Nada
Bucólico
Daniel
Pandeló
Corrêa
Para Nathália Pandeló
Prefácio
Um escritor em pleno amadurecimento. Essa é a sensação que fica ao ler essa breve
coleção de textos de Daniel Pandeló Corrêa, que traz algumas de suas primeiras
incursões no mundo da literatura.
Ao mesmo tempo sinceras e inocentes, tristes e melancólicas, o que essas histórias têm
em comum é a candura e a sensibilidade que Daniel demonstrou desde seu primeiro
livro, "Bucolidade urbana", lançado quando o autor tinha apenas 15 anos.
De contos de amores e desencontros nas grandes metrópoles, surge também um cordel
com temperos do nordeste brasileiro para falar dos mesmos sonhos e dores com que
todos nós podemos nos identificar.
Essa coletânea traz o melhor do primeiro livro e o frescor de "Nada-star",
anteriormente lançado via bluetooth. Nesse novo momento da carreira de Daniel,
"Nada bucólico" dá o tom para o que está por vir: mais histórias, cada vez mais maduras,
cada vez mais falando sobre o que nos encanta, aflige, faz rir e chorar. Assim como a
vida, que de bucólica tem quase nada.
Nathália Pandeló Corrêa
Eleonor
(2005)
Eleonor corria atrás de um táxi, que corria atrás das estradas e já estavam
desistindo de procurar um lugar para ir. Quando parou de correr, sentou no banco e
ordenou o motorista para ir ao aeroporto. Imediatamente se arrependeu.
Suas unhas eram corridamente roídas e seus dedos mecanicamente estalados e
sem notar já tinha chegado. Entrou pela porta não muito confortavelmente. Colocou
óculos escuros, não queria ser notada. Não agora. Caminhou lentamente até o painel
com os horários. Suas longas botas de couro rangiam a cada passo. Ela tinha medo de
estar feia e mais ou menos 10 minutos.
Rangeu rapidamente até o banheiro que ajudou, nas jorradas potentes de água, a
limpar o rosto dela e a desesperá-la, já que a água borrou toda sua maquiagem. Buscou
nos confins da agora infinita bolsa seu estojo. E se maquiou rápida e desesperadamente.
Ajeitou suas roupas, tentou de algum jeito fazer aquelas botas pararem de ranger
colocando folhas de papel higiênico dentro delas.
A porta foi chegando mais perto dela, de tão deslumbrante que ela estava. E ao
passar por ela, ficou de longe espiando. As botas já não rangiam e não havia nada para
impedir que a primeira impressão fosse boa.
Quem esperava ainda não aparecia e seus dedos se mecanizavam novamente e
suas unhas corriam. Tudo parou no ar no momento que aquela figura familiar surgiu no
outro extremo do aeroporto. Aquele sorriso sonhado. Eleonor sorriu. E o aeroporto
parecia gigante. E aumentava mais. E tudo distava mais. E Eleonor achou ter visto um
rosto de decepção na pessoa amada. E se sentiu um lixo. E pequena. E horrorosa. E
chorou.
E o taxista perguntava se ela estava bem. Não estava nem na metade do caminho.
As estradas corriam levando os carros parados das pessoas paradas. Ela pensou um
pouco e pediu para que o taxista parasse em uma sapataria. Ela achava que deveria
trocar suas botas.
Nada-star
(2007)
Acontece, lugar nenhum
Dia até de noite, dizem
Fundado um dia por algum
Bem vestido alguém
Montagens de barro pouco
Janelas largas, o Sol vem forte
Trincheiras de pau oco
Doenças das bandas do norte
Meninos gordos só de fome
Desde o tempo do avô do avô
Diziam “Mandacaru faz homem”
“Esquece a sustância pra compor”
Chuva de dia, reza deu trela
O ribeirão voltou-se e foi
Chão rachado virou viela
Levou as casas, o boi.
Na baixa d'água, nem vila tinha
Chamar todos, é hora!
Três filas de caixote, justinha.
Velho e novo. Sem demora.
Escreveram na lama com um toco
Os planos de grande cidade
Os mais velhos estranharam um pouco
Mas tinham que cuidar dos sem idade
Três gerações depois
Nem mandacaru mais dava
O ribeirão cansou de voltar e se foi
De cansar, a trégua voltava.
