VII Simpósio Nacional de História Cultural HISTÓRIA CULTURAL: ESCRITAS, CIRCULAÇÃO, LEITURAS E RECEPÇÕES Universidade de São Paulo – USP São Paulo – SP 10 e 14 de Novembro de 2014 IMAGENS DO RIO DE JANEIRO NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DO ZÉ CARIOCA Mario Brum* Trataremos nesse paper das representações da cidade do Rio de Janeiro e do cotidiano do morador da cidade através das histórias em quadrinhos (HQs) do Zé Carioca. O personagem foi criado pelo estadunidense Walt Disney durante sua visita ao Brasil no começo da década de 1940, dentro da Política de Boa Vizinhança promovida pelo governo dos Estados Unidos como forma de angariar simpatia da América Latina para alianças no esforço da II Guerra Mundial. A produção dessas HQs possui várias fases: desde a produção norte-americana da década de 1940 até a produção por artistas brasileiros nas décadas de 1960 a 1990. As diferenças entre essas fases serão abordadas nesse trabalho como forma de analisarmos os diferentes enfoques sobre o Rio de Janeiro a partir de uma projeção internacional sobre a cidade que ora a destacava como ‘jóia do Atlântico’, ora indicava a existência de uma Se a criação do personagem se deu através do olhar estrangeiro, mais especificamente estadunidense, sobre o Brasil, num segundo momento iremos ver como a produção local foi ‘abrasileirando’ o personagem e trazendo às suas histórias diversos * Doutor em História Social pela -UFF com Pós Doutorado em Planejamento Urbano –UFRJ e Professor do PPECC/FEBF-UERJ com bolsa Pós Doutorado CAPES. Página benesses da cidade dos cartões postais. 1 ‘outra cidade’, onde pobreza e malandragem se conjugavam para freqüentar e colher as VII Simpósio Nacional de História Cultural Anais do Evento hábitos e comportamentos associados ao cotidiano do morador do Rio de Janeiro e além, do brasileiro urbano típico, notadamente os das classes mais populares que vivem em ‘morros’ e ‘vilas’, sambam, jogam futebol, têm dificuldades financeiras... histórias em que paisagens e locais da cidade do Rio de Janeiro são tanto pano de fundo quanto componentes do argumento. ‘UM OUTRO TIPO DE VIDA’: ZÉ CARIOCA MADE IN USA A aparição seminal de Zé Carioca se deu no filme Alô, Amigos!, no episódio Aquarela do Brasil, em que fauna, flora e paisagens tropicais surgem ao som da voz e música de Ary Barroso, até que o papagaio surge à frente do Pato Donald para ciceroneálo num passeio pelo Rio: Pão de Açúcar, Cristo, Floresta da Tijuca, Urca, calçadão de Copacabana, a Praia de Copacabana... Sintomaticamente, logo na primeira tira destaca-se outra característica marcante da cidade, como podemos ver nos recordatórios (as caixas de texto que contêm a narrativa da história)1: “Rio de Janeiro, uma joia incrustada no Atlântico azul! Cidade de praias maravilhosas e arquitetura arrojada.../ Hotéis de luxo e finos restaurantes! Muita riqueza, luxos e romance!/Mas, como em todas as cidades, existe uma parte que leva outro tipo de vida.”2 Nessa tira vemos no primeiro quadrinho o Pão de Açúcar, cartão postal da cidade; no segundo, o calçadão de Copacabana com seus restaurantes; e no terceiro, os famosos barracos da cidade, que convivem ao fundo com chaminés de fábricas e ‘o outro tipo de vida’. E é sobre as tentativas desse outro tipo de vida participar da sociedade de ‘luxo seduzia jovens filhas de milionários, em que surgem a personagem Rosinha e seu pai, Rocha Vaz, que até hoje são destaques na galeria de personagens de Zé Carioca. Zé Carioca se passa por milionário, empresário de artistas, guia na selva Amazônica... 1 Apresentaremos sempre a tradução para o português, quando for o caso de história produzida no exterior. Até porquê nossa argumentação se volta mais para a produção nacional e o seu contexto. 2 “Como Almoçar de graça” Zé Carioca: 70 anos – volume 1. Ed. Abril, 2012. pp.12- 16 3 Que vão da página 12 a 158 de Zé Carioca: 70 anos – volume 1. Ed. Abril, 2012. A maior parte delas já fora publicadas pela Editora Abril anteriormente, embora nessa edição a Editora diz se manter o mais fiel possível ao original. Página mundo, Zé Carioca não hesita em dar calotes, aplicar golpes, ao mesmo tempo em que 2 e riqueza’ que se desenvolve todo o enredo dessas primeiras tiras 3. Para adentrar esse VII Simpósio Nacional de História Cultural Anais do Evento Mas a malandragem e a pouca ou nenhuma aptidão para o trabalho são características presentes no personagem nessa primeira fase, que Santos (2002) classifica como a fase americana, composta pelas tiras semanais e mais histórias fechadas ocasionais publicadas em gibis nos Estados Unidos e exportadas para outros países. Podemos ver tais características, que irão acompanhá-lo por toda sua produção posterior, principalmente a brasileira, também na história Rei do Carnaval, com arte de Carl Buettner, publicada ainda em 19424. A diferença na história do gibi é que Zé Carioca não vive em um barraco, e sim dorme num banco de praça. DOS ESTADOS UNIDOS AO RIO DE JANEIRO - VIA ARGENTINA E SÃO PAULO Além da produção estadunidense, nos anos seguintes Zé Carioca ganhou produções na Europa (Itália e Espanha) de histórias e figurinhas, embora seu papel fosse de coadjuvante e as histórias não fossem ambientadas no Rio (Santos, 2002, p. 43). O papagaio fazia sucesso em países latinos e, particularmente, no Brasil. De modo que, em 1950 quando a Editora Abril é fundada, sua primeira publicