ela passa grande parte de seu dia na escola, e que as interações sociais com pessoas adultas e com outras crianças, que não são as de seu meio familiar, contribuem para aquisição de novos conhecimentos, informações, novos valores, promovendo a convivência e o confronto das diferenças entre as pessoas. Assim A escola tem que se apresentar como um convite ao desejo da criança [...] a vivência do espaço escolar deve ser uma possibilidade de experiência lúdica, criativa e prazerosa, tanto para as crianças, quanto para o professor (FERNANDES, 2001, p.75). Gostaria de destacar a conquista de uma nova posição e um papel diferente do professor em sala de aula, bem como os problemas e conflitos enfrentados dentro de uma escola tradicional e confessional, dentre eles: equilibrar o tempo das atividades escolares dentro da brincadeira; comprovar que o interesse da criança pela brincadeira do faz-de-conta não termina aos seis ou sete anos de idade, ele continua trazendo elementos enriquecedores na sua formação. Por meio do jogo de faz-de-conta, conseguimos despertar o interesse pela leitura ou por um conteúdo pouco atrativo, romper com a timidez e o medo de se expor, desenvolver e aperfeiçoar a fala e a escrita, despertar sentimentos, estimular a criatividade, entre outros. Por isso ressalto a importância da manutenção do jogo de fazde-conta ao longo do processo educativo. A escola não deve ser um lugar onde se despeja conteúdos, mais preocupada com o resultado que com o processo, pois A escola para consumidores está morta. Uma escola viva e nova pode ser apenas uma escola para criadores. É como se nela não existissem “escolares” e “professores”, mas homens inteiros (RODARI, 1982, p. 143) Bibliografia BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas Cidades, 2002. FERNANDES, Renata S. Quem quer entrar pra turma põe o dedo aqui: partilhando experiências e saberes nas relações entre adultos e crianças, in Park, Margareth B. Memória em movimento na formação de professores, Campinas: ed. Mercado de Letra/CMU, 2000, p.73-81. 36 __________________. Entre nós o sol: relação entre infância, cultura, imaginário e lúdico na educação não formal. Campinas, SP: Mercado de Letras; São Paulo: Fapesp, 2001. 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México: Hispánicas, 1987. 37 EDUCAÇÃO ESPECIAL, FAMÍLIA E SOCIEDADE: ENVERGADURA DA ATUAÇÃO PROFISSIONAL DA EQUIPE MULTIDISCIPLINAR E DA FAMÍLIA COMO PRINCIPAL TERAPEUTA NO PROCESSO DE INCLUSÃO SOCIAL Gleice Cristiane de Santana [email protected]/[email protected] 19-9245-7560/19-3463-1131 Rua 25 de Agosto, n°16 – 31 de Março. Santa Bárbara d´Oeste – São Paulo Graduada em Serviço Social pelo Centro UNISAL de Americana, pós graduada em Educação Especial e Inclusiva pela Anhanguera Educacional e pós graduada em Políticas Públicas no contexto do Sistema Único de Assistência Social – SUAS pela Atualize Pós graduação. Atualmente é assistente social da Associação de Pais e Amigos dos Excepcioanais (APAE) de Santa Bárbara d´Oeste e assistente social da Associação de Beneficiência e Educação – A.B.E. - Casa da Criança no setor de Acolhimento Institucional em Santa Bárbara d´Oeste; conselheira do Conselho Municipal de Assistência Social de Santa Bárbara d´Oeste – CMAS como 1ª secretária, coordenadora da Comissão Temática de Políticas Públicas do CMAS, e membro da Comissão Intersetorial de Convivência Familiar e Comunitária do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente CMDCA de Santa Bárbara d´Oeste, representando o CMAS. RESUMO: É comum observarmos diferentes espaços da sociedade e, em geral no país, um sistema econômico, político e cultural habituado a estigmatizar os “diferentes”. Este padrão imposto pela cultura tem acarretado seqüelas sociais dispostas a ferir os direitos humanos e os vínculos afetivos, em especial entre as famílias das crianças com deficiência. O principal objetivo deste artigo é identificar a atuação e o comprometimento de uma equipe multiprofissional qualificada em parceria com a família, já que as atuações multidisciplinares são essenciais para o desenvolvimento da criança com deficiência e sua dinâmica na sociedade, além de ressaltar a envergadura da Educação e da Educação Especial no Brasil e os laços que permeiam a realidade da família que enfrenta esta nova fase, com a chegada de uma criança com diagnóstico patológico e prognóstico comprometido. Situar os pais e os processos terapêuticos sob a orientação de um profissional e da família são essenciais neste complexo processo de aceitação da deficiência. Palavras-Chave: Equipe Multiprofissional; Educação; Educação Especial; Família ABSTRACT It is common to see different areas of society, and in general in the country, an economic system, political and cultural accustomed to stigmatize the “different”. This patternimposed by the culture has led to social sequelae willing to hurt the human rights and the emotional ties, especially among families of children with disabilities. The main objective of this paper is to identify the work and commitment of a skilled multidisciplinary team in partnership with the family, as the disciplinary actions are essential for the development of children with disabilities and their dynamics in society and high lights the magnitude of Education and Special Education in Brazil and the ties that permeate the reality os families facing this new phase, with the arrival of a child with pathologic diagnosis and prognosis compromissed. Locate parents and therapeutic 38 procedures under the guidance of a professional and family are essential in this complex process of acceptance of disability. Keywords: Multidisciplinary Team; Education; Special Education; Family 1. INTRODUÇÃO O principal objetivo deste artigo é identificar a atuação e o comprometimento da Educação, da Família e de uma capacitada Equipe Multiprofissional frente ao cenário contemporâneo bem como realizar um breve histórico das diretrizes educacionais desde os primórdios. Observar a envergadura do ensino em seu contexto literal exige uma visão ampla da sociedade sobre o estigma que permeia a pessoa com deficiência. Nestes parâmetros, identificamos ainda a relevância da Educação Especial e as articulações pedagógicas necessárias para a realização de um trabalho efetivo à demanda. É preciso a conscientização de que todos são educadores, independentes de nossas atuações profissionais e que cada sutil ação desempenhada com seriedade proporciona pequenas metamorfoses que poderão fazer a diferença no futuro do país. É relevante considerarmos que a influência da família no processo de integração social da criança com deficiência, deve ser analisada sob dois aspectos: a facilitação ou impedimento que a família atribui para a integração da pessoa com deficiência na sociedade e a integração em sua própria família. A partir destas perspectivas, vale considerar que estas duas óticas estão intrínsecas, já que quanto mais a família proporcionar à criança um cenário que disponibilize afetividade e aceitação, tanto mais ela será vista pela sociedade como “igual aos demais”, mesmo em meio às suas peculiaridades especiais. Enfim, lidar com estas subjetividades requer técnicas de toda uma sociedade de fato comprometida com a magia do educar, pois todos têm a oportunidade de se tornarem, de fato, educadores sociais. Desta forma, atribuímos neste artigo a contextualização dos panoramas da Educação e da Educação Especial e a intervenção técnica de uma equipe multiprofissional, inerentes à posição familiar, já que este núcleo social detém de relevante papel neste processo. 2. A CONTRIBUIÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NA EQUIPE MULTIPROFFISSIONAL SOB A ÓTICA DA INTERDISCIPLINARIDADE É imprescindível salientarmos a envergadura do serviço social nas instituições especializadas no que tange os atendimentos dispensados às crianças com deficiência. Neste contexto, o termo interdisciplinaridade pode ser analisado de forma abrangente, já que para que a criança com deficiência seja atendida pela área da saúde, os primeiros profissionais são: os médicos (em sua maioria, neuropediatras) que posteriormente realiza o encaminhamento para determinada instituição especializada. Após este processo, a família encaminhada é atendida pelo profissional da assistência social, o qual realiza anamnese do caso, a fim de proporcionar diretrizes para o restante da equipe multiprofissional. A partir dos atendimentos realizados pela equipe de técnicos, nos deparamos com um processo caracterizado como: interdisciplinaridade. O termo interdisciplinaridade pode ser contextualizado a partir de formas divergentes, pois permite que a partir de duas ou mais áreas, ocorra a interação das mesmas. Nestas perspectivas, ocorre a complementaridade dos conceitos, estruturas ou métodos para se efetivar práticas científicas. Caracterizamos a interdisciplinaridade no serviço social a fim de estabelecer o seu paradoxo com a atuação da profissão (suas atribuições, responsabilidade e métodos de trabalho) no cenário institucional. A aplicação de uma prática interdisciplinar entre os profissionais da área oferece subsídios na análise da sociologia das profissões, das políticas 39 sociais e institucionais. Desta forma, a abordagem da área social contribui para a construção de estratégias que não se limitam aos próprios conhecimentos. Nas práticas de intervenção social, é extremamente relevante uma atuação interdisciplinar. Sabemos que a intervenção social é fruto de uma concepção e práxis voltadas à interdisciplinaridade, pois se caracteriza em estabelecer um espaço ou complementação entre áreas, saberes empírico e científico. Diante deste cenário, vejamos a afirmação de Rodrigues, que diz: A interdisciplinaridade, favorecendo o alongamento e a flexibilização no âmbito do conhecimento, pode significar uma instigante disposição para os horizontes do saber. (…) Penso a interdisciplinaridade, inicialmente, como postura profissional que permite se puser a transitar o “espaço da diferença” com sentido de busca, de desenvolvimento da pluralidade de ângulos que um determinado objeto investigado é capaz de proporcionar, que uma determinada realidade é capaz de gerar, que diferentes formas de abordar o real podem trazer. (RODRIGUES, 1998, p. 156) Para RODRIGUES (1998) a interdisciplinaridade deixa o cientista livre da “rigidez e a fixação em mundos que julgava absolutos”, possibilita a diferenciação e criatividade, além de uma postura profissional nada simplista. Ela exige um saber ético, técnico e profissional. O assistente social deve trabalhar de forma criativa e propositiva, sem deixar a criatividade alheia às suas intervenções. Nestes parâmetros, consideramos que a atuação deste profissional intrínseca à uma equipe multiprofissional, tende a enriquecer os atendimentos, de modo que todos os técnicos que os realizam, sejam eles terapêuticos ou clínicos em uma instituição especializada, necessitam de visão ampla e minuciosa do assistente social para efetivar seu trabalho. Ao caracterizarmos a interdisciplinaridade podemos afirmar que uma postura “inter”, envolve aspectos de verdadeiramente colocar-se no mundo. Sendo assim, isso deverá acontecer diante de si e dos outros de forma a imergir no cotidiano com atuação humilde, coerente, reverente e ainda além, respeito e desapego. Nestas perspectivas sim, podemos afirmar que conhecer é integrar “na vida” com o objetivo de transformá-la por meio de uma postura “inter”, ou seja, comprometida e responsável. Segundo Martinelli (1995) a perspectiva interdisciplinar não fere a especificidade; requer a originalidade e a diversidade dos conhecimentos que produzem e sistematizam acerca de determinado objeto, de determinada prática, permitindo a pluralidade de contribuições para compreensões mais consistentes deste mesmo objeto, desta mesma prática. A interdisciplinaridade, nas palavras de Martinelli, é o princípio da ciência, da máxima exploração das potencialidades de cada ciência, da compreensão e exploração de seus limites, mas, acima de tudo, é o princípio da diversidade e da criatividade. Infelizmente as diferenças intrínsecas à humanidade são condicionantes entre os profissionais, fator este que não dinamiza o projeto interdisciplinar com sucesso. Por este motivo, a interdisciplinaridade está inserida num contexto de limitações históricas nos aspectos profissionais e peculiares. Desta forma, façamos uma reflexão em torno da autonomia profissional que é assegurada ao assistente social, pois este detém de funções técnicas e políticas que proporcionam a ele uma estrutura positiva e linear sob seu domínio teórico, a fim de proporcionar inteligibilidade aos seus objetivos e aos da instituição especializada em que trabalha. Assim, esta dialética realizada de forma efetiva entre os técnicos, possibilita um trabalho efetivo tanto das limitações quanto das alternativas, já que o assistente social deve contribuir para a elaboração de estratégias concretas, permeadas por eficiência e eficácia. 40 3. TERAPIAS PARA CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA: A FAMÍLIA COMO PRINCIPAL TERAPEUTA A atenção dos profissionais que compõem a equipe multiprofissional às famílias e às crianças é de fundamental importância. Glat (1995) enfatiza que é necessário focalizar prioritariamente o atendimento familiar, partindo da premissa de que, para que o indivíduo com deficiência venha ser integrado na sociedade, ele necessita antes de tudo, estar integrado em sua própria família. A intervenção psicoeducacional precoce no plano familiar é imprescindível, talvez tão fundamental quanto o atendimento direto à pessoa com deficiência propriamente dita. Sabemos que a terapia para crianças com deficiência exige interação de muitos indivíduos, profissionais e leigos. Até o presente momento, percebemos que os membros mais importantes da equipe de terapia são as próprias crianças com deficiência e suas famílias. Todavia, é imprescindível considerarmos que a participação efetiva de outras disciplinas contribui positiva e satisfatoriamente para o desenvolvimento precursor da criança. O trabalho em conjunto com a família proporciona maior fidedignidade ao processo. Primeiramente, a equipe conta com a participação de um médico e uma assistente social atuante na área da saúde. Após os encaminhamentos necessários, a criança poderá obter atendimentos clínicos distribuídos em fisioterapia, fonoaudiologia, psicologia, terapia ocupacional, entre outras. Mesmo mediante a relevância da participação profissional terapêutica na vida da criança com deficiência, a participação do núcleo familiar não substitui a essência do tratamento que deve ser provido à criança. Não importa quantos profissionais trabalhem com os deficientes durante sua vida, não haverá um que tenha um efeito mais repugnante, influente, duradouro e significativo sobre eles do que a família. Os membros desta estarão em contato contínuo com o indivíduo, ensinando-lhes os costumes e hábitos da cultura e estipulando as regras para o jogo da vida. Em um sentido bem real, eles irão guiar a criança na luta para desempenhar seu papel de ser humano. Suas atitudes com relação à criança como pessoa terão grande influência sobre as atitudes pessoas desta. Seus sentimentos em relação à deficiência afetarão os sentimentos da criança a esse respeito. De uma forma positiva ou negativa, o primeiro e mais influente terapeuta será sempre a família. (BUSCÁGLIA, 1993, p.128) Ao abordarmos esta temática neste artigo, salientamos que a reação da família mediante a esta nova situação que se encontra na chegada de uma criança com deficiência tende a se tornar um processo contínuo de rejeição pela criança. Quando isto acontece, não haverá nenhuma terapia familiar eficaz, e ainda ocasionará prejuízo para o processo terapêutico ambulatorial. A complexidade aqui se baseia no fato de que a família, muitas vezes, esquece que a criança com deficiência, é antes de tudo, uma criança. O saber lidar com ela está imposto na questão das circunstâncias experienciadas na vida diária. A força emocional, a sabedoria e a flexibilidade são alcançadas gradualmente, principalmente em um movimento de amor e carinho recíproco entre os pais e a criança. A partir do momento em que há esta absorção de ideologias em torno da subjetividade humana, o processo de aceitação da família para com este novo ser humano chegado ao mundo, torna-se tangível. A partir de então, observamos o início da verdadeira terapia. Para realizarem uma terapia eficaz, não serão necessários talentos ou qualidades especiais da parte de uma família saudável com uma criança excepcional. Dela será exigido apenas um pouco mais de paciência, força, persistência, conhecimento e percepção. Sua função será aquela de todas as famílias. Seus objetivos de orientação serão basicamente os mesmos. Quaisquer conhecimentos, sensibilidade e percepção especiais que sejam necessários estarão voltados para os problemas ligados à aspectos da deficiência, tais como dependência e independência, sentimentos específicos, necessidades de cuidados especiais, 41 motivação, mágoas e gratificações, disciplina e atitudes sociais que levem à aceitação ou rejeição. (BUSCÁGLIA, 1993, p.129). Podemos evidenciar que um aspecto essencial que caracteriza o papel da família como terapeuta refere-se ao tratamento com os sentimentos. Sabemos que, muitas vezes, esta dinâmica é um tanto quanto complexa. Contudo, a partir do momento em que todos os membros da família começam a expressar o que sentem, perceberão que tais sentimentos não são tão destrutivos ou incomuns, pelo contrário, quando partilhados por outras pessoas na família, muitos sentimentos são suavizados, por fazerem parte da essência de um contingente maior de pessoas. A prática de fluxo natural e sincero da disposição afetiva em relação à criança com deficiência oferece subsídios para o enfrentamento da família como principal terapeuta em seus dramas mais essenciais. Buscáglia (1993) afirma que: Alcançarmos a verdadeira aceitação quando deixamos de generalizar os efeitos da deficiência e percebemos que ela não representa toda a pessoa, que nem todos os aspectos de sua vida serão influenciados por ela e que essa pessoa é mais do que o total da soma de suas partes. A aceitação vem através de uma avaliação realista da deficiência e dos valores que parecem perdidos graças a ela. A aceitação também surge com o conhecimento de que existem vastas regiões do eu que ainda estão intactas, acessíveis e à espera de ser exploradas. Essas verdades são sempre mais bem vivenciadas na prática do que no ensino formal. (BUSCÁGLIA, 1993, p. 139). Percebemos então, que a família é a principal terapeuta para a vivência diária dos bebês e crianças com deficiência. Ainda assim, os seus membros poderão realizar seu papel fundamental a partir do momento em que vários aspectos forem trabalhados no núcleo familiar, vejamos algumas diretrizes: O sentimento da família em relação a cada membro irá variar e terá um efeito colossal sobre toda a família. Se esses sentimentos forem internalizados, poderão levar à culpa, à ansiedade e à impotência. Por outro lado, se for criada uma espécie de fórum no lar para que se possam expressar os sentimentos sem medo de censura ou rejeição, essa prática pode resultar em relacionamentos novos e criativos e em soluções mais positivas para todos. O desenvolvimento de um relacionamento familiar bem integrado e funcional não é responsabilidade exclusiva de uma só pessoa, e sim de todos os membros da família. A maturidade e a independência para cada pessoa na família ocorrerá somente se a cada uma for permitida a busca e descoberta de seu eu, ao mesmo tempo em que lhes são assegurados amor e apoio constantes por parte de toda família, independente de onde essa busca possa levar. A família deve lutar para criar o tipo de atmosfera em que os únicos obstáculos ao crescimento são impostos e onde a alegria ou a dor, o sucesso ou o fracasso, a esperança ou o desespero resultantes possam ser partilhados com igual aceitação. Lamentar-se temporariamente por alguma coisa valiosa que é perdida é uma reação humana normal. Lamentar-se externamente por algo que não pode ser recuperado é um distúrbio emocional e pode evitar que a família vivencie as muitas gratificações que viver o “agora” pode oferecer. Para juntos viverem com paz, alegria e amor, cada membro da família necessitará de um sentimento mútuo de respeito e consideração. Esse reconhecimento pelos outros exigirá algumas limitações, disciplina, o dar e receber, para o benefício de todos. As 42 recompensas são uma sensação de segurança, de apoio do grupo e um repertório de alternativa de comportamento mais vasto. A aceitação dos outros membros da família só é alcançada quando se lhes permite a dignidade de forças e limitações pessoais, sempre lembrando que os seus potenciais são infinitos, não para que se tornem o que gostaríamos que fossem, mas para que se tornem o que são. (BUSCÁGLIA, 1993, P.139-140). Ao conferirmos a envergadura do núcleo familiar sob a ótica das terapias essenciais, percebemos as potencialidades da família, bem como das crianças com deficiência que em suas subjetividades, na verdade, desejam realizar uma trajetória de vida histórica para a sociedade, demonstrando que a deficiência existe, porém a essência humana subestima qualquer superficialidade em torno das limitações. 3.1. O BRINCAR NA TERAPIA COM AS CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA Quando falamos em família como principal terapeuta, é válido considerarmos que o ato de brincar deste núcleo para com a criança contribui para que a mesma se constitua como pessoa, além de possibilitar a relação mãe-criança na questão da inscrição do desejo e do olhar da família para com a criança com deficiência. Nestas perspectivas, priorizamos um atendimento clínico terapêutico que em primazia considere a reconstituição do vínculo familiar fragmentado na descoberta do diagnóstico do filho. Ao brincar, percebemos que a criança poderia representar simbolicamente suas ansiedades e fantasias, uma vez que não se pode exigir que uma criança pequena, por exemplo, faça associações livres. Winnicott (1975) refere-se que o brincar é universal e facilita o crescimento, portanto, a saúde. O ato também conduz a relacionamentos grupais, pois é uma forma de comunicação consigo mesmo e com os outros; tem um lugar e um tempo muito especiais, não sendo algo só “de dentro”, subjetivo, interno, ou só “de fora”, objetivo externo, mas se constituindo justamente num espaço potencial entre o eu e o não eu, entre os mundos internos e externos, que vão se formando na medida em que o brincar se desenvolve de forma criativa e original. Podemos afirmar que a ansiedade está intrínseca ao processo de desenvolvimento da criança, em especial àquelas com deficiência. Sendo assim, compreendemos que crescer constitui a aprendizagem diante das frustrações, em especial com o risco de se expor e não ser aceito. Diante de uma dinâmica saudável entre a família e a criança, a mesma perderá a imposição inicial e passa a assumir seu protagonismo na história. Desta forma, salientamos que o brincar tem função essencial e insubstituível no processo vital ao referir-se do encontro consigo mesmo e com o outro. Enfim, percebemos que o orgânico e o psíquico do ser humano estão entrelaçados. Quando estas estruturas apresentam características saudáveis, a criança com deficiência tem o desempenho efetivo, pois suas potencialidades estão sendo trabalhadas, todavia, em conjunto com a família, sua principal terapeuta. 4. PANORAMAS DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: PARADIGMAS EM TRANSIÇÃO Ao estudarmos a abrangência da educação desde os primórdios até a idade contemporânea é possível estabelecer uma relação entre esta e a vida social. Por exemplo, sabemos que os índios têm uma concepção que difere da idealização sobre a educação que os brancos detêm, principalmente pelo fato de relacionar as formas de convívio social, quando os índios ensinam seus filhos a trabalhar no campo, ou ainda, ensinam-lhes as mais variadas táticas práticas para sua sobrevivência, representando um método não formal da educação. A educação pode ser consolidada por meio de transferência do saber de uma geração à outra, já que aqui ela toma conhecimento de que o homem deve proceder a seu 43 trabalho de acordo com suas necessidades. Estas análises estão intrínsecas à cultura de cada grupo social, e torna-se complexo definir um paradigma de educação adequado, já que cada um traduz em sua consciência a definição deste termo tão amplo e vital para o ser humano. A educação, teoricamente tende a ser comum, ou seja, deveria ser estendida a todos os grupos sociais, e caracterizada como um direito, um trabalho, um bem, ou até mesmo como vida a cada sujeito em sua peculiaridade. Em uma obra simples e repleta de conteúdos relevantes sobre o tema, encontra-se a seguinte afirmação: O homem que transforma, com o trabalho e a consciência, partes da natureza em invenções de sua cultura, aprendeu com o tempo a transformar partes das trocas feitas no interior desta cultura em situações sociais de aprender-ensinar-e-aprender em educação. Na espécie humana, a educação não continua apenas o trabalho da vida. Ela se instala dentro de um domínio propriamente humano de trocas: de símbolos, de intenções, de padrões de cultura e de relações de poder. Mas o seu modo, ela continua no homem o trabalho da natureza de fazê-lo evoluir, de torná-lo mais humano. É esta a ideia que Werner Jaeger tem na cabeça quando, num estudo sobre a educação do homem grego, procura explicar o que ela é afinal: A natureza do homem, na sua dupla estrutura corpórea e espiritual, cria condições especiais para a manutenção e transmissão da sua forma particular e exige organizações físicas e espirituais, ao conjunto das quais damos o nome de educação. Na educação, como o homem a pratica, atua a mesma força vital, criadora e plástica, que espontaneamente impele todas as espécies vivas à conservação e à propagação de seu tipo. É nela, porém, que essa força atinge o seu mais alto grau de intensidade, através do esforço consciente do conhecimento e da vontade dirigido para consecução de um fim. (BRANDÃO, 1981, P. 14-15). Nestas perspectivas, cabe salientar alguns estudos realizados por antropólogos que pesquisavam algumas culturas primitivas de sociedades tribais, não utilizando o termo educação para explicar as relações cotidianas. Eles faziam uso de etnografias (descrição em forma de livro ou relatório a partir da coleta de dados em pesquisa de campo da cultura/modo de vida de um povo/grupo social). Com a aprendizagem se estabelece um conceito de que por meio da comunicação social, todos precisam que alguém diga o que foi feito para que o outro aprenda, enquanto no aprendizado, o comportamento é transmitido por meio de relações intersubjetivas. Émile Durkheim (apud BRANDÃO, 1981) um dos principais sociólogos da educação, explica as situações de aprendizagem dos grupos da seguinte maneira: Sob regime tribal, a característica essencial da educação reside no fato de ser difusa e administrada por todos os elementos do clã. Não há mestres determinados nem inspetores especiais para a formação da juventude: esses papéis são desempenhados por todos os anciãos e pelo conjunto das gerações anteriores. (BRANDÃO, 1981, p.18-19). Diante deste cenário, é relevante relacionar tais tipos de práticas educacionais com a evolução da educação no Brasil. Segundo Romanelli (2001), até o início do século XX, a educação no país esteve abandonada, e ao verificarmos esta realidade nos deparamos atualmente com as sequelas de uma economia pautada na mão de obra escrava e na desigualdade de propriedades: A economia colonial brasileira fundada na grande propriedade e não na mão-de-obra escrava teve implicações de ordem social e política bastante profundas. Ela favorece o aparecimento da unidade básica do sistema de produção, de vida social e do sistema de poder representado pela família patriarcal (ROMANELLI, 2001:33). 44 Mas afinal, qual a definição para educação? Como o Brasil tem experimentado esta prática desde então? As respostas para tais questionamentos não são de fáceis respostas, até porque nosso país apresenta resquícios negativos desde a sua “descoberta”. Mesmo em sociedades primitivas, foi possível constatar em algumas delas a relação de poder existente entre os grupos sociais. Pois, quando o trabalho origina fontes produtoras, e dessas fontes advém a ordem, nota-se o início de hierarquias sociais. Experimenta-se aqui uma desigualdade da forma do “saber” ser transportado de uns para outros, e o que até então era um bem comum da tribo, passa a ser dividido, e passa a contribuir no parâmetro político de evidenciar a diferença. O reforço destas disparidades desencadeia uma análise profunda sobre o nascimento da educação no Brasil, uma vez que as oligarquias do período colonial e monárquico fortificaram seus fundamentos por meio de princípios do saber, controlando esta fonte, que de certa forma, caracterizou um modelo de importação de ideologias, principalmente às que se referem à Europa. Desta forma, o Brasil passou por uma senda complexa desde o seu surgir, pois a educação sempre esteve voltada à classe dominante e, consequentemente, à uma elite exploradora que estratificou a sociedade e voltou-se para a dominação social. Outro fator que nos remete à similaridade do que ocorreu nas sociedades tribais é com relação à concepção da dominação cultural, que concebia ideologias de que a educação (ensino) era apenas para alguns, enquanto os demais não tinham necessidade de aprender. Nas palavras de Romanelli, (1991, p. 33) “(...) foi à família patriarcal que favoreceu, pela natural receptividade, a importação de formas de pensamento e ideias dominantes na cultura medieval europeia, feita através da obra dos Jesuítas”. Façamos uma reflexão em torno dos estigmas que alguns brasileiros carregam consigo em torno da marginalização. Já que existem complexidades inerentes às teorias da educação, posteriormente, existe também um transcendente índice de analfabetismo funcional, que colabora para que se intensifique a marginalidade desses indivíduos analfabetos. A educação deveria estabelecer laços estreitos de relações sociais, com a finalidade de se opor a esta triste realidade que o Brasil apresenta na sociedade contemporânea. Saviani (2003) evidencia claramente a vinculação existente entre ela e a sociedade: A sociedade é concebida como essencialmente harmoniosa, tendendo a integração de seus membros. A marginalidade é, pois, um fenômeno acidental que afeta individualmente um número maior ou menor de seus membros, o que, no entanto, constitui um desvio, uma distorção que não apenas pode como deve ser corrigida. A sociedade como sendo essencialmente marcada pela divisão entre grupos ou classes antagônicas que se relacionam à base da força, a qual se manifesta fundamentalmente nas condições de produção da vida material. Nesse quadro a marginalidade é entendida como um fenômeno inerente à própria estrutura da sociedade. (SAVIANI, 2003, p.04). Dentre as perspectivas da educação, vivenciamos atualmente um modelo econômico sustentado pelo capitalismo e movimentado por um conjunto de idéias denominado neoliberalismo. Este conjunto ideológico caracteriza princípios que defendem a desigualdade, além de enfatizar que as desigualdades são subsídios para o crescimento e fortalecimento dos indivíduos. Para os adeptos ao neoliberalismo, o interessante é o Estado comprar para as famílias o tipo de escola que ela deseja. 45 Neste panorama, observamos que a educação também foi mercantilizada, ou seja, virou mercadoria e está ligada à OMC (Organização Mundial do Comércio), juntamente com produtos como laranja, tomate, peixe, algodão, enfim, virou um produto a ser comprado, em sua maioria, pela classe dominante. Neste sistema econômico vigente, as políticas públicas são cada vez mais disseminadas e encobertas por um pressuposto neoliberal de que este modelo é o que mais compreende o ápice da perfeição. Gentilli (1995), em sua obra Pedagogia da Exclusão, em crítica ao neoliberalismo em educação, enfatiza esse aspecto mercantil que permeia a educação no Brasil: (...) a educação de qualidade como propriedade de (alguns) consumidores remete, pelo contrário, ao exercício de um direito específico (o direito de propriedade) que só pode efetivar-se em um cenário caracterizado pela existência de mecanismos “livres” de regulação mercantil. A propriedade educacional se adquire (se compra e se vende) no mercado dos bens educacionais e “serve”, enquanto propriedade “possuída”, para competir no mercado dos postos de trabalho (que definem a renda das pessoas também enquanto direito de propriedade). Se isso não fosse logicamente assim, neoconservadores e neoliberais se veriam obrigados a aceitar que a educação é algo mais que uma propriedade e, conseqüentemente, que poderiam – ou deveriam – ser aceitos mecanismos de intervenção externos ao próprio mercado para garantir o acesso à mesma. (GENTILLI, 1995, p.248). Cabe aqui uma análise interessante sobre a educação, realizada por um filósofo chamado Pierre Furter, que compõe a obra de Brandão (1981). Aqui ele enfatiza sobre a dialética da educação e o quanto este movimento é importante para a sociedade, já que todos têm a necessidade de evoluir no processo educacional: A Educação Permanente é uma concepção dialética da educação, como um duplo processo de aprofundamento tanto da experiência pessoal quanto da vida social, que se traduz pela participação efetiva, ativa e responsável de cada sujeito envolvido, qualquer que seja a etapa de existência que esteja vivendo (...). O primeiro imperativo que deve preencher a Educação Permanente é a necessidade que todos nós temos de sempre aperfeiçoar a nossa formação profissional. Num mundo como o nosso, em que progridem ciência e suas aplicações tecnológicas cada dia mais, não se pode admitir que o homem se satisfaça durante toda a vida com o que aprendeu durante uns poucos anos, numa época em que estava profundamente imaturo. Deve-se informar-se, documentarse, aperfeiçoar a sua destreza, de maneira a se tornar mestre em sua práxis. O domínio de uma profissão não exclui o seu aperfeiçoamento. Ao contrário, será mestre quem continuar aprendendo. (BRANDÃO, 1981, p. 80-82). Realizar uma reflexão sob o parâmetro da educação exige uma retrospectiva minuciosa em torno de sua origem e desenvolvimento. Cada um detém de um pressuposto que define este termo e agrega conceitos e valores morais e políticos a partir do que lhe é concedido como política de direito, em vista das políticas sociais. Afinal, esta deveria ser um bem comum e anular qualquer possibilidade de disparidade entre as classes sociais. Todavia, sabemos que as circunstâncias contemporâneas são outras, e percebemos que as políticas educacionais constituem privilégios advindos das propostas dos ajustes 46 neoliberais. A adoção dessas políticas expande uma crítica aos reflexos da polarização e exclusão social gerados. Nestas perspectivas, vale afirmar que, enquanto o Brasil, bem como outros países, em suas políticas públicas estiverem sendo orientados por este parâmetro único, denominado projeto neoliberal, obterão como consequência resultados cada vez mais catastróficos em torno da educação de qualidade, partindo do princípio de que a essência da educação norteia o ser humano em todo o seu projeto de vida. Esta abordagem sobre o paradigma da educação brasileira pode estabelecer relação direta com a Educação Especial, pois se abrangermos a ideia de que os sujeitos estigmatizados mediante as várias tendências educacionais, quanto mais àqueles que necessitam de cuidados e atenção especial. Portanto, apesar de sabermos da existência de instituições especializadas no atendimento à esta demanda, ainda assim vale salientar que tais sujeitos detêm o direito à educação, independente de suas limitações. Por isso, se faz necessário realizar uma análise sobre o panorama da Educação Especial no Brasil, que será abordado a seguir, a fim de orientar sobre a concepção ideológica do termo educação como direito igualitário, enfim, sem disparidades entre classe social, raça, sexo, gênero ou realidade intelectual ou física de cada sujeito. 5. PANORAMAS DA EDUCAÇÃO ESPECIAL NO BRASIL A partir do desenvolvimento da educação especial no Brasil, podemos compreender o quanto esta está intrínseca ao início da história da educação brasileira. É evidente o quanto a educação da pessoa com deficiência e o modo de organização e reprodução da sociedade estão relacionados. Vale ressaltar ainda, que há alguns séculos, a sociedad e estigmatizava pessoas que, por serem dotadas de condições atípicas, lhe causava a impressão de que elas não faziam parte do total da população. Foi a partir do século XIX que surgiram em nosso país, os primeiros resquícios de preocupação com as pessoas com deficiência. A partir de então, foram implantadas duas instituições públicas: uma em Salvador e outra no Rio de Janeiro. Já no início do século XX, por volta de 1926, surge também o Instituto Pestalozzi no Rio Grande do Sul. Contudo, em 1954, no estado do Rio de Janeiro, é fundada a primeira Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais – APAE-, com características voltadas para uma entidade particular assistencial. A criação desta Instituição foi influenciada pela National Association For Retarded Children – NARC, criada nos Estados Unidos. Esta surgiu em 1940 e foi a primeira associação organizada por pais de crianças com paralisia cerebral, e visava aliciar fundos para centros de tratamento, pesquisas e treinamento profissional. Porém, foi só em 1950, que os pais das crianças com deficiência intelectual organizaram-se em defesa dos interesses e necessidades de seus filhos. Este breve histórico da evolução das primeiras instituições de ensino para as pessoas com deficiência, possibilita-nos uma reflexão sobre a centralidade da sociedade e a relevância das políticas públicas em conjunto com a atuação da iniciativa privada, que também afeta a educação de forma global, bem como a educação especial. Se desde o período monárquico a elite era a única que detinha a educação como direito, torna-se eloquente deduzir que aqueles que detinham alguma patologia física, intelectual ou sensorial, distanciavam-se cada vez mais da sociedade. Januzzi (2004) deduz o seguinte sobre os “abrigados” das primeiras instituições até o término do império: (…) Eram provavelmente os mais lesados os que distinguiam, se distanciavam, os que incomodavam, ou pelo aspecto global, ou pelo comportamento altamente divergente. Os que não o eram assim a olho nu estariam incorporados às tarefas sociais simples, numa sociedade rural desescolarizada. (JANUZZI, 2004, p. 23) O fato de desfrutarmos contemporaneamente de um sistema capitalista permeado por uma ideologia neoliberal nos remete a concebermos que tal consequência deriva de um 47 conjunto de ideias denominado liberalismo, dotadas de convicções individualistas e da ausência da intervenção do Estado na economia. Em meio a isso, constatamos uma preocupação dos poderes públicos com a educação da pessoa com deficiência. Pela primeira vez, consolida-se na legislação brasileira tal intervenção, que está descrita pela Lei de Diretrizes e Bases de 1961, que cita a educação especial em suas normas. O discurso hierárquico na educação especial é subsidiado pelo pensamento liberal, cujos princípios fundamentam-se sobre a crença na evolução “natural” da sociedade e no desenvolvimento livre das potencialidades “naturais” do indivíduo. Podemos dizer que, atualmente, esse discurso encontra-se intrínseco à ideologia neoliberal, que indica a disposição independente da população na formação de associações privadas, de tal modo que estas, ao se responsabilizarem por serviços de atendimento de setores da sociedade através de ações (assistenciais, filantrópicas, comunitárias) de “parceria”, colaboram para a abdução gradativa do Estado da responsabilidade sobre várias questões (obrigações) sociais (daí a força das instituições privadas). Portanto, o panorama da educação especial está norteado por relevâncias políticas, econômicas, culturais e sociais, que incorporam a essência do ser humano, com o propósito de alcançar os objetivos traçados pela Declaração de Salamanca (1994), que obteve grande repercussão, em especial entre publicações de autores da sociedade civil e política. Assim, podemos salientar que equidade pode ser considerada como um esforço para alcançar o equilíbrio para a igualdade de oportunidades. Este termo, equidade, ao ser aplicado de forma concreta, vai banir uma discrepância ou discriminação, além de introduzir uma nova fase de relações, porém de forma mais igualitária, justamente onde havia relações de desigualdade. Mediante esta reflexão em torno da educação especial, faz-se necessário persuadir a sociedade do quanto a educação, nos aspecto global, é relevante para a construção da essência histórica do homem, mesmo em meio ao cenário neoliberal, já que neste contexto, a deficiência é compreendida como uma complexidade individual/familiar de não adaptação/adequação da pessoa com deficiência à sociedade, e seu atendimento é caracterizado como filantrópico-caritativo. Para que seja possível um fortalecimento dessa ideologia (envergadura da educação) em meio aos indivíduos, torna-se necessário estruturar as concepções e valores éticos e morais, que devem estar intrínsecos ao ambiente familiar, sendo este, pilar do desenvolvimento da criança em meio à modelação de seu caráter enquanto sujeito de sua história. 4.1. O papel da família na educação, sobretudo voltado para as crianças com deficiência. Quando citamos referências que envolvem o termo família, consideramos a sua relevância ao enfatizar que ela deve ser caracterizada como célula social que compreende intensa relevância nos vínculos afetivos, e em especial na formação do caráter. Um projeto educacional bem estruturado depende da participação familiar. Sabemos que a família é a instituição que mais oferece subsídios para a educação informal, todavia de grande envergadura para o modo formal de se educar. Ambas estão intrínsecas e a participação dos membros familiares para uma efetividade no aprendizado dos filhos permite uma extensão dos valores morais. O âmbito educacional pode gozar das melhores condições do espaço físico e contar com os profissionais mais bem qualificados do mercado, contudo, ela jamais conseguirá suprir a carência deixada por uma família ausente. Atualmente existem vários termos que designam o convívio familiar, além das novas constituições formadas sob diferentes olhares. O triângulo pai-mãe-filho sofreu várias tentativas de mutações que, por fim, se efetivaram. Tentaram-se fórmulas, sistemas filosóficos e regimes políticos. Em meio a estas diligências, os comunistas obtiveram algumas novidades neste aspecto.No nazismo, 48 ensaiou-se o plantel dos espécimes perfeitos! Todavia, nenhum modelo substitui o “velho lar”. Mediante estes critérios, Chalita (2000) enfatiza que: A educação por conta do Estado e de instituições não funciona. A falência do sistema família – lar, pai, mãe, filhos solitários, passou a ser comum a partir não somente da liberdade sexual, isto é, do sexo sem repressão, como também de separação pelos cônjuges, aceita ou tolerada, entre sexo e amor. (CHALITA, 2001, P. 18). Em numerosos casos da família moderna, identificamos a ausência do essencial: o amor. E na perda desta essência, a humanidade aderiu para si um grande mal, sendo impedida de desfrutar da felicidade. Atualmente, as pessoas deixam de perceber as simplicidades permeadas no ser humano e no que está ao seu redor devido as correrias do trabalho, as preocupações com negócios, investimentos, ou até mesmo falta de zelo pelo que deveria ser construído dia-a-dia pelos membros da família. (…) A construção de uma nova sociedade passa pela construção de uma nova família. Se o Estado não consegue organizar melhor suas instituições, se a educação continua na marginalidade dos projetos políticos, a única alternativa é a família. A família tem a responsabilidade de formar o caráter, de educar para os desafios da vida, de perpetuar valores éticos e morais. Os filhos se espelhando nos pais e os pais desenvolvendo a cumplicidade com os filhos. (CHALITA, 2001, p. 20) Torna-se relevante enfatizarmos que a família é uma instituição em que não devem existir máscaras ou disfarces. Estes devem ser substituídos pelo diálogo e pela face transparente nos vínculos afetivos. Chalita (2001) dinamiza de forma simples o papel da família neste aspecto: A preparação para a vida, a formação de pessoa, a construção do ser são responsabilidades da família. É essa a célula-mãe da sociedade, em que os conflitos necessários não destroem o ambiente saudável. (CHALITA, 2001, p.21) Sabemos que a família detém uma tarefa um tanto complexa, contudo, mesmo em meio à desgastante convivência diária, é possível vivenciar momentos inesquecíveis, desde que haja criatividade. Tal convivência pode até ser penosa, no entanto, é necessário o amor. Este cuidado permite considerarmos a envergadura da família para a Educação. JeanJacques Rousseau, filósofo, sociólogo e pedagogo francês (1712-1778), sustentavam a ideia de que o homem nasce bom, a sociedade o corrompe. Para ele o homem bom é aquele que se encontra no estágio primitivo, que não foi contaminado pela “civilização”. Então, a partir desta afirmativa, ousamos refletir: Será que a família corrompeu-se graças à própria evolução da humanidade?(ROUSSEAU apud BRANDÃO, 1981). Devido à abrangência dos diversos arranjos familiares, cabe a nós um olhar paradoxal sobre estas diversidades, realizando uma breve reflexão em torno das definições que caracterizam o convívio familiar. A Constituição Federal de 1988 define, no artigo 226, parágrafo 4º que “entende-se como entidade familiar a comunidade formada por qualquer um dos pais e seus descendentes”. Também o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), composta pela Lei nº 9.069 de 1990, em seu art. 4º, nas disposições preliminares, elenca a família como o primeiro dos pilares sociais a ter responsabilidades e deveres junto à criança e ao adolescente. Ainda neste mesmo estatuto, em seu artigo 25, defini-se a família natural como “a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes”. (BRASIL, 2008, p.24) Para a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) de 2004, reconhece que “a família, independente de seu formato, é a mediadora das relações entre os sujeitos e a coletividade, além de geradora de modalidades comunitárias de vida”. Diante da 49 centralidade da família, a partir da implantação do Sistema único de Assistência Social, esta instituição assume cada vez mais a centralidade das estratégias de ação da Política de Assistência Social, da qual a matricialidade sócio-familiar é uma das diretrizes. (MDS, 2004, p.41) Mediante este cenário, a lei orgânica de assistência social - LOAS (1993) caracteriza a família como “conjunto de pessoas elencadas no artigo 16 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, desde que vivam sob o mesmo teto”. As várias definições e composições de família possibilitam uma reflexão em torno de suas designações. A definição legal não supre a necessidade de se compreender a complexidade e riqueza dos vínculos familiares e comunitários que podem ser mobilizados nas diversas frentes de defesa dos direitos de crianças e adolescentes. Para tal, torna-se necessária uma definição mais ampla de “família”, com base sócio-antropológica. A família pode ser pensada como um grupo de pessoas que são unidas por laços de consanguinidade, de aliança e de afinidade. Esses laços são constituídos por representações, práticas e relações que implicam obrigações mútuas. Por sua vez, estas obrigações são organizadas de acordo com a faixa etária, as relações de geração e de gênero, que definem o status da pessoa dentro do sistema de relações familiares. (BRASIL, 2006, p.27) Em meio a uma sociedade que permite submissão a critérios superficiais empregados pelo sistema econômico vigente, torna-se imprescindível refletirmos sobre o prestígio no que tange a valorização do essencial no âmbito familiar, independente de seus laços ou vínculos. O afeto da família demonstra que ninguém é impotente frente à criança com deficiência. Quando enfatizamos sobre estas no âmbito da educação especial, devemos considerar que conviver com as limitações é um tanto complexo, todavia, elas nos fazem refletir em torno das nossas raízes. O convívio familiar é decerto uma estrutura capaz de absorver o impacto emocional do cotidiano. Vale enaltecer que a deficiência intelectual, por exemplo, implica muitas vezes na ausência de linguagem e compreensão. Mediante estas perspectivas, qualquer trabalho de reabilitação e reinserção familiar consiste, de forma primordial, em revolver algum estereótipo de afetividade, com objetivo de encontrar alguém que possa apoderar-se da causa desta criança. A família que constrói seus pilares com o desejo de atingir o espectro da alma humana inicia sua formação por meio da educação não formal entre seus membros, sendo de fato, como diria o escritor francês Antoine de Saint-Exupéry (29 de junho de 1900, Lyon – 31 de julho de 1944, Mar Mediterrâneo), “eternamente responsável por aqueles que cativa”, em especial dos filhos. Como consequência, ela irá tecer fios de ouro na construção de seus ideais, a fim de afirmarem categoricamente que a educação inicia-se no lar, seja ela inerente às condições patológicas ou contrárias ao diagnóstico de uma deficiência ou síndrome. Enfim, é necessário paciência e compreensão para experienciarmos que, literalmente, o amor ainda cura. (EXUPÉRY, 2001, p. 74). 4.2. Aspecto da Inclusão Social Definir inclusão social na atual perspectiva do país é um tanto quanto complexo. Literalmente e tecnicamente, este termo é imposto à sociedade como forma de direito àqueles que vivem à margem do que é considerado ideal para o mínimo nas condições de boa qualidade de vida. Vida digna, sistema de garantia de direitos, enfim, o restabelecer de um vínculo o qual o direito foi violado. Segundo Romeu Kazumi Sassaki (1997): Conceitua-se a inclusão social como o processo pelo qual a sociedade se adapta para poder incluir, em seus sistemas sociais gerais pessoas com necessidades especiais e, simultaneamente, 50 estas se preparam para assumir seus papéis na sociedade. A inclusão social constitui, então, um processo bilateral no qual as pessoas, ainda excluídas, e a sociedade buscam, em parceria, equacionar problemas, decidir sobre soluções e efetivar a equiparação de oportunidades para todos. (SASSAKI, 1997, p. 31) Com estas perspectivas, cabe salientar que a inclusão é um fenômeno que vem inquietando a sociedade de forma geral. Este termo conota que o que deve ser transformado é a concepção pluralista e egoísta da sociedade, que insiste em manter-se imóvel frente a essa nova realidade. Não é ético e muito menos solidário culpar as pessoas com deficiência pela sua patologia, e muito menos segregá-la dos ambientes sociais. Análises confirmam que está inerente à nossa cultura um olhar pré-conceituoso sobre a deficiência em sua amplitude de definições e requisitos. Pelo contrário, os valores que vão sendo adquiridos durante o transcorrer de décadas, vão inserindo nas pessoas um sentimento de pena e compaixão pela pessoa com deficiência, criando um mecanismo hierárquico de benevolência. É relevante enfatizar neste artigo que as pessoas com deficiência são detentoras de respeito, e acima de tudo, são sujeitos de direito, assim como qualquer outra pessoa, independente de sua patologia, raça, religião, opção sexual, etc. O termo inclusão é bastante abrangente e pode ser dividido em vários segmentos, sendo eles: culturais, religiosos, esportivos e principalmente educacionais. No movimento de inclusão, espera-se a luta-se por uma sociedade que, tendo entendido o direito das pessoas diferentes e o valor da diversidade, se modifique para aceitá-los junto à população geral. Esta aceitação exige de cada pessoa, uma amplitude de ideologias, valores, moral, pois vai determinar fatores imprescindíveis para a efetividade deste movimento inclusivo tão sonhado por todos. Mantoan (1997) afirma o seguinte: A inclusão questiona não somente as políticas e a organização da educação especial e regular. A noção de inclusão institui a inserção de uma forma mais radical, completa e sistemática. O vocábulo integração é abandonado, uma vez que o objetivo é incluir um aluno ou um grupo de alunos que já foram anteriormente excluídos; a meta primordial da inclusão é a de não deixar ninguém no exterior do ensino regular, desde o começo. As escolas inclusivas propõem um modo de se constituir o sistema educacional que considerava as necessidades de todos os alunos e que seja estruturado em virtude dessas necessidades. A inclusão causa uma mudança de perspectiva educacional, pois não se limita a ajudar somente os alunos que apresentam dificuldades na escola, mas apoia a todos: professores, alunos, pessoal administrativo, para que obtenham sucesso na corrente educativa geral. Portanto, cabe definir que a inclusão é um processo ocorrente na sociedade, onde esta se adapta para incluir, convicta em seus sistemas sociais gerais, pessoas com necessidades especiais, e, consequentemente, ocorrem transformações nestas também, desde que haja reciprocidade, pois se prepararam para assumir seu lugar na sociedade. (MANTOAN, 1997, p. 45) Portanto, é necessária uma reestruturação quanto às ideologias que os indivíduos detêm sobre integração e inclusão, pois ambos os conceitos parecem ser sinônimos, no entanto, se fundamentam de formas divergentes e efetivam realidades opostas no cenário social e educacional, já que não basta integrar, é necessário incluir e contribuir para que a sociedade tenha seu diferencial neste aspecto tão relevante para a nação brasileira. 51 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O país vivencia uma rica discussão sobre políticas públicas no que se refere à inclusão social das pessoas com deficiência. A realidade social impulsiona e questiona os educadores sociais, uma vez que esta é representada por uma dialética e se modifica constantemente. E em época contemporânea, podemos afirmar que as políticas públicas existem (ou deveriam existir) para responder às múltiplas expressões da questão social. Compreendemos que a política é uma ciência que deve buscar a aquisição da garantia de direitos e governar uma sociedade em Estado. Vale enaltecer que o papel do Estado é fundamental para o sistema de garantia de direitos dos sujeitos sociais, pois deve promover a cidadania e a igualdade por meio da inclusão em programas/projetos sociais, além da redistribuição dos recursos do poder público, bem como a redução da desigualdade. Frente a este fenômeno social, as políticas públicas devem intervir de forma positiva, a fim de inibir os estigmas sociais. Ao defendermos a política social, consideramos que ela tem como objetivo reduzir e/ou acabar com as desigualdades sociais, a fim de proporcionar a autopromoção. Dentre este cenário, ressaltamos que as políticas públicas sociais devem assim ser caracterizadas desde que ofereçam embasamento para que os cidadãos alcancem o seu protagonismo na história e não contribuir para que este atue de forma imediatista. Observamos no atual modelo econômico um processo sutil de extermínio das políticas públicas, pois os principais traços da política social caracterizam que não há dissociação da infraestrutura econômica, além de considerarmos que toda política social significa, ainda, compromisso econômico, pois as mudanças neste processo concentram renda e acirram desigualdades. Dentre estes traços, o que nos remete a uma reflexão da temática em estudo, é a relevância das políticas assistenciais como direito de cidadania de grupos específicos que não se auto sustentam. Infelizmente, enfrentamos um processo socioeconômico que permite reafirmarmos que a política social pode ser caracterizada e compreendida como uma arena, permeada em meio aos confrontos de interesses. Pedro Demo (1988, p.6), em sua obra Participação é Conquista, enfatiza que “(...) não se considera social aquela política que não chega a tocar o espectro das desigualdades sociais, reduzindo-as”, pois a política social participativa busca respostas às complexidades das condições subjetivas, no sentido da relevância da organização política, intrínseca às estruturas oferecidas, ou seja, sem secundarizar a questão da base objetiva material. Nestas perspectivas, enfatizamos que as políticas públicas compreendem um movimento social complexo e o transcorrer destas para uma sociedade ocupa espaço oculto e nada tangível para os cidadãos, quanto mais às pessoas com deficiência. A reflexão em torno da segregação até as condições contemporâneas que nos remete à inclusão social estabelece uma relação de simbiose com as políticas públicas, em especial quando nos referimos à uma parcela da sociedade que se apresenta em diversos diagnósticos patológicos. Atualmente, a sociedade tem vivenciado grandes metamorfoses sociais. A educação virou mercadoria e as questões sociais vêm multifacetar às visões peculiares, em especial, às atribuições voltadas para a Educação Especial. Fala-se em inclusão social, inclusão escolar, mas quais são as posturas profissionais mediante este cenário? Sugestões políticas e de ações surgem diariamente, já que o país vivencia e participa de um modelo econômico caracterizado por um neoliberalismo acarretado de interesses superficiais que aumentam de forma intensa as desigualdades e muitas vezes, com o anseio de proporcionar melhores condições às pessoas com deficiência, ocasiona participações restritas dos mesmos, deixando-os alheios à sociedade. 52 Nesta contemporaneidade, os valores, princípios, a ética e o respeito têm sido causas de ações contrárias à essência humana, e infelizmente, muita profissionais têm apresentado uma deficiência que fere profundamente a humanidade, atinge mais fundo do que uma síndrome, uma deficiência sensorial, múltipla ou intelectual. Vai além das capacidades fundamentais ou de uma sequela patológica. Podemos identificá-la como “deficiência moral”. Esta vem ocasionando as maiores vítimas neste contexto social, pois transforma seres humanos em máquinas capazes de desprezar, excluir, humilhar. Caracterizam estes “filhos do silêncio” como incapazes, deixando de acreditar em suas potencialidades. Enfim, e nós educadores sociais, o que temos feito para quebrar estas barreiras e de fato contribuir socialmente para a quebra de ideologias e preconceitos? Ainda a tempo de rompermos os obstáculos e criarmos estratégias de trabalho que viabilizem a educação da pessoa com deficiência, tornando-a protagonista de sua história neste palco da vida caracterizado por exclusões e ignorâncias que permeiam a mentalidade humana. Façamos então a nossa intervenção, de forma interdisciplinar, visando o bem estar e a qualidade de vida destas pessoas especiais, não pelas limitações, mas pelas potencialidades e principalmente pela essência de cada uma delas. Afinal, somente com um movimento recíproco, poderemos perceber que a inclusão é um assopro para a vida e para as crianças com deficiência uma oportunidade para ir além. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Educação? São Paulo: Editora Brasiliense, 1986. BRANDÃO, Carlos Rodrigues IN: Marcelino (org). Interação às Ciências Sociais. Campinas: Papirus, 2001. BRASIL. ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 9.069 de 1990, São Paulo: Editora Paulus, 2008. BRASIL. PNAS – Plano Nacional de Assistência Social – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Brasília: Secretaria Nacional de Assistência Social, 2004. BUSCÁGLIA, Léo. Os deficientes e seus pais Rio de Janeiro: Record, 1993. CHALITA, Gabriel. Educação, a solução está no afeto. São Paulo: Editora Gente, 2001. DEMO, Pedro. Participação é Conquista. São Paulo: Vozes, 1988. GENTILLI, Pablo. Pedagogia da Exclusão, crítica ao neoliberalismo em educação. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1995. GLAT, Rosana. Questões atuais em educação especial: A integração social dos portadores de deficiências: uma reflexão. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995. JANUZZI, Gilberto de Martino. A educação do deficiente no Brasil, dos primórdios ao início do século XXI. São Paulo: Editora: Autores Associados, 2004. BRASIL, Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS. Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993. MANTOAN, M.T.E. (Org). A integração das pessoas com deficiência: contribuições para uma reflexão sobre o tema. São Paulo: Ed. Memnon, 1997. ONU/UNESCO. Declaração de Salamanca sobre os princípios, política e prática em educação especial. Espanha: UNESCO/MEC, 1994 MARTINELLI, M.L; RODRIGUES, M.L; MUCHAIL, S.T. (1995). O uno e o múltiplo naas relações entre as áreas do saber. São Paulo: Ed: Cortez RODRIGUES, David. Dez ideias (mal) feitas sobre educação inclusiva. In: inclusão e Educação: doze olhares sobre a educação inclusiva. David Rodrigues (org). – São Paulo: Summus, 2003. 53 ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil. 13.ª edição Petrópolis: Vozes, 1991. SASSAKI, Romeu K. Inclusão: Construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: WVA, 1997. SAVIANI, D. A filosofia da educação e o problema da inovação em educação. In: GARCIA, W. E. (org.), Inovação educacional no Brasil. São Paulo, Cortez. Ed: Autores Associados, 1990. WINNICOTT, D.W. Tudo começa em casa. São Paulo: Editora: Revinter, 2005. 54 FORMAÇÃO DE ALUNOS PESQUISADORES PARA ATUAR NO PROJETO LER E ESCREVER Ligia de Carvalho Abões Vercelli Doutora em Educação Universidade Nove de Julho – UNINOVE e-mail: [email protected] Tel: (11) 3758-5824 ou (11) 99822-8880 Rua David Bem Gurion, 270 casa 11 Jardim Monte Kemel – SP Cep: 05634000 Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar como a Universidade Nove de Julho – Uninove – por meio da educação não formal desenvolve o trabalho de formação de alunos pesquisadores que irão atuar como segundo professor nas séries iniciais da rede estadual de educação por meio do Projeto Ler e Escrever desenvolvido pela universidade e em parceria com a Secretaria Estadual de Educação. O Programa Ler e Escrever constitui-se como uma política pública para o Ciclo I do Ensino Fundamental à medida que visa a melhoria de ensino em todas as escolas da rede estadual. Para tal, utilizamos entrevista semiestruturada com seis alunos que frequentam o curso de Pedagogia e que estão em formação há mais de seis meses. Os resultados obtidos apontam que a formação recebida nos encontros colabora sensivelmente para atuação prática. Além disso, os alunos pesquisadores relatam que, por meio de suas vivências é possível apreender de maneira clara e objetiva as etapas do desenvolvimento da escrita, fato este de fundamental importância para dar continuidade ao trabalho de alfabetização. Também mencionam que os encontros de formação são momentos onde as dúvidas e as inquietações do dia a dia podem ser discutidas de maneira crítica levando-os a refletir sobre a realidade da escola pública atual. Palavras-chave: formação de professores – alunos pesquisadores – projeto Ler e Escrever – universidade - alfabetização ABSTRACT: This article aims to present how the University Nove de Julho-Uninovethrough non-formal education develops job training students researchers who will act as second professor in the initial series of statewide education network through the reading and writing Project developed by the University in partnership with the State Secretariat of education. The program to read and Write is a public policy for the first Cycle of elementary school as it aims to improve teaching in all State schools. To this end, we use semi-structured interview with six students who attend the course and who are in training for more than six months. The results obtained indicate that the training received at meetings significantly towards practical action collaborates. In addition, students researchers report that, through their experiences is possible to apprehend clearly and objectively the developmental steps of writing, of fundamental importance to continuing the work of literacy. Also mention that the training encounters are moments where the doubts and worries of everyday life can be discussed critical manner causing them to reflect on the reality of current public school. Keywords: teacher education-students researchers – project read and write-Universityliteracy INTRODUÇÃO 55 A formação de professores é tema de muitas pesquisas e não se esgota devido à complexidade que ele exige. Discutir a formação de alfabetizadores no momento atual é fundamental uma vez que observamos baixo rendimento apresentado pelos alunos das séries iniciais nas avaliações externas realizadas anualmente. Dessa forma, tornam-se urgentes políticas e ações que possam reverter e/ou minimizar o quadro atual. O Programa Ler e Escrever estabelecido pela Resolução/SEE 86/2007 em parceria com diferentes universidades configura-se em uma ação que poderá minimizar os problemas existentes desde que a formação que os alunos pesquisadores recebem na universidade vá ao encontro das necessidades das crianças matriculadas nas classes de alfabetização e das expectativas dos alunos pesquisadores. Nesse sentido, esse trabalho tem por objetivo apresentar os resultados obtidos por meio de entrevistas semiestruturadas realizadas com 6 alunos pesquisadores que participam do Projeto Ler e Escrever e, consequentemente, participam dos encontros de formação semanais (individuais) e mensais (em grupo). São quatro aspectos relacionados ao Projeto Ler e Escrever desenvolvido pelas universidades em parceria com a SEE e pouco abordados por outros pesquisadores que nos inquietam, tais como: ele é uma ação que visa o Compromisso Social, que benefícios proporcionam na formação acadêmica e pessoal dos alunos pesquisadores e qual a relação existente entre educação formal e educação não formal. Diante dessas inquietações, procuramos responder as seguintes perguntas: 1O projeto Ler e Escrever desenvolvido pela Uninove pode ser considerado uma ação de Compromisso Social? 2Esse projeto colabora para a formação acadêmica dos alunos participantes? 3A formação recebida viabiliza uma ação eficaz em sala de aula? 4Existe relação entre educação formal e não formal? O Programa Ler e Escrever constitui-se como uma política pública para o Ciclo I do Ensino Fundamental à medida que visa à melhoria de ensino em todas as escolas da rede estadual e municipal. Trata-se de um Programa de formação que também inclui outras ações tais como: acompanhamento, elaboração e distribuição de materiais pedagógicos. 1- Educação Não Formal Sabemos que a educação pode ocorrer em diferentes espaços e que a aprendizagem se dá nas relações que os indivíduos estabelecem com o meio social no qual está inserido. Nesse sentido, além da escola, a educação acontece nas relações familiares mediadas por conversas, jogos, brincadeiras, programas de televisão e em diferentes espaços públicos como bibliotecas, museus, parques, shoppings centers, cinema, teatro, rua, entre outros. Dessa forma, os educadores não são apenas os professores das escolas formais, mas também os familiares, os amigos, os atores dos filmes e das novelas, os colegas de trabalho, os vizinhos e demais personagens. Portanto, qual a diferença entre educação formal e educação não formal? Afonso (1989, p. 78) distingue a educação formal da educação não formal da seguinte maneira: Por educação formal entende-se o tipo de educação organizada com uma determinada sequência e proporcionada pelas escolas. [...] a educação não formal embora obedeça também a uma estrutura e uma organização (distintas, porém, das escolas) e possa levar a uma certificação (mesmo que não seja essa a finalidade), diverge ainda da educação formal no que respeita à não fixação de tempos e locais e à flexibilidade na adaptação dos conteúdos de aprendizagem a cada grupo concreto. 56 Segundo Gohn (2006) a educação formal é aquela desenvolvida nas instituições escolares regulamentadas por leis e organizadas de acordo com diretrizes nacionais. Possuem conteúdos pré-estabelecidos ensinados por professores em ambientes que têm normas e padrões de comportamento. Objetiva a transmissão do conhecimento sistematizado e o desenvolvimento de habilidades e competências, requer local específico e tempo, além de exigir pessoas capacitadas e especializadas, requer organização curricular, disciplina e atividades sistematizadas. Como resultado espera-se que ocorra aprendizagem efetiva e que ofereça certificação e titulação para que os indivíduos possam continuar os estudos. Na educação formal as metodologias são estabelecidas a priori de acordo com os conteúdos determinados pelas leis educacionais. Ghanem e Trilla (2008, p. 33) define educação formal como o “sistema educacional” “altamente institucionalizado, cronologicamente graduado e hierarquicamente estruturado que vai dos primeiros anos da escola primária até os últimos da universidade”. Para Libâneo (2005, p. 88) “[...] Formal refere-se a tudo o que implica uma forma, isto é, algo inteligível, estruturado, o modo como algo se configura. Educação formal seria aquela estruturada, organizada, planejada intencionalmente, sistemática. Nesse sentido, a educação escolar convencional é tipicamente formal. [...]”. Porém, o autor salienta que pode existir educação formal em espaços não convencionais, desde que haja intencionalidade, sistematicidade, pois para ele onde há ensino, há educação formal. Cita como exemplo a educação de adultos, a educação sindical, a educação profissional ocorrida fora da instituição escolar, mas com atributos que caracterizam um trabalho didático-pedagógico. Vimos, portanto que a intencionalidade, as regras, o currículo organizado, o local determinado, o professor especializado formam a base da educação formal. Ela é estabelecida por regras legais que poderão ser substituídas segundo critérios dos órgãos educacionais competentes. A educação não formal, foco desta pesquisa, tem conquistado espaço de discussões cada vez mais importantes no cenário educacional. Trata-se de um campo em construção que cresceu, porém, timidamente, no início deste milênio e que ainda carece de mais pesquisas acadêmicas sobre o tema. Para termos uma ideia do surgimento da categoria educação não formal faremos um sucinto resgate histórico. Gohn (2008) esclarece que até os anos 1980 a educação não formal era pouco valorizada tanto pelas políticas públicas quanto pelos educadores. Ela era entendida como extensão da educação formal desenvolvida em múltiplos espaços existentes fora dos muros da escola. Ainda, segundo a autora, a educação não formal passou a ter destaque nos anos 1990 com as mudanças ocorridas na economia, na sociedade e no mundo do trabalho. Nessa época grande importância foi dada aos processos de aprendizagem ocorridos em grupos e aos valores culturais que articulam as ações dos indivíduos, além de as empresas exigirem aprendizagens adquiridas fora do âmbito escolar. Além das mudanças citadas acima, órgãos internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura (UNESCO) e alguns estudiosos também foram responsáveis pela proliferação da educação não formal. Em 1990, em conferência realizada na Tailândia, foram escritos dois documentos denominados “Declaração Mundial Sobre Educação Para Todos” e “Plano de Ação Para Satisfazer Necessidades Básicas de Aprendizagem” baseadas em dados de situações próprias dos países da América Latina e de contribuições oferecidas pelas ONGs no que se referia à educação. (GOHN, 2008) Por meio dos dados obtidos nesses documentos definiram-se as ferramentas essenciais para a aprendizagem e os conteúdos básicos fundamentais que, superavam os 57 conteúdos teóricos e práticos, e englobavam valores e atitudes para viver, sobreviver e desenvolver as capacidades humanas. Atualmente, muitos cursos de Pedagogia contemplam, na estrutura curricular, a disciplina educação não formal o que denota que essa modalidade de educação vem crescendo e ganhando adeptos. Esse fato ocorreu, pois a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) de 1996 no art. 1º definiu que a educação “abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. Assim, a escola deixa de ser o único espaço reconhecido de formação e de aprendizagem, outros núcleos não formais da sociedade civil e de entidades do Terceiro Setor ganham destaque no que se refere ao processo ensino/aprendizagem. Para Afonso (1989), compreender a educação não formal leva à necessidade de conhecer a comunidade em que se vai atuar, pois para que se possa valorizar a cultura das pessoas faz-se necessário reconhecer as necessidades e anseios do grupo. Dessa forma, favorecemos a participação, a solidariedade e a socialização dos educandos. Complementa ressaltando que o caráter voluntário da educação não formal surge como elemento mobilizador, apontando a disposição de participação existente em cada um. Para o autor, algumas características tornam-se necessárias nos espaços de educação não formal para que se atinjam os objetivos propostos. São elas: ter caráter voluntário, promover a socialização e a solidariedade, visar o desenvolvimento, preocupar-se com a mudança social, favorecer a participação, ter espaços pouco formalizados e pouco hierarquizados, proporcionar a investigação e projetos de desenvolvimento e ter formas de participação descentralizadas. (AFONSO, 1989, p. 90) Ghanem e Trilla (2008, p. 33) define educação não formal como: “[...] toda atividade organizada, sistemática, educativa, realizada fora do marco do sistema oficial, para facilitar determinados tipos de aprendizagem e subgrupos específicos da população, tanto adultos como infantis [...]”. Para esse autor, a educação não formal se utiliza de diferentes metodologias até mesmo aquelas em desuso na educação formal. Isso ocorre porque ela não tem que se submeter a regras impostas pelo sistema educacional como: currículo padronizado e imposto, normas legais vinculadas ao calendário escolar e à titulação dos professores, caráter não obrigatório que permite a utilização de métodos e recursos que estejam de acordo com a realidade em que se opera. Para Libâneo (2005, p. 89) a educação não formal engloba “aquelas atividades com maior caráter de intencionalidade, porém com baixo grau de estruturação e sistematização, implicando certamente relações pedagógicas, mas não formalizadas [...]” Cita como exemplo os movimentos sociais organizados no campo e na cidade, os trabalhos comunitários, atividades de animação cultural, os meios de comunicação social, os equipamentos urbanos culturais e de lazer tais como: museus, cinemas, praças, áreas de recreação, entre outros. Salienta que as atividades extracurriculares que promovem conhecimento proporcionado pela escola se encaixam na educação não formal e estão vinculadas à educação formal. Para Gohn (2006) a educação não formal pode ser desenvolvida no cotidiano nas relações sociais com os “outros”, pela experiência e em espaços de ação coletivos fora da escola, em locais informais onde há processos de interação e intencionalidade na ação, na participação, na aprendizagem e na transmissão e troca de saberes. A educação não formal abre possibilidades de conhecimento sobre o mundo que rodeia os indivíduos e suas relações sociais. Em obra recente, publicada em 2010 pela editora Cortez, a autora complementa o conceito de educação não formal e o apresenta como: 58 [...] um processo sociopolítico, cultural e pedagógico de formação para a cidadania, entendendo o político como a formação do indivíduo para interagir com o outro em sociedade. Ela designa um conjunto de práticas socioculturais de aprendizagem e produção de saberes, que envolve organizações/instituições, atividades, meios e formas variadas, assim como uma multiplicidade de programas e projetos sociais. (GOHN, 2010, p. 33) Gohn deixa claro que a educação não formal, de forma alguma, substitui ou compete com a educação formal. Pelo contrário, ela se complementa com a educação formal uma vez que tem a possibilidade de articular escola e comunidade com programações e atividades específicas. A educação formal e não formal, tem caráter intencional e objetivam promover o desenvolvimento e a socialização das pessoas. Portanto, são responsáveis em oferecer condições para que todos os indivíduos possam desenvolver as suas potencialidades e que sejam capazes de responder aos desafios colocados pela realidade. Vimos, portanto, que os autores citados definem educação não formal como intencional, onde a relação com o outro têm papel fundamental no processo de aprendizagem, as regras são estipuladas de acordo com o contexto e os conteúdos são ensinados respeitando os limites e as dificuldades dos envolvidos. Por meio dela, vivenciando os fatos que ocorrem ao seu redor, os discentes vão construindo a cidadania e seu processo educativo ocorre à medida que eles devem se adequar aos interesses e necessidades dos demais. Além disso, a educação não formal fortalece o exercício da cidadania, pois está pautada na igualdade, no respeito e na justiça social. Nesse aspecto, entendemos que os Projetos Sociais via educação não formal poderão cumprir um papel importante na melhoria da qualidade de ensino e na formação acadêmica desde que formulados segundo parâmetros democráticos e emancipatórios. Dessa forma, ao inserir a Universidade nos problemas comunitários possibilitamos o surgimento de novas aprendizagens e de novas pesquisas. Assim, a formação acadêmica será ancorada também em problemas concretos enfrentados no cotidiano e que fazem parte da realidade do Brasil. Isso favorece a articulação entre teoria e prática, binômio este fundamental na formação do aluno, além de possibilitar que os discentes exercitem a cidadania e que vão incorporando, nessa relação, as aprendizagens que resultaram dos interesses e necessidades de todos. A participação dos universitários nos Projetos Sociais deveria formar profissionais conscientes e mobilizar diferentes setores da sociedade em beneficio das pessoas, pois eles desenvolvem ações participativas e sentem-se estimulados a produzir projetos coletivos. Com isso, busca-se a melhoria das condições de vida dessas comunidades, além de favorecer a troca de conhecimentos com os indivíduos que se apropriam dos Projetos. Nesse sentido, por meio dos Projetos Sociais via educação não formal alguns objetivos definidos por Gohn (2010) poderão ser alcançados, a saber: Educação para cidadania que engloba: Educação para justiça social; Educação para direitos (humanos, sociais, políticos, culturais, etc.); Educação para liberdade; Educação para igualdade e diversidade cultural; Educação para democracia; Educação contra toda e qualquer forma de discriminação; Educação pelo exercício da cultura e para a manifestação das diferenças culturais. Entendemos que atuar em Projetos Sociais via educação não formal, possibilita que alunos compreendam a estrutura social, as desigualdades, as raízes da pobreza, e as diferenças culturais. Dessa forma, se conscientizam, aprendem a agir em grupo, reconstroem a concepção de mundo muitas vezes alienada pelo desconhecimento das 59 questões sociais, e passam a ter um sentimento solidário com uma determinada comunidade. Também capacita os discentes para o mercado de trabalho uma vez que adquirem conhecimento praticando, além de formá-los para a vida ajudando-os em uma leitura crítica sobre a realidade a sua volta. A educação não formal via projetos sociais desenvolvidos junto a comunidades carentes socioeconomicamente poderá possibilitar processos de inclusão social à medida que resgata a cultura dos participantes. Também reforça processos de aprendizagem, uma vez que os envolvidos realizam atividades que, muitas vezes, não foram discutidas no currículo da educação formal ou, se discutidas, foram mal apreendidas pelos educandos. Além disso, a comunidade reflete sobre o papel da universidade percebendo que sua responsabilidade não se esgota apenas ao proporcionar o ensino e a pesquisa aos alunos, mas que ela assume o compromisso social com ela [comunidade] por meio dos projetos e ações realizados a fim de minimizar os problemas enfrentados. No nosso entendimento, os projetos sociais das universidades devem se preocupar em formar cidadãos éticos, ativos, participativos e que se responsabilizem pelo outro. Portanto, eles devem ser emancipatórios, devem priorizar a mudança social pautando-se em valores que tragam reconhecimento ao ser humano que deles participam. A tabela abaixo permite uma melhor visualização da distinção entre educação formal e não formal sob a ótica de Gohn (2008). Quadro 2 – Diferença entre educação formal e educação não formal Questões Quem é o educador? Educação Formal O professor Educação não formal O “outro”- fruto da relação educando/educador Onde se educa? Nas instituições escolares Territórios fora da escola regulamentadas por lei Como se educa? Em ambientes com regras e Em ambientes interativos padrões de comportamento definidos Qual a finalidade? Ensino e aprendizagem de Capacita os indivíduos a se tornarem conteúdos sistemáticos cidadãos do mundo Quais são os atributos? Requer tempo, local específico Não é seriada, não determina idade e pessoas especializadas nem conteúdo Quais os resultados? Aprendizagem efetiva Desenvolve uma série de processos Tabela elaborada por Ligia de Carvalho Abões Vercelli com base no livro Educação não formal e cultura política (2008) de autoria da professora Dra. Maria da Glória Marcondes Gohn. 2- A UNIVERSIDADE NOVE DE JULHO - UNINOVE – COMO PARCEIRA NO PROGRAMA LER E ESCREVER Em 2007, várias universidades e entre elas, a Uninove se cadastraram para realizar parceria com a Secretaria do Estado da Educação de São Paulo no Programa Ler e Escrever. Para isso, a coordenadora responsável precisou elaborar um projeto de ação e enviar à FDE. Alunos que cursam do 2º ao 5º semestres dos cursos de Pedagogia e de Letras de todas as unidades da universidade, interessados no Programa e aprovados na prova escrita e entrevista de seleção, participam do Ler e Escrever. Atualmente 100 alunos do curso de Pedagogia da Uninove compõem o projeto. Segundo a coordenadora, a prova é classificatória e são chamados, em primeiro lugar, alunos que obtiveram melhores notas. Essa avaliação contém conteúdos específicos 60 1234- sobre alfabetização e é elaborada segundo os conceitos de Emília Ferreiro, Ana Teberosky e Delia Lerner, autoras referenciais sobre o assunto. Em seguida, os aprovados passam por uma entrevista para que a professora possa avaliar o real interesse dos alunos, pois os mesmos deverão cumprir 20 horas semanais nas escolas, participar de todas as reuniões predeterminadas, ler os textos exigidos e fazer os relatórios pedidos. Também se discute texto de Bernadete Gatti uma vez que ela é a autora de referência em formação de professores. Os aprovados iniciam o trabalho que é aceito como estágio obrigatório do curso. Os alunos pesquisadores podem escolher a escola mais próxima de sua residência para efetuar o estágio e, se necessário, solicitar remanejamento. O aluno deverá cumprir no mínimo um ano de estágio no projeto e caso haja interesse poderá continuar. Os alunos aprovados ao iniciar o estágio devem observar se o Programa está sendo cumprido conforme proposta da Secretaria Estadual de Educação (SEE), como o ensino ocorre e como a criança aprende. Para isso, eles devem fazer uma exploração didática pautado em quatro temas de observação estipulados pela FDE, a saber: Observar se ocorre leitura de diferentes gêneros literários por parte do professor. Observar se ocorre produção oral com destino à produção escrita por parte das crianças. Observar com qual frequência as crianças fazem atividades de cópia e ditado. Observar a rotina de leitura e escrita na sala de aula. Os alunos podem escolher um dos temas citados acima e terão de observar com detalhes como é desenvolvido anotando suas observações para discutir nas reuniões marcadas pela coordenadora do projeto. Essas reuniões ocorrem nas unidades em que a professora coordenadora leciona em pré-aula uma vez por semana e, mensalmente, na unidade Vila Maria com todos os alunos participantes. Dessa forma, eles se conhecem, trocam experiências, dúvidas, dividem angústias e alegrias. Todos devem relatar o que observaram. A professora esclarece as dúvidas, aponta como os alunos podem conduzir determinada criança, sugere leitura de livros e atividades específicos sobre alfabetização, além de discutir os textos previamente indicados articulados com a vivência em sala de aula. Quando completam um ano de participação no projeto, os alunos pesquisadores devem elaborar um relatório baseado nos documentos oficiais e em um roteiro oferecido pela coordenadora do projeto. Os alunos pesquisadores fazem os registros de investigação didática que são corrigidos pelo professor orientador do projeto. Os dados são compilados em relatório pedagógico e, periodicamente, encaminhados à FDE para análise. Todos os registros são lidos pela educadora Delia Lerner a qual fornece uma devolutiva à FDE e à instituição. Ao término do projeto de pesquisa, a escola deve receber uma cópia desta produção, o que será uma oportunidade para estudo e reflexão da pesquisa didática. A coordenadora compartilha das diretrizes propostas pelo Ler e Escrever, pois durante esses anos verificou, nos alunos universitários, amadurecimento, melhora na escrita, na leitura e no conhecimento sobre alfabetização. Para ela, trata-se de um projeto que associa ensino, pesquisa e extensão, eixos fundamentais de toda instituição de ensino superior, uma vez que os alunos têm de pesquisar sobre alfabetização, colocar em prática o que aprenderam e escrever relatórios que se transformam em artigos que são aceitos como Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC). A adesão por parte dos alunos pesquisadores ocorre porque eles têm muito interesse em conhecer a prática de uma sala de alfabetização, pois buscam avaliar se o projeto da forma como foi organizado realmente contribui para esse processo. Além disso, eles têm a oportunidade de acompanhar de perto as crianças que se encontram em níveis diferentes da evolução da escrita e da leitura e de verificar se as atividades propostas favorecem o desenvolvimento da linguagem escrita. 61 Os discentes também aderem ao Programa, pois podem colaborar com o professor regente utilizando, quando necessário, atividades extras para facilitar a aprendizagem de alunos que, porventura, encontram alguma dificuldade. No decorrer dos encontros, a coordenadora do projeto explica ao aluno pesquisador todo o material que as crianças utilizarão durante o ano letivo, tira as dúvidas encontradas pelos discentes e analisa junto com eles o porquê de cada proposta. Assim, para o aluno que cursa Pedagogia, a atuação no projeto vai além de seu trabalho na escola, inclui atividades acadêmicas extras que os levam a repensar seu papel como futuros professores alfabetizadores. 3- DADOS REFERENTES À FORMAÇÃO QUE OS ALUNOS PESQUISADORES RECEBEM NA UNINOVE Os alunos pesquisadores apontam a relevância da relação teoria e prática. Deixam claro que essa relação é fundamental para entenderem o cotidiano de uma sala de alfabetização. Elogiam o trabalho realizado pela coordenadora do projeto e ressaltam o quanto os encontros são válidos para a formação acadêmica. Alunos que tiveram a oportunidade de estagiar com alunos pesquisadores de outra universidade comparam a formação que recebem com as dos colegas que não têm encontros de formação. Esse fato é relevante uma vez que o Decreto 51.627 de 1 de março de 2007 em seu artigo 1º aponta: “Fica instituído o Programa "Bolsa Formação - Escola Pública e Universidade", destinado a alunos dos cursos de graduação de instituições de ensino superior que, sob supervisão de professores universitários, (grifo nosso) atuarão nas classes e no horário de aula da rede estadual de ensino ou em projetos de recuperação e apoio à aprendizagem. Observamos nos documentos que é responsabilidade da universidade dar formação às alunas pesquisadoras para que elas possam desenvolver projetos e atuar de forma responsável junto às crianças que se encontram em processo de alfabetização. Entender a lógica da construção da leitura e escrita por meio de sondagem é fundamental para atuar em salas de alfabetização. Nesses encontros, os alunos pesquisadores discutem textos de vários autores que dão suporte teórico ao processo de alfabetização, mas principalmente textos de Delia Lerner e Emília Ferreiro. Por que textos dessas duas autoras? Desde os anos 1990 a educação e, principalmente, a alfabetização está pautada no construtivismo, teoria que busca explicar as operações mentais que entram em ação no processo de aprendizagem. Esse termo foi cunhado a partir das ideias de Jean Piaget, quando, em sua teoria, explica como ocorre a construção do conhecimento. Emília Ferreiro, psicolinguista argentina, foi orientanda de Piaget em seu doutoramento, portanto, ancorada nos referenciais de seu orientador, estudou a psicogênese da língua escrita, porém o caráter de suas investigações sempre foi psicológico e não pedagógico. Ela objetiva explicar como a criança aprende a ler e a escrever e, em nenhum momento propõe um método de alfabetização, tarefa esta específica do educador. Ferreiro descobriu que a escrita ocorre por níveis e que cada criança elabora uma hipótese sobre ela. Delia Lerner, educadora argentina, também possui vasta experiência em alfabetização escrita e alfabetização matemática que modificaram a forma de a escola ensinar. Como Ferreiro, ela trouxe contribuições valiosas no que se refere à aprendizagem da leitura e da escrita, modelo que se contrapõe ao da escola tradicional. Suas ideias também estão pautadas no construtivismo. Quanto a essa teoria Becker (1994, p. 89) entende que é: 62 [...] a forma teórica ampla que reúna as várias tendências atuais do pensamento educacional. Tendências que têm em comum a insatisfação com um sistema educacional que teima (ideologia) em continuar essa forma particular de transmissão que é a Escola, que consiste em fazer repetir, recitar, aprender, ensinar o que já está pronto, em vez de fazer agir, operar, criar, construir a partir da realidade vivida por alunos e professores, isto é, pela sociedade - a próxima e, aos poucos, as distantes. A Educação deve ser um processo de construção de conhecimento ao qual acorrem, em condição de complementaridade, por um lado, os alunos e professores e, por outro, os problemas sociais atuais e o conhecimento já construído. Portanto, o conhecimento não é dado a priori, nada está pronto e acabado, o ser humano o constrói mediante interação com o meio físico e social. Nesse sentido, a escola tem papel fundamental, o de promover situações de aprendizagem onde a criança possa expressar aquilo que sabe para, a partir daí, construir novos conhecimentos, sempre mediado pelo professor. Os alunos pesquisadores também apontam que é por meio da experiência que os conceitos teóricos fazem sentido. Apontam que a postura da professora regente os leva a apreender atitudes e comportamentos que, para eles, devem ou não ser incorporados por uma profissional da educação. Nesse sentido, recorremos a Freire (2004, p. 97) quando aborda o comprometimento do professor. Diz ele: “[...] o espaço pedagógico é um texto para ser constantemente “lido”, interpretado, “escrito” e “reescrito”. Nesse sentido, quanto mais solidariedade exista entre o educador e os educandos no “trato” deste espaço, tanto mais possibilidades de aprendizagem democrática se abrem na escola”. Dessa forma, avaliamos a importância do papel da professora regente que, no nosso entendimento, é tão responsável pela formação dessas alunas quanto os coordenadores dos projetos nas universidades. É nessa relação direta vivenciando o cotidiano escolar que a aprendizagem dos alunos pesquisadores se efetiva, por isso, o comprometimento da professora regente deve ser pautado na ética e no respeito ao educando e aos demais profissionais da escola. Os alunos pesquisadores deixam claro que os encontram são um espaço de aprendizagem onde são discutidos os textos e sua relação com a prática. Entendemos que esse espaço, apesar de fazer parte da universidade, ter dia e horário estipulados e leituras prévias a serem realizadas pode ser considerado um espaço institucional não formal que articula a educação formal com a educação não formal. Por quê? É um espaço não formal institucional, pois tem um professor que orienta as atividades e que não necessariamente é professor de todos os alunos pesquisadores no cotidiano da universidade. Além disso, todas as aprendizagens adquiridas fora do contexto universitário, ou seja, nas salas de alfabetização são problematizadas e discutidas articulando com a teoria previamente dada, mas, principalmente, com todo o conteúdo já apreendido no decorrer do curso. Assim, como salienta Gohn (2008) a educação não formal só tem a acrescentar à educação formal e, ambas articuladas, promovem ao discente, futuro professor, uma aprendizagem significativa. Isso ocorre porque a vivência do cotidiano escolar leva esse futuro professor a repensar novas formas de atuação diante da realidade concreta na qual ele está inserido. Além disso, presenciamos como o exercício da cidadania está presente. Os alunos, cada qual de acordo com sua realidade, propuseram, quando possível, planos de ação para dar conta de acompanhar a criança que não havia atingido a hipótese de escrita dos demais. 63 Eles apontam que se sentiram duplamente gratificados, ora recebendo apoio da professora regente e da coordenadora do projeto, ora verificando o avanço das crianças e a felicidade que estas sentiam quando aprendiam a ler e a escrever. Os alunos pesquisadores também mencionam a qualidade da formação e o respeito que a coordenadora do projeto dispensa aos discentes enquanto formadora de professores. Eles se reportam ao comportamento ético da professora que, por meio da postura profissional, as faz refletir como ocorre o complexo processo de alfabetização. Todos os alunos pesquisadores ressaltam que esse trabalho dá muita satisfação e apontam que a maior delas é ver os alunos ultrapassando os níveis da escrita. Mas afinal, que níveis são esses? Segundo Ferreiro (2008) são quatro os níveis da evolução da escrita, a saber: nível pré-silábico, nível silábico, nível silábico-alfabético e nível alfabético. O primeiro se caracteriza por uma busca de diferenciação entre as escritas produzidas, sem uma preocupação com as propriedades sonoras da escrita. O segundo se caracteriza pela correspondência entre a representação escrita das palavras e suas propriedades sonoras. No nível silábico-alfabético a criança percebe que as partes sonoras semelhantes entre as palavras se exprimem por letras semelhantes e, o último nível se caracteriza pela correspondência entre fonemas e grafias. Todos os alunos pesquisadores de uma forma ou de outra relatam que se surpreendem com os resultados obtidos pelas crianças quanto à aquisição da leitura e da escrita, porém apontam a insatisfação de ver que a professora regente dá maior atenção aos alunos que conseguem aprender rapidamente e que os demais, ou seja, aqueles que necessitam de maior atenção são deixados de “lado”. Infelizmente ainda vislumbramos uma escola excludente, na qual, o aluno ideal é o valorizado enquanto o aluno real fica à mercê de alguém que tem consciência que o potencial será desenvolvido se acreditarmos que ela é capaz. Quanto a isso, salientamos que para uma criança ser responsável a ponto de se comprometer com atividades sociais e culturais é necessário que tenha por perto um adulto que aceite e valorize suas produções como um processo. Os alunos pesquisadores apontam como a relação teoria e prática é fundamental na formação e deixam explícita a qualidade do trabalho que a coordenadora do projeto realiza. Salientam que também aprendem posturas profissionais que não devem ser colocadas em prática. Nesse sentido, observamos como a educação não formal, no caso a vivenciada na escola com as professoras regentes, é fundamental para a construção de valores. Além disso, os relatos mostram como os processos de formação vão sendo costurados, articulando as necessidades, os desejos e a busca de novas informações que as possibilitem darem conta de uma classe de alfabetização. As falas de alguns alunos pesquisadores nos leva a inferir que o certo e o errado vivenciados nas escolas de certa forma são importantes para que eles encontrem o equilíbrio em suas posturas como futuros educadores. A esse respeito, Arroyo (2009, p. 125) salienta: “Os traços de personalidade, de ser humano se aprendem vendo, convivendo. Pelo estágio-contágio entre humanos. Os valores, o dever moral de ser professor (a) se aprendem no lento convívio, exemplar dos “bons” ou “maus” professores e com nossa cumplicidade de aprendizes [...]”. Porém, não podemos deixar de apontar que determinadas atitudes negativas direcionadas a alguns alunos vivenciados pelos alunos pesquisadores podem deixar marcas profundas a ponto de eles sentirem-se incapazes de dar conta de realizar qualquer atividade sugerida. Para Honneth (2009) as relações iniciais devem ser pautadas de afetividade para que o indivíduo desenvolva a autoconfiança e, posteriormente, a autoestima. Muitas vezes, por motivos diversos, essas crianças não recebem a atenção dos familiares e, é na escola, na figura do professor (a) que elas buscam a aprovação dos feitos que realizam. Os alunos pesquisadores ressaltam os sentimentos delas e das crianças com as quais convivem nas escolas. Apontam o reconhecimento delas enquanto alunas do curso de 64 Pedagogia pelo trabalho realizado no projeto desenvolvido pela universidade e das crianças enquanto seres que estão iniciando o processo de alfabetização. Diante do exposto vimos que o projeto Ler e Escrever desenvolvido pela Uninove se constitui como uma ação de Compromisso Social uma vez que oferece formação aos alunos para que possam atuar em campo e, de volta à universidade essas atividades são discutidas nos encontros de formação. Com isso, também colabora para a formação acadêmica dos futuros pedagogos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo teve por objetivo apresentar como a Universidade Nove de Julho – Uninove - desenvolve o trabalho de formação de alunos pesquisadores que irão atuar como segundo professor nas séries iniciais da rede estadual de educação por meio do Projeto Ler e Escrever desenvolvido pela universidade e em parceria com a Secretaria Estadual de Educação. Para tal, utilizamos entrevista semiestruturada com seis alunos que frequentam o curso de Pedagogia e que estão em formação há mais de seis meses. São quatro os aspectos relacionados ao projeto Ler e Escrever desenvolvido pelas universidades em parceria com a Secretaria Estadual de Educação e pouco abordados por outros pesquisadores que nos inquietam, tais como: ele é uma ação que visa o Compromisso Social, que benefícios proporcionam na formação acadêmica e pessoal dos alunos pesquisadores e qual a relação existente entre educação formal e educação não formal. Diante dessas inquietações, procuramos responder as seguintes perguntas: 5O projeto Ler e Escrever desenvolvido pela Uninove pode ser considerado uma ação de Compromisso Social? 6Esse projeto colabora para a formação acadêmica dos alunos participantes? 7A formação recebida viabiliza uma ação eficaz em sala de aula? 8Existe relação entre educação formal e não formal? Para responder a essas perguntas, utilizamos entrevistas semiestruturadas com seis alunos que participam do projeto. Os alunos pesquisadores que atuam no projeto Ler e Escrever da Uninove apontam a relevância da relação teoria e prática. Deixam claro que essa relação é fundamental para entender o cotidiano de uma sala de alfabetização. Elogiam o trabalho realizado pela coordenadora do projeto e ressaltam o quanto os encontros são válidos para a formação acadêmica. Os alunos pesquisadores relatam que as reflexões ocorrem mediante leitura de textos previamente estabelecidos vinculados ao que eles vivenciam na prática. Deixam claro que aprendem muito sobre alfabetização e que melhoraram as notas em diferentes disciplinas do curso que estudam, no caso Pedagogia, em função das discussões ocorridas nos encontros de formação. Trata-se, portanto, de um espaço de aprendizagem que, apesar de fazer parte da universidade, ter dia e horário estipulado e leituras prévias a serem realizadas pode ser considerado um espaço institucional não formal que articula a educação formal com a educação não formal. Existe um professor que orienta as atividades e que, não necessariamente, é professor de todos os alunos pesquisadores no cotidiano acadêmico. Também apontam que em algumas escolas eles não podem atuar como segundo professor em sala de aula. Para muitos é delegado a função de “ensinar” os alunos que encontram dificuldade e/ou auxiliar as crianças com necessidades especiais. Ressaltamos que o papel do aluno pesquisador não se limita a isso. Esse fato evidencia a exclusão existente dentro da escola, que, em princípio, seria espaço de inclusão social. Ainda referente às escolas, os alunos pesquisadores afirmam que nem sempre o material do Programa Ler e Escrever como foi instituído pela Secretaria Estadual de Educação (SEE) é utilizado. Muitos professores oferecem atividades desvinculadas do 65 contexto da criança e de uma forma tradicional. Nesse sentido, reiteramos que agir diante do novo ainda é muito difícil. Dessa forma, entendemos que muitos professores regentes não têm respeitado o ritmo próprio de cada criança deixando-as sob orientação dos alunos pesquisadores. O gratificante desse fato é perceber que eles têm consciência desse fato e que a maioria conseguiu progresso com a criança cuja professora regente julgava “incapaz”. Dessa forma, podemos concluir que o projeto Ler e Escrever desenvolvido pela Uninove se constitui como uma ação de Compromisso Social uma vez que oferece formação aos alunos para que possam atuar em campo e, de volta à universidade essas atividades são discutidas nos encontros de formação. Com isso, também colabora para a formação acadêmica dos futuros pedagogos e viabiliza a relação educação formal e educação não formal. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AFONSO, A. J. Sociologia da educação não formal. Reactualizar um objeto ou construir uma nova problemática? IN A. J. Esteves; S. R. Stoer. A Sociologia na escola. Porto: Afrontamento, 1989. ARROYO, Miguel G. Ofício de mestre: imagens e autoimagens. Petrópolis. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. BECKER, Fernando. O que é construtivismo? Série Ideias, nº 20, páginas 87 a 93. São Paulo: FDE, 1994. BRASIL. Decreto 51627 de 1 de março de 2007 disponível em www.jusbrasil.com.br – acesso em 27 de fevereiro de 2012. FERREIRO, Emilia. Com todas as letras. São Paulo: Cortez, 2008. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e terra, 2004. GHANEM, Elie; TRILLA, Jaume. Educação formal e não formal. São Paulo: Summus Editorial, 2008. GOHN, Maria da Glória.. Educação não formal, participação da sociedade civil e estruturas colegiadas nas escolas. Ensaio: avaliação de políticas públicas. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.50, p. 27-38, jan./mar. 2006. ___________________. Educação não formal e cultura política. São Paulo: Cortez, 2008. ___________________. Educação não formal e o educador social: atuação no desenvolvimento de projetos sociais. São Paulo: Cortez, 2010 HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed 34, 2009. 66 A ESCOLA, A CULTURA E A INCLUSÃO DE CRIANÇAS RASTAFÁRI Autora: Keila Kumakura de Souza Mestre em educação sócio comunitária Professora da rede Estadual de ensino [email protected] Rua: Aroldo Pereira da Costa, 250. Pq. Res. Maria de Lourdes. Hortolândia/ SP Tel: 19 96147964 19 39655201 Resumo: A pesquisa problematiza o processo de inserção escolar de crianças advindas da cultura Rastafári por intermédio da visão dos pais, referente a este processo de escolarização de seus filhos. Identifica e analisa a decorrência desta inserção escolar na vida de crianças pertencentes a esta cultura. Do ponto de vista teórico, o estudo se pauta no referencial da cultura Rastafári e em discussões sobre currículo, diferença, multiculturalismo crítico, inclusão, subjetividade e identidade apoiando-se na contribuição do pensamento contemporâneo. Por meio da pesquisa bibliográfica foi possível o conhecimento dos estudos que permeiam as discussões sobre o tema. Como pesquisa de campo, utiliza a entrevista com famílias rastafári que estão relacionadas à antiga Casa de Menelik - Comunidade Rastafári do interior paulista e com famílias do Sana no Rio de Janeiro. Conclui-se que a escola ainda tem um longo caminho a percorrer para que efetivamente insiram em seu cotidiano diferentes vozes, vozes em diferentes tons e timbres que possam ecoar por todas as dimensões da educação. É perceptível a importância da luta de educadores, pais e a resistência das crianças para que esta escola se torne realidade. Abstract: This study discusses the process of school integration of children that belong to the Rastafarian culture through the point of view of their parents, when it comes to the formal process of school education of their children; it identifies and analyzes the consequences of school integration in the life of children belonging to this culture. From the theoretical point of view, the study is guided by the reference of Rastafari culture and by discussions about curriculum, difference, critical multiculturalism, inclusiveness, subjectivity and identity, supported by the contribution of the contemporary thought. Through the bibliographical search, it was possible to know the studies that permeate the discussions on the subject. The field research brings the voices of families that are related to the Rastafarian House of Menelik-old Rastafarian Community in São Paulo State, as well as to Sana's families in Rio de Janeiro, by interviewing them. It is possible to gather that the schools still have a long way to do on effectively inserting different voices in their daily lives, voices with different tones and timbres, which can echo through all the dimensions of education. The importance of the struggle of educators and parents is realizable, as well as the children’s resistance to become this school on a true reality. Palavras chave: Cultura Rastafári; Diferença; Inclusão Escolar. INTRODUÇÃO – EU E EU DA BABILÔNIA A ZION Esta pesquisa problematiza o cotidiano da inserção escolar de crianças pertencentes à cultura Rastafári, dialogando principalmente com o debate sobre currículo escolar, 67 permeado pelo multiculturalismo crítico, identidade e diferença, bem como inclusão escolar. O título desta introdução necessita de uma prévia explicação. Com ela também justifico a utilização da primeira pessoa na escrita deste estudo. No universo simbólico ou teia de signos da cultura Rastafári, o termo “Eu e Eu” é utilizado para fazer referência a todas as pessoas. Nesta simbologia, qualquer pessoa é considerada parte de Deus ou Jah, cada pessoa é a representação da divindade de Jah, ou Deus em carne. O Eu, ou você, ou nós, somos cada um parte de um único Deus. Assim, o pronome pessoal “Eu” substitui ou designa todos os outros pronomes que possam se referir ao “outro”. Tem a intenção de demonstrar a igualdade entre cada pessoa. Traz a intenção de não diferenciar, não excluir o “outro”. O termo Babilônia é comumente utilizado na simbologia rastafári como referência à Babilônia bíblica, ou seja, à cidade dos homens, local de oposição aos propósitos de Deus, sempre relacionado à luxúria e à riqueza material, contrário à elevação espiritual. Nesta introdução, gostaria de ressignificar a palavra e simbologia a ela relacionada pela cultura aqui estudada, e direcionar o termo Babilônia à educação escolar, majoritariamente instituída neste século XXI, educação que ainda está impregnada por um currículo que se pauta na suposta homogeneidade cultural dos educandos que dela compartilham. Desse modo, esta educação não insere outras possibilidades culturais nem tampouco as debate; educação que restringe, limita e exclui. Assim também, prossigo ressignificando o termo Zion, que na cultura Rastafári significa a terra prometida, a cidade sagrada da bíblia, cidade abençoada por Deus ou Jah, cidade de David e que guardava o templo de Salomão, cidade onde vivem os “puros de coração”. Aqui, Zion seria a educação que pode ser construída a partir da inclusão, da diversidade cultural no ambiente escolar, da compreensão da identidade e diferença na escola, do “Eu com Eu”. Desta forma, a introdução sugere uma transformação do processo de inserção cultural no ambiente escolar: que cada “Eu e Eu” possa caminhar, construir e possibilitar uma educação que parta da Babilônia a Zion. Feitas as devidas preleções, explicitarei, então, minha ligação com a temática e o início desta inquietação. No ano de 2005, iniciei minha vida como educadora na cidade de Hortolândia, interior de São Paulo. No ambiente de trabalho, conheci alguns alunos que gostavam de música do gênero reggae e tinham uma banda deste ritmo caribenho. Logo, aprofundei meus conhecimentos neste compasso e comecei, também, a fazer parte da banda. Com base nas traduções das músicas, nos estudos de seus cantores e compositores, percebi que havia uma linguagem própria, um dialeto, um discurso por entre as linhas e palavras que chegavam aos meus ouvidos. As músicas a que tive acesso na época eram predominantemente de cantores, compositores e grupos que pertenciam à cultura Rastafári. Sendo assim, iniciei a pesquisa no sentido da significação daquelas palavras, daquela linguagem, que transmitiam algo como um “ar” diferente. Não consigo precisar neste momento o que sentia, o que era, mas sentia que algo fluía por detrás, pelos lados, pela frente, pela transversal e em todas as direções havia muito mais do que um ritmo. Rastafári apresenta múltiplas interpretações: em algumas fontes é visto como cultura, em outras como filosofia, como religião, é também interpretado como movimento messiânico, político e social. 68 Neste estudo, trabalho Rastafári como cultura, pois entendo que a cultura de um povo trata dos aspectos filosóficos, religiosos, das vestimentas, alimentação, linguagem, enfim, de sua “maneira de estar no mundo”. A utilização do vocábulo cultura, aqui, visa ampliar, expandir, desdobrar e não limitar, fixar ou reduzir esta interpretação. A cultura, neste estudo, está pautada na contribuição de Geertz (1989), em seu texto A interpretação das culturas. Na teorização sobre este conceito, o autor entende cultura como sendo sistemas simbólicos, “onde a cultura deve ser considerada não um complexo de comportamentos concretos, mas um conjunto de mecanismos de controle” (GEERTZ, 1989, p.62). Como um sistema de signos passíveis de interpretação, a cultura é, para Geertz, “um fenômeno social, cuja gênese, manutenção e transmissão estão a cargo dos atores sociais”. A cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles (os símbolos) podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade (GEERTZ, 1989, p. 24). A palavra Rastafári é traduzida do aramaico como Ras “cabeça, príncipe” e Tafari “sem medo, criadora ou do Criador”. Assim, significa “cabeça criadora” ou “cabeça do Criador (Deus)”. A cultura Rastafári pode ter sido assim denominada pelo nome de seu messias, Tafari Makonen, posteriormente denominado de Ras Tafari, “príncipe sem medo” ou “cabeça do criador”, que ao ser coroado como imperador da Etiópia em dois de novembro de 1930, passou a ser Haile Selassie, que significa “poder da Santíssima Trindade”. Rastafári surgiu na Jamaica, na década de 1930, mas faz referência à Etiópia como sua origem, pois crê em Haile Selassie, imperador etíope, 225º rei da linhagem do Rei Salomão, de Israel e da Rainha de Sheba, ou Makeda, da Etiópia, como messias libertador do povo negro. A cultura Rastafári é um dos expoentes do movimento Pan-Africanista, difundido por Marcus Mosiah Garvey, ativista Jamaicano da década de 1920. Posteriormente, no segundo capítulo deste estudo, serão apresentados, de forma mais específica, a cultura Rastafári e seu mito fundacional. Na busca por mais informações sobre esta cultura que tanto me agradava, conheci adeptos, mulheres e homens rastafáris, que se reuniam, em uma chácara na cidade de Louveira, também interior de São Paulo, para o culto denominado, dentro da cultura Rastafári, Nyahbinghi. O grupo de pessoas que ali frequentava formou uma comunidade, Comunidade Rastafári do Interior Paulista – a Casa de Menelik, com sede inicialmente em Louveira e posteriormente na cidade de Jarinú, igualmente localizada no interior de São Paulo. A palavra comunidade gera diversas compreensões. Neste contexto específico, me referenciarei a duas interpretações, sendo elas: Comunidade relacionada ao material e econômico como “grupo territorial de indivíduos com relações recíprocas, que se servem de meios comuns para lograr fins comuns” (FICHTER, 1973, apud GROPPO, s.d., p. 06)17. Comunidade interpretada de um ponto de vista mais cultural e simbólico, a comunidade é evocada como tendo caráter sagrado, já que carrega consigo valores morais e religiosos, fundamentando uma identidade coletiva baseada em símbolos compartilhados. (DURKHEIM, apud GROPPO, s.d., p. 08)18. Durante muitos anos frequentei este local e, pouco a pouco, fui me inserindo nesta cultura, conhecendo e reconhecendo esta recente manifestação cultural no Brasil. 17 Texto do autor disponível em: http://www.educadoressociais.com.br/artigos/comunidade_sociedade_e_integracao_sistemica.pdf 18 Idem 69 Digo recente, pois somente a partir da década de 80 do século XX surgiram grupos organizados que vivenciavam Rastafári. Anteriormente a este período, especificamente desde a década de 60 do mesmo século, havia mulheres e homens rastafáris no Brasil, mas sem unidades específicas. Tratava-se de manifestações isoladas, de algumas pessoas que conheceram a cultura pela estética, pela música reggae ou pelo movimento negro. Participei de muitos encontros regionais e nacionais, sendo estes gerais, ou seja, com a participação e desenvolvimentos temáticos de homens, mulheres e crianças, ou encontros voltados à mulher rastafári e suas temáticas, especificamente. Em diversos momentos, nestes encontros, a educação das crianças emergia como problemática das famílias. Sendo a cultura Rastafári uma cultura diversa da hegemônica manifestada dentro dos “muros da escola”, assim como muitas outras que também coexistem no mesmo ambiente escolar formal, a criança rastafári não se sente inserida no currículo e no ambiente escolar. Considero como “universal” a cultura hegemônica, que por meio das relações de poder, ou saber-poder, se estabelece nas relações discursivas e subjetivas do cotidiano escolar formal. A cultura Rastafári, diferindo deste “padrão hegemônico”, seja na estética (vestimentas, cabelo), na alimentação, na forma de se organizar (coletivamente), no conteúdo e metodologia escolar, enfim, em sua cultura própria, não está contemplada, debatida ou problematizada dentro do currículo hoje estabelecido, fixado e normatizado pela educação formal. As famílias apontavam suas dificuldades no processo de sociabilização das crianças dentro do ambiente escolar formal e discutiam alternativas para a diminuição das consequências desta problemática na educação das crianças. Assim, este tema emergiu dos debates com os vários grupos ou casas Rastafári do país. A proposta desta pesquisa é apresentar como a escola e suas matrizes curriculares trabalham ou contemplam as diferentes culturas em seu cotidiano. Por intermédio da visão dos pais referente ao processo de escolarização de seus filhos, identifico e analiso quais são os desdobramentos desta inserção escolar, na vida de crianças pertencentes a esta cultura. A pesquisa apresenta a cultura Rastafári e suas especificidades, problematizando a inserção destas crianças no universo escolar. Quais seriam então as problemáticas significativas cotidianas enfrentadas por estas crianças no ambiente escolar formal? Como são recepcionadas e de que forma é tratada a cultura Rastafári e suas especificidades no contexto escolar? Por meio dos estudos bibliográficos sobre cultura e educação, ou das relações culturais dentro da escola, percebi que o currículo era tema recorrente nestes estudos. Assim, fui buscar, nos estudos do currículo e sua relação com a diferença cultural dos diversos grupos sociais que se apresentam na escola, o subsídio para esta pesquisa. Alguns autores como Veiga Neto (2002) e Silva (2004 ) salientam que as mudanças nas perspectivas políticas, sociais e econômicas da modernidade estabeleceram as necessidades e paradigmas adotados na educação em sua modernidade seguidos até a contemporaneidade. Veiga Neto (2002) traz o reflexo no currículo da mudança na sociedade da Idade Média para a sociedade na Idade Moderna. O autor debate principalmente as transformações ocorridas na percepção do espaço e do tempo. Assim, também, coloca as transformações da Idade Moderna para a Contemporânea. Silva (2004) apresenta uma visão da mudança de currículo, desde Comenius até a era da “Revolução Industrial” e seu estrito vínculo com a mudança nos objetivos político-sociais da sociedade de cada momento histórico. 70 A grande problemática aparece quando a educação está pautada em uma estrutura políticosocial inexistente, uma estrutura educacional pautada em uma sociedade da Modernidade com outra realidade. E a sociedade Contemporânea, com suas múltiplas facetas culturais, sociais e econômicas, organizada em uma estrutura desestruturante, ou seja, uma estrutura que se move, que não é fixa, ainda não produziu sua educação. A sociedade do século XXI fixa suas estruturas escolares no que se refere a conteúdos, métodos, arquitetura com base nos parâmetros modernos. Tendo sido estes já perpassados, há uma divergência entre a necessidade educacional/cultural deste tempo e o que está sendo efetivamente oferecido. Pelos estudos multiculturais é possível debater a inserção da temática da diversidade cultural na educação, sendo este um movimento reivindicado pelos diversos grupos culturais. O multiculturalismo, como afirma Silva, “transfere para o terreno político uma compreensão da diversidade cultural que esteve restrita, durante muito tempo, a campos especializados como o da Antropologia” (2004, p. 86). Primo pelo debate do multiculturalismo crítico, pois a inserção de diferentes culturas no cotidiano escolar deve ir muito além do respeito e tolerância. Este debate, antes de tudo, passa pelo âmbito das relações de poder. Mas qual poder? A que tipo de poder estou me referindo? O poder que se enuncia, que se anuncia, que se pulveriza nas relações sociais; o poder discursivo, poder este que privilegia determinados conteúdos no currículo escolar em detrimento de “outros”; o poder que, a partir dos “aparatos discursivos e institucionais”, define o “diferente”. O poder, por ora abordado, será pautado na contribuição de Foucault, que “concebe o poder não como algo que se possui, nem como algo fixo, nem tampouco como partindo de um centro, mas como uma relação, como móvel e fluido, como capilar e estando em toda parte” (SILVA, 2004, p. 120). O estudo e pesquisa da cultura Rastafári e seus desdobramentos sociopolíticos, além de ser recente dentro do contexto cotidiano desta cultura, também é inovador no meio acadêmico, não tendo sido encontrada, no processo da pesquisa bibliográfica, nenhuma publicação, tese, monografia, artigo ou texto sobre o referido objeto. Para a cultura Rastafári, esta pesquisa é de suma importância, pois, como conforme exposto anteriormente, a problemática sobre a escolarização de crianças rastafári que a pesquisa enfrenta é tema de muitas discussões em conferências e congregações desta cultura, terminando sempre sem uma resposta ou solução à questão. Sendo esta pesquisa uma possibilidade de ação, justifica-se a relevância social na intenção de discutir a problemática de um movimento que, inserido na sociedade atual, necessita de visibilidade para promover suas especificidades culturais no cotidiano educacional de seus príncipes e princesas (as crianças na cultura Rastafári são tratadas por estas denominações até o casamento), contemplando, assim, a teoria e a prática. Assim convido o leitor a perceber as vozes que até este momento não foram ouvidas e conhecer as possibilidades de a educação contemporânea sair da exclusão e incluir as diferentes culturas no contexto escolar, a partir da leitura desta pesquisa que se inicia. O CURRÍCULO COMO PRODUTOR DE IDENTIDADE E DIFERENÇA: O olhar do Eu sobre o “Outro” Inicio este texto com a problemática do presente estudo, que tem a intenção de refletir sobre o processo de inserção cultural de crianças Rastafári no ambiente escolar formal. 71 Será pertinente contextualizar a educação em nossos dias, como ocorre a inserção de outras culturas no ambiente escolar formal, sendo este pautado em uma homogeneização cultural identitária. Tratarei, aqui, como educação formal, ou ambiente escolar formal, a escola institucionalizada, regular, seriada, obrigatória, curricular, ou seja, o ambiente educacional que todas as crianças inseridas na pesquisa frequentam, objetivando o progresso do nível escolar. Assim, discuto a escola, seu papel e suas possibilidades na atualidade; a escola que, em pleno século XXI, permanece com um viés educacional normatizador ou homogeneizador. Falo em pleno século XXI, pois o contexto social deste tempo necessita de um novo ou diferente currículo educacional, que seja capaz de contemplar as diferenças, de reconhecer a singularidade de cada indivíduo. No texto De geometrias, currículos e diferenças, Veiga – Neto faz uma retrospectiva de autores que trabalham com esta mudança na percepção do espaço e do tempo, com o advento da contemporaneidade: Além disso, assim como o Renascimento marcou o início da grande mudança na percepção, na significação e nos usos medievais do espaço e do tempo, o mundo contemporâneo parece estar vivendo novas mudanças radicais nesse campo (Harvey, 1996; Virgílio, 2000; Sennet, 2000; Bauman, 2001; Foucault, 2001; Tugendhat, 2002). Trata-se de mudanças que, entre outras coisas, “estimulam” a diferenciação, isto é, que contribuem para o estabelecimento e o aprofundamento das diferenças e da assimetria entre os diferentes. Desse modo, penso que se pode ir além, examinando também de que maneiras o currículo está implicado com tais mudanças no mundo de hoje, sejam elas mais manifestas – da ordem da cultura, da economia, da política, da ética etc. -, sejam elas mais subjacentes – da ordem do espaço e do tempo (VEIGA – NETO, 2002, p. 166). A escola e seus componentes curriculares atuais não dão conta das problemáticas e complexidades apresentadas por esta sociedade contemporânea. Utilizo o termo permanência do viés educacional normatizador e homogeneizador, pois a escola formal, desde o momento de sua massificação ou “democratização” do acesso, tem este papel ou objetivo: de tornar igual ou homogeneizar culturalmente a sociedade atendida por ela. Por meio dos estudos do currículo, pretendo assinalar a realidade escolar atual, pois acredito que estes estudos mostram com clareza as relações que permeiam o ambiente escolar, como saber, discurso, cultura, identidade, subjetividade e poder. Também emergem dos estudos do currículo as possibilidades ou vieses educacionais diversos da realidade escolar neste tempo. A definição de currículo é muito diversa e complexa. Dentro da perspectiva à qual este estudo se propõe, irei, então, seguir a não definição ou não conceitualização do currículo. Tradicionalmente, o currículo é visto “como um caminho, um curso ou uma listagem de conteúdos que devem ser seguidos” (GOODSON, 2005, Apud MATIAS, 2008, p. 64). As primeiras definições sobre o currículo tratavam “a modelagem de condutas e o disciplinamento dos corpos e se direcionavam tanto para os professores como para os alunos” (MATIAS, 2008, p. 64). Veiga-Neto traz suas reflexões sobre currículo, contribuindo com a intenção desta pesquisa. Diz que “o currículo imprimiu uma ordem geométrica, reticular e disciplinar, tanto aos saberes 72 quanto à distribuição desses saberes ao longo de um tempo.” O autor trabalha a relação da transformação do tempo e do espaço na modernidade com o currículo. Em termos temporais, o currículo engendrou – e de certo modo ainda engendra – rotinas e ritmos para a vida cotidiana de todos aqueles que, direta ou indiretamente, têm algo a ver com a escola. Desde os preceitos comenianos... desenvolveram-se refinados dispositivos curriculares e minuciosas prescrições didáticas para controlar o uso do tempo dos estudantes e dos professores (VEIGA-NETO, 2002, p. 164). Sobre a transformação espacial na modernidade e sua relação com o currículo, o autor afirma que “o currículo contribuiu para a espacialização do tempo, isto é, para o entendimento de que o tempo é redutível ao espaço, pode ser pensado em função do espaço, na medida em que passou a ser visto como rebatível ao espaço” (VEIGA-NETO, 2002, p. 165). A grande contribuição deste olhar para a presente pesquisa será na relação que o autor faz da espacialização com o surgimento da diferença, que aqui será o ponto fundamental a ser tratado no processo de estruturação curricular escolar. Em termos espaciais, o currículo funcionou – e certamente ainda funciona – como o grande dispositivo pedagógico que recolocou, em termos modernos, a invenção grega da fronteira como o limite a partir do qual começam os outros; não propriamente o limite a partir do qual nos perdemos, mas o limite a partir do qual os outros passam a existir para nós, o limite a partir do qual a diferença começa a se fazer problema para nós. Em suma, o currículo contribuiu – e ainda contribui – para fazer do outro um diferente e, por isso, um problema ou um perigo para nós (VEIGA – NETO, 2002, p. 165). É esta discussão do outro como portador da diferença que orienta a pesquisa, pois a partir deste processo de diferenciação é que se manifesta a exclusão no ambiente escolar. Ao longo do texto tratarei com maior profundidade o que aqui chamo de diferença. A diferença ou a multiplicidade cultural não está atendida no currículo escolar que se apresenta nas escolas públicas e privadas às quais esta pesquisa teve acesso. O termo multiplicidade é aqui pautado no que Silva considera como “a capacidade que a diferença tem de (se) multiplicar” (SILVA, 2000, p. 66). A melhor ideia que apresenta o que aqui pretendo chamar ou tratar como currículo seria a contribuição que Silva nos oferece: ...uma história do currículo não deve ser focalizada apenas no currículo em si, mas também no currículo como fator de produção de sujeitos dotados de classe, raça, gênero. Nessa perspectiva, o currículo deve ser visto não apenas como expressão ou a representação ou o reflexo de interesses sociais determinados, mas também como produzindo identidades e subjetividades sociais determinadas. O currículo não apenas representa, ele faz. É preciso reconhecer que a inclusão ou a exclusão no currículo tem conexões com a inclusão ou exclusão na sociedade (SILVA, 2005, apud, MATIAS, 2008, p. 65). 73 O currículo fixa a identidade massificante da sociedade que por ela é fixado. Pode ser comparada a um espelho que, a partir do que lhe é apresentado, produz um reflexo que a espelha ou que a faz ter a percepção de sua própria imagem. A partir dos textos de Tomaz Tadeu da Silva será apresentado, primeiramente, o início dos estudos do currículo, para melhor compreensão deste tema, que será utilizado, aqui, como alicerce para o debate da identidade e diferença no contexto escolar. Silva critica esta perspectiva de currículo, primeiramente porque esta ideia de currículo de Bobbitt, para muitos, dentro da educação, passa a ser o próprio currículo. Há a crítica, também, por este ser um modelo conservador de currículo e por estar pautado em um olhar econômico, assemelhando a escola a uma indústria. Neste estudo, não tenho a intenção de definir qual formato de currículo está correto, mas sim de trazer a contribuição deste formato para o debate da inclusão cultural no ambiente escolar formal. Nas discussões sobre currículo, o principal ponto é “qual conhecimento deve ser ensinado” (SILVA, 2004, p. 14). Nas teorias do currículo, entretanto, a pergunta “o quê?” nunca está separada de outra importante pergunta: “o que eles ou elas devem se tornar?”. Afinal, um currículo busca precisamente modificar as pessoas que vão “seguir” aquele currículo. Na verdade, de alguma forma, essa pergunta precede à pergunta “o quê?”, na medida em que as teorias do currículo deduzem o tipo de conhecimento considerado importante justamente a partir de descrições sobre o tipo de pessoas que elas consideram ideal (SILVA, 2004, p. 15). O currículo, assim, modela ou identifica as massas que passam pelo processo de escolarização, a partir da concepção de qual é o modelo ou padrão de sujeito ideal para a manutenção da estrutura social, econômica e política. Silva problematiza as teorias do currículo, ressaltando-o como “uma questão de identidade ou de subjetividade” (Ibidem, p. 15). Nas discussões cotidianas, quando pensamos em currículo pensamos apenas em conhecimentos, esquecendo-nos de que o conhecimento que constitui o currículo está inextricavelmente, centralmente, vitalmente, envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos: na nossa identidade, na nossa subjetividade (SILVA, 2004, p. 15). Dialogando com este pensamento de Silva, percebe-se que o processo de construção da identidade e subjetividade é formado também pelo currículo. É a partir do que é delineado por ele que se organiza o repertório para a formação do aluno como sujeito. Não pretendo aqui excluir os processos de singularização dos indivíduos. Há, em cada um, a capacidade de individuação dos conhecimentos recebidos e da busca autônoma por outras fontes de aprendizado. Sem contar que cada um é afetado de uma maneira única pelo que lhe é apresentado, valendo-se de sua história de vida, suas experiências. Mas como o padrão é normatizador, o “normal” é seguir esta identidade massificadora. Há “o predomínio de formas culturais produzidas e veiculadas pelos meios de comunicação de massa, nas quais aparecem de forma destacada as produções culturais estadunidenses” (SILVA, 2004, p. 85). 74 Como apresentei anteriormente, principio de um pressuposto: o de que as escolas aqui pesquisadas trabalham com um viés normatizador e hegemônico. Vejo o currículo como o principal instrumento deste aparato. Só é possível manter este aparato hegemônico por meio das relações de poder. Aqui tratarei como relações de poder o “poder capilar” de Foucault, o poder descentralizado, o poder que está presente nas relações sociais, o poder que “está em toda parte e que é multiforme” (SILVA, 2004, p. 147). Silva traz à tona esta discussão: “que o currículo é também uma questão de poder” (SILVA, 2004, p. 16). ...as teorias do currículo, na medida em que buscam dizer o que o currículo deve ser, não podem deixar de estar envolvidas em questões de poder. Selecionar é uma operação de poder. Privilegiar um tipo de conhecimento é uma operação de poder. Destacar, entre as múltiplas possibilidades, uma identidade ou subjetividade como sendo a ideal é uma operação de poder. ...As teorias do currículo estão ativamente envolvidas na atividade de garantir o consenso, de obter a hegemonia (SILVA, 2004, p. 16). E é sob esta ótica das relações de poder que se estabelecem as diferenças, sejam estas culturais, de gênero ou étnicas. “As diferenças estão sendo constantemente produzidas e reproduzidas através de relações de poder” (SILVA, 2004, p. 88). Assim, a diferença se apresenta na estrutura escolar pela fixação promovida pelo currículo, sendo este construído a partir das relações de poder. A diferença, neste trabalho, será abordada na perspectiva de Silva, não simplesmente como resultado de um processo, mas sim como algo que é constantemente produzido, “compreendida, agora, como ato ou processo de diferenciação” (SILVA, 2000, p. 76). Primo pelo termo diferença em detrimento de diversidade, pois, nos textos que me referenciaram, a diversidade aparece com uma perspectiva mais “liberal” ou limitada do que, nesta pesquisa, quis denominar com o termo diferença. A diversidade, comumente é utilizada no paradigma do multiculturalismo “liberal” ou “humanista”. Aqui trabalho com a perspectiva do multiculturalismo crítico, ao qual creio se adequar o uso da diferença. É particularmente problemática, nessas perspectivas, a ideia de diversidade. Parece difícil que uma perspectiva que se limita a proclamar a existência da diversidade possa servir de base para uma pedagogia que coloque no seu centro a crítica política da identidade e da diferença. Na perspectiva da diversidade, a diferença e a identidade tendem a ser naturalizada, cristalizada, essencializada (SILVA, 2000, p. 73). Ainda sobre o uso de diferença em lugar de diversidade, em um texto sobre o emprego destes conceitos na educação inclusiva de surdos, a autora Morgenstern afirma a ideia de Silva descrita acima e defendida por esta pesquisa: Na esteira dos discursos que pontuam a deficiência – onde tem sido localizada a surdez - apaga-se o caráter político da diferença, tratando-a como diversidade, como traço da sociedade contemporânea a ser tolerado. A diferença, ao ser narrada pelo viés 75 da diversidade nos remete à percepção do outro a partir de uma representação folclórica, que desconsidera o caráter político e cultural da diferença, inscrita num contexto histórico específico (MORGENSTERN, 2010, s.p.). O termo diferença também não é por si só, a diferença, mas é relacional com a identidade. A diferença ou a identidade não existem sozinhas. Uma só é pelo que a outra não é. A identidade e a diferença são produzidas a partir da enunciação ou do discurso. Assim e como afirma Silva é possível dizer que são atos de criação linguística. Dizer que são atos de criação significa dizer que não são “elementos” da natureza, que não são essências, que não são coisas que estejam simplesmente aí, à espera de serem reveladas ou descobertas, respeitadas ou toleradas. A identidade e a diferença têm que ser ativamente produzidas. Elas não são criaturas do mundo natural ou de um mundo transcendental, mas do mundo cultural e social. Somos nós que as fabricamos, no contexto de relações culturais e sociais. A identidade e diferença são criações sociais e culturais (SILVA, 2000, p. 76). Para Silva, a diferenciação é a “afirmação da identidade e a marcação da diferença”. Assim, “afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora” (2000, p. 82). Como apresentei o que aqui chamo de diferença, convém, neste momento, tratar sobre a identidade, pois, afinal, é de uma identidade Rastafári inserida no processo de escolarização que esta pesquisa trata. A identidade que proponho é a identidade móvel, não fixa; identidade esta que Silva compara à linguagem. Tal como a linguagem, a tendência da identidade é para fixação. Entretanto, tal como ocorre com a linguagem, a identidade está sempre escapando. A fixação é uma tendência e, ao mesmo tempo, uma impossibilidade (SILVA, 2000, p. 84). A identidade, como já mencionei, é uma produção simbólica, cultural e social. A fixação de uma identidade como padrão exclui as outras identidades que, a partir deste padrão, são o “outro”. A identidade padrão recebe as características positivas e as que diferem destas, as características negativas, ou, como diz Duschatzky e Skliar, o outro como fonte de todo o mal. Ainda neste mesmo texto, os autores relatam, com o advento da Modernidade, o surgimento desta lógica binária, que sempre sugere um “privilégio do primeiro termo e o outro, secundário nessa dependência hierárquica, como sua inversão negativa” (2001, p. 123). É comum ver esta divisão binária nos processos de caracterização das identidades, mas como, então, caracterizar estruturas identitárias complexas como as culturas híbridas, que têm em si características tanto da identidade padrão como da que difere desta? Rastafári é uma representação cultural nascida na Jamaica, Caribe, mas que tem suas raízes na antiga história da Etiópia cristã. Sendo assim, uma manifestação em diáspora e híbrida. Hall afirma que “na situação da diáspora, as identidades se tornam múltiplas” (2003, p. 27). Nossos povos têm suas raízes nos – ou, mais precisamente, podem traçar suas rotas a partir dos – quatro cantos do globo, desde a Europa, África, Ásia; foram forçados a se juntar no quarto canto, na “cena primária” do Novo Mundo. ... A distinção de nossa cultura é manifestamente o resultado do maior entrelaçamento e fusão, na fornalha da sociedade colonial, de diferentes elementos culturais africanos, asiáticos e europeus (HALL, 2003, p. 31). 76 A cultura Rastafári, que será abordada em um segundo momento desta pesquisa, é fruto do hibridismo das culturas cristã, judaica, africano-etíope e caribenha. Fica, neste contexto, impossível classificá-la, mas, mesmo assim, na realidade social e escolar, esta cultura é tratada como o “outro”, seja ele “fonte de todo o mal”, “sujeitos plenos de uma marca cultural”, ou “alguém a tolerar”. A cultura Rastafári faz parte dos movimentos pan-africanos, que são culturas em diáspora, ou seja, culturas representadas fora de seu território ou desterritorializadas. Ainda focando a realidade desta pesquisa, que estuda uma cultura afro-caribenha no Brasil, a ideia de diáspora é a “própria ideia de movimento, de viagem, de deslocamento: diáspora, cruzamento de fronteiras, nomadismo” (SILVA, 2000, p. 86). Para o conceito de diáspora me aproprio do pensamento de Hall: O conceito fechado de diáspora se apóia sobre uma concepção binária de diferença. Está fundado sobre a construção de uma fronteira de exclusão e depende da construção de um “Outro” e de uma oposição rígida entre o dentro e o fora. Porém, as configurações sincretizadas da identidade cultural caribenha requerem a noção derridiana de différance – uma diferença que não funciona através de binarismos, fronteiras veladas que não separam finalmente, mas são também places de passage, e significados que são posicionais e relacionais, sempre em deslize ao longo de um espectro sem começo nem fim (2003, p. 33). Sendo a identidade cultural Rastafári uma cultura híbrida, torna-se tarefa difícil focá-la pela identidade. “A identidade que se forma por meio do hibridismo não é mais integralmente nenhuma das identidades originais, embora guarde traços delas” (SILVA, 2000, p. 87). Destaco, assim, que a identidade e a diferença estão interligadas neste debate, pois uma não existe sem a outra. Para falar em diferença é preciso conhecer a identidade da qual esta diferença se diferencia. COSMOLOGIA RASTAFARI: As vozes que ecoam da Jamaica ao Brasil No subtítulo deste texto me refiro às vozes que ecoam no Brasil, pois muito das especificidades tratadas aqui são fontes das vivências das comunidades rastafáris neste país. Após a contextualização histórica dos principais personagens que circundam esta cultura, neste momento trago ao texto a cosmologia Rastafári. Foi aqui chamado de cultura rastafári o que considero como “[...] a vida, ou uma forma de viver, de estar no mundo” (ANDRADE, 2009, p. 02), que tem suas origens político-ideológicas no processo de resistência do povo africano em diáspora. A cultura Rastafári faz parte dos movimentos pan-africanistas e se inicia nas profecias de Garvey, a partir da coroação de Selassie. Vejo esta cultura de forma integral, não sendo passível de classificação como religião, seita ou qualquer outra conceituação. Rastafári tem suas origens na África antiga, mais especificamente na Etiópia, pois remete à ancestralidade cristã etíope, descendente da Rainha de Sabá ou Makeda e do Rei Salomão, sendo, portanto, o primeiro reino cristão na África. Entendo este processo de cristianização, como uma perda da identidade dos povos tribais africanos que professavam sua própria fé, baseados nos elementos da natureza, mas aqui, sempre a ancestralidade ou antiguidade será a partir deste reino cristão em África, Etiópia. 77 Tal cultura inicia-se na Jamaica, dentro do contexto já exposto anteriormente, de condições que foram impostas ao negro após sua saída da África, como a marginalização econômica, social e política dos afrodescendentes. Os primeiros Rastafáris a difundir a cultura foram: Emmanuel Charles Edwards, Leonard Percival Howell, Robert Hinds, Joseph Nathaniel Hibbert, Archibald Dunkley, Paul Erlington, Vernal Davin, Ferdinand Ricketts. Rastafári surgiu nas periferias da Jamaica, sendo comum sua associação aos desprovidos de direitos e bens materiais. A cultura Rastafári prega uma vivência “natural”, ou seja, que possa cada vez mais estarem ligados à vida no campo, plantando o alimento que consomem, produzindo suas próprias roupas, sapatos, cosméticos, remédios, instrumentos, utilidades domésticas em geral, necessitando pouco da compra de produtos externos, ou seja, produtos vendidos fora da comunidade. Mesmo os rastafáris que não vivem em comunidades procuram comprar produtos de irmãos (membros desta cultura), seja pessoalmente ou por encomendas via internet; há produtos que são transportados da Jamaica para o Brasil, por exemplo. Também há a intenção, por parte dos rastafáris, quando não compram produtos externos, de não contribuir com as grandes empresas, assim, sempre que necessitam consumir, procuram comprar de pequenos produtores. É muito comum os rastafáris denominarem esta vivência como uma vivência ancestral, pois se espelham em alguns exemplos de antigos povos africanos que retiravam seu sustento da natureza, vivendo coletivamente, onde cada um, dentro daquela comunidade, tem seu papel social, para que nada falte àquele coletivo. Em sua tese de doutorado, Danilo Rabelo traz várias afirmações das simbologias Rastafári, das quais destaco as que ele, citando Jah Ahkell, reconhece como comuns entre os diversos grupos: 1. O imperador Selassie é Deus Encarnado. 2. Repatriação para a África fisicamente ou espiritualmente. 3. Redenção e Levantamento do homem negro internacionalmente em assuntos culturais, políticos, espirituais e econômicos (1980 apud RABELO, 2006, p. 346). Nas falas dos autores sobre a cultura Rastafári, ou dos integrantes desta cultura, sempre que há a referência a Deus, este é o Deus cristão, Deus único, onipotente, onisciente, onipresente. Novamente ressalto que a base desta cultura é judaico-cristã. Em alguns momentos, este Deus também será denominado de Jah Rastafari, forma como os rastafáris se referem a Deus. Sobre a divindade de Selassie, podemos dizer que todos os grupos rastafáris, ou, como é comum dizer dentro desta cultura, todas as casas rastafáris, concordam, mas de forma diferente. Há alguns grupos que veem Selassie como Deus encarnado, ou seja, o próprio Deus. Outros acreditam que ele é a reencarnação de Jesus Cristo e há, ainda, organizações que veem em Selassie um messias, assim como Jesus, porém não o próprio reencarnado. De uma maneira ou de outra, todas as manifestações da cultura Rastafári creem em Selassie como poder de Jah. No texto de Uiarra, veja-se como é a visão apresentada sobre a divindade de Selassie: Centro da narrativa etíope a coroação de Haile Selassie I representou fundamentalmente o cumprimento das profecias que os etíopes tinham em sua cosmologia, a chegada do último rei, que traria o fim da seca e da miséria e a redenção dos pecados, pois mostrou a seu povo sua divindade. Para os Rastas, a chegada deste 78 rei significava e mantinha basicamente a mesma estrutura, só que com muitas variantes. Conclui-se que a imagem de um libertador, redentor, de alguém divino com plenos poderes reais para libertar os negros na diáspora era o que os jamaicanos tinham de Haile Selassie I (UIARRA, 2009, p. 12 e 13). O texto acima é de um representante da cultura Rastafári. Assim, expressa como alguns membros desta cultura entendem a figura de Selassie. As críticas a esse imperador etíope já foram expostas no item que narra especificamente sobre ele. Quanto à repatriação, pode-se dizer que, como para a divindade de Selassie, há também, múltiplas interpretações para ela. A repatriação seria o retorno ao país de origem, neste caso o retorno ao país de origem dos ancestrais. Para a cultura Rastafári, a repatriação se dá no retorno à África, à Terra Mãe, Terra Sagrada de onde foram retirados os negros para o trabalho escravo na diáspora. Portanto, aqui, repatriação tem o sentido de redenção, de reparação para com estes filhos de África espalhados pelo mundo. Seria uma volta às raízes, volta à cultura africana, um retorno às antigas tradições de África. Novamente retomo a questão de que sempre que me referir à África, estou falando da Etiópia cristã. Alguns rastafáris veem a repatriação de forma espiritual, ou seja, um retorno à cultura africana, a seu modo de viver, mas mantendo-se em seu atual território, uma repatriação de coração. Esta forma de repatriar seria a mais utilizada ou vivenciada pelos rastafáris, pois poucos são os que realmente saíram de seu território para retornar à África. Outros rastafáris compreendem que se deve fazer o possível para a repatriação física. Como vimos anteriormente, Garvey acreditava nesta repatriação, pois com esta intenção criou a Black Star Line e fez os acordos com a Libéria. Ainda há rastafáris que creem que esta repatriação tem de ser para a Etiópia, que é compreendida como a verdadeira Terra Sagrada, o Monte Sião: A Teoria da Repatriação introduziu no rastafarianismo uma dimensão política de objetivo definido: grande parte dos Rastafáris, em todo o mundo, e sobretudo na Jamaica, passaram a desejar um retorno imediato à Etiópia. Uma situação sem semelhante histórico, com exceção para o Sionismo, e que exigiu das autoridades jamaicanas severas medidas de controle. Revolucionários convencionais atuam com objetivos locais, mas o slogan Rasta nunca foi “Poder para o Povo", mas "Deixe o meu povo ir" (REDINGTON, 2009) 19. A redenção, na concepção rastafári, não está ligada a uma culpabilidade religiosa, como é comum ao entendimento desta palavra, mas sim a um processo semelhante ao que Garvey propaga: um levante negro. Não quero dizer aqui que esta ideia seria uma superioridade do negro, mas, pelos textos rastafáris, ou nos diálogos com os representantes desta cultura, percebi a intenção de equiparação das condições do negro às do branco. Na cosmologia Rastafári, entende-se a redenção do povo negro como Supremacia Negra; seria o levante do povo negro em todos os âmbitos, para a formação de um governo negro, um processo de reconhecimento universal do negro. A redenção é vista, assim, como a emancipação do negro: 19 Texto do autor, disponível em http://www.geledes.org.br/jamaica/orastafari27/09/2009.html 79 O que significa Supremacia Negra? O negro simboliza o Bem. O branco o mal. Isto não se refere à cor da pele, se refere ao espírito. Portanto, a Supremacia Negra se interpreta como a supremacia do bem. Um governo de Supremacia Negra é um governo onde o bem está sobre o mal, onde a vida está sobre a morte (UIARRA, 2010, p. 03). Pelos estudos e vivências que tive sobre Rastafari nos últimos anos, posso afirmar e explicar que, quando se referem ao negro, não estão se referindo à pele negra, mas sim ao reconhecimento da ancestralidade negra. Um descendente de negros pode ter a pele branca, mas ainda é um afro-descendente. Também segundo meu entendimento sobre esta divisão que a cultura Rastafári faz acerca de branco e negro, o branco representa o colonizador, o explorador, o “sistema capitalista”. O negro seria o povo colonizado, explorado, ou que sofre com as problemáticas socioeconômicas. A alimentação dentro da cultura Rastafari é denominada de vital, ou seja, o que consideram alimentos vivos. Rejeitam-se alimentos mortos que contenham sangue, porque os adeptos da cultura Rastafári creem que Jah lhes deu todas as sementes, frutos, raízes, folhas, para sua sobrevivência, por isso não precisam se alimentar de animais mortos. Esta alimentação tem como base a vida, a vida que os alimenta, a luz que entra nos corpos e os mantém saudáveis, desde os primórdios: Como vemos em Gênesis 1:29, a prática da alimentação de plantas vem desde o princípio do mundo. E é algo muito natural para os Rastafaris. As plantas não são só utilizadas na forma de alimentação, mas para todos os fins, pois JAH criou as plantas para tudo que precisarmos. Elas são feitas da mesma matéria que nossos corpos, por isso têm muita influência sobre nós e são de muita ajuda. Os Rastafaris usam as plantas para comer, para fazer remédios, cosméticos, para fazer instrumentos, casas, roupas, defumações, enfim todo o necessário (ANDRADE, 2010) 20. A alimentação escolar, seja de escola pública ou privada, normalmente, contém carne. Assim, esta questão é um dos pontos críticos da permanência ou convivência das crianças rastafáris na escola formal. Sobre esta questão falarei detalhadamente posteriormente, na descrição das entrevistas. É importante salientar que esta pesquisa não tem a intenção de destrinchar os debates que podem circundar os temas defendidos pela cultura Rastafári, como a possível superioridade do negro, o uso da cannabis como planta medicinal e sagrada, a hierarquização da vida dos animais à das plantas no processo de alimentação etc.. A intenção aqui é apresentar a diferença desta cultura perante a cultura hegemônica, para a compreensão das dificuldades enfrentadas pelas crianças rastafáris no processo de escolarização formal. A cultura Rastafári acredita que cada ser vivente desta terra é uma criação de Deus ou Jah, assim cada ser é tratado como o Eu; desta forma, todos são Eu e Eu. Esta denominação é dada a cada ser, pois os rastafáris acreditam que não existe o outro, uma vez que se são todas manifestações do espírito de Deus em corpo, então todos são um único ser, uma única energia. Assim, os adeptos da cultura rastafári se referem ao outro como Eu. Os dreads, ou a forma como são os cabelos dos membros rastafáris, são considerados por esta cultura como uma coroa, símbolo de sua devoção a Deus. 20 Texto da autora, disponível em: http://omeganyahbinghi.blogspot.com/2010/09/rastafari-vida-ehistoria.html 80 Rastafári significa cabeça criadora, os dreads simbolizam o voto Nazireu, voto feito no momento de seu batizado, no momento em que decidem optar por uma vida na cultura Rastafári. Esta estética é uma das principais causas do preconceito que a população em geral tem contra os rastafáris quando os julgam pela primeira impressão. Sendo este um dos problemas na sociabilização das crianças rastafáris na escola, estas são alvo de piadas dos colegas. O cabelo com dread pode ser coberto em algumas ordens, como a ordem Boboshanti, onde os homens usam turbante e as mulheres usam a caída (lenço). Já em outras ordens os cabelos com dreads são usados descobertos, o que causa muita hostilidade por parte das outras pessoas. A palavra babilônia é tudo que se refere ao mundo “branco”, novamente lembrando que esta não se refere à cor, mas sim aos princípios, babilônia seria a opressão de todas as formas, faz referência ao período em que os hebreus viveram como escravos na antiga babilônia. O ritual congregacional e místico é o Nyahbinghi21. A forma de louvor vem por meio dos tambores. O Nyahbinghi é, para os rastafáris, a batida do coração, o um, dois. Para a cultura Rastafári, este é o som natural da vida que os religa com os ancestrais. Assim, como em todas as culturas de matriz africana, os tambores são louvados e respeitados como instrumentos sagrados: Nas cerimônias Nyahbinghi, há leituras bíblicas, fogueira, cantos e outros elementos, mas o papel principal e de destaque estão nos tambores. Os tambores africanos reproduzem a batida do coração, com dois toques consecutivos. Essa batida Nyahbinghi reconecta à essência, à pulsação original da terra, no seio de Mãe África. É um momento espiritual profundo de contato com as raízes Africanas, e JAH RASTAFÁRI. É o momento também que os guerreiros Rastafáris se apresentam ao seu general Haile Selassie para a batalha espiritual contra toda a opressão, pela queda da Babilônia e o estabelecimento da Nova Jerusalém, a Sagrada Sião, neste Novo Tempo, nessa Nova Era (ANDRADE, 2010) 22. Em cada casa ou grupo rastafári, o nyahbinghi é ministrado de uma forma diferente. Em algumas casas há um local próprio para ocorrer o nyahbinghi, como um templo, chamado de tabernáculo, em outras casas pode ser feito em qualquer local. Para a cultura Rastafári a mulher rastafári tem consciência de sua linhagem real e, por isso, se manifesta como rainha, sabendo de seu valor, se cuida e respeita como um verdadeiro templo. Templo da Mãe da criação que carrega o Sagrado Ventre e que gera a vida. Assim, se algum homem não respeita sua companheira ou sua “irmã” como uma rainha, então está se desviando da vivência Rastafári. Dentro da cultura Rastafári, as mulheres costumam se organizar também individualmente para racionarem sobre seus propósitos e necessidades próprias. O modo de vida rastafári busca viver de acordo com a origem, em sintonia com a natureza, com as leis pregadas por Jesus Cristo, “[...] se inspirando ritualisticamente nos tambores africanos” 21 Culto espiritual rastafári ou concentração para propagação da cultura rasta por meio da música, leitura da Bíblia e tradição oral. A palavra significa a batida do coração, a vida. 22 Texto da autora, disponível em http://omeganyahbinghi.blogspot.com/2010/09/rastafari-vida-ehistoria.html. 81 (ANDRADE, 2009, p. 14)23, utilizando a GanJah (cannabis) em suas meditações, tratamentos para cura etc.. A utilização da ganja, cannabis sativa, pelos rastas, também se dá de forma muito variada, creio que se pode afirmar que é, sobretudo, de consciência individual. Alguns grupos não a utilizam nem veem benefícios em seu consumo. Outros grupos a consagram como erva sagrada, trazida por Jah para a meditação, para religá-los com o cosmo espiritual. Também é interpretada como forma de libertação para o homem negro. Ainda hoje existem membros da cultura Rastafári que a consomem, mas que não a sacralizam, não faz nenhum tipo de ritual para sua utilização, apenas reconhecem suas propriedades medicinais e espirituais. Termino, assim, a exposição das principais simbologias da cultura Rastafári, com as palavras de Andrade: Foi nesse contexto que aqueles que viriam a ser chamados de Rastas foram consolidando sua forma de vida “roots”, do inglês “de raiz”, baseada nas escrituras, nas leis da Mãe Natureza, Mãe África e suas tradições milenares trazidas em mentes, corpos e corações (ANDRADE, 2009, p. 14) 24. 23 24 Texto não publicado enviado pela autora por email [email protected] em 17 de agosto de 2009. Texto não publicado enviado pela autora por email [email protected] em 17 de agosto de 2009. 82 RODA DE CHORO: PROCESSOS EDUCATIVOS NA CONVIVÊNCIA COM MÚSICOS Eduardo Fiorussi25 Mestre em Educação pela UFSCar; graduado em Música Popular pela Unicamp [email protected] (19) 37226614 Resumo: Este texto apresenta resultados de uma pesquisa de mestrado, que teve como objetivos descrever e compreender processos educativos decorrentes da interação entre músicos em duas rodas de choro. Primeiramente apresentamos discussão envolvendo Freire (1992, 2005, 2007), Fiori (1986) e Larrosa Bondía (2002). A pesquisa foi realizada com dois grupos que fazem rodas de choro, um de São Paulo e outro de Campinas, tendo como inspiração a pesquisa etnográfica e procedimentos metodológicos da observação participante. Choro é uma das culturas populares brasileiras com origens entre o fim do século XIX e início do século XX; a roda de choro é um espaço de lazer, de vivências culturais/musicais, de resistência, de conscientização e libertação cultural, conceitos estes apoiados em algumas idéias centrais dos autores referidos. Roda de choro é uma manifestação musical coletiva, onde as pessoas se encontram para tocar músicas do repertório popular brasileiro. Nela ocorrem dialogicamente trocas de experiências, de olhares, de gestos, enfim de aprendizagens. Considerando a roda de choro como uma prática social, o olhar na pesquisa está voltado para os processos educativos que nela ocorrem, e em como eles contribuem para a formação dos indivíduos enquanto seres no mundo com os outros. Palavras-chave: Processos educativos. Roda de choro. Educação musical. Abstract: This text presents results of a research which aimed to describe and understand the educational processes resulting from the interaction between musicians on two rodas de choro. First we present discussion involving Freire (1992, 2005, 2007), Fiori (1986) and Larrosa Bondia (2002). The research was conducted with two groups that make rodas de choro, one in São Paulo and another in Campinas, taking as inspiration the ethnographic research and methodological procedures of participant observation. Choro is one of Brazilian popular cultures with origins from the late nineteenth and early twentieth century; the roda de choro is a space of leisure, cultural experiences, resistance, liberation and cultural awareness, these concepts supported by some central ideas of the authors listed. Roda de choro is a manifestation musical collective, where people meet to play music from popular Brazilian repertoire. In it occur dialogically exchanges of experiences, looks, gestures and learning. Considering the roda de choro as a social practice, look at the research is focused on the educational processes that occur in it, and how they contribute to the formation of individuals as beings in the world with others. Keywords: Educational processes. Roda de choro. Music education. Introdução Pesquisa de mestrado realizada no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE-UFSCar), sob orientação da Profa. Dra. Ilza Leme Zenker Joly, entre 2010 e 2012. 25 83 Essa pesquisa foi realizada com duas rodas de choro. Uma acontece mensalmente, aos domingos, em Campinas, idealizada pelo grupo Chorando na Sombra – do qual faço parte, tocando violão de sete cordas. As rodas acontecem na Companhia Sarau, que é um espaço localizado no subdistrito de Barão Geraldo, onde o proprietário Álvaro Tucunduva, conhecido como Tucun, organiza saraus musicais. A outra roda de choro é de São Paulo, a roda do Silvinho; localizada na Vila Pompéia, ocorre semanalmente às noites de sexta-feira, no estúdio dos proprietários Silvinho e Sorriso, ambos músicos de choro. As duas rodas de choro são abertas a músicos que queiram tocar, e também ao público ouvinte; não se paga nada para entrar, as pessoas frequentam os espaços para tocar e ouvir música. O desejo de aprofundar a compreensão de processos educativos em rodas de choro parte das experiências do pesquisador, ao se perceber aprendendo com os amigos em rodas de choro e de samba, em encontros nas repúblicas estudantis e outras práticas sociais. Motivado por uma paixão pelo ensino da música, somado às experiências como professor universitário no curso de Educação Musical da UFSCar, desenvolvi a pesquisa de mestrado, da qual apresento alguns resultados a seguir, que teve como objetivos compreender e descrever processos educativos que ocorrem na interação entre músicos em rodas de choro. Choro é um gênero musical que surgiu no Brasil a partir de processos ocorridos ao longo dos dois últimos séculos, marcado por influências das culturas europeias e africanas. As rodas de choro estiveram muito presentes em festas nas casas das pessoas, em geral “das mais baixas camadas populares” (TINHORÃO, s/d, p. 109). Pinto (1936) registrou como eram algumas dessas festas no Rio de Janeiro, até então Capital Federal, entre 1870 e 1920, aproximadamente, e ressalta o caráter comunitário que havia; os músicos tocavam por prazer, por participar das festas, comendo e bebendo, alegrando as pessoas. [...] as pessoas daquelles tempos no Rio de Janeiro recordam-se e sente n'alma a vibração das musicas daquella época: os chorões do luar, os bailes das casas de familias, aquellas festas simples onde imperavam a sinceridade, a alegria expontanea, a hospitalidade, a communhão de idéas e a uniformidade de vida! (PINTO, 1936, p. 10). O choro se consolidou como gênero musical nos mesmos ambientes que o samba, em encontros, festas e reuniões realizadas principalmente por negros no fim do século XIX e início do selo XX, no Rio de Janeiro. Desta forma, trago uma reflexão sobre a roda como espaço que proporcionou o desenvolvimento da música, tendo como referência os trabalhos de Moura (2004) e Lara Filho et al (2011). Moura (2004) considera que a fusão dos ritmos europeus com os africanos resultou em uma questão estética musical, que originou o samba, o choro, e outros gêneros brasileiros. Mas o autor afirma que a roda, enquanto espaço físico e que agrega as pessoas proporcionando diálogos, é mais antiga do que os gêneros musicais referidos, e que das práticas musicais utilizando de seu formato culminou o desenvolvimento e a formação do samba. “Foi na roda que aqueles gêneros se fundiram até produzirem outra forma musical” (p. 34). Para o autor, a roda de samba configura-se como “(...) uma ampliação do espaço doméstico, o espaço onde o trabalhador dá lugar ao boêmio e a rotina cede vez à criatividade (...).” (p. 37). É também “reunião de pessoas ligadas por afinidades existenciais 84 muito claras. Pessoas que ali vão à busca de recreação e companhia. Que fazem na roda a sua cabeça e fortalecem suas convicções de sambistas” (p. 54). Lara Filho et al. (2011), apoiados no trabalho de Moura (2004) e ampliando as discussões sobre as rodas de samba e de choro, afirmam que [...] as características das Rodas guardam importantes semelhanças. Do mesmo modo, capoeira e candomblé são exemplos de manifestações de raiz negra que também reúnem características semelhantes às das Rodas de Samba e Choro. Para o caso da segunda, a análise de MOURA (2004) sobre as Rodas de Samba é particularmente pertinente, pois ambas são manifestações culturais em que a música desempenha o principal papel, diferentemente da capoeira e do candomblé, em que elementos de luta, dança e religião são tão importantes quanto a música. Como no caso do samba, a Roda antecede o Choro e é sua matriz física; não foi o Choro que criou a Roda, mas o contrário [grifo meu]. Ao longo de sua existência, o gênero incorporou instrumentos, alterou formas e harmonias, criou novos estilos e sofreu uma série de outras modificações. Mas a Roda permaneceu. Mais do que apenas um dentre vários contextos em que o Choro ocorre, a Roda é elemento fundamental na geração, preservação e divulgação desse gênero musical (MOURA, 2004, p.29). Assim, as características de performance e contexto presentes na Roda são, sem dúvida, cruciais para o entendimento da natureza do Choro (p. 150). Foi, portanto, na interação entre as pessoas nas rodas que se fez a música, se criou, improvisou e se estabeleceram suas principais características. A roda de choro é uma prática social, em que as pessoas se encontram para tocar seus instrumentos, podendo haver cantores (ou não). A música é o principal elemento que une as pessoas, e a partir desse encontro musical, muitas coisas acontecem; relações são criadas e cultivadas, a percepção do outro ocorre com constância por meio de sons, gestos, olhares e outras formas de diálogos, o repertório de cada um é ampliado, o conhecimento da cultura é aprofundado e ganha significados que são (re) elaborados por cada indivíduo a partir da interação com os outros. Segundo Oliveira et al (2009, p. 4): Práticas sociais decorrem de e geram interações entre os indivíduos e entre eles e os ambientes, natural, social, cultural em que vivem. Desenvolvem-se no interior de grupos, de instituições, com o propósito de produzir bens, transmitir valores, significados, ensinar a viver e a controlar o viver, enfim, manter a sobrevivência natural e simbólica das sociedades humanas. Em práticas sociais vivenciam-se experiências, e as experiências que cada um vive, vão se somando e fazem parte do processo de constituição do sujeito enquanto ser social e cultural, que vive no mundo com os outros. Segundo Larrosa Bondía (2002, p. 21) “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca”. O que nos acontece diariamente? O que nos toca em conversas, em trocas de olhares, em observar e viver a vida? O autor alerta que a experiência, neste sentido, é cada vez mais rara. Passam-se muitas coisas diariamente, mas o que realmente nos toca, o que vivenciamos, é cada vez mais escasso. Atribui à escassez de vivências de experiências alguns fatores da vida moderna, como o excesso de informações, a necessidade de absorver esse excesso de 85 informações, o excesso de trabalho, os quais resultam na falta de tempo. O viver acaba sendo tomado pela busca da informação, pelo trabalho (LARROSA BONDÍA, 2002, p. 22-23). A roda de choro é um espaço em que uns estão com os outros, no sentido mais profundo da expressão. Obviamente todos estão juntos ali, mas o estar com o outro, neste caso, é ouvir o outro, perceber o outro, respeitar e ser respeitado, tocar da maneira correta e nas horas corretas, de acordo com o que o grupo se propõe em cada momento de uma música. Isso faz com que a prática social seja realmente realizada de forma coletiva, mesmo que haja um ou mais líderes, pois isso é próprio de algumas culturas: todos ali são ouvidos nos momentos em que se fizerem ouvir, inclusive quem não estiver tocando. Oliveira et al (2009, p. 7) consideram que “nas práticas sociais promove-se formação para a vida na sociedade, por meio dos processos educativos que desencadeiam, [e] assim tem sido em todas as sociedades, ao longo da história humana”. Esses processos educativos decorrentes de práticas sociais não são, necessariamente, processos sistematizados de um para o outro, de forma que a pessoa deva acumular determinado conhecimento em um tempo pré-definido. São os conhecimentos que o indivíduo adquire por meio de experiências, de vivências. São saberes construídos ao longo da vida, os quais formam e transformam a consciência, trazendo às pessoas compreensões de mundo, sentidos e significados para a vida com os outros. Fiori (1986, p. 3), ao discutir sobre educação e conscientização, aponta que estas “se implicam, mutuamente. [...] Educar, pois, é conscientizar, e conscientizar equivale a buscar essa plenitude da condição humana”. Com o entendimento de que “(...) ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 2005, p. 79), compreendemos que ocorre educação no ambiente da roda de choro, e, no tocar e cantar coletivamente, de improviso, a partir de e na criação de diálogos entre todos os presentes, todos se educam concomitantemente. É uma educação que difere da visão tradicional, pois não há conteúdos programados, ela abrange a aprendizagem de elementos musicais de forma sensitiva (afinação pelo cantar e pelo ouvir, arranjo e dinâmica na compreensão dos gestos, ritmo ao cantar batendo palmas, etc.), e também aprendizagens para a vida em comunidade, respeito aos outros e à música, autocompreensão do eu com os outros no fazer musical, na prática social da roda de choro. Processos educativos nas rodas de choro Para realizar a pesquisa foram utilizados procedimentos metodológicos da observação participante, uma vez que “(...) nesse tipo de observação o observador é parte dos eventos que estão sendo pesquisados” (VIANNA 2007, p. 50), como registros de: observações em diário de campo; conversas; fotografias e filmagens. Tivemos como fundamento a pesquisa etnográfica, que tradicionalmente é utilizada “para a descrição dos elementos de uma cultura específica, tais como comportamentos, crenças e valores, baseada em informações coletadas mediante trabalho de campo” (GIL, 2010, p. 40). Pode-se dizer que a pesquisa etnográfica tem como propósito o estudo das pessoas em seu próprio ambiente mediante a utilização de procedimentos como entrevistas em profundidade e observação participante. [...] As pesquisas etnográficas contemporâneas não se voltam para o estudo da cultura como um todo nem são desenvolvidas necessariamente por pesquisadores estranhos à comunidade em que o estudo é realizado (GIL, 2010, p. 40-41). 86 A partir de estudos bibliográficos sobre o tema e das observações e entrevistas realizadas com alguns músicos, chegamos às conclusões que a linguagem musical do choro se estabelece para cada indivíduo na convivência e na interação com os outros nas práticas do choro. Essas práticas não envolvem somente as rodas, mas também os ensaios, as apresentações musicais, as aulas de música (para aqueles que as tiveram), a audição de discos e as conversas sobre choro abrangendo desde aspectos da história até diferentes maneiras de se tocar os ritmos, instrumentos e músicas características do gênero. É nessas práticas que o chorão se forma, com muita dedicação individual também, pois choro não é uma música fácil de se tocar: exige domínio técnico dos instrumentos, conhecimento abrangente de repertório, criatividade, improviso e respeito. Mas o chorão se estabelece como tal em rodas de choro. Na roda põe em prática tudo aquilo que estuda em casa, aprende ouvindo discos ou em aulas, e se alimenta das ideias musicais sugeridas por outras pessoas que passam por processos semelhantes de estudo e audição musical no plano individual. Na roda as experiências de cada um se somam e são compartilhadas, e isso se dá na interação entre as pessoas. A comunicação é fundamental dentro de um grupo musical, a não ser que todos estejam tocando suas partes muito bem decoradas, ou o tipo de interpretação musical não exija que haja diálogos no decorrer da música. Independentemente disso, o diálogo musical sempre acontece. Mas no caso de um concerto em que todos estejam lendo uma partitura – e apresentem habilidades suficientes para que a música aconteça com fluência apenas fixando-se o olhar na partitura e o ouvido nos demais instrumentos –, não me parece ser necessário que sempre ocorra um tipo de comunicação corporal, gestual ou verbal. Mas em uma roda de choro, de samba, ou de outros gêneros da música popular brasileira, o diálogo intenso é fundamental para que a música seja interpretada com clareza, com boniteza, como diria Paulo Freire, e isso faz parte da cultura de expressões artísticas realizadas no formato de roda. Os instrumentos solistas26 (bandolim, saxofone, flauta, piano, sanfona, violino) conversam bastante entre eles. Durante as músicas eles se revezam; enquanto um toca, o outro pode não tocar, mas pode também fazer melodias secundárias em contraponto com a principal. Nesses momentos o diálogo musical é nítido, pois ocorrem jogos de pergunta e resposta entre os instrumentos. E nos momentos em que há mais de um solista não é necessariamente dito quem vai tocar e quando deverá entrar na música; isso é definido pela comunicação gestual, pelos olhares e pelo som dos instrumentos. O cavaco e o pandeiro são instrumentos que dialogam bastante entre si dentro da roda, pelo papel de condução rítmica que eles desempenham. Apesar de o cavaco ser um instrumento de cordas, que toca os acordes da música, ele conduz o ritmo e “brinca” constantemente junto com o pandeiro. Os violões, de seis e de sete cordas, cumprem papel harmônico (tocando os acordes da música). O violão de sete cordas, com uma corda mais grave, toca melodias em contraponto com a melodia principal da música, utilizando as notas graves, os baixos. Essa linguagem do violão que fraseia nos baixos é chamada baixaria. Quando há mais de um violão de sete cordas na roda é preciso definir um para fazer as baixarias, pois, mais de um violão fraseando nas notas graves, fazendo linhas melódicas ao mesmo tempo, faz com que o som fique embolado, confuso. E por tradição, no choro, apenas um violão deve cumprir esse papel, ficando os demais com a função do violão de seis cordas, de tocar a harmonia, podendo também tocar algumas passagens nos baixos junto com o violão de sete cordas, 26 São os instrumentos que tocam a melodia da música, ou seja, fazem a maior parte dos solos. Por isso são os solistas. 87 formando frases em terças, sextas e outros intervalos.27 Numa roda de choro com mais de um violão de sete cordas, apenas uma pessoa deve fazer o papel do instrumento ou pode ser combinado um revezamento. Esses combinados podem ocorrer verbalmente, pela imposição de um sobre o outro (a pessoa toca os baixos e os demais que se virem), ou por interações de olhares e musicais também. Tanto no caso dos instrumentos solistas como dos violões (ou quando há mais de um pandeiro e de um cavaco na roda), os músicos se olham e quem for tocar deixa claro com seu olhar que irá começar em instantes; ou, então, com o olhar entrega a responsabilidade para outra pessoa. Não só o olhar, mas a expressão corporal como um todo é fundamental nesses diálogos: é a intenção de tocar expressa no corpo da pessoa que é compreendida pelos demais. Essa intenção muitas vezes é colocada no próprio instrumento, que, na verdade, parece fazer parte do corpo do músico naqueles instantes. Bernardes (2011) discorre sobre processos de aprendizagem musical em disciplinas de percepção musical nos cursos de graduação. Segundo a autora, a disciplina, de uma maneira geral, adota padrões de treinamento auditivo herdados do ensino musical tradicional europeu, e muitas vezes foca o aprendizado na teoria, na leitura e escrita musical, por meio de ditados e solfejos28, enquanto que o ouvir, o fazer musical e a criação são deixados num segundo plano. A autora critica esse modelo de ensino e aprendizagem da percepção musical: E de fato, o treinamento auditivo leva os alunos a ouvirem, a lerem e a escreverem. Mas a grande questão é a qualidade dessa audição e dessa leitura, ou seja, até que ponto a linguagem musical estaria sendo introjetada, assimilada e compreendida através desse treinamento? Ditados e solfejos, quando trabalhados assim, de modo restrito, são essencialmente atividades de reconhecimento e reprodução, que não aprofundam nem abrangem as possíveis significações e sentidos articulados pela linguagem. Estariam então sendo suficientes para garantir sua compreensão e domínio? (BERNARDES, 2011, p. 76). Na cultura musical do choro, assim como em outras músicas populares, a percepção é desenvolvida coletivamente, no fazer musical. A linguagem é compreendida no tocar com os outros, no ouvir os outros e no exercício individual de aprimoramento técnico e de ampliação de repertório. Concordo com Bernardes (2011), quando ela afirma que “a constituição da linguagem musical é anterior e independe do processo de alfabetização” (p. 81), pois assim acontece, historicamente, na cultura do choro. Os processos de aprendizagens no choro, assim como em outras culturas populares, não são desorganizados, apenas não são lineares. Cada indivíduo elabora sua sistematização de conhecimento de repertório, de treinamento técnico dos instrumentos, de participação em rodas, grupos, ensaios, de audição de discos e da observação de músicos mais experientes. 27 Intervalo musical é a distância entre um som e outro. A nota Mi, por exemplo, está uma terça acima da nota Dó, pois entre elas há três notas (Dó, Ré e Mi). Quando tocadas juntas, Dó e Mi formam uma terça. Uma frase musical em terça ocorre quando uma melodia com dois sons simultâneos é tocada, mantendo-se essa relação de terças entre todas as notas. 28 Ditado musical: o professor toca algo que os alunos devem reconhecer e escrever em partituras; Solfejo: os alunos leem uma melodia e entoam as notas com a voz, sem o acompanhamento de um outro instrumento musical. 88 A respeito disso, Sandroni (2000) apresenta discussão em que critica a visão de que o aprendizado extraescolar é desorganizado, ou sem sistematização. Hoje já é quase um lugar comum admitir que é possível aprender música fora das escolas de música. Mas é preciso reconhecer que ainda temos uma tendência renitente a pensar que o modo como se aprende fora delas, em alguma medida, é menos importante, ou mesmo irrelevante. O fato é que é muitíssimo comum empregar, para se referir a modos extraescolares de aprendizagem, expressões como “informal” e “assistemático”. A palavra “informal” tem uma conotação muito simpática, que é a de “relaxado”, “descontraído”. Mas é preciso não esquecer que literalmente ela significa “destituído de forma”, “desorganizado”. [...] Parece-me que o emprego destas expressões denuncia antes de mais nada nosso desconhecimento dos modos pelos quais funcionam os variados aprendizados extraescolares. Elas refletem antes nossa ignorância sobre as “formas” e “sistemas” destes aprendizados do que a ausência, ali, de tais atributos. Não existe educação espontânea; ela não apenas transmite cultura, a educação é ela mesma um artefato cultural, e como tal, por definição, algo de elaborado, organizado. Que sua organização seja difícil de ver , não nos autoriza a considerá-la inexistente” (p. 20). Concordamos com Sandroni (2000) que a educação na vivência da cultura não seja algo desorganizado. Há sistematização do aprendizado, e isso não se dá de um para o outro, é gerido por cada indivíduo na interação com as outras pessoas, e isso ocorre com os músicos que se (re) alimentam de conhecimento na roda de choro. O esquema a seguir procura representar o aprendizado na roda de choro. É um esquema circular, pois não necessariamente tem começo, meio e fim; cada músico trilha um caminho que se inicia em algum ponto do círculo, mas que dialoga com a maioria ou com todos os outros e pode tomar rumos diferentes a partir da interação com outras pessoas. 89 Fig. 1 - Aprendizagem musical do choro. Todos os elementos do círculo, “rodas de choro”, “estudo individual e com outras pessoas”, “aulas de música”, “audição de discos”, “ver alguém tocar” e “imitação” são motivos que podem gerar o contato inicial do indivíduo com o choro. A partir do contato inicial, cada um passa por caminhos diferentes neste aprendizado circular; e a vivência nas rodas de choro é essencial. A interação que a roda promove, gera, por sua vez, motivações para retornar aos procedimentos em torno do círculo. O que se aprende na roda é praticado em outros momentos, como por exemplo: ao ouvir choros que não conhecia ainda, a pessoa tem motivação para buscar gravações e conhecer melhor; ao se ter dificuldades técnicas para tocar as músicas, tem-se motivação para estudar, individualmente ou com outras pessoas, e também para levar dúvidas para a aula de música, quando for o caso; ao ver pessoas mais experientes tocando na roda, tem-se o exemplo para tentar imitar, e isso é levado para os estudos externos à roda também. A roda é o principal ambiente de expressão do choro, e é também a fonte que alimenta o desejo pelo fazer musical, pelo conhecer da cultura. Freire (1992, 2005) afirma que despertar a curiosidade epistemológica nos sujeitos é algo essencial nas práticas educativas dialógicas, humanizadoras e libertadoras. Desta forma, a roda de choro é uma fonte que gera e supre curiosidades epistemológicas dos sujeitos, não só no fazer musical, mas na subjetividade comunicada pela música, nas relações estabelecidas por meio de significados constituídos entre as pessoas que vivenciam uma cultura. As pessoas se conscientizam nesse processo dialógico, o que gera aprendizagens que se levam para além da música. Não só os conhecimentos musicais são ampliados, mas a compreensão da cultura, o respeito ao próximo, o saber ouvir quando necessário e dizer nas horas certas, expressos nos diálogos entre as pessoas e os instrumentos da roda. Parar, sentir, se expressar, olhar no olho, olhar no corpo, sentir o som do outro, fazer e compreender gestos. Generosidade, afetividade, memória, cultura. Tudo proporcionado pelo amor à música, que reúne as pessoas. A música popular se desenvolve no encontro de pessoas, como foi o caso do samba e do choro, nas rodas nas casas de pessoas negras que se encontravam para se divertir, sociabilizar e expressar sua arte. A música que ali se formou é expressão da vida das pessoas e assim vem sendo desde os fins do século XIX. Muitas transformações acompanharam o desenvolvimento da sociedade, mas a essência, que é a reunião de pessoas em torno do fazer musical, quando cada um expressa e reelabora suas compreensões de mundo, não se perdeu. Nas palavras de Márcio Modesto, flautista do conjunto Chorando na Sombra, Aprende-se de repente algo não da música, é saber dividir as coisas, saber compartilhar com outras pessoas (...). Então, você não vai chegar numa roda de choro e tocar tudo sozinho. Naturalmente vai rolar essa interação, essa conversa, mesmo que não seja conversa mesmo. Se um cara chegar e tocar sozinho, a gente já sabe muito bem por experiência própria, digamos, que é horrível. Enfim, músicos aí que a gente sabe que entram e tocam tudo sozinho, não dividem. E aí a roda já perde praticamente o motivo (Márcio Modesto). Na compreensão de Márcio, a roda não tem sentido se alguma pessoa quiser discursar sozinha. Como ocorre em ambientes de trabalho, reuniões, elaboração de 90 projetos e outros fazeres coletivos, na roda de choro pode haver pessoas que não estejam dispostas ao diálogo. Esse tipo de situação também gera aprendizado, pois, ao observar como a roda perde o sentido quando alguém quer discursar sozinho, elabora-se e reelabora-se a compreensão da importância de todas as pessoas naquele ambiente, e a função dialógica da música popular, em sua essência. A partir das conversas com os participantes da pesquisa a respeito do que se aprende na roda de choro, e sobre como tais aprendizagens contribuem para a formação e conscientização das pessoas, pudemos ampliar o esquema apresentado na figura 1, como demonstrado a seguir: Fig. 2 – Processos educativos na roda de choro O círculo representa a cultura de uma maneira geral. A roda de choro não está no centro do círculo, pois dentro dele estariam também outras culturas que cada indivíduo vive (cultura erudita, de massas, outras práticas sociais, etc). Em cada uma delas, como no caso da roda de choro, adquirem-se experiências diversas, aprendizagens diversas, por diferentes processos que formam o indivíduo enquanto ser social e cultural. Essas diferentes culturas podem dialogar entre si ou não. Por exemplo, o que se vive numa roda de choro dialoga com o que se vive em outras rodas de música, mas não necessariamente dialoga diretamente com vivências de um ambiente de trabalho do qual a arte não faça parte. 91 Nessas vivências coletivas, nas rodas de choro, em que os significados musicais são expressos, sentidos e compreendidos, onde cada sujeito doa de si e recebe dos outros, numa relação de respeito, generosidade e amor à música e aos que ali estão, é por meio de diálogos, na interação entre as pessoas que as sensações são transmitidas e absorvidas. Processos educativos acontecem, portanto, na interação entre as pessoas na roda de choro. Considerações De um modo geral, os livros e pesquisas que dão conta da história da educação musical a consideram num plano formalizado de ensino, apontando como suas raízes a sistematização do ensino musical que se inicia no país com os jesuítas, “caracterizado por um rigor metodológico e a imposição da cultura lusitana (europeia). Por influência dos jesuítas, o ensino de música continua a cargo da Igreja durante todo o período colonial” (MACHADO et. al., 2010, p. 33). Ao longo dos quinhentos anos de Brasil, a música é uma das ferramentas utilizadas nos processos de dominação cultural, a princípio pelos portugueses e demais europeus, e atualmente pela cultura norte-americana também. A imposição da cultura musical europeia foi utilizada nas tentativas de catequização de índios e negros escravos, sendo uma das maneiras de aniquilar suas culturas impondo os padrões de vida europeus no território “descoberto” na América. Mas no âmbito da música popular, a educação musical acontece, historicamente, à margem dos sistemas formais de ensino; em encontros, festas, rituais religiosos e outras práticas sociais. Compreender como ocorrem processos educativos na cultura popular é fundamental para ampliar as discussões sobre processos de ensino e de aprendizagem, sejam tais processos musicais ou não, formais ou não. Essas compreensões, de processos educativos na prática social da roda de choro, partem principalmente das observações e das conversas realizadas com os participantes da pesquisa. São, portanto, leituras do pesquisador sobre algo que é próprio da cultura popular - as aprendizagens em comunhão -, e que existem independentemente do conhecimento acadêmico na área. A cultura popular ainda está distante dos sistemas de ensino, seja escolar ou universitário; esperamos que as reflexões aqui propostas possam contribuir para uma aproximação, pois tratamos de processos educativos presentes na cultura popular, partindo da visão de uma delas, a da roda de choro. Referências BERNARDES, V. A percepção musical sob a ótica da linguagem. Revista da ABEM, numero 6, p. 73-85, setembro de 2001. Disponível em: http://www.abemeducacaomusical.org.br/Masters/revista6/artigo_8.pdf. Acesso em 29/06/2012. FIORI, E. M. Conscientização e Educação. In: Educação e Realidade. 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Ele alimenta o roteiro para a realização de entrevistas com os três responsáveis pelas propriedades históricas selecionadas, com os funcionários mais antigos, com os monitores e visitantes/turistas. Esse processo está sendo realizado a partir de uma metodologia de caráter qualitativo (História Oral) com ênfase em duas técnicas: a entrevista aberta e o depoimento temático. Em uma segunda fase da pesquisa, o conteúdo das entrevistas realizadas será organizado tematicamente e analisado à luz das produções mais recentes de Educação Patrimonial. Palavras-chave: Educação não-formal. Educação patrimonial. Fazendas históricas Abstract: The central question of this PhD research is in progress to analyze the actions of non-formal education equity, carried out under the rural São Paulo and geared for adults and older people from different social classes. In this project, the heritage is explored as a space tourist education within a vision of non-formal heritage education in the rural context, involving the tangible and intangible heritage. For the investigations that address the objectives of the research is being done an extensive literature on the topics of research. He feeds the script for the interviews with the three responsible for historic properties selected, with the oldest employees, with the monitors and visitors / tourists. This process is being conducted from a qualitative methodology (Oral History) with emphasis on two techniques: the open interviews and thematic statement. In a second phase of the research, the content of the interviews will be organized thematically and analyzed in the light of recent productions Heritage Education. Key-words: Non-formal education. Heritage education. Historic farms. Educação patrimonial não formal e o contexto rural paulista Introdução: Bacharel em Turismo pela UNESP. Mestre em Gerontologia pela UNICAMP. Atualmente é doutoranda em Educação pela UNICAMP na área de Ciências Sociais na Educação – DECISE e integrante do grupo de estudos e pesquisa em educação e diferenciação sócio-cultural - GEPEDISC. E-mail: [email protected]. 29 94 A presente pesquisa tem como objetivo analisar a contribuição da educação patrimonial e do turismo cultural no espaço rural, visando a melhoria da compreensão da realidade rural paulista, por parte dos turistas, assim como a melhoria da qualidade de vida do cidadão urbano, através de um turismo cultural em espaço rural que explique e contextualize a relação urbano/rural, tanto para jovens como para adultos e idosos. O espaço empírico da presente pesquisa é o das fazendas históricas paulistas, selecionadas pelo projeto em Políticas Públicas em andamento denominado: Patrimônio Cultural Rural Paulista: espaço privilegiado para pesquisa, educação e turismo (Oitava Chamada para o Programa de Pesquisa em Políticas Públicas – PPPP). O projeto é financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP, em parceria com o Centro de Memória UNICAMP, e está em sua segunda fase, ao qual a presente pesquisa está vinculada. O projeto PPPP/FAPESP reúne dezoito propriedades em regiões significativas do Estado de São Paulo, sendo essas definidas pelos núcleos regionais compostos pelas cidades de Campinas, Limeira-Rio Claro, São Carlos-Araraquara, Itu, Mococa- Casa Branca e Vale do Paraíba. A Associação das Fazendas Históricas Paulistas atualmente é uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) responsável por reunir essas propriedades históricas dos séculos XVIII, XIX, e início do século XX que trabalham com turismo no espaço rural. O projeto tem como objetivo principal disponibilizar um conjunto de instrumentos e de metodologias de gestão, de conservação e de difusão para os responsáveis por esse patrimônio cultural rural, tanto os proprietários quanto as respectivas instâncias públicas pertinentes à área da cultura, da educação e do turismo. Segundo o coordenador do projeto, Tognon (2007) o Patrimônio Cultural Rural pode ser definido como o conjunto de registros materiais e imateriais decorrentes das práticas, dos costumes e das iniciativas produtivas que se estabelecem, historicamente e territorialmente, na área rural. O pesquisador responsável pelo PPPP/FAPESP ainda ressalta que tal Patrimônio Cultural Rural possui um perfil múltiplo, em escalas e tipologias, que contemplam não só as fazendas históricas e os complexos produtivos antigos, mas também usinas e barragens para a implementação das pioneiras redes de produção e distribuição de energia elétrica do campo e da cidade, pontes, diques, ferrovias, enfim, registros edificados no território agrário que se somam aos acervos artísticos, bibliotecas, arquivos, equipamentos e máquinas, festas e arte popular, hábitos, costumes, crenças e modos de fazer. 95 Por se tratar de um quadro complexo de questões que exigem uma abordagem ampla e multidisciplinar o projeto propõe um grupo de pesquisa estruturado em três núcleos temáticos: Inventário e Catalogação, Preservação e Sustentabilidade e Educação Patrimonial e Turismo, A atual pesquisa esta vinculada ao núcleo temático Educação Patrimonial e Turismo, sendo que o patrimônio é explorado como espaço turístico-educacional dentro de uma visão de educação patrimonial não formal no contexto rural, envolvendo os patrimônios materiais e imateriais, para públicos de diferentes idades, formações educacionais e classes sociais diversas. Para Barretto (2000, p. 19) a área do turismo que dialoga com o patrimônio cultural é justamente aquela do turismo cultural, estando relacionada a todo turismo cujo principal atrativo não seja a natureza, mas algum aspecto da cultura humana. A outra face da discussão que este projeto propõe é a da educação não formal, que assim pode ser definida: A educação não formal, por poder lidar com outra lógica espaçotemporal, por não necessitar se submeter a um currículo definido a priori, por dar espaço para receber temas, assuntos, variedades que interessam ou sejam válidos para um público específico naquele determinado momento e que esteja participando de propostas, programas ou projetos nesse campo, faz com que cada trabalho e experimentação sejam únicos. E, por envolver profissionais e frequentadores que podem exercitar e experimentar outro papel social, que não o representado na escola formal (como professores e alunos), contribui com uma maneira de lidar com o cotidiano, com os saberes, com a natureza e com a coletividade (SIMSON, PARK, FERNANDES, 2007, p. 13). As atividades de educação patrimonial, geralmente se desenvolvem em espaços escolares sob a égide das disciplinas de Estudos Sociais, História, Geografia e Ciências, portanto, com maior frequência em espaços urbanos e voltados preferencialmente para crianças e adolescentes. Desse modo, as preocupações com o turismo cultural em espaço rural e com a educação patrimonial e suas possibilidades de desenvolvimento, via educação não formal, como um aspecto da chamada educação continuada e permanente30, surgiram a partir de Educação continuada é o nome dado ao processo globalizado e contínuo que visa a formação integral da pessoa, para o atendimento de necessidades e aspirações de natureza pessoal, profissional e ou social, englobando tanto o percurso pelos níveis de ensino (educação escolar) como o atendimento pela variada oferta da educação não formal. Educação permanente é o nome dado ao a educação de jovens e adultos que se destina aos que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio e deve ser apropriada às 30 96 um desdobramento de estudo anterior, a dissertação de mestrado31, que configurou uma base para os novos estudos do doutorado. Pudemos perceber que o trabalho educacional não formal nesses espaços históricos pode ser oferecido para diferentes faixas etárias e para grupos oriundos de classes sociais diversas, pois existem atividades turísticas e educacionais gratuitas. Assim, salienta-se a possibilidade do desenvolvimento de uma educação não formal, não estando restrita ao espaço urbano, e que será desenvolvida em espaço rural possibilitando a compreensão por parte dos educandos do contexto agrário cafeeiro e do patrimônio material e imaterial por ele produzido. Defendo que a educação com o patrimônio possa pensar em ter como metodologia a criação de uma narrativa que provoque o diálogo com o indivíduo, baseada nas experiências de ambos, respeitando sua história de vida (CABRAL, 2004, p. 40). Para a “interpretação do patrimônio e seu correlato planejamento interpretativo, são ressaltados os relatos orais e o seu registro, por meio de diferentes suportes escritos e/ou audiovisuais.” (FREIRE E PEREIRA, 2002, p. 53). Os autores ressaltam que as expressões locais – falas do tempo, a memória que repousa no imaginário coletivo, de onde também brota a criatividade humana, representam um recurso importante que amplia e aprofunda a participação da comunidade, contribuindo de forma especial para desenvolver um sentido de lugar, transmitir seus valores, sua ecologia e sua história para as novas gerações. E mais, esses relatos orais enriquecem o estoque de referências necessárias para inspirar soluções diante do novo, do inusitado, do que vem “de fora” trazido pelo turismo, num determinado momento, mas que logo se tornará passado e também se consubstanciará como memória. Park, Fernandes e Carnicel (2007) ressaltam que as práticas, na área da chamada educação não-formal, também têm-se embasado em trabalhos que privilegiam a memória, características do alunado, a seus interesses, condições de vida e de trabalho. Disponível em: http://ww.inep.gov.br/pesquisa/thesaurus/. Thesaurus Brasileiro da Educação. Acesso em 10 de jan. 2011. O Mestrado teve como objetivo investigar e analisar as formas pelas quais duas propriedades rurais históricas paulistas se preocupavam em proporcionar atividades voltadas para o lazer de idosos, trabalhando o turismo cultural com uma preocupação voltada à educação patrimonial não formal. É importante salientar, que trabalhamos a relação velhice e turismo em uma perspectiva educacional não formal e não apenas na perspectiva operacional, como é feito nas áreas mais tradicionais do turismo: a da gestão hoteleira ou a administração das empresas turísticas. Desenvolvido junto ao Programa de Pós – Graduação em Gerontologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). 