Dias depois chegou um padre menino
Saído – batina sem rasgo – do seminário
Pregava e orientava os hinos
Planejava construir um santuário
“Santo algum nessa banda de cá”
Disse Zé Arreio, sobrinho-neto de cangaceiro
“vossa santidade há de achar”
diz que pegou o rumo de Juazeiro
Mês após, o coronel apareceu
disse que era herdeiro dessas sesmarias
reuniu todo o povo que desceu
e disse o destino dos severinos e marias
“tudo meu, do ribeiro ao agreste”
Começou a chover, povo mal ouvia
“e de tudo mais, até o oeste”
o povo quieto nem se mexia
coronel levantava a voz, povo não
enquanto o dia sorria sem sol
levantou, sem apoio nenhum, a mão
seus empregados vieram com arma e anzol
Choveu sem água e a vila levantou
não tem mais lugar, já foram pra longe
Zé Arroio honrou o tio-avô
fez de si uma espada de São Jorge
Foram treze minutos mal lutados
nas ripas de madeira nadaram dali
foi caco de vida pra todo lado
mas daquela terra não dava pra sair
Da resistência, agora era filho de Lampião
ferido mortalmente gritou:
“Vila de Santo de Valia Alguma, vocês são”
Ninguém entendeu, mas acatou.
A cidade assim surgiu
sem planos na lama, sem nada
só um nome e um filho novo por dia
Terra ruim onde mal se valia enxada
Passando e passando, os anos corriam nas rachaduras
Havia no centro, praça de lugar vazio.
Houve tempo do comércio ir além das verduras,
jegue manco, cão sem dente, vela sem pavio
E foi juntando gente, coisa e animal
A cada passo, duas casas, lado a lado
E surgiu uma rua principal
E povo apressado
Corriam para nada fazer além de andar
reclamas dos preços do Manuel, nadar na beira
“boa tarde, compadre”, a cumprimentar.
Rezar para chover e chover para bebedeira
Num janeiro, a vida foi mais devagar
Na noite longe, definiram o essencial
pra legalmente a cidade fundar
puteiro, igreja e cabine policial
Nome e sobrenome a rua ganhou
“Av. José Arroio”, tido por guerreiro
da beira do ribeiro ao nada, estradas traçou
uma ia pra São Paulo outra pro Rio de Janeiro
As que iam pra capital, onde estão?
As do lado eram profundas e temidas
caminhos além-coronel, coisa do cão
que rondava procurando namoradas distraídas
Indo pro fundo era o caminho do Senhor
Capela e cemitério eram lá, fins de remédio.
Indo reto passava de Juazeiro e rumava pra Salvador.
Tinha até pegada de Padre Ciço. 41, por obséquio.
Surgiram caminhões, grandes e sem pra vila olhar
A do santo sem valia e das crianças rindo
só havia isso a ver acima do chão a rachar
Colheita do mato com cana vindo
Das terras do coronel que o cheiro vinha
Comida boa, plantada e hoje colhida
Cachaça fresquinha tinha
Cana viva em terra doída
Surgiam homem de terras importantes
Apertaram mãos e se foram
na longa noite a seguir, nada foi como antes
surgiu rodovia, ponte e pedágio no ribeirão
A ponte passava por cima da vila sem valia
a rodovia logo após e pingava de volta na terra
do caminhão, do alto da ponte, cachaça escorria
muito foi se ver e ser o que já era
Rodovia larga, br-algo assim
com caminhões de cana
ônibus sem fim
andarilhos sem cama
Nesses etílicos dias escuros
Um novo ninguém chorou pro dia
Feia, faminta e sem no queixo furos
destinada no máximo à bóia-fria
Cresceu ali, com poucos trocados
Gerando riquezas na plantação
e de uma só, olhos vidrados
na recém comprada televisão
Sem escola, geladeira
fogão ou cama por lá
Imaginou ser estrela verdadeira
passando longe dali pelo ar
Ano após ano, esquecia de ser
a medida que via a cidade descrescer
menino vira homem fazia as malas e ia descer
só nas terras molhadas do coronel dava pra viver
Todos os rostos da infância sumiam na poeira do ar
A cachaça provava a muitos que não havia o que perder
A chuva se foi, deixou céu azul e dito de não voltar
mas ela tinha seus canais e era quem pensava ser
Já não era dona das enxadas e dos lados
arrumou emprego num bar, como a mocinha da novela
a beira da Br-algo, para caminhões pálidos
que nunca passavam na TV, na vida dela.
O caminhoneiro sujo de viagem por três estados
gritava pelo café que estava escorrendo
além do pires na hora do beijo apaixonado
com frases clichês e lágrimas escorrendo
Uma mocinha sofrida de amores não caíra
por homem belo, mas só de frases cheio
Era humilhada por uma velha traíra
Odiável tipinho que vivia sem ao menos receio
Ela se uniu ao pai do homem belo inexpressivo
Ele não era mal ao todo, só usava roupas estranhas
e tinhas males com ele, quase impulsivo
Era segredo grande que guardava nas entranhas
Por isso, sem hesitar, contratou a menina sofrida
Vestida de trapos, limpando o chão da traiçoeira dali
E veio briga, com no fim cobra ferida
Cabelo puxado e um segredo que tinha que sair
O rapaz de tanto desespero desmaiou
pois o homem que contratara era o pai nunca descoberto
bocas abertas em close e o capítulo acabou
e no bar, comovida, a menina esqueceu o caixa aberto
Assim foi demitida pela primeira vez, após alguém tirar tudo dali
ela voltou depois pois ninguém sabia fazer troco na sesmaria
readmitida com promessa de nunca mais sair
como os socos que a mocinha daria
Nos fundos, um pedido de banana da terra
se perdeu entre pães na chapa, numa junção gordural
o incêndio pode ser visto da estratosfera
exceto ela, grudada na novela global.
Naquele dia saltitava de volta pra casa com a rua no olho
Estrelas brilhando entre a fumaça e cheiro da queimada
Olhou pro ribeiro seco que de vê-la borbulhou
Na água viu alguém em sonho e se sentiu amada.
Era ela entre as estrelas, queimando o sertão
via árvores frondosas e casas com cercas brancas
muito falavam dela e mentira não era não
ignorou todos, o incêndio e a casa e foi à banca
Comprou uma revista sobre ela mesma com o que tinha a mão
estava no shopping, com o namorado, estreando peça, numa festa,
dançando, na praia passeando com um cachorro gordão
Dando dicas de dieta e em anúncios. Não sabia quem era ela.
No bar, a placa de emprego vago não saíra do lugar
Depois de duas semanas chamou ela de volta, sem opção
Ela relutou, fez caminho, como estrela pra se apresentar
Fez o homem implorar, como o homem sem expressão
E ele viu a estrela. Ela era algo mais em algum jeito
e continuaria com seus mimos e presentes
Ela com a TV, ele amando outro feito
e os cobradores fazendo fila em frente
As dívidas fizeram rosto e o bar teve que vender
Mas como se ela era estrela? Talvez ele que não era
Closes entre os dois não existiriam, era tempo a perder
Deixando ele na bebida, foi embora
O dono do bar tomou rumo da cidade
pelos bancos e muros que o viam
nos cochichos sentia reciprocidade
se atirou no rio, mas só pedras havia.
Nunca se vira, naquela terra, tal burrice
no cortejo negro, tinha de carpideira a vendedor de bolacha
E ela dormia em paz, em tanta brilhantisse
Na sua revista eles se casam e são felizes, acha
A cidade se fez luz, uma luz vermelha
Tudo ruindo e história virando
Os bois virando cavalos de corrida parelha
Tudo no ar se transformando
Tudo seguia no tempo até o tempo parar
O padre paralisado em seu carro e santuário pessoal
Deus e Diabo jogando amarelinha a atravessar
A ponte resistindo até a capital
E ela numa cidade de luz forte
Era luz que criava cores e curvas até
Era uma estrela nova, de grande porte
Acordando assim, em lugar qualquer.
Porém, a cidade
(2005)
Em um lapso de tempo a cidade mudou. E eterno cinza enlutado se tornou
esperançosas e amorosas cores, e se iluminou. E tudo girava e rodopiava e subia e
descia e pulava e deslizava. Era mágico. Era falso.
O espaço se estreitou, o contato na vida tão anti-social era um horror. E brigas e
desentendimentos e cobiça e stress. Era cruel. Era real. Era alegria em pacote.
Felicidade em embrulhos. Natal por alguns trocados.
E os trocados se foram e os pacotes abertos e os embrulhos rasgados. E não havia lá
nem alegria, nem felicidade, nem natal. Ficou o esquecido miserável enlutado em sua
existência cinza vendo a cidade perder suas cores.
E num lapso de tempo a cidade apagou.
A mão
(2004)
Aquelas mãos não negam. Eles estão destinados um ao outro.