31 97 pois esta facilita a reconstrução identitária do educando. Os autores apontam que isolamentos culturais podem ser rompidos e a autoestima dos grupos de educandos e de seus familiares sofre crescente valorização, através das experiências educacionais realizadas fora do espaço escolar. Para que ocorra a proposta de educação não formal é necessário um local no qual todos tenham espaço suficiente para experimentar atividades lúdicas, estas entendidas como tudo aquilo que provoque a imaginação e seja envolvente e vá ao encontro de interesses, vontades e necessidades de crianças, adultos e idosos, sem preocupação com avaliações ou certificações. (SIMSON, PARK E FERNANDES, 2001, p. 17). A educação não-formal se caracteriza por possibilitar a transformação social, dando condições aos sujeitos que participam desse processo, de interferirem na historia, por meio de reflexão e de transformação. Todos os educandos, buscam o não formal como espaço de experiência e vivência ampliada de educação, sendo lugar de formação no cotidiano sem promover segregações por idade, classe social, etnia, gênero, habilidades maiores ou menores (PARK, FERNANDES & CARNICEL, 2007, p. 32). Em se tratando da educação não formal envolvendo grupos de idosos, há uma constante troca de saberes entre esses participantes e os próprios educadores, pois todos pensam na prática a construção de um conjunto de ações, reflexões e produções, devido a uma ampla concepção de educação. Pensando nas atividades de educação patrimonial não formal, a educação patrimonial segundo Possati (2005) tem a missão de criar atividades voltadas para o bem estar da comunidade local, não apenas para que se torne uma localidade viável para a promoção do turismo, mas principalmente para que também seja despertado em seus moradores o sentimento de valorização da sua história. Barretto (2001) afirma que a preservação do patrimônio pode ser tanto causa, como consequência do turismo, e a prática turística pode constituir um processo de aprendizagem constante. É necessário que fiquemos atentos para este patrimônio no sentido de sua preservação, identificação, documentação, proteção, valorização e revitalização dos bens intangíveis, como tradições e expressões orais, expressões artísticas, práticas sociais, atos festivos, técnicas artesanais tradicionais, e sugere-se que a transmissão desses bens ocorra essencialmente por meio da 98 educação formal e não formal. (PELEGRINI E FUNARI, 2008, p. 38). Desse ponto de vista, o patrimônio imaterial ou intangível dá alma aos espaços concretos monumentais sendo transmitido de geração a geração e é conceituado a partir da perspectiva da alteridade, sendo considerado alvo de constantes recriações decorrentes das mutações entre as comunidades e os grupos que convivem num dado espaço social, do meio ambiente, das interações com a natureza e da própria história dessas populações. Em outras palavras, o patrimônio imaterial é o “saber fazer”, e o “saber viver” e não o seu produto. Nessa investigação que perpassa por toda a metodologia da educação patrimonial, cada objeto ou bem patrimonial carrega em si, impregnadas inexoravelmente, as impressões mentais de seus criadores. Os saberes, os fazeres, os quereres, os valores, as crenças, os mitos e os sonhos estão definitivamente integrados... Inútil querer separar a matéria do espírito de uma cultura, o material do imaterial, pois o saber, a vontade, a configuração dessa cultura permanecerão inatingíveis, se não se manifestarem em alguma forma sensível, se não se revelarem através de um meio ou suporte, para que sejam recebidos e reconhecidos por outros indivíduos (HORTA, 2005, p. 224-225). Para a autora, é desnecessária e inadequada, a dicotomia estabelecida e corrente entre o patrimônio material ou tangível e o imaterial ou intangível. Este, na qualidade de conteúdo, se expressa na matéria ou na realidade em forma de produtos, processos e fenômenos culturais percebidos e muitas vezes apropriados pelos membros de uma comunidade. É com essa visão que o imaterial ou o intangível se torna físico. Se não for assim, se não estiver contemplado nessa cultura ou subcultura ou não for vivenciado por um ou alguns indivíduos, simplesmente não existe. Uma ideia, um ritual, um sistema de relações de parentesco, mas também uma moradia, um bosque ou uma catedral existem somente através de seus atores, imersos em vários sistemas e processos, com poderosas capacidades para regular necessidades e adaptações às mudanças (SANTANA, 2009, p. 121). Partindo dessa discussão, entendemos que o papel da Educação Patrimonial é o de possibilitar que o patrimônio seja percebido como expressão de uma memória, através das possibilidades e intenções da sua ação educativa, e que segundo Amorim (2007) influências 99 exerça sobre nosso modo de viver, a fim de que passemos da mera contemplação e do consumo para a apropriação e produção desses bens culturais, como referencias da nossa construção identitária. Independentemente da atuação da escola, a sociedade vem desenvolvendo uma concepção própria de patrimônio, a partir de princípios nem sempre definidos e por meio de uma diversidade de ferramentas. (ZANON, MAGALHÃES E BRANCO, 2009, p. 51). Assim os autores destacam que o turismo apropria-se do patrimônio na sua prática, sendo um dos principais elementos de definição de roteiros e investimentos na área. Neste sentido, o profissional de turismo tende a preocupar-se com a questão do patrimônio histórico e cultural, indo além da arquitetura e inserindo, em suas reflexões, elementos como a cultura imaterial, entre eles festas, lendas, causos, costumes e tradições. Educação Patrimonial não formal e turismo cultural De modo geral as fazendas históricas do interior de São Paulo são possuidoras de um passado que lhes confere riqueza histórica e cultural únicas por possuírem paisagem típica rural e por apresentarem estruturas patrimoniais com significados específicos. Algumas podem ser mais privilegiadas como fazendas onde se hospedaram o Imperador Dom Pedro II e sua comitiva, sendo assim, possuidoras de relíquias da época imperial, no âmbito da arquitetura, do mobiliário, das festas, dos causos e da culinária, o que lhes confere um sentido de valor único. Autores têm ressaltado que o turismo se utiliza justamente deste patrimônio único que leva cada vez maior número de turistas a se interessarem por desfrutar da beleza cênica e da história do lugar. Assim o turista e o patrimônio cultural entram em sintonia, através de uma intensa interpretação dos signos locais que permitem a redescoberta de um passado, às vezes contrastante com o presente, mas sempre cheio de fatos eloquentes, que fazem parte das memórias familiares dos idosos paulistas. Assim, pensando em atividade educacional não formal no campo do patrimônio histórico, lembramos que a educação patrimonial: É um instrumento de “alfabetização cultural” que possibilita ao indivíduo fazer a leitura do mundo que o rodeia, levando-o à compreensão do universo sociocultural e da trajetória histórico – temporal em que está inserido (HORTA, 2003, p. 226). 100 Os primeiros escritos acerca do tema da educação patrimonial, de autoria de Maria de Lourdes Parreiras Horta, já questionavam os motivos e objetivos de se pensar em um processo educacional focado na evidência material da cultura. A pergunta básica, que pautava as discussões era: “Por que e como levar as crianças a voltar os olhos para o passado?” Horta (1984) afirma que a primeira resposta para essa questão poderia ser a de que a motivação deve atender às necessidades da criança e ser adequada ao seu nível de desenvolvimento intelectual e emocional. Carneiro (2009, p. 46) complementa a questão relacionando-a também aos interesses específicos “fundamentados nos elementos de cunho social e cultural da vida dos indivíduos, devendo, portanto, esta preocupação, ser estendida a quaisquer faixas etárias”. Carneiro (2009, p.126) ainda ressalta que um dos aspectos que a incomoda é a “educação patrimonial ser definida apenas como um instrumento de alfabetização cultural, considerando o público alvo como analfabeto para a leitura dos bens culturais”. Nesse sentido a autora conclui: Mais que um instrumento de alfabetização, a educação patrimonial é a possibilidade de diálogo, onde possa vir à tona as diferentes formas de interpretações possíveis, inclusive considerando a leitura do público influenciando a condução da análise (CARNEIRO, 2009, p.126). Nesse sentido, a colocação de Chagas complementa o argumento da autora: O campo da educação patrimonial não é tranquilo e não é pacífico; ao contrário, é território em litígio, aberto para trânsito, negociações e disputas de sentidos. Orientações, tendências e metodologias diversas estão em jogo nesse território. Toda a tentativa de reduzir a educação patrimonial a uma única metodologia também pode ser lida como tentativa de domínio hegemônico, controle e eliminação de diferenças. Conclusão: a denominada educação patrimonial não é por si só emancipadora ou repressora, fértil ou estéril, transformadora ou conservadora. Para além da educação patrimonial, interessa pensar a educação como alguma coisa que não se faz sem ter em conta um determinado patrimônio cultural e determinados aspectos da memória social; para além da educação patrimonial, interessa compreender a educação como prática social aberta à criação e ao novo, à eclosão de valores que podem nos habilitar para a alegria e a emoção de lidar com as diferenças (CHAGAS, 2004, p.145). 101 Ao se avaliar as experiências de educação patrimonial com as visitas monitoradas, tendo como exemplo a Casa de Dona Yayá, Centro de Preservação Cultural da Universidade de São Paulo (CPC-USP), Pinheiro e Pereira (2011) ressaltam a importância de se ter um bem tombado para promover a educação: É consenso que toda e qualquer ação educativa deve ser permanentemente avaliada, questionada e reformulada. Assim como no campo da preservação dos bens culturais, com seus conceitos altamente especializados e suas particularidades no tocante ao método e à necessidade de uma abertura à transdisciplinaridade, os programas de educação patrimonial também necessitam de um discurso coerente, democrático e, sobretudo, vinculado à prática cotidiana dos órgãos e dos profissionais que deles se ocupam (PINHEIRO; PEREIRA, 2011, p. 41). Assim, para a preservação e a educação por meio do patrimônio cultural é necessário também compreender o fenômeno turístico, diferenciar os seus diversos tipos e “atentar para que tipos de interferência e reações esses diferentes tipos de turismo provocam nas culturas em que atuam” (JÚNIOR AB, 2000, p. 29). Santana (2009) traz a reflexão de que toda essa segmentação, que parece interminável e que certamente continuará no futuro, devido às necessidades de renovação da própria atividade, se encontra perfeitamente contextualizada em um momento de recrudescimento de movimentos com preocupações socioambientais, de caráter também global que introduzem aqueles conceitos de “alternativa”, sustentabilidade e responsabilidade. Tognon (2003, p.163) complementa a ideia conceituando “os bens culturais como sendo os mais importantes resultados históricos da cultura humana na constituição do seu território”. Tal tema para o autor ganha, a cada dia, espaço nas políticas públicas e que aos poucos se estende pelo Brasil e se associa a programas de estímulos a polos turísticos. Pode-se perceber a amplitude que a atividade turística possui e que, ela remete a uma série de tipologias de turismo. E a tipologia de turismo que dialoga com o patrimônio cultural se refere justamente ao turismo cultural, que estaria relacionado a todo turismo cujo principal atrativo não seja a natureza, mas algum aspecto da cultura humana. (BARRETT0, 2001, p.57). Apesar das inúmeras propostas existentes e adotadas nos meios acadêmicos ou pelos estudiosos do turismo, o conceito de “turismo cultural” ainda é imprecisamente definido. Costa (2009) afirma que um conceito mais completo de turismo cultural deve ser 102 construído considerando-se também uma análise mais ampla das motivações de seus participantes, das características de seu objeto e de seu público, da interatividade ou vivência de experiências culturais e das possíveis inter-relações com a preservação e a educação por meio do patrimônio cultural. A atual pesquisa se preocupa em definir o turismo cultural no espaço rural estabelecendo uma relação com os espaços históricos das fazendas paulistas selecionadas, produzindo um conhecimento mais amplo do turismo como fenômeno social. Rodrigues (2000) lembra que a expressão turismo no espaço rural foi adotada oficialmente para designar as modalidades turísticas típicas do campo: turismo de habitação, turismo rural, agroturismo e hospedagem rural. Assim, é grande a diversidade de termos, conforme cada configuração socioespacial, o que faz com que o turismo assuma características próprias, de modo que não se pode falar, em um turismo rural, mas sim em um conjunto de práticas turísticas no espaço rural. Além disso, segundo estudos anteriores em relação às fazendas históricas paulistas, “geralmente os proprietários não fazem a distinção entre turismo e lazer” (CARVALHO E MOMESSO, 2001, p. 47). Dessa maneira, o turismo cultural é baseado no patrimônio histórico, arquitetônico, cultural e artístico enquanto produto da atividade humana, onde instalações abrem as portas para a exploração do passado (FAUSTINO, 2006, p. 43) sendo compatível e comprometido com o fortalecimento da identidade, a preservação da memória e do patrimônio cultural em lugares de destinação turística. (FREIRE E PEREIRA, 2002, p. 65). Barreto (2001) afirma que o patrimônio cultural resulta do conjunto de bens materiais e imateriais construídos por um povo e que acabam por delinear sua identidade. O turismo cultural se viabiliza, portanto, em grande parte, através da interpretação planejada e realizada junto com a comunidade, reconhecida por Aloísio Magalhães, desde os anos setenta, como a “melhor guardiã de seu patrimônio”, e que deve ser também a melhor anfitriã de seus visitantes. O turismo cultural efetiva-se quando da apropriação de algo que possa ser caracterizado como bem cultural, seja o que for, pois patrimônio cultural é tudo aquilo que constitui um bem apropriado pelo homem, com suas características únicas e particulares (FUNARI E PINSKY, 2005, p. 45). Na avaliação do autor, o turismo cultural abrange tudo que constitui parte do engenho humano e, por isso, pode estar no cerne do turismo. Almeida (2010) afirma que o 103 turismo pela cultura é, sobretudo, um consumidor sofisticado, ancorado nas cidades para uma adequada fruição de bens culturais, interessado um uma experiência de vida e de sentimentos. Assim, na presente pesquisa, toma-se a cultura como componente central dos deslocamentos visando o lazer e como importante instrumento de conscientização social. Juntamente com os impactos positivos do turismo na economia local, há sempre riscos de danos à natureza e à identidade local, trazidos pelos empreendimentos da área no setor, pois geralmente pequenas comunidades organizadas em torno de práticas culturais muito antigas, se veem bruscamente alteradas pela chegada de pessoas de estranhos costumes. Santana (2009) afirma que as formas de turismo praticadas, devem ser consideradas tanto no planejamento e gestão, quanto na análise dos produtos oferecidos, Park (2004) completa a ideia ressaltando que em uma lógica de mercado, parece-nos que vencerão aqueles capazes de articular propostas integradoras envolvendo geração de renda, inserção social, educação, turismo e identidade local. Assim, o turista cultural chega pedindo licença, e assim pode visitar a história, não só conhecendo as evidências materiais do passado, presentes em sítios, monumentos e objetos consagrados como patrimônio, mas também escutando ou lendo relatos e lembranças dos que vivenciaram e fizeram a história do lugar (GOODNEY E MURTA 2002, p. 35). Por meio do turismo cultural, o patrimônio tem mais condição de se tornar um recurso renovável, pois a atividade turística pressupõe o deslocamento de pessoas para apreciar a cultura de outras localidades e viajar para experimentar, o que permite ao longo do tempo, uma maior valorização dos bens culturais, sejam eles tangíveis ou intangíveis, mas sempre sob uma perspectiva sustentável. Dessa forma é necessário se pensar no turismo como um benefício ao patrimônio cultural e ao mesmo tempo, levar em conta os perigos de uma atividade turística descontrolada. Nesse caso, o turismo cultural passa a desencadear um processo entre passado e presente o que foi verificado nessas fazendas históricas, fugindo da idéia dos resorts e da artificialidade que os compõem. Nessas fazendas os proprietários rurais recebem os hóspedes, levam-nos para conhecer todo o funcionamento do lugar, o modo de vida, hábitos e costumes locais e fazem com que as pessoas entrem em contato, interagindo com o meio, seja através de passeios à cavalo, de caminhadas ou da participação nas atividades de plantio e colheita – atividades agrícolas. Um diferencial marcante é que os turistas são acomodados como amigos e 104 vivenciam a experiência como se fizessem parte da família (FAUSTINO, 2006, p. 23). Dessa forma, Cabral (2004) afirma que o patrimônio é um campo extraordinário onde as pessoas podem vivenciar uma série de experiências, sendo concebido como “campo de educação”. A autora ainda ressalta que para preservar o patrimônio, é preciso antes de tudo conhecê-lo, e é por isso que o patrimônio é campo de educação, ou seja, é necessário entender a educação como uma prática para a cidadania, compreendendo-a como a garantia de acesso aos conhecimentos produzidos historicamente pela humanidade e, simultaneamente como formadora de indivíduos críticos, criativos e autônomos, capazes de agir no seu meio e transformá-lo. Cabral (2004) finaliza afirmando que os indivíduos devem ser atores de seu próprio desenvolvimento, partindo daí a discussão do patrimônio a par com a questão do poder e das significações. Nesse sentido, Frisch (1990, p. 46) conceitua o empoderamento como um processo que possibilita a aquisição de habilidades e conhecimentos àqueles que estão alijados do poder. O autor afirma que, a partir de uma prática dialógica, o grupo pode conquistar a promoção de uma consciência histórica mais democrática e dessa forma pode se apropriar de uma gama mais profundamente representativa de experiências, perspectivas e valores. Outra autora lembra a importância da memória compartilhada para se obter o empoderamento de grupos dominados. Simson (2008) ressalta o processo que leva ao desenvolvimento da autoestima dos indivíduos e das comunidades, e à valorização de sua cultura, como propõe Paulo Freire em sua ideia de empoderamento, de reforço e capacitação para o exercício da autoafirmação, visando a construção de uma cidadania consciente. As reconstruções compartilhadas de processos histórico-sociais, via memória oral, podem redundar em argumentos políticos capazes de fornecer um certo poder aos grupos sociais estudados, permitindo a eles ganhos em suas lutas, sejam elas de caráter político, social ou cultural o assim denominado processo de empoderamento (SIMSON, 2008, p. 07). A autora afirma que o fator determinante do sucesso desse processo de construção é o domínio conjunto de um conhecimento novo, que depende da capacidade do pesquisador de traduzir as conclusões da investigação científica numa linguagem que seja facilmente compreendida pelo grupo pesquisado. 105 Uma estratégia reconhecida como eficiente para produzir situações de empoderamento é a educação não formal, que pode acontecer em espaços comunitários os mais diversos. Neste sentido, segundo Fernandes e Park (2007) a educação não formal, não tem, necessariamente, uma relação direta e de dependência com a educação formal. As autoras afirmam a educação não formal como um acontecimento que tem sua origem em diferentes preocupações com a formação integral do ser humano, no sentido de considerar contribuições vindas de experiências que não são priorizadas na educação formal. Passíveis de serem aplicadas a todos os grupos etários, de todas as classes sociais e em contextos socioculturais diversos, gerando oportunidades de crescimento individual e grupal pela participação em processos de transformação social (SIMSON, PARK, FERNANDES, 2001, p. 19). Entretanto, no caso das fazendas históricas o conteúdo referente aos patrimônios material e imaterial, a ser trabalhado via educação não formal, pode e deve ser diverso, segundo a origem social dos visitantes e a faixa etária dos mesmos, buscando avaliar também se as visitas às fazendas forneçam oportunidades sedutoras de aprendizagem enfocando questões de educação patrimonial, através do turismo cultural, nas quais o turista deixa de vivenciar uma posição passiva para se tornar um visitante ativo envolvido com a realidade a ser conhecida. Enfim, a atual pesquisa aqui proposta buscará analisar se uma educação que envolve o uso do tempo livre, já na fase escolar, e que deverá ter continuidade ao longo da vida, a partir de propostas de atividades de educação patrimonial no espaço rural visando os interesses, as competências e a identidade do turista, seja ele jovem, adulto ou idoso, está sendo desenvolvida nas propriedades históricas pesquisadas. Considerações Finais A pesquisa vem possibilitando, a partir da recuperação das propriedades rurais como bens culturais, ressignificar práticas e representações sociais que nelas ocorrem. A meta da interpretação sociocultural desses ricos patrimônios paulistas é estabelecer uma rede de descobertas para o visitante, estimulando o seu olhar, provocando a curiosidade e levando-o a descobrir muito mais sobre o lugar e seus habitantes, sua história, suas lendas, que valorizariam as atrações naturais e culturais das fazendas históricas, estabelecendo assim uma comunicação efetiva com o visitante e mantendo desse modo importantes 106 interfaces com o turismo cultural ao agregar valor histórico-cultural ao que se tornou um produto turístico. Assim, entre as possibilidades que contribuem para o processo de intervenção educacional voltada para jovens, adultos e idosos nas fazendas históricas paulistas, estão o turismo cultural no espaço rural e a educação patrimonial não formal. A educação patrimonial é considerada uma questão difícil e atual, considerando a tendência cultural hoje dominante de crise de memória. A preservação da memória e do patrimônio cultural deve servir como um exercício de educação patrimonial, como forma de sensibilizar os visitantes para o compromisso com a memória, com a história e com as próprias ações vivenciadas cotidianamente, na construção da história individual e coletiva. A Educação Patrimonial voltada para o público idoso esclarece e fundamenta o trabalho de conhecimento, apropriação e valorização de diferentes culturas, em diversos lugares e épocas. Embora fiquem nítidas, através da fala dos meus informantes, as diferenças socioeconômicas e culturais entre os diversos grupos observados, a visita à fazenda parece representar para todos eles um momento de prazer, adquirindo significado de extrema importância para o idoso, porque pode representar a fuga da rotina e do isolamento ou até a concretização de um sonho, que pela ruptura do cotidiano amplia horizontes históricos e possibilidades de convivência social. Dessa forma, é necessário se pensar a educação patrimonial não só como um aspecto a ser trabalhado comumente em escolas, mas também em espaços educacionais não formais, (como é o caso das fazendas históricas selecionadas nessa pesquisa) e como fonte de ativação da memória social32. Mediante a pesquisa de campo realizada e através da análise de depoimentos, propôs-se mostrar a intersecção da memória com a vida social. As possibilidades de um trabalho de Educação Patrimonial não formal em fazendas históricas paulistas promovem a ativação da memória social, construindo a autoestima dos idosos, de modo a se identificarem com o patrimônio e o valorizarem como um bem de toda a coletividade. Assim a pesquisa sobre o Patrimônio Cultural Rural Paulista se torna um trabalho sobre a utilização dos bens culturais como fonte de lazer e turismo, possibilitando um exercício de sensibilização para a valorização dos espaços rurais, a partir da análise das representações dos sujeitos e seus papéis, o imaginário rural, e da decodificação dos valores existentes naquele espaço. 32 Trabalhamos com o conceito de memória social a partir do conceito de Halbwachs (1990). A memória social é aquela formada pelos fatos e aspectos julgados relevantes pelos grupos dominantes e que são guardados como memória oficial da sociedade mais ampla. 107 Referências bibliográficas: ALMEIDA, M.G. Prefácio. 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Marina Mayumi Bartalini33 Resumo: O presente trabalho traz minha experiência como arte-educadora do Projeto Pintura na Fachada, com alunos da EMEF Padre José Narciso Vieira Ehrenberg, situada no bairro Jardim São Marcos em Campinas. O objetivo do projeto é reunir os alunos da escola, para que através da apropriação da linguagem artística da pintura mural, possam expressar suas questões em relação ao bairro. O projeto consiste em colocar os alunos em contato com os moradores do bairro, para investigar os múltiplos olhares dos moradores antigos para o Jardim São Marcos. A partir dessa investigação e de conversas informais e entrevistas, os alunos identificaram os elementos imagéticos presente no discurso dos moradores, para reproduzi-los na pintura mural. A pintura mural é feita na fachada das casas dos moradores entrevistados, em que o morador escolhe entre uma gama de imagens produzidas pelos alunos, a imagem que para ele representa o bairro ou a imagem que ele quer estampada na fachada de sua casa. A pintura mural nas fachadas das casas baseia-se na linguagem das intervenções urbanas como instrumento crítico e investigativo das relações sociais da comunidade local. Palavras chave: Arte-educação, Intervenção Urbana, Cidade. Introdução: Por entender que a trajetória acadêmica de um pesquisador, principalmente na área da Educação, o leva a pensar cotidianamente em todos os aspectos de sua vida relativos aos processos educativos pelos quais passou, não só escolares, mas àqueles processos provenientes de suas experiências vividas coletivamente e individualmente, é que a relação entre memória e história permanece, mesmo que de maneira oculta, em todos os aspectos de sua pesquisa. Pesquisadores em Educação, que hoje estão na universidade, vivenciaram em seu passado, uma trajetória escolar pertencente a um tempo único, localizado num contexto histórico específico. Inevitavelmente, os rastros de nossas construções de conhecimento, não só escolares, como em todos os aspectos da vida, nos levam a questionar e compreender no 33 Mestranda da Faculdade de Educação da Unicamp, bolsista CNPQ - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. 111 presente, nossas práticas como educadores. Não como uma linha cronológica e rígida, em que as questões do passado nos fazem agir no presente, e sim para que possamos com todo o repertório que adquirimos ao longo dos anos, construirmos uma nova experiência, tão vívida quanto às que armazenamos cuidadosamente e seletivamente em nossa memória. Muitas vezes, as questões que provocam o pesquisador a pensar, e buscar formas de desenvolver e compreender seu objeto de estudo a partir de um exaustivo estudo sobre os aspectos cruciais destas questões, muitas vezes tem suas origens na inquietação advinda de suas próprias experiências. As experiências que vivenciei me levam hoje a pensar de maneira mais qualificada, as questões que sempre me provocaram, quanto à importância da Arte no cotidiano, livre das amarras institucionais; quanto às possíveis maneiras de estar e se apropriar dos espaços da cidade através da Arte; quanto às possíveis maneiras de interagir com as dinâmicas urbanas a partir de um posicionamento crítico, criativo e poético. Hoje, para mim, estas questões estão agora relacionadas à área da Educação, através da prática como educadora, em espaços de Educação Não formal. De que maneira é possível construir conhecimento, a partir das trocas mútuas que vivenciamos enquanto pesquisadores-educadores? Como resistir à barbárie por meio da Educação? Como a Arte pode ajudar na valorização das sensibilidades? De que maneira, a Arte pode proporcionar experiências num âmbito coletivo em meio ao caos da cidade? As relações entre Arte, Cidade e Educação me instigam na medida em que as vivencio diariamente, como educadora, como artista visual e como moradora de uma cidade grande, repleta de desigualdades, incongruências, e dinâmicas próprias, como é a cidade de Campinas. Embora existam os rótulos, que tendem a nos enquadrar, acredito somos tudo o que fazemos e pensamos e, que trabalho artístico, pesquisa e prática devam fazer parte de uma grande rede interligada pela afetividade e vontade de transformação do que é préestabelecido, por meio da criação artística, investigação teórica, e postura política. Os processos educativos em Arte-educação que procuro desenvolver como arte educadora, pretendem sempre que possível, transcender os muros das escolas e instituições, a fim de buscar um meio que possibilite a criação de espaços libertários através do questionamento das normas sociais, que vivenciadas na cidade, são interpretadas como verdades únicas. Ao integrar os processos educativos em artes com a linguagem da Intervenção Urbana, percebi de maneira prática, que ao buscar no espaço urbano, em seus códigos, e em sua dinâmica peculiar, os elementos para a discussão em aula, acerca dos problemas sociais e políticos que perpassam por todas nossas relações no ambiente em que vivemos, é possível 112 encontrar algumas respostas quanto às maneiras poéticas e políticas de nos expressarmos e nos posicionarmos através da arte. E não qualquer arte, mas sim, aquela que interaja com as pessoas, provocando uma reação imediata entre a obra e o meio (espaço e público), em determinado tempo e lugar. Intervenção Urbana é o termo utilizado para designar os movimentos artísticos relacionados às intervenções visuais realizadas em espaços públicos. A intervenção é sempre inusitada, na maioria das vezes realizada a céu aberto referindo-se a aspectos da vida nos grandes centros urbanos. Por ter um caráter crítico, seja do ponto de vista ideológico, político ou social, as ações artísticas e interventivas em espaços públicos, visam apontar espaços degradados ou abandonados, esquecidos depois da afirmação dos novos centros. Por meio do uso de práticas que se confundem com as da sinalização urbana, da publicidade popular, dos movimentos de massa ou das tarefas cotidianas, artistas ou coletivos de artistas que trabalham pelo viés da Intervenção Urbana, pretendem abrir na paisagem pequenas trilhas que permitam escoar e dissolver o insuportável peso de um presente cada vez mais opaco e complexo. As intervenções visam intensificar a percepção dos espaços, trazer à tona significados ocultos ou esquecidos, apontar para novas possibilidades e usos, redimensionar sua organização estrutural, sugerir novas e inusitadas configurações. (PEIXOTO, 2002: p. 13) As intervenções não são vivenciadas apenas através da contemplação, pois se tratam de ações que acontecem através da participação de quem passa por ela. Buscam provocar reações e transformações no comportamento, nas concepções e percepções dos indivíduos, como um componente de subversão ou questionamento das normas sociais, ou também através do engajamento com determinadas proposições políticas ou problemas sociais, sempre a interromper o curso normal das coisas através da surpresa, do humor, da ironia, da crítica ou do estranhamento. A escolha por trabalhar meios de intervenção a partir de uma poética que aponta sutilezas, movimentos, e que provocam o público quanto à sua participação ativa e crítica na cidade, visa um olhar para uma Arte-educação de caráter crítico. A valorização de experiências coletivas no cotidiano de espaços educativos que propiciam trocas mútuas de saberes entre educadores e alunos, especificamente em espaços de educação não formal, certamente nos levam a acreditar que a resistência existe mesmo em meio à ambientes em que a barbárie de uma sociedade desigual, está colocada de maneira imperativa. 113 Walter Benjamin, “um historiador das sensibilidades e crítico da cultura “ (FREIRE, 1997: P. 43), em seu texto “Experiência e Pobreza” de 1933, nos indica através de alguns exemplos, a grande crise da experiência que surge a partir do momento em que o desenvolvimento da técnica se sobrepõe ao homem, e o que pode acontecer quando a experiência nos é subtraída: (...) é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie. Barbárie? Sim. Respondemos afirmativamente para introduzir um conceito novo e positivo de barbárie. Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para frente, a começar de novo, a contentarse com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para direita nem para a esquerda. (BENJAMIN, 1933: p.115-116) Sonia Kramer, ao argumentar em seu artigo acerca da educação contra a barbárie diz: “Penso que não corremos o risco de chegar à barbárie; vivemos nela. E devemos educar contra a barbárie, o que significa colocar o presente numa situação crítica e compreender que o passado ao precisaria ter sido o que foi, o presente pode ser diferente do que é, e o futuro pode mudar a direção que parece inevitável”. (FREIRE, 1997: p. 43) Kramer, ao afirmar que a barbárie é o agora, nos dá a dimensão da urgência de pensarmos em meios de resistência contra a normalidade vivenciada diariamente não só ao ligarmos a televisão e assistir às notícias mundiais de um telejornal, mas também logo ao sair de casa, e estar tão imerso num mundo tão caótico e violento, e nem mesmo perceber a realidade perversa em que estamos inseridos. Como diz Benjamin, impelidos a ir para frente, sem olhar para os lados, apenas cegamente seguindo uma direção reta, apenas nos preocupando muito menos em viver, e muito mais em sobreviver à barbárie instaurada. A apreensão do mundo a partir da valorização de experiências coletivas e mais completas se tornou um embate com a realidade advinda da modernidade capitalista que impõe um ritmo acelerado do tempo e das relações. A busca por maneira de apropriação dos espaços públicos, mesmo aqueles que passam despercebidos ao olhar cotidiano, vai contra uma visão individualista dos espaços, que protege o que é privado, sem se dar conta de que o espaço público também lhe pertence, e que pode ser resignificado, a partir de suas próprias percepções. Um trabalho de intervenção urbana que questiona as relações entre a cidade e seus habitantes a partir das escalas arquitetônicas urbanas, é o trabalho do cineasta Tadeu 114 Knudsen, intitulado “Quanto pesa vale”, realizado em 1994, feito para o evento “Arte/Cidade 2 - A cidade e seus fluxos”, em que 20 artistas, dentre eles, fotógrafos, artistas visuais, cineastas, arquitetos, foram convidados a realizar trabalhos de intervenção nos espaços urbanos do centro da cidade de São Paulo. O trabalho de Knudsen consistia em uma intervenção no Vale do Anhangabaú, entre os viadutos do Chá e Santa Ifigênia. Treze faixas de tecido branco com 1,50m de largura por 20m de comprimento, dispostas lado a lado, formando uma tela de 20m x 20m foram presas pela base de ferro tubular de 3m de altura e 25m de comprimento, como uma passarela. Na outra extremidade das telas foram atados 13 balões de ar, ou seja, as faixas brancas ficaram flutuantes como uma imensa tela de cinema em meio à paisagem da cidade. Ao invés de filmes, o que eram projetadas nessa tela, eram as sombras gigantes dos transeuntes que passavam na frente de potentes canhões de luz. As sombras eram do tamanho dos altos edifícios do centro de São Paulo. Por se tratar de um trabalho de caráter urbano e público, estava sujeito ao vandalismo que partia principalmente de crianças em situação de rua do centro de São Paulo. Em depoimento sobre sua intervenção na publicação impressa do evento Arte/Cidade, Knudsen conta o quão impressionante foi observar que ao mesmo tempo em que sua obra sofria com a depredação, também funcionava ludicamente, pois as crianças que viviam na rua, e se utilizavam dela para criarem suas brincadeiras, brincavam com as próprias sombras e achavam graça, ao verem suas silhuetas gigantes, projetadas no tamanho dos altos prédios da cidade que os na maioria das vezes os exclui e finge que não os vê. A experimentação e a experiência são uma constante para trabalhos de Intervenção Urbana que são modelados pela noção de fluxo, movimento, ruptura e provocação, que são características que se encontram na organização do evento Arte/Cidade, como afirma o coordenador Nelson Brissac: Ao contrário dos dispositivos expositivos convencionais, “Arte/Cidade” assume um alto grau de experimentação, lidando com fatores e variáveis que escapam à previsão e ao controle; componentes que dizem respeito ao jogo dos atores no espaço urbano, uma indeterminação que é própria da cidade. (PEIXOTO, 2010: p.88) As experiências que tenho vivenciado, desde março de 2011, como educadora em um espaço de Educação Não Formal, com o nome de Pintura na Fachada, em parceria com a escola EMEF Padre José Narciso Vieira Ehrenberg no bairro Jardim São Marcos em Campinas, São Paulo, trouxeram diversas reflexões acerca das possíveis construções de conhecimento que acontecem através da interação entre aluno,escola, bairro e cidade. 115 O objetivo é reunir os alunos de 10 a 15 anos, em oficinas artísticas que acontecem fora da escola, em espaços da comunidade local, para que através da apropriação da linguagem artística da pintura mural, possam expressar suas questões em relação ao bairro Jardim São Marcos, sempre partindo dos diálogos e relações de convívio estabelecidas com os moradores. O convívio existe fora do projeto, principalmente em espaços tradicionais, já consagrados no bairro, como igrejas e festas em épocas pontuais do ano. No projeto este convívio acontece através de momentos de discussões acerca das características do bairro, de suas carências e de suas virtudes. Os dias de pintura nos muros são sempre especiais, pois o processo anterior a eles acontecem numa aproximação que favorece o contato dos alunos 1 registro fotográfico de entrevista com moradores, agosto 2011. das escolas com os moradores mais velhos. Os alunos saem pelas ruas para entrevistarem as pessoas, batendo de porta em porta, para perguntarem o que acham do bairro onde moram e o que gostariam de ver pintado nos muros. Essas perguntas deram margem a uma série de conversas, entre contações de histórias antigas, desabafos quanto à dificuldade de morar num lugar em que o tráfico de drogas é inerente, ou causos e histórias sobre acontecimentos cotidianos. Ao falarmos do passado, das histórias de como era o bairro antes e como é agora, acessamos uma memória que parecia hibernar, e que veio à tona, a partir dos questionamentos dos jovens, que por serem também moradores estavam naquele momento em contato com sua própria história. Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. (...) O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. (...) (BENJAMIN, 1940. P.224) Benjamin, no texto Sobre o conceito de história, de 1940, ao analisar o historicismo e seus problemas ao vangloriar fatos históricos isolados e fragmentados, defende uma maneira em 116 que o historiador “capta a configuração em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito no presente como um “agora” no qual se infiltraram estilhaços do messiânico”. (BENJAMIN, 1940: p.232) As histórias contadas pelos moradores permitiram o acesso a uma história que não está nos livros, nem nos jornais (em que o Jardim São Marcos aparece apenas como antro de traficantes). E, se algumas dessas histórias estão em teses acadêmicas nas bibliotecas da Universidade, já que o Jardim São Marcos é um bairro que já foi objeto de estudo para muitos estudantes da Unicamp, não são facilmente acessadas pelos moradores. A biblioteca é pública, mas a barreira ao seu acesso é invisível, já que a universidade pública, ainda é um espaço com problemas de abrangência quanto à extensão para as comunidades, e por tratar-se de um espaço historicamente elitizado. As trocas foram intensas durante as entrevistas, pois lá estavam os moradores, os alunos da escola e os arte-educadores. Sou uma das arte-educadoras do projeto e não sendo moradora do bairro, pude a partir das entrevistas feitas juntamente com os alunos, conhecer o bairro onde trabalho, para além das pesquisas acadêmicas que li a respeito dele. Alguns fragmentos das histórias contadas nos dão pistas para entender as questões sociais e políticas implícitas no dia a dia dos moradores. Nas entrevistas, nos contaram: como é morar num bairro em que o tráfico de drogas os faz se sentirem de alguma maneira, protegidos, pois segundo eles, não existe o costume de assaltos às casas; como é intenso o medo da polícia e seu abuso de poder e a guerra entre traficantes e policiais; como o alto índice de jovens que acabam por se envolver com o tráfico de drogas ocasionando mortes; como é demorado o atendimento nos postos de saúde da região. Estes fragmentos nos dão uma perspectiva de um bairro carente quanto à garantia de direitos de crianças e adolescentes, quanto aos de espaços de lazer, quanto aos de meios de subsistência disponíveis e quanto ao acesso de um serviço de qualidade de saúde. Outros fragmentos podem nos mostrar alguns comportamentos de resistência aos problemas acima citados: a mudança do nome das ruas, que antes eram chamadas pelos números e hoje tem nomes próprios, mas que os moradores insistem em chamá-las pelos números, pois os chamam assim, desde que eram crianças; a solidariedade entre alguns moradores que afirmam que têm o costume de ajudar um vizinho que necessita de alguma ajuda; um morador que cultiva uma pequena horta e faz questão de distribuir gratuitamente tudo o que planta, além de fazer xaropes com ervas medicinais plantadas por ele e também distribuídas para quem precisar. 117 Outro aspecto explorado nas entrevistas foi a pesquisa quanto ao campo imagético dos moradores e seu imaginário acerca do Jardim São Marcos. Uma das perguntas feitas pelos alunos era a seguinte: - que imagem representa o bairro para você? Dentre as respostas que mais apareceram, foi a imagem da pomba branca da paz, representando a atmosfera violenta do bairro em relação ao tráfico de drogas e o desejo dos 2 registro fotográfico de fachada pintada pelos alunos do Projeto Pintura na Fachada, agosto/2011 moradores para que o bairro seja um lugar mais tranquilo para viver. Outras respostas: crianças brincando, flores, árvores, animais, natureza. As respostas dos moradores quanto à imagem que os remetia ao bairro, foram analisadas pelos alunos e reinterpretadas por desenhos que eles fizeram a partir das falas dos moradores. Foi um rico processo criativo, pois os próprios alunos também são moradores do bairro, portanto, criaram desenhos que misturavam as imagens ditas pelos moradores às suas próprias maneiras de ver o bairro. Surgiram desenhos de bicicletas, pipas, bola, árvores, folhas, mãos, tijolos, porcos, cavalos, cachorros, meninas, meninos, amarelinha, nuvens e estrelas. Por tratar-se de um bairro, em que crianças e adolescentes circulam livremente pelas ruas, o lugar da maioria das brincadeiras e do convívio entre eles também se relacionam com a geografia local. Existem lugares mais apropriados e elegidos por eles mesmos, para soltar pipa, para brincar de amarelinha, para jogar bola, para andar de carrinho de rolimã. É intensa a correria dos meninos pelas ruas, em busca de uma pipa cortada que irá cair em algum lugar em que eles não fazem ideia onde será, e para isso, é preciso ter um conhecimento prévio das ruas que lhe darão acesso para os atalhos que podem levar à pipa que veio de graça dos céus, depois de ser cortado pela habilidade de quem aprendeu muito na rua, a partir do convívio com os colegas, a gambiarra de uma boa estratégia para cortar uma pipa alheia. Durante a oficina, os desenhos traziam informalmente, nos diálogos que travamos as experiências vivenciadas nas ruas do bairro. Muitas vezes, as conversas sobre as brincadeiras, faziam com que as arte-educadoras também se lembrassem de sua infância, e eram nesses momentos que as gerações, o passado e presente se cruzavam pois todas as experiências convergiam para uma infância, tanto por quem estava passando por ela, quanto por quem já havia passado. Durante as oficinas, nos questionamos sobre o uso de referências externas para a composição das oficinas. Poderíamos ter trazido vídeos, fotos de intervenções urbanas de 118 artistas em todo o mundo, livros entre outras referências para que os alunos visualizassem maneiras de pintar, de intervir nos espaços. As oficinas eram planejadas semanalmente e nos encontros entre os educadores, refletimos o quão interessante seria experimentarmos não utilizarmos 3 registro fotográfico das atividades da oficina do Projeto Pintura na Fachada, maio/2011. as referências de imagens com as quais estávamos acostumadas a trabalhar. Elaboramos assim, uma maneira em que “auto referência” seria o caminho para que cada descoberta sobre cores, sobre espaço público e privado, sobre como intervir nestes espaços, viriam de nossas caminhadas pelo bairro. Nos dias de caminhadas, levávamos câmeras fotográficas, que ficavam com os alunos que registraram as variadas fachadas de casas do bairro, a gama de cores existente por lá e o que mais pudessem achar interessante. A partir do olhar para as fachadas do bairro e as cores com as quais foram pintadas pelos donos das casas, trabalhamos as misturas de cores, e as testamos nos desenhos que fizemos das fachadas, para podermos primeiramente, imaginar como seria um bairro totalmente colorido. Os desenhos refeitos, na técnica do stêncil, em que através da estilização, da síntese, dos desenhos se faz uma máscara que permite a reprodução de determinado desenho em série, por meio da pintura com tinta látex e rolos de espuma. Esta foi a técnica escolhida, por nós, arte-educadoras, para adaptar os desenhos às fachadas na rua. A técnica do stêncil mantém uma qualidade de trabalho, que o pincel também proporciona, porém de maneira rápida e prática. O uso do stêncil com rolos de espuma e tinta látex remetem às técnicas utilizadas por grafiteiros e pichadores, o que acabou por gerar discussões sobre as diversas maneiras de intervir 4 - registro fotográfico das oficinas do Projeto Pintura na fachada, agosto/2011. no espaço público para expressar-se. Anteriormente à entrada no projeto, alguns dos alunos afirmaram já ter utilizado materiais como aqueles, para picharem os muros de casas. Estas afirmações geraram discussões acerca dos limites entre espaço público e privado, a necessidade e os motivos que os levam a assinar nas paredes da cidade, e o direito à mesma. A importância em relacionar os aspectos das vidas dos jovens no projeto com as dinâmicas da cidade é relevante na medida em que: 119 (...) a cidade não se dá àqueles que a ocupam como instrumento destinado apenas a certos usos técnicos (circular, trabalhar, morar etc.). Ela possui uma realidade espessa de sentidos particulares relacionados às pulsões mais profundas do próprio sujeito. Nesse caso, a cidade é cor ou ausência de cor, luz ou ausência dela e assim por diante, além de uma dimensão biográfica da cidade que confere à “minha cidade” o sentido de meu “lugar de vida”. (FREIRE, 1997: p. 25) A proposta de uma Educação que instigue a reflexão sobre a o indivíduo em meio a outros indivíduos e suas relações entre escola, comunidade e cidade, é importante para que, seja garantido um espaço que valorize a construção de conhecimento que parta de experiências coletivas concretas. Um espaço em que as respostas para os questionamentos acerca da diversidade, desigualdade entre classes, política, falta de políticas públicas e investimentos econômicos nos bairros periféricos das grandes cidades, parta da observação e vivências coletivas na cidade. Portanto, alguns questionamentos que surgem no grupo são oportunos para o debate de assuntos que só podem ser trabalhados se são questões intrínsecas para os alunos com os quais trabalhamos. Pensar na cidade a partir da experiência de quem transita por ela diariamente trás para o processo educativo uma reflexão não hierarquizada, em que todos possam contribuir para a construção de pensamentos que nos ajudem a entender o funcionamento de um sistema em que estamos inseridos logo que nascemos. A pintura na fachada não consiste no embelezamento dos muros de um bairro periférico, e sim, de um pretexto que faça com que os jovens e os adultos se encontrem, propiciando um espaço de discussão informal, e de trocas intergeracionais. Os desenhos elaborados a partir das imagens sugeridas pelos moradores do bairro são depois colocados numa espécie de mostruário, que depois é apresentada para o dono da casa onde a fachada será pintada para que ele escolha, dentre uma gama de desenhos, aquele que ele quer pintado em seu muro. O fato de os alunos estarem presentes, contando aos moradores que os desenhos que estão pintando na fachada de seus muros, surgiram das impressões dos próprios moradores, criaram uma relação que em alguns moradores, permitiu o acesso a memórias de infância. Um dos moradores, ao ver a pintura de uma criança brincando de “dar estrelas”, enquanto pintávamos seu muro, nos contou que esta era uma brincadeira que ele sempre fez quando criança, e que achava engraçado como uma brincadeira apenas com a finalidade de movimentar o corpo, poderia ter perpassando os tempos, e estar agora no muro de sua 120 casa. Mesmo com a existência do relato acima, a realização deste tipo de trabalho vai de encontro com algumas lógicas que são ainda muito difíceis de serem quebradas. A primeira tentativa de formar um grupo no projeto consistia na junção entre pais, alunos, alunos do EJA (Educação de Jovens e Adultos) da escola, e demais moradores. No primeiro dia, ao realizarmos uma atividade conjunta, percebemos que todos se sentiram incomodados por estarem entre pessoas de idades diferentes. Os adultos não apareceram mais nos encontros, o que nos fez avaliar que seria interessante abrirmos um dia de encontro só para adultos. Essa incompatibilidade é inerente à realidade atual, em que crianças, jovens e adultos estão tão distanciadas por suas gerações, num convívio tão hierarquizado pelos adultos e tão sem interesse dos mais jovens pelo acúmulo de experiências dos mais velhos, que se tornou inviável no projeto, colocá-los em grupos de trabalho comuns. A dificuldade está em aproximar pessoas de diversas idades, numa situação em que juntos possam criar, conversar e entender as dinâmicas dos lugares por onde transitam, no caso o bairro, a cidade. Segundo Jean-Marie Gagnebin, grande estudiosa das obras de Walter Benjamin, na Introdução ao livro Walter Benjamin: Obras escolhidas – Magia e técnica, arte e política, ao analisar o texto do autor, O Narrador em que trata da crise da experiência na modernidade capitalista a partir do enfraquecimento da arte de contar, uma das condições para que a transmissão de experiências no sentido pleno tenham se enfraquecido, se dá, principalmente devido à falta de algumas condições, dentre elas, a proximidade entre as gerações, que atualmente “se transformaram hoje em abismo porque as condições de vida mudam em ritmo demasiado rápido para a capacidade humana de assimilação” (GAGNEBIN, 1994, p. 10) Portanto, estabelecer relações pessoas de diferentes idades, que tenham laços fortes que se dão através da troca e transmissão de conhecimento não hierárquica, é hoje, um desafio. As diferenças entre as gerações, que hoje parecem bem mais discrepantes que antigamente, é potencializada pelo lugar de desvalorização dos mais velhos numa sociedade que valoriza sempre o que é novo, o que é novidade. Se antigamente, os velhos eram os guardiões da memória, hoje, seu conhecimento acumulado pelos anos, é atropelado pela efemeridade do tempo, no tempo de ritmo acelerado, que necessita de novos mecanismos de assimilação. Se Benjamin coloca que se trata de um tempo rápido demais para a capacidade humana de assimilação, talvez, os pertencentes às gerações atuais, já tenham desenvolvido novos mecanismos de assimilação do tempo acelerado, o que faz com que o abismo entre gerações seja ainda mais profundo. Outra condição de realização da narração, colocada por GAGNEBIN, à luz dos textos 121 benjaminianos, é baseada especialmente na atividade artesanal, nos tempos de organização pré-capitalista do trabalho. O trabalho artesanal permite a compreensão de totalidade da produção. A organização de trabalho capitalista, pautada na técnica, é fragmentada, e impõe um ritmo de tempo também fragmentado. Portanto, “o ritmo do trabalho artesanal, inscreve um tempo mais global, tempo onde ainda se tinha, justamente, tempo para contar” (GAGNEBIN, 1994, p. 11). No trabalho artesanal existe uma estreita relação com a matéria com a qual se vai trabalhar, diferentemente das esteiras das fábricas, em que o operário participa apenas de um processo específico da produção, sem ter a dimensão de todo o processo de produção. O contato com a matéria, que nas mãos do artesão é transformada, o faz participar da ligação secular entre a mão e a voz, entre o gesto e a palavra. (GAGNEBIN, 1994, p. 11) A pintura na fachada, desenvolvida no projeto, se assemelha muito ao ritmo de um trabalho artesanal. Durante a pintura, o trabalho é feito conjuntamente por todos os alunos, que conhecem todas as etapas do processo, desde fazer os stêncils, a misturar tintas e a compor as cores para o muro. Diferentemente das técnicas utilizadas para a pintura profissional de casas, ao pintarem a fachada, existe todo um entendimento de grupo de que aquele é sim um trabalho de todos, e que mesmo os que faltaram, mesmo que ausentes, também possuem participação naquela realização que é coletiva. No dia posterior ao dia da pintura, normalmente fazemos reflexões conjuntas, para avaliarmos as técnicas que utilizamos, e o entendimento quanto a composição que criamos na fachada. Durante essas conversas, sempre surgem as lembranças das conversas que tivemos com o morador que teve seu muro pintado. Alguns dos moradores se envolvem com os alunos no momento da pintura, contando histórias, oferecendo água ou ajudando na composição dos desenhos em seu muro, conversando sobre o que lhes sugerem àquelas imagens que estão sendo pintadas. A última condição mencionada por GAGNEBIN para a crise da narração é a existência de uma experiência dada na coletividade, que é o cerne da transmissão de conhecimentos que se dão no âmbito da troca entre os grupos humanos. As experiências vividas individualmente, dentro do espaço privado, conduzem à alienação. Esta alienação advinda da vida privada, dentro de casas burguesas, explica o sucesso dos romances, em que o leitor passa a buscar, na projeção em personagens heroicos dos romances, o sentido de vida, que se perdeu na sociedade moderna. O depauperamento da arte de contar parte, portanto, do declínio de uma tradição e de uma memória comuns, que garantiam a existência de uma experiência coletiva, ligada a um trabalho e a um tempo partilhados, em um mesmo universo de prática de e de linguagem. 122 (GAGNEBIN, 1994, p.11) As considerações sobre o declínio da arte de contar, e a crise da experiência, marca fundamental do princípio da modernidade capitalista, que hoje no mundo contemporâneo ainda é tão atual, me provoca a refletir e questionar, de que maneira é possível, “nadar contra a maré” dentro de um sistema de educação autoritário, ainda nos moldes militares, criado para recrutar crianças e jovens, para o mundo do mercado de trabalho. De que maneira, nos entremeios do sistema, nas brechas deixadas por sua latente imperfeição, é possível pensar numa educação que aconteça fora dos muros das instituições escolares, que vazem pelos muros, para atingir relações menos restritas e mais próximas à realidade local, e que valorize as experiências de vida que acontecem nos detalhes e que reverberam para uma concepção de totalidade e de compreensão política da realidade, para que possam apropriar-se de ferramentas anti passividade, anti manipulação para que assim, se possa resistir às desigualdades e injustiças que nos são impostas. Estar na área da Educação, pesquisando maneiras de compreender de que maneira é possível agir como educador, nos interstícios desta sociedade que valoriza as relações efêmeras e fragmentadas, em detrimento de relações duradouras e profundas, é um exercício de resistência, pois se trata de uma postura que procura caminhos que levem à emancipação, para que se possam construir conhecimentos de maneira coletiva, para que determinado grupo de pessoas, se fortaleça contra as lógicas das classes dominantes. BIBLIOGRAFIA: BENJAMIN, Walter. Experiência e Pobreza. In: Walter Benjamin, Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996. __________, Walter O Narrador. In: Walter Benjamin, Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996. __________, Walter. Sobre o conceito da História: In: Walter Benjamin, Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996. FREIRE, Cristina. Além dos mapas: monumentos no imaginário urbano e contemporâneo. São Paulo: SESC: Editora Annablume, 1997. GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. 2º edição. São Paulo: 2004. 123 __________, Jeanne Marie. Walter Benjamin ou a história aberta (prefácio). In: Walter Benjamin, Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996. PEIXOTO, Nelson Brissac. Intervenções urbanas: arte cidade. São Paulo. Ed. Senac. 2002. ________, Nelson Brissac. Arte/cidade – um balanço. Texto publicado na revista eletrônica ARS #3. http://www.cap.eca.usp.br/ars.htm. acessado em 29/05/2009. 124 OS POSSÍVEIS ELOS ENTRE O CURSO DE PEDAGOGIA E O CONCEITO DE EDUCAÇÃO SÓCIOCOMUNITÁRIA Marcos Jorge UNESP - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – campus de Bauru Doutor em Educação – História e Filosofia da Educação Professor de Política Educacional e Legislação do Ensino [email protected] Resumo: O objetivo do artigo é promover uma discussão a respeito do conceito de educação sócio comunitária em relação aos cursos de Pedagogia. Inicialmente retoma a discussão sobre os cursos de formação de professores, seus limites e possibilidades, em seguida apresenta as justificativas para o estudo, apontando a urgência da escola brasileira em adequar suas práticas às necessidades de um ensino que dissemine valores de solidariedade visando a construção de uma sociedade democrática. Metodologicamente, o estudo caracteriza-se como uma pesquisa documental, utiliza-se de fontes os Projetos Pedagógicos de cinco cursos de Pedagogia de instituições de ensino superior, pública e privadas, bem como suas respectivas grades curriculares. Os resultados apontam que os cursos de Pedagogia não diferem radicalmente entre si, seus Projetos Pedagógicos mostram que seu principal objetivo é a formação de professores para atuar na Educação Infantil e nas Séries Iniciais e as grades curriculares também não apresentam grandes disparidades e, ao que parece, esses cursos estão adequados às Diretrizes oficiais com pouco espaço para uma discussão de uma Pedagogia de valores mais solidários, humanos, democráticos. Palavras – chave: Política Educacional – Brasil. Legislação do Ensino. Formação de Professores – Licenciatura. Projeto Político Pedagógico. Abstract: The aim of the paper is to promote a discussion about the concept of Community and Socio education in Pedagogy brazilian courses. Initially make a discussion on teacher teaching courses, its limits and possibilities, then presents the rationale for the study, and guide the urgency of the brazilian school in adapting their practices to a education if disseminate the values of solidarity aimed at building a democratic society. Methodologically, the study characterized as documentary research, it use the sources of Educational Projects of five courses Pedagogy of higher education institutions, public and private, as well as their respective curricula. The results indicate that the courses Pedagogy not different radically from each other, their Educational Projects show that their main goal is to train teachers to work in early childhood education and the elementary school, the curricula did not exhibit great disparities and, apparently, these courses are adequate to the Guidelines officers with little moments for a discussion of a Pedagogy of values more solidary and democratic. Key – words: Educational Policy - Brazil. Legislation Education. Teacher Education Bachelor. Political Pedagogical Project. Introdução A sociedade brasileira atingiu uma importante meta nas primeiras décadas dos anos 2000 em termos de democratização do acesso à educação básica, quando massificou a 125 matrícula no ensino fundamental e hoje concentra esforços de fazê-lo também em relação à educação infantil e superior. Passada a fase “quantitativa”, o debate hodierno foca a questão da “qualidade” do ensino fundamental, são inúmeras as manifestações da sociedade civil e dos governos (em todas as instâncias) sobre a dívida que a escola pública tem para com as crianças e jovens no que tange ao direito de uma educação de qualidade que os instrumentalizem não apenas para o mercado de trabalho, mas principalmente, para o exercício ativo da cidadania. Ademais já é amplamente conhecida a importância da educação escolarizada como “insumo” imprescindível para a vitalidade da democracia representativa e dos “micros consensos” na esfera das relações sociais mais cotidianas. É verdade que não se deve exigir da instituição escolar a superação de contradições inerentes ao modelo de capitalismo implantado e em curso no Brasil, no entanto, é no âmbito da construção de uma cultura de tolerância e respeito à diversidade étnico-cultural que a escola pode contribuir para minimizar um racismo intrínseco à sociedade brasileira, resultado de séculos de escravidão seguido por um modelo civilizatório republicano que produziu um capitalismo caracterizado, até os dias atuais, por um processo de exclusão de grandes contingentes da população, aonde o racismo vem somar – se a outros componentes degradantes da civilidade brasileira, entre eles, a pobreza persistente, a violência urbana e a corrupção endêmica. Um desdobramento perverso das desigualdades sociais e raciais na educação pode ser observado no fenômeno da distorção idade – série, segundo o Relatório Todas as crianças na escola em 2015 – Iniciativa global pelas crianças fora da escola, de responsabilidade do UNICEF (2012), mostra que “30,67% das crianças brancas (1,6 milhão) têm idade superior à recomendada nos anos finais do Ensino Fundamental, entre as crianças negras a taxa é de 50,43% (3,5 milhões)”, o dado deixa explícito que apesar da universalização do acesso com baixa qualidade, a escola brasileira ainda mantém mecanismos excludentes que atingem as populações afrodescendentes, embora sofram com esse processo outros grupos sociais, como os nordestinos e grandes contingentes que ainda residem nas áreas rurais empobrecidas. O mesmo documento ressalta que: Em termos percentuais, o número de crianças brasileiras fora da escola na faixa de 7 a 14 anos de idade é considerado pequeno: 2%. No entanto, em números absolutos, são 534.872 crianças que não têm garantido o seu direito de aprender, de acordo com análise dos dados da Pnad/IBGE em 2009. Do total, 329.571 são negras, o equivalente a 61,6%. (UNICEF, 2012, p. 26). 126 É urgente que a escola assuma efetivamente suas responsabilidades em relação às demandas que estão ao seu alcance e que, em esforço conjunto com a sociedade civil, com o entorno local e a universidade pública, possam superá-las. Uma ação concertada contra o racismo e pela valorização da diversidade étnica e cultural é uma das muitas possibilidades reais de atender essa demanda de inclusão de grandes contingentes de jovens e adolescentes afrodescendentes é algo que está ao alcance da instituição escolar. Justificativa O presente artigo mostra resultados parciais de uma pesquisa cujo objetivo é verificar nos projetos pedagógicos de cinco cursos presenciais de Pedagogia (de instituições públicas e privadas) se há reflexões, justificativas e proposição de ações (componentes curriculares, atividades de formação extracurriculares) nesses cursos para os valores de pedagogia social/comunitária, com ênfase nas questões da tolerância, da crítica ao racismo, valorização da solidariedade, do trabalho e da convivência democrática e comunitária. Pesquisas sobre o tema das classes populares e sua intersecção com a cultura popular e erudita como Ginzburg (1987), Chartier (1990), Darnton (2010); bem como uma vasta produção dos chamados estudos culturais com viés na educação escolarizada, como observado em Apple (2006), Munanga (2005) e Silva (2002), demonstram que as práticas culturais de leitura/(re)interpretação dos textos contemporâneos (escritos, visuais ou midiáticos), por parte dos cidadãos estão muito distantes daquele comportamento passivo esperado e valorizado pela sociedade e pelas mídias, mas sim, fazem parte de um complexo mecanismo de reconstrução de sentidos. A recepção da mensagem de um texto (qualquer que seja a base em que se apoia) sofre variações conforme o imaginário, mas principalmente, o contexto em que o leitor está inserido, trata-se portanto de refletir, não apenas o texto, mas antes verificar sempre o texto no contexto. Ainda que as jornadas escolares brasileiras abarquem poucas horas diárias das nossas crianças e jovens, a escola é ainda para grande parte do alunado, além do familiar ambiente de vivências acadêmicas é, principalmente, um contexto socializador/civilizatório (no sentido social do termo). Na escola com o auxílio do professor é possível ir além da alfabetização/letramento, dos formalismos curriculares, é possível construir práticas sociais e comunitárias, vivenciar novos comportamentos e assim possibilitar a formação de uma juventude mais afeita ao pluralismo e ao modo de vida coletivo e democrático. 127 A relação dialógica/pedagógica de que fala Freire (1996) onde o professor trabalha a leitura de mundo, que faz do aluno um interprete do mundo tem o potencial de transformar o sujeito para atuar num mundo culturalmente mais ampliado, atuação essa resultado das práticas de leitura do mundo mediadas pela escola, talvez seja essa a dimensão transformadora da escola, do ato de ensinar, propor ao aluno diferentes níveis de compreensão do mundo, instrumentalizando – o para o agir no mundo de forma coletiva, mas também criando vínculos de solidariedade principalmente no entorno local. A abordagem pedagógica freireana é aquela mais potencialmente qualificada para uso na sala de aula quando da problematização dos preconceitos correntes no Brasil atual, dentre eles, o racismo e todas as outras formas de discriminação, como por exemplo, a dicotomia centro – periferia, pessoas esforçadas/não esforçadas, as concepções inatistas de pobreza, entre outras, trata-se de uma metodologia de aprendizagem poderosa para uma educação com vieses sociais e comunitários e atualmente está cada vez mais perdendo espaços nos cursos de formação de professores para abordagens que privilegiam mais os formalismos da relação ensino – aprendizagens do que seus aspectos mais humanos e sociais. Outras metodologias estão, paulatinamente, inserindo-se nos currículos de formação de professores apoiadas nos discursos da necessidade de uma modernização pedagógica, da urgente aproximação da escola com a universidade, como justificativa de atualização das práticas docentes e da burocratização ou compartimentalização das disciplinas, apontamos aqui o apelo muito em voga à interdisciplinaridade que muitas vezes, apesar das alegações (até certo ponto corretas) da compartimentalização das disciplinas que insiste, como se apontou acima, nos aspectos mais formais do trabalho pedagógico, do que propriamente numa nova e eficiente prática de transmitir/ensinar criticamente os componentes curriculares às crianças e jovens das escolas brasileiras. Há ricos debates e significativas contribuições que apoiados ou inspirados no enfoque freireano de cultura/educação/conscientização, de cultura escolar na acepção de Forquim (1993) e de transposição didática, segundo Chevallard (1991) que subsidiam sobremaneira uma teoria, mas principalmente, uma determinada concepção de prática pedagógica que respeita os referenciais culturais do aluno e sua comunidade, ao mesmo tempo, que trabalha pedagogicamente na ressignificação de aspectos egoísticos e desmobilizadores visando a construção de um aluno/ser humano mais solidário e respeitoso em relação ao seu entorno local. 128 Também são problematizados os movimentos de resistências e, mais importante, como se organizam no cotidiano das pessoas as diversas práticas comunitárias/sociais/culturais de representação do racismo, da pobreza, da cultura popular, negritude, as resistências/combate aos discursos oficiais e burgueses de desqualificação dos pobres, das periferias, das estratégias populares de organização, além da negação e desconstrução do racismo no Brasil. Atualmente os cursos de Pedagogia (formação de professores) recebem muitas críticas, estas têm origens em diversos setores da sociedade não se restringindo a grupos de interesses isolados com algum intenção “malévola” de ataques gratuitos a instituição escolar, aos seus professores ou funcionários, ou ainda, intentando uma “privatização” ou “desmonte” do sistema público de educação. Tais críticas revelam, antes de tudo, que é necessário adequar o sistema escolar às necessidades de uma sociedade, que paulatinamente incorpora ao seu estilo de vida as novas tecnologias, os grandes contingentes de jovens e crianças de extratos sociais mais baixos e que necessitam de uma escola inclusiva, não apenas que os em termos de inclusão tecnológica adaptada aos novos padrões de escolarização, mas também uma escola que promova os valores de uma cultura universal, solidária e promotora da equidade, enfim uma escola que forneça condições iguais de preparo intelectual a todos que nela ingressam. A questão que se coloca é: os cursos de formação de professores estão preocupados com essas questões? Estariam nossos futuros professores sendo preparados para ensinar os conteúdos escolares, mas também a convivência humana solidária e respeitosa que deve existir entre todos os grupos sociais? Buscamos responder essas questões a partir do estudo dos Projetos Pedagógicos (PP) dos cursos de Pedagogia de algumas instituições de ensino superior (IES) públicas e privadas. A opção pelo exame dos PPs se deve em razão deste documento ser a “carta de intenções” de um curso superior, nele devem estar contidos os propósitos da instituição em relação aos seus graduandos. O Projeto Pedagógico do curso é um documento obrigatório para o reconhecimento do curso conforme prevê o artigo 35 do Decreto nº 5.773, de 9 de maio de 2006: Art. 35. A instituição deverá protocolar pedido de reconhecimento de curso, no período entre metade do prazo previsto para a integralização de sua carga horária e setenta e cinco 129 por cento desse prazo. (Redação dada pelo Decreto nº 6.303, de 2007) § 1o O pedido de reconhecimento deverá ser instruído com os seguintes documentos: I - comprovante de avaliação in loco; de recolhimento da taxa II - projeto pedagógico do curso, incluindo número de alunos, turnos e demais elementos acadêmicos pertinentes; III - relação de docentes, constante do cadastro nacional de docentes; e IV - comprovante de disponibilidade do imóvel. Dessa forma, o Projeto Pedagógico de um curso pode ser entendido como uma espécie de “contrato” entre a IES, o aluno e a sociedade. É importante assegurar que este documento não se resuma em ser apenas uma formalidade burocrática, como foi salientado, mas que se torne uma importante peça jurídica e social, que nele esteja contido, não apenas os itens citados no decreto que institui sua obrigatoriedade, mas uma declaração dos valores que a instituição cultiva e promove junto à sua clientela. Trata-se de um imperativo do nosso tempo inserir no rol das preocupações acadêmicas, principalmente as Faculdades de Educação, as questões ligadas à Educação Básica, sobre esse aspecto Pereira (1999) enfatiza: É inquestionável, portanto, que as atuais mudanças na estrutura jurídico-legal da educação brasileira tornam manifesta a necessidade da criação de um projeto pedagógico para a formação e a profissionalização de professores nas universidades e demais instituições de Ensino Superior brasileiras. Esse novo projeto pedagógico deve estar em consonância com as modificações pretendidas na educação básica. (Pereira, 1999, p. 115). O estudo em tela pode ser classificado como uma pesquisa documental, entendendo essa como um trabalho de pesquisa a partir de documentos de comprovada autenticidade, podendo ser atual ou historicamente datado. Discussão dos resultados As análises preliminares mostram que a grande preocupação dos cursos de Pedagogia, expressas nos PPs estudados é com a formação pedagógica do professor da Educação Infantil e das primeiras séries do Ensino Fundamental (Séries Iniciais). É dado ênfase para as chamadas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) e há pelo 130 menos uma disciplina explicitamente tratando da temática em todos os cursos, cujo objetivo é fazer o futuro professor compreender as urgências e necessidades de se incorporar uma “mentalidade” mais receptiva às novas tecnologias no fazer docente. A Ética na educação é um tópico bastante presente, porém dilui-se em alguns cursos com questões da Comunicação e da Diversidade, esta direcionada para a problematização da Inclusão. Em outros cursos (dois deles) há um empenho em trabalhar os conteúdos de Ética na linha da Filosofia, com estudo de autores clássicos fortemente vinculados a discussão da formação humana. Ainda no campo das preocupações com a questão dos valores, da construção de uma sociedade mais igualitária e justa, a partir do entendimento entre as pessoas em convivência pluralista e comunitária há apenas um PP (instituição confessional) onde essa dimensão está explicitamente, correlacionada a um credo religioso e que é abordada em uma disciplina específica. Em apenas um dos cursos verificou-se a presença de uma disciplina abarcando o tema das questões étnico-raciais e da cultura afro-brasileira, embora não se observou no PP do curso alguma referência mais elaborada sobre o assunto, nem sua vinculação com o trabalho do futuro professor. Nessa mesma direção, observa-se que a problemática da Diversidade aparece em todos os PPs e em todas as grades curriculares há uma disciplina abordando o assunto sempre, como observado, relacionado com o tema da Inclusão ou da Educação Inclusiva. Outro ponto que merece destaque e que reflete um cuidado em subsidiar os futuros professores com temas bastante contemporâneos são os conteúdos relacionados ao Meio Ambiente e a Responsabilidade Social. Os PPs os abordam de forma bastante genérica, mas em dois cursos houve a implementação de disciplinas nas grades curriculares, ora relacionando educação e meio ambiente, ora cotejando a questão da responsabilidade social com o meio ambiente. Finalmente, é imperativo discutir o liame entre educação/escola, família e a comunidade. Nesse ponto observa-se uma concepção de relacionamento entre esses entes baseado nos documentos oficiais, onde haveria um imperativo constitucional (o artigo 205 da Constituição Federal de 1988 rege explicitamente que a educação é um direito de todos e dever do Estado e da família) que de certa maneira, “obriga” a participação da família nos assuntos escolares dos filhos e da própria escola, como dimensão intrínseca à comunidade. As disciplinas que direcionam o futuro professor a pensar/agir em prol de um maior envolvimento do entorno local/pais de alunos na escola na educação escolarizada 131 dos filhos estão elencadas no rol da área da gestão escolar. Importante salientar que essa participação da comunidade e família não está disposta em termos de uma ação comunitária, solidária, expressão de um voluntarismo, no sentido de livre participação das pessoas do entorno local na vida da instituição escolar, sobressai como se apontou, uma concepção de envolvimento legal, de cunho fiscalizatório que em certo sentido deve acontecer, mas não se conformar à totalidade das práticas participativas que se espera dos sujeitos extra- escola. Chega-se à conclusão, ainda que parcial, que os cursos de Pedagogia analisados têm seus PPs e suas grades curriculares, em grande parte, vinculados às Diretrizes dos cursos de formação de professores, embora os documentos oficias proporcionam espaços para uma diversificação as IES, parecem preferir a inserção de temas ou sub - temas que são urgentes (é verdade) à contemporaneidade, mas não privilegiam aspectos da formação de bases humanas e solidárias, de problemáticas éticas voltadas para o entendimento e superação de comportamentos antissociais e violentos, além de estarem distantes de uma pedagogia realmente promotora de uma sociedade mais solidária e comunitária. Referências APPLE, Michael W. Ideologia e currículo. Porto Alegre: Artmed, 2006. BRASIL. Decreto Federal n. 5.773, de 9 de maio de 2006. 