Parece estranho falar isso sobre duas crianças de 6 anos. Mas eles estão. Anos após
todas essas brigas o sentimento vai surgir. Todas essas brincadeiras perderão a
inocência.
Ele trará flores e não insetos, e a acariciará ao invés de puxar os cabelos. Ela o beijará e
não mostrará a língua. Ela dirá coisas arrepiantes ao ouvido dele e não gritará aos
quatro ventos xingamentos sobre ele.
Essas mãos ficarão suadas e o coração enlouquecido ao ver um ao outro. Os olhares se
encontrarão um dia. Em outro os lábios. Em último, corpos. Hoje, ficam as mãos dadas
e os sorrisos compartilhados em um inocente balanço.
Os misteriosos detalhes de trapos e
botas
(2006)
Deus juntou suas mais vivas tintas e um ou outro pincel e pintou o universo.
Talvez nem ele soubesse que pintasse tão bem. Pintou pontos de luz, e pontos
coloridos, que resolveu então chamar de planetas e satélites.
Achava que esses nomes tinham uma boa sonoridade.
E os lindos pontos de luz iluminavam majestosamente os dançarinos planetas e
satélites que em movimentos coreografados geravam um belíssimo espetáculo:
a Dança dos Tempos.
E Deus olhava tudo, atentamente da platéia que na dança havia várias reviravoltas, e os dançarinos às vezes perdiam o compasso ou esqueciam o passo.
E se perdiam e se encontravam. Aí surgiu o amor e tudo voltou a ter sentido.
O amor era a alma de tudo, a alma do que é eterno e só enquanto dure,
nos pequenos, mas misteriosos detalhes entre juntar os
trapinhos e bater as botas.
Em toda sua carreira aquele foi o texto que mais a tocou. Ela, artista conceituada, vê
agora todos seus sessenta e tantos anos estampados de maneira indireta naquela
parede de um Centro Cultural. Ela se lembrou dos seus tempos de jovem bailarina e
calor da paixão pela dança e por um belo bailarino.
A chama do Ballet nunca se apagou nela. A paixão pelo jovem bailarino sumiu mais ou
menos um ano depois do casamento. Nunca tiveram filhos, pois filhos são fruto do
amor. E ele nunca existiu, foi só uma paixão. Ela sempre foi sozinha. Ela sempre se virou.
Ela sempre se fechou. Ela sempre foi um mistério.
Sem mistérios, ele acordou ansioso. Mas não podia parecer assim, afinal ele já era um
artista renomado. Tomou um banho calmo e se arrumou depressa. Preparou seu café
com cuidado e carinho, mas o devorou em instantes.
Respirou fundo e sentiu que algo bom estava por vir. Ele andou até a banca de jornal,
comprou o que achou que teria a melhor matéria possível. Sentou-se num café e pediu
um cappuccino. Abriu o jornal e o ar vitorioso saiu dos pulmões e tomou suas faces: sua
mais nova exposição, que acabara de ser lançada, estava rasgada em elogios por um
dos críticos, que não se vê agradado por qualquer coisa.
Ela acordou com aquele texto na cabeça. Levantou-se devagar, andou pelo
apartamento vazio. Fuçou em um velho armário. Pegou um velho álbum de fotografias.
Colocou-o na mesa. E o folheava enquanto comia qualquer coisa.
Viu fotos do seu casamento, viu o quanto aquilo foi falso. Viu recortes de jornais do
início da carreira e uma foto com aquela que ela achava uma nova promessa. É o jovem
indo antes do velho. É o velho ficando sozinho. Ela olhou ao redor e se viu sozinha.
Vestiu um vestido preto, pôs óculos escuros e foi à missa.
Ele nem ligava para a chuva. Andava feliz pelas ruas escolhendo onde almoçar.
Encontrou um ou outro amigo que elogiava a exposição. Sua alto-estima estava no auge.
Ele estava no auge. Auge de seus 75 anos. Seu coração explodia em alegria. Ele já tinha
em mente que aquelas fotografias, esculturas, instalações e quadros marcariam sua
última exposição.
No auge. Seu coração feliz o guiava até o Centro Cultural, aonde faria uma coletiva de
imprensa e divulgaria sua aposentadoria. Mas, ele mudou de ideia. E ambos, ele e seu
coração, pararam.
Ela não sossegou durante toda a cerimônia. Deu suas condolências ao fim e saiu o mais
rápido que pode. Algo estava angustiando-a por dentro. Pegou um ônibus. Seus pés se
moviam majestosamente, criando uma nova coreografia, sem que ela notasse
enquanto estava sentada olhando pela janela.
Planejava ir até o Centro Cultural e trabalhar algo em cima daquele pequeno texto.
Colocou os óculos escuros, Ela queria se distanciar do mundo e pensar em algo. Fechou
os olhos, e mesmo assim não conseguia. Só desligou dali quando aquele caminhão
acertou o ônibus em cheio.
Tudo estava embaçado para ele. Se esforçou para ver e admirou o soro que estava
sendo mandado para sua veia. Quando sua mente voltou a funcionar e viu o leito,
sentiu que não era mais ele. Sentiu como se não fosse mais nada. Viu a outra cama e
sem saber pra quem falava, se aposentou. Não houve resposta.
Ela se lembra de uma dor horrível e de achar que nunca mais lembraria de nada.
Levantou as cobertas e viu um curativo gigantesco ali na sua barriga. Passou as mãos
sobre o rosto, procurava ver se existia algum motivo para sua falta de lembranças
recentes que não fosse o fato de, pelo visto, ter ficado inconsciente.
“Você está bem” alguém disse, sentado na cama do lado oposto do quarto. “Pelo
menos, bem melhor de quando você chegou, 2 dias atrás.”
Ele tentou sorrir do jeito mais sincero que pode. Estava espantado. Era para ela estar
morta como muitos que ele viu passarem pela porta, no corredor. Ele esteve quase
sempre consciente.
Ela respirou calmamente e tentou se concentrar. Isso sempre foi o que ela fez. Para se
tornar uma coreógrafa consagrada, ela se concentrou muito. Movimentos lentos e
suaves. Calma. Ela fechou os olhos. Lembrou de sua primeira apresentação. Foi um
fracasso. Se contaram 20 pessoas foi porque contaram com o elenco.
Lembrou também de seu olhar pela fresta da cortina do Teatro Municipal lotado 15
anos atrás e no seu medo de iniciante na sua despedida. Respirou, se acalmou.
Perturbava suas alunas para que elas aprendessem a respirar e se acalmar. Não sentia
as pernas. Expirou. Ele continuava sentado ali com aquele sorriso medonho.
Observando. Ele se apresentou e aquele nome bateu na cabeça dela como um estalo.
Ele só disse o nome dele e ela arregalou os olhos. Lembrou dos olhos arregalados da
mãe dele ao ver que ele começara a pintar precocemente nas paredes da sala. Se
sentira estranho, como se todos olhassem assim para ele.
Algo estalava na mente dela como uma velha lata de lembranças que nunca ninguém
soube. Ela sempre guardou escondido. E esqueceu. Ele a fez lembrar dela mesma. E ele
nem sabia. Ela resolveu abrir a lata e soltar estalos. Ela disse sobre o texto. Sobre a
exposição e tudo que ela disse o tocou. Afinal, ela foi a primeira a dizer isso.
Sempre ouvira falar que a maior riqueza para um artista é o depoimento emocionado e
verdadeiro. Ele nunca tinha ouvido um que fosse os dois ao mesmo tempo. Ele a
observava com estrelas nos olhos e infinitas explosões em sua mente.
Ela o viu vindo com lágrimas sinceras na direção dela. Algumas vezes alguém vinha
chorando para ela, mas não tão sinceramente. Ela sentiu braços fortes a abraçando.
Ele por alguns momentos voltou a ser jovem. Seu coração batia forte. Suava Frio. Sentiu
em seu coração que era alguém especial.
Beijou a testa dela. As rugas e expressões da velhice se desfizeram por uma eternidade
de um último romance inocente sem pretensões de ser amor.
Ela sentiu um calafrio na espinha e ficou com ele guardado. Na sua última contradança,
ela o abraçou. Seus passos eram firmes e precisos. Sem palavras. O último passo de
uma dança. Uma dança misteriosa. Uma dança esquecida. Um abraço apertado e um
suspiro. Assim surgiu o amor e tudo voltou a ter sentido.
Daniel Pandeló Corrêa é um escritor, roteirista de cinema e TV e comunicólogo. Criado
no subúrbio do Rio de Janeiro e morador de Petrópolis, o jovem autor de 23 anos tem
três livros no currículo e une todas as trajetórias profissionais em uma: a de contador
de histórias.
Twitter: @pandelocorrea
Facebook: /danielpandelocorrea
www.danielpandelocorrea.com.br
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