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Autor: Ms. Elaine Cristina Moreira da Silva Doutoranda em educação pela Universidade Nove de Julho Coordenadora do curso de Pedagogia e Letras do Centro Universitário Católico Salesiano de Lins e-mail:[email protected] Co-autor: Dr. Carlos Bauer de Souza Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Nove de Julho e-mail: [email protected] Introdução A relação de produzir e construir saber significa refletir constantemente sobre os conteúdos, transformações e deslocamentos que a sociedade vivencia, procurando analisar tais movimentos por diversos ângulos, para desenvolver a curiosidade seja ela científica, social ou cultural investigando a realidade observando permanências e rupturas compreendendo assim a historicidade de cada ser. Segundo André Mota (2005), na história da medicina e da saúde pública, diversos trabalhos puderam aproximar e reiterar a compreensão da organização das instituições médicas, da história das doenças e das tecnologias empregadas em políticas em saúde e na chamada medicina popular. É essencial o reconhecimento das transformações históricas ocorridas durante a configuração e os direcionamentos da materialidade de uma profissão e das diversas mobilizações ocorridas nesta materialidade; faz-se necessária a construção social do profissional que se aventurará na mesma, esperando que o reconhecimento e os resultados destas transformações tornem-se parte do processo reflexivo de cada um, frente ao processo de construção do conhecimento e de atuação prática deste profissional. Assim, para que se formem médicos cidadãos conscientes de seu papel e das contribuições de suas ações na sociedade, torna-se necessário a utilização de diversas ferramentas que possibilitem o entendimento e a compreensão da função histórica articulada de conhecimentos socialmente estruturados, reconhecendo a importância da aprendizagem, da linguagem e da comunicação na formação de cada ser. Museu como espaço educativo 133 O museu é espaço privilegiado no quesito comunicação, pois se utiliza de diferentes estratégias e diferentes mecanismos de comunicação por apresentar a seus visitantes todos os objetos que se configuram como interlocutores dos fatos historicamente organizados e facilmente articulados com as necessidades de ampliação e reconhecimento das mudanças e transformações através da organização e da possibilidade de comparação, constatação e questionamento de vários fatores em um mesmo local. Pensando em situações pedagógicas e práticas educativas, podem-se perceber diferentes nuances nas possibilidades formativas da educação em museus que levam a refletir que a forma de apropriação do conhecimento modifica os modos de participação nas práticas sociais, para Vygotsky forma e conteúdo estão atrelados e, por isso, este desenvolvimento ocorre em conjunto e por meio da aprendizagem social, organizada pela ação didática que não pode ocorrer de maneira espontânea, sem planejamento, organização, sequência, metas e instrumentos didáticos adequados e significativos. Seibel-Machado(2009) apresenta que a Museologia e a Educação, consideradas como processo histórico-social, assumem, em cada período histórico, características do resultado das ações do homem, fazendo com que possamos considerá-las como possibilidade. Daí, a necessidade de compreendê-las como ação social e cultural. A qualificação para a transformação da realidade passa pelas diversas possibilidades de leituras múltiplas do mundo, de tal forma que o conhecimento faça parte de sua vida 34, de sua cultura, de sua identidade, e que não seja somente o conhecimento legitimado por outros grupos e sim faça parte de nossa rotina de trabalho, nossa atuação dentro da coletividade. Neste sentido, focar o estudo na questão pedagógica e no papel que o setor educativo vem desempenhando nos museus pode permitir que seja colocada em discussão a importância e a pertinência de explicitar os pressupostos teóricos que orientam a prática educativa que desenvolvem. Este pressuposto pauta-se no entendimento de que a educação é uma prática histórico-social e que tal prática é constituída de ações mediante as quais os agentes pretendem atingir determinados fins relacionados com eles próprios. Ações que visam 34 Vida entendida como vida cotidiana, “é a vida do homem inteiro: ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade. Nela, colocam-se “em funcionamento” todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, ideias, ideologias. Heller, Agnes. O Cotidiano e a história. Editora Paz e Terra. Rio de Janeiro-RJ.p.17. 134 provocar transformações nas pessoas e na sociedade, ações marcadas por finalidades buscadas intencionalmente. O Museu de Medicina da USP, além de ser preservador da história da Faculdade de Medicina, é local de busca permanente da consciência médica paulista e é marco conceitual dos princípios que direcionaram a evolução do sistema cultural médico no Brasil. A pesquisa e sua metodologia As estratégicas metodológicas da investigação realizada delineiam-se nos marcos da pesquisa qualitativa. Tendo como referência princípios teórico-epistemológicos, que se baseiam na ideia de que os sujeitos sociais são seres reflexivos, o que (res)significam suas experiências, ações e posicionamentos, nos vários contextos onde atuam, ressaltando as motivações e intencionalidades, as formas de identificação e apropriação, em relação às mudanças, dos novos contextos sociais e educacionais, que apresentam implicações fundamentais para pesquisa. A educação, neste trabalho, é considerada como processo, da mesma maneira como a discussão das ações educativas em museus, ambas consideradas como ação de avançar, atividade reflexiva que tem como objetivo alcançar o conhecimento de algo, a sequência de estados de um sistema que se transforma com reflexão constante, pensamento crítico e criativo nas atividades sociais, nas quais o profissional esta inserido. Parte-se do pressuposto de que as ações educativas desenvolvidas no museu são ações propostas para responder e cumprir objetivos específicos voltados para públicos também específicos. Ações que buscam construções conceituais e procedimentais nas pessoas e na sociedade, ações marcadas por intenções, de acordo com o Glossário da Revista Museu35, ações educativas são: Procedimentos que promovem a educação no museu, tendo o acervo como centro de suas atividades. Pode estar voltada para a transmissão de conhecimento dogmático, resultando em doutrinação e domesticação, ou para a participação, reflexão crítica e transformação da realidade social. Nesse caso, deve ser entendida como uma ação cultural, que consiste no processo de mediação, permitindo ao homem apreender, em um sentido amplo, o bem cultural, com vistas ao desenvolvimento de uma consciência crítica e abrangente da realidade que o cerca. Seus resultados devem assegurar a ampliação das possibilidades de expressão dos indivíduos e grupos nas diferentes esferas da vida social. Concebida dessa maneira, a ação educativa nos museus promove 35 http://www.revistamuseu.com.br/glossario/glos.asp, acessado em 02/04/2012 135 sempre benefício para a sociedade, em última instância, o papel social dos museus. Espera-se que as visitas aos museus contribuam para o resgate e para a construção de um perfil ético profissional, constituído por elementos que se configurem em relevância tanto profissional quanto social, e que tornem o cidadão médico apto para participar de forma bem informada e, portanto, mais consciente nos debates político-sociais e de sua atuação nas questões sociais. Compreender a ação museológica como ação educativa significa reconhecê-la como ato de comunicação, buscando as ações de pesquisa, preservação e comunicação para criar um ambiente interdisciplinar, utilizando conteúdos e disciplinas que auxiliem no entendimento e na construção do saber, através da troca de informações, do diálogo, da interação com todos os sujeitos envolvidos de alguma forma e principalmente com o objeto de estudo. O estudo documental e a análise do acervo do museu revelam-se uma grande fonte de informações, uma vez que todos os documentos e artefatos são a expressão de sua época, sendo marcos de descobertas e questionamentos científicos de diferentes pontos de vista, o que possibilita um olhar interdisciplinar na investigação e na análise, por conta dos diferentes objetos existentes, desde pintura, fotografias, registros escritos, aparelhos, indumentárias, coleções etnográficas, entre outros, um verdadeiro local do ato educativo que permite uma aprendizagem significativa. Considerações finais Destacou-se a fertilidade da abordagem crítica, histórica e contextualizada da ação educativa nos museus, reconhecendo que ela permite compreender, dialeticamente, por meio de suas práticas museológica e educativa que se num primeiro momento este local foi idealizado para reprodução cultura e ideologia da classe dominante em diferentes momentos históricos, este se transforma a cada geração e a cada novo contexto social e histórico, essa mesma instituição se configura e cria possibilidades de analisar, criticar, projetar e principalmente entender e se necessário transformar a sociedade em que esta inserida. Reconhece-se que as ações Educativas em Museus tendem a ampliar sua importância e intensificando os Setores Educativos dos mesmos, vistas e utilização deste como local de aprendizagem e construção de conhecimento capaz de possibilitar uma 136 aprendizagem significativa, sem perder sua essência, sendo eixo da expressão dos diferentes momentos e situações históricas vividas por uma profissão e por um grupo, enfim por uma sociedade que está em constante construção social, política e ética, sem colocar em perigo o cumprimento das outras finalidades não menos essenciais: conservação física, conservação patrimonial, preservação e investigação científica. Referências Bibliográficas e obras de apoio ARCOVERDE, Tarcísio Lins. Fundação Universidade Regional de Blumenau, FURB, Brasil. Formação médica: (des) construção do sentido da profissão - a trajetória da representação social, Ano de Obtenção: 2004. GASPAR, Alberto. 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São Paulo: Martins Fontes, 2000b. 138 Cidade Educativa e educação não formal como fomentadores da contra-hegemonia gramsciniana Marcos José de Aquino Pereira, graduado e licenciado em Filosofia, aluno especial do Mestrado em Educação da UNISAL, campus Maria Auxiliadora, Americana, Professor da Rede Oficial de Ensino do Estado de São Paulo. Email: [email protected] Fone: (19) 9730-1091 Rua Albano Bispo dos Santos, 31 – Jd. Porangaba- Águas de São Pedro –SP – 13525-000 Resumo: Considerando-se que a educação não formal ocorre na ação interativa, na práxis do grupo, em um caráter coletivo, cabe dizer onde se dá tal ação, ou onde ela é possível. Pelo fato de que as interações humanas, entendidas como meio pelo qual se desenvolve a troca/construção de saberes nesse tipo de educação não institucional, não se restringem a este ou aquele ambiente, escolar ou não, podemos nos remeter ao pensamento de Edgar Fauré acerca da cidade se apresentar como amplo espaço de possibilidades de uma educação permanente e acessível a todos, dentro do conceito de “Cidades Educativas.”, o que nos convida à reflexão sobre a capacidade conscientizadora dessas aprendizagens em uma perspectiva gramsciniana de “contra-hegemonia”. Palavras-chave: Cidade Educativa, Educação não formal, Práxis, Contra-hegemonia. Abstract: Considering that the non-formal education in interactive action occurs in praxis of the group, in a collective character, say where it takes such action, or where it is possible. Because that human interactions, understood as a means by which develops the exchange / construction of knowledge in this type of non-institutional education, not limited to this or that environment, school or not, we can refer to thinking about Edgar Fauré city present itself as ample possibilities for continuing education and accessible to all, within the concept of "Cities education." which invites us to reflect on the ability of these conscientization learning in perspective gramsciniana "counter-hegemony". Keywords: Education Town, Non-formal Education, Praxis, Counter-hegemony. COMUNICAÇÃO Se partirmos de um princípio mais amplo sobre educação, que considere a complexidade das relações humanas que se relacionam com a possibilidade de aprendizagem, sob a visão da educação não formal, encampada por Garcia (2005, p.114) de que “A educação não formal é toda aquela que é mediada pela relação de ensinoaprendizagem, tem forma, mas não tem uma legislação nacional que a regula e incide sobre 139 ela”, poderemos afirmar, assim como Gohn (2008, p. 101), que “os espaços onde se desenvolvem ou se exercitam as atividades da educação não formal são múltiplos”, a saber: no bairro-associação, nas organizações que estruturam e coordenam os movimentos sociais, nas igrejas, nos sindicatos e nos partidos políticos, nas organizações Não governamentais, nos espaços culturais, nas próprias escolas, nos espaços interativos dessas com a comunidade educativa etc.” Segundo Sousa Fernandes, Sarmento e Ferreira (2007): Não é ainda muito extensa a literatura existente sobre esta temática. Podemos considerar que a obra de Edgar Faure, publicada pela UNESCO em 1972, foi pioneira ao considerar a cidade como um espaço fundamental da educação dos cidadãos. Na sequência desta publicação tem surgido outras, com particular destaque para as produzidas em Barcelona, cidade que se tem constituído como um polo dinamizador e irradiador desta problemática. Entre estas, salienta-se o livro “La Ciudad Educadora”, que recolhe um conjunto de comunicações apresentadas no 1º congresso das cidades educadoras que teve lugar nessa cidade em 1990. Apesar dos conceitos “cidades educadoras” e “cidades educativas” serem por vezes usados como sinônimo, existe uma associação muito grande entre o primeiro e os projetos institucionais realizados por diversas cidades, com destaque para Barcelona, no sentido de implantar ações educativas através de atividades específicas. Diante disso seguindo a nomenclatura usada por Fernandes (2009), temos optado pela segunda fórmula, considerando que o termo “cidades educativas” refere-se uma ampla gama de práticas educativas ocorridas dentro ou fora das instituições escolares ou não, incluindo “equipamentos e instituições sociais, artísticas, culturais e de lazer e espaços públicos disponíveis no espectro da cidade, em seus centros urbanos e periféricos.” (FERNANDES, 2009, p. 59) Essa nova perspectiva lançada sobre a cidade acaba por remeter a uma mais ampla visão sobre educação, entendida em seu caráter de desenvolvimento integral do ser humano, como uma educação em si mesmo integral, que não se limite à mera transmissão de conteúdo pré-definidos, mas vá além, sendo maleável, recriável, repensável a cada instante e a cada experiência possível, já que a vida na cidade é, em sua materialidade, naturalmente maleável, recriável e repensável o tempo todo. Com isso, exigem-se novas e ousadas formas de se “ensinar, aprender e construir o conhecimento, em diferentes espaços e temporalidades, valendo-se da contribuição de variados sujeitos com seus repertórios geracionais, sociais, históricos e culturais.” (FERNANDES, 2009, p. 61). 140 Que laboratório contaria com tão variado repertório de experimentos como os que uma cidade oferece? Nela ocorrem as ações sociais, com os mais variados movimentos e as mais diferentes reivindicações, sejam de luta por ideais, de busca pela garantia de direitos, ou de expressão de ideias e sentimentos; a participação política toma corpo de verdadeira democracia, ou contornos de abuso do espaço visual nas campanhas eleitorais, mas também com comícios, corpo-a-corpo e carreatas; a cultura realmente tornase pública e feita por e para copiosos públicos que na cidade manifestam sua identidade, sofreres e aspirações; literatura, arte, trabalho, tudo se torna repertório da cidade, na qual o espaço é propício às relações interpessoais, sejam de encontro ou desencontro, de pessoas com objetivos díspares, mas também com culturas, visões de mundo, formações, experiências ímpares, que sem se aperceberem, perpassam uma infinidade de histórias escritas ali mesmo. Tudo isso é material, muito rico por sinal, para a educação. Desse modo, bem afirmam Sousa Fernandes, Sarmento e Ferreira (2007) que: (...) centros cívicos, zoológicos, bibliotecas, centros culturais e recreativos, museus, praças, parques, shoppings, monumentos, arquitetura, escolas de samba, movimentos populares e de rua ligados a música, a dança, as artes... podem ser espaços ou locais de promoção e geração de educação para públicos de diferentes idades, grupos sociais, etnias etc. No entanto, é de notar que, o simples vislumbrar da cidade e a educação que espontaneamente dela obtemos relaciona-se muito mais à educação informal, exatamente devido à falta de intencionalidade, a um aprender difuso e desestruturado, que ao mesmo tempo apresenta facetas contraditórias, que podem ou não levar à reflexão. Quando falamos da educação em seu aspecto coletivo, reflexivo e propositivo da práxis social, devemos ter como fundamento a intencionalidade, e assim: Os sujeitos são autores e responsáveis por suas ações e escolhas, com criticidade, reflexão e autocrítica, exercendo seu papel político de sujeitos que participam e intervêm na cidade. Para tanto, é preciso que as oportunidades de experimentação e experienciação sejam ampliadas e reforçadas, pois elas fornecem a atribuição de sentidos e significados para as vivências individuais e coletivas. A educação em termos gerais, incluindo a formal e a não formal, envolvendo a educação pela/na/da cidade, incluindo tanto as práticas institucionalizadas e as que ocorrem fora das instituições são a oportunidade para o questionamento do tradicionalmente instituído e a construção e surgimento do novo, ousado, transgressor, que carrega consigo o potencial para as mudanças e transformações. (FERNANDES, 2009, p. 62 - 63), 141 Se entendermos esse novo, ousado e transgressor, gérmen das mudanças e transformações em uma perspectiva de ação na cidade, podemos aqui relacionar aos diversos movimentos que fazem uso da cidade como espaço de conscientização, contestação, resistência e proposição, tornando verdadeiramente, sua ação, o ensejo para que a educação ocorra, permitindo a transitabilidade entre os conceitos difusos e desestruturados da experiência natural da cidade, para a composição, ordenação e ressignificação crítica desse repertório na produção de uma nova visão, que contemple as intrincadas relações de poder que se dão exatamente na cidade e somente na sua crítica interpretação se revelam na forma da hegemonia gramsciniana, como explica Williams (1979, p. 113): A hegemonia é então não apenas o nível articulado superior de ‘ideologia’, nem são as suas formas de controle apenas as vistas habitualmente como ‘manipulação’ ou ‘dominação’. É todo um conjunto de práticas e expectativas, sobre a totalidade da vida: nossos sentidos e distribuição de energia, nossa percepção de nós mesmos e nosso mundo. É um sistema vivido de significados e valores –constitutivo e constituidor– que, ao serem experimentados como prática parece confirmar-se reciprocamente. Constitui assim um senso da realidade para a maioria das pessoas na sociedade, um senso de realidade absoluta, porque experimentada, e além da qual é muito difícil para a maioria dos membros da sociedade movimentar-se, na maioria das áreas da sua vida. Gramsci (1979), ao falar em hegemonia, reporta à educação política da sociedade em sua relação com o Estado, o que tem pressupostos educativos, sendo a educação vista como um processo de criação de uma ideia de mundo, utilizando-a para a manutenção ou para a transformação social. Quando focamos nossa atenção à educação não formal, exercida na cidade educativa, através do ativismo de diversos tipos, não há como não pensar em uma contra-hegemonia em movimento: Uma educação visada pela classe que tenta uma contra-hegemonia vai se caracterizar pela luta por uma nova concepção de mundo (...) possibilitando a apropriação coletiva do saber (...) Porque o saber é revelador do real, ele permite que as contradições sejam percebidas (...) pela ruptura com um saber mascarador substituído por um mais revolucionário, caracterizado pela luta contra o “senso comum”. Esse processo educativo implica numa tomada de consciência que se torna possível pela superação do “senso comum” como ponto de partida para uma “reforma intelectual e moral”. A difusão de uma concepção mais crítica começa a tirar as massas da passividade (...) de forma que pela ação exercida na cidade se realize a conscientização e pela conscientização se realize a ação transformadora da cidade/sociedade. (JESUS, 1985) 142 Ao considerarmos a educação não formal realizando-se na cidade, tendo-a como fonte de infinitas vivências, e visando-a como elemento a ser transformado, vemos que podemos também analisar o sentido inverso em que a cidade se apresenta como fonte e meio de aprendizagem, no qual o cidadão pode se formar em uma educação conscientizadora e recriadora do indivíduo e da própria sociedade e nesse caso podemos concordar com Balandier (1980) quando afirma que “a própria cidade se faz pedagoga coletiva”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BALANDIER, Georges. Poder em Cena. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. W. Jaeger, Paideia. A Formação do Homem Grego, s.l., Martins Fontes Editora, 1995. FERNANDES, António Sousa; SARMENTO, Teresa; FERREIRA, Fernando Ilídio. Por uma Escola de Qualidade Para Todos. 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A equoterapia é um método terapêutico realizado sobre o cavalo que está inserido numa abordagem interdisciplinar. Faz parte da equipe terapêutica profissionais da área da educação, saúde e equitação. Essa terapia busca o desenvolvimento do indivíduo em seus aspectos biopsicossociais, isto é, auxilia e estimula o desenvolvimento motor, emocional e social, visando o bem-estar do praticante. As sessões são realizadas na arena, com pessoas portadoras de algum tipo de deficiência sob a orientação de um profissional direcionado para o atendimento das necessidades do praticante. Tendo como foco a área educacional no âmbito não formal, faremos algumas reflexões com base nas contribuições de afetividade de Henri Wallon e inteireza de JeanYves Leloup, com o objetivo de verificar de que maneira o pedagogo pode estimular o desenvolvimento psicomotor e afetivo do praticante de equoterapia durante a realização de uma sessão. Além disso, identificar o pedagogo como educador provedor da aprendizagem junto ao praticante, fora do ambiente escolar, denominando-o como terapeuta, através da criação do elo entre eles. O direcionamento da aplicação pedagógica das atividades se dará junto a praticantes autistas, durante a realização das sessões de equoterapia. Palavras-Chave: Educação Não Formal, Equoterapia e Pedagogia Abstract: This dissertation will discuss and will make some reflections about three themes: non-formal education, riding therapy and pedagogy. The riding therapy is a therapeutic method performed on the horse that is inserted in an interdisciplinary approach. The therapeutic team is formed by education, health and riding professionals. This therapy aims to develop the individual into the biopsychosocial aspects, supporting and encouraging in his emotional, social and motor development for well-being the practitioner. Sessions are performed into the arena with people that have any type of disability under supervision of a 145 targeted professional to meet the needs of the practitioner. Focused on the non-formal education sector, we make some reflections based on the affective contributions of Henri Wallon and completeness of Jean-Yves Leloup, with the objective of verifying how the teacher can stimulate the psychomotor and affective development of practitioner´s, during the session. Also, identify the teacher as an educator that provides learning and knowledge outside the school environment, becoming a therapist by creating the link between them. The focus of this educational activity will be performed along with the autistic practitioners during the riding therapy sessions. Keywords: Non-formal Education, Riding Therapy and Pedagogy. INTRODUÇÃO A convivência com animais há muito tempo deixou de ser vista apenas como companhia e ganhou ares benéficos para a saúde, seja ela na parte física, mental ou de aprendizagem. Aves, cachorros, coelhos, tartarugas, cavalos, além de uma infinidade de outros animais, auxiliam em tratamentos terapêuticos, independente da idade do “paciente”. O tratamento alternativo ganhou espaço: A demanda também aumentou porque a técnica se mostrou eficaz para alguns distúrbios da modernidade. Em especial, o transtorno de déficit de atenção, que tem deixado pais e professores de cabelo em pé e causado polêmica em torno do uso ou não de medicamentos. (BIDERMAN, p.6, 2012) Para esta pesquisa de dissertação, em específico, direcionamos nosso olhar para a intervenção do cavalo no auxilio ao tratamento terapêutico. Apesar de sua extrema importância na evolução do praticante36 no que se refere ao desenvolvimento biopsicossocial, ou seja, o benefício motor, o emocional e social, enfatizaremos como objetivo principal, a aplicação de atividades pedagógicas, no que se refere a aspectos psicomotores e afetivos. A técnica da terapia através do cavalo é conhecida como equoterapia e passou a fazer parte de meu cotidiano em fevereiro de 2012, quando fui convidada a ser voluntária de uma Associação. Durante as sessões, aproximei-me e iniciei o desenvolvimento dos trabalhos com dois praticantes autistas. Através desta vivência, o objetivo foi analisar de que maneira o 36 Praticante é o termo usado para pessoas ou crianças com deficiência ou necessidade especial, que freqüentam as sessões de equoterapia. 146 pedagogo pode influenciar no desenvolvimento psicomotor e afetivo dos praticantes das sessões de equoterapia. No nosso caso, praticantes com diagnóstico de autismo. Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa bibliográfica e pesquisa participante, junto a praticantes de equoterapia que possuem autismo. Os referenciais teóricos relativos à educação serão aqueles voltados para o entendimento da educação não formal e educação especial, assim como intervenções pedagógicas, no qual nos embasamos em Jean-Yves Leloup, Eugenio González, Henri Wallon e Severino Antônio. Sob a ótica da equoterapia, utilizamos como referencial José Torquato Severo, Ana Luisa de Lara Uzun e Tatiana Lermontov. Pretendemos com este trabalho dar suporte a futuros estudos feitos sobre o tema, além de colaborar para o desenvolvimento efetivo das atividades desenvolvidas em Associações de Equoterapia. NA ARENA DA EDUCAÇÃO A educação, apesar de acontecer em diversos espaços quase sempre tem sido associada à escola. Quando falamos em aprender ou aperfeiçoar o que já sabemos, referimo-nos ao local como escola: escola de inglês, escola de informática, escola de corte e costura, escola de cabeleireiro... Talvez seja por isso que pensar a educação fora deste ambiente predial e regido sob todas as exigências de adequação que as leis municipais exigem ainda seja difícil. Ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou de muitos todos nós envolvemos pedaços da vida nela: para aprender, para ensinar, para aprender-e-ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida com a educação. (BRANDÃO, 2008, p.7) A educação não formal está em destaque neste trabalho, uma vez que as atividades foram desenvolvidas dentro de uma Associação que faz atendimento de pessoas com deficiência. Limitando nosso território, estamos em contato, especificamente, com autistas. Para leigos ou mesmo para o cotidiano das pessoas, a visão sobre o autista é a de que são pessoas que possuem extrema limitação de relacionamento pessoal, ‘vivendo’ exclusivamente em seu mundo. Com base nisso, fizemos um levantamento sobre características do autista e sobre como o profissional da pedagogia, atuando em um ambiente não formal, pode ajudar no seu desenvolvimento e qual a importância do pedagogo no estímulo diante das dificuldades e no auxílio para os avanços. 147 AS SESSÕES DE EQUOTERAPIA A sessão de equoterapia possui o tempo estimado de 40 minutos de duração, sendo que o praticante permanece sobre o cavalo por 30 minutos. A sessão pode ser realizada de uma a três vezes por semana – desde que não interfiram nos demais tratamentos do praticante. O tempo mínimo de permanência no programa de equoterapia deve ser de seis meses. Conforme Medeiros e Dias (2003), de modo geral, as sessões apresentam três etapas: aproximação (criação do vínculo afetivo do praticante com o cavalo), desenvolvimento ou montaria (aplicação das atividades conforme a necessidade do praticante) e conclusão (para o encerramento da sessão o praticante é incentivado a acariciar e alimentar o animal com cenoura, firmando o vínculo afetivo). . Ao término da sessão, todo o trabalho desenvolvido é registrado em formulário próprio que contém: nome do praticante, nome do animal, nome dos integrantes da equipe pelo qual foi atendido, evolução da sessão, recursos utilizados, estado do praticante. Essa avaliação permite a continuidade das atividades em sessão futura. Para a realização de um bom trabalho, é necessária a integração de uma equipe interdisciplinar, formada por um mediador (profissional com formação compatível com a necessidade do praticante e que fará o direcionamento da sessão, podendo ser um pedagogo, psicólogo, fisioterapeuta, fonoaudiólogo etc); auxiliar-lateral (pessoa responsável pelo auxílio físico e segurança do praticante, acompanhando-o a pé, ao lado do cavalo, estando ao lado oposto do mediador) e auxiliar-guia (pessoa que conduz o cavalo durante a sessão, ritma seu andamento, direção, além de preservar o equilíbrio do praticante). Dentro deste contexto e durante os atendimentos, o Pedagogo (e/ou Psicopedagogo) tem a função de criar recursos didáticos lúdicos para serem agregados durante a sessão. Além disso, criar situações que auxiliem o praticante durante o desenvolvimento das sessões, assim como possa auxiliá-lo no convívio e desempenho escolar. ENCERRANDO A SESSÃO As atividades desenvolvidas na Associação de equoterapia possibilitaram refletir sobre quais as reais funções do pedagogo durante as sessões de equoterapia e de que maneira ele pode influenciar no desenvolvimento psicomotor e afetivo dos praticantes durante a realização das sessões. 148 A pesquisa foi realizada com dois praticantes com o mesmo diagnóstico: autismo. Durante os cinco meses em que o trabalho foi desenvolvido, tivemos contato em 12 sessões com R37, e 7 com G38, sempre aos sábados. O número reduzido de contatos (que no total poderiam ter chegado a 23) deu-se por vários motivos: falta dos praticantes; ausência da pesquisadora; realização de festa para a Associação (no dia anterior ou no próprio dia do atendimento); por ser um local emprestado, a proprietária o utilizava para a realização de eventos; a necessidade da pesquisadora em ajuda no atendimento de outro praticante pela ausência de voluntários. Achamos oportuno apontar alguns fatores específicos para melhor analisar e até mesmo comparar os dois praticantes. Destacamos então: a confiança, o equilíbrio e a concentração. A confiança se dá com base na afetividade, porque o praticante precisa sentir segurança na equipe de atendimento e também no cavalo, tendo certeza de que nada irá lhe acontecer durante a realização das sessões e desenvolvimento das atividades propostas. Caso ocorra algum incidente, a equipe estará preparada para ajudá-lo. Além disso, é indispensável o elo afetivo entre o praticante, a equipe terapêutica e o cavalo, ficando quase impossível a realização de qualquer atividade caso este elo não exista. O equilíbrio, embasado na psicomotricidade, é fundamental para que o praticante consiga realizar a programação proposta pela equipe, mantendo-se firme apesar da realização dos movimentos feitos por ele mesmo e pelo cavalo. Tamanha sua importância, que independente da formação do mediador, a postura é um requisito cobrado a todo momento dos praticantes. A concentração, no nosso caso com ênfase no desenvolvimento das atividades pedagógicas, permite que o praticante realize as atividades entendendo o que está fazendo, porém, num ambiente em que isso seja testado constantemente, pois existem as sessões que estão ocorrendo com os outros praticantes, conversas dos membros das equipes com seus praticantes, movimentos externos de pessoas, carros e trem, propiciando, durante todo o atendimento, a desconcentração. Cabe à equipe, neste momento, tentar interagir com o praticante de modo que consiga atrair sua atenção para o que está sendo realizado. Baseados nos itens acima, R e G apresentaram comportamentos distintos: Confiança R 37 38 G R – tem 19 anos e frequenta a equoterapia desde Fevereiro de 2011 G – tem 7 anos e frequenta a equoterapia desde Fevereiro de 2011 149 Demonstrou confiança desde o início na Possui confiança restrita, sendo mais difícil pesquisadora, realizando tudo o que era o contato pessoal. Com a pesquisadora, solicitado. apresentou resistência em atender o que era pedido, sendo possível um pequeno contato apenas nas duas últimas sessões. Em relação às atividades motoras, Realizava os exercícios pedidos e fazia-os desenvolvia o que era pedido apenas pela devidamente mesmo com o cavalo em mediadora de sua confiança, fazendo as movimento, independente do mediador mudanças de posição mesmo com o cavalo daquela sessão. em movimento. Equilíbrio R G Possui postura correta sobre o cavalo, Possui postura correta sobre o cavalo, mantendo-se equilibrado durante toda a mantendo-se equilibrado durante toda a sessão. sessão. Apesar de demonstrar medo em algumas Realiza decúbito lateral (inversões de lados) situações, nunca deixou de realizar qualquer sem apresentar medo e com o cavalo em atividade pedida, mantendo-se firme movimento. Fica bastante à vontade quando durante a realização de abdominal ou está deitado de bruços. ficando em pé (apoiado no estribo) no cavalo, além das corridas. Concentração R G Mantém pouco contato visual, porém está Quase sempre atento ao que está sendo proposto. não prendendo mantém sua contato atenção em visual, objetos distantes. Às vezes demonstra não compreender o que está sendo pedido; mesmo assim, não perde Com exceção das atividades motoras, não a concentração até que consiga entender e apresenta concentração no que é proposto. realizar o que está sendo requisitado. 150 Foi possível verificar que, apesar de possuírem o mesmo diagnóstico, R. e G. apresentam comportamentos distintos. G desligou-se das atividades equoterápicas ao término da pesquisa porém, acreditamos que, se eventualmente voltasse a frequentar a equoterapia, fosse mais oportuno que continuasse o acompanhamento tendo uma psicóloga como mediadora, visando criar um vínculo afetivo ainda maior e potencializando a resposta a comandos verbais e socialização. Em relação a R, acreditamos que a presença de um pedagogo é muito importante para estimular ainda mais os conhecimentos que já possui, procurando incentivar novos desafios e avançando nos seus limites. Com R, pretendemos, em sessões futuras, resgatar o apreço pela pintura em tela partindo de atividades pedagógicas que estimulem esta prática. CONSIDERAÇÕES FINAIS: O ÚLTIMO GALOPE. SERÁ? A equoterapia é uma atividade terapêutica ainda de conhecimento restrito para a maioria das pessoas, apesar dos inúmeros benefícios apresentados. Faz parte de sua rotina a motivação no desenvolvimento de atividades motoras, cognitivas e de socialização. O trabalho desenvolvido nos centro de equoterapia, na maioria das vezes, é de cunho filantrópico, sendo necessária uma gama de voluntários, extremamente empenhados, para que o projeto realmente aconteça. E de que maneira uma pessoa pode ser tocada para realizar um trabalho em que não receberá nada em troca? Trocar horas do precioso sono ou lazer para se dedicar a alguma coisa com o qual não possui o menor vínculo? Pelo menos, essa é a visão inicial de quem pretende ser um militante do trabalho voluntário. Mas as coisas mudam. Durante o período em que tenho permanecido na Associação, atuando primeiramente como voluntária e só depois como pesquisadora, pude notar o envolvimento da equipe com os praticantes. Quando necessário, os voluntários são substituídos sem prejudicar o atendimento, demonstrando o mesmo carinho e atenção. O elo pode parecer não ser o mesmo, mas semanalmente temos o prazer de conviver com todos eles. O trabalho voluntário, sob minha visão particular, está além do que supunha que eu pudesse oferecer. Doar algumas horas da minha semana? Colocar em prática os conhecimentos da faculdade, cursos, congressos e pós-graduações? A vivência me fez mudar de opinião. Quando eu pensei que estava dando algo de mim, na verdade percebi que aquele momento me completava. O que pude proporcionar durante 151 este período de pesquisa e que terá continuidade mesmo com seu término, é realmente muito pouco se comparado ao que recebi. Pude presenciar conquistas pequenas para muita gente e extremamente grandiosas para outras. A postura ereta de uma criança sem o controle do tronco, mesmo que por alguns segundos. Manter-se em pé e dar pequenos passos na busca da independência, depois de ter recebido uma descarga elétrica que mudaria seus planos para o futuro. A troca de gritos e choros, pelo acompanhamento balbuciado de uma música infantil. O sorriso espontâneo no momento do galope do cavalo. A troca de olhares e o elo de cumplicidade com um autista. Comecei a perceber que a vida pode ser comparada com uma sessão de equoterapia: é preciso que haja maior aproximação com as coisas e com as pessoas; sempre terá alguém a nossa frente para nos guiar e alguém ao nosso lado para nos amparar quando precisar de ajuda; alguém estará na retaguarda para nos dar um feedback sobre nossos atos e comportamentos; alguém será a nossa base, que a vezes nos desestrutura, mas faz isso para o nosso fortalecimento e com certeza, não nos deixará cair. Pode ser que nos sintamos, em algum momento, impossibilitados de nos mover para resolver problemas; cegos para as injustiças; sem fala para reagir. Os obstáculos insistentemente aparecerão, mas sempre teremos alguém por perto, não para facilitar, mas para fazer com que aquele momento seja de crescimento, apesar da dor. Durante esta pesquisa, novas visões foram possibilitadas: a) a educação não acontece somente na escola; b) os animais podem ser muito mais que apenas companheiros, eles podem ajudar a curar a dor emocional, espiritual e física; c) o cavalo é um aliado de peso na terapia de diversas doenças, além de construtor de elo afetivo; d) a dedicação voluntária é essencial para o acontecimento de algumas atividades; e) a pessoa com diagnóstico de autismo está além daquele ser sentado no canto da sala se balançando o tempo todo; f) o pedagogo tem uma vasta área de atuação e recursos para desenvolver o seu trabalho; g) de nada vale o conhecimento se não pudermos dividi-lo; h) diagnósticos iguais não significam pessoas iguais; i) “o essencial é invisível aos olhos” (Antoine de Saint-Exupéry). Ao educador, que tem a felicidade de fazer parte desse processo, cabe permitir-se acrescentar novos conhecimentos à vasta teoria aprendida na escola formal. A formação contínua no pensar e repensar a prática, na circulação de ideias e diálogos. A prática e a vivência ativa dentro de um centro de equoterapia oportunizam a educação não formal para a vida, despertam sensações adormecidas e intuições que talvez não se imaginasse que pudessem existir. Neste trabalho, assim como em todos os outros, é preciso 152 dedicação e não esperar que novas ideias venham a cavalo. É preciso buscar, interagir e vivenciar o processo. É o aprender na prática para realmente conseguir ajudar quem precisa. A formação do educador não pode estar restrita a momentos formais obrigatórios, mas ele deve procurá-la no zigue-zague das balizas, tentando buscar as bolas mais altas e nas aventuras dos galopes que a educação proporciona. E quando ele pensar que a etapa já está concluída é tempo de recomeçar, buscando novas teorias, reavaliando e reelaborando suas práticas. Como domadora de cavalos, espero que o trabalho seja a oportunidade para que novos galopes possam acontecer. Obstáculos com certeza existirão, mas as rédeas ajudarão a trilhar novos caminhos, na mesma arena ou não. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BIDERMAN, Iara. Caderno Equilíbrio. Folha de São Paulo, 17 de Abril de 2012. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 2008. MEDEIROS, Mylena; DIAS, Emilia. Distúrbios de aprendizagem: a equoterapia na otimização do ambiente terapêutico. Rio de Janeiro: Revinter, 2003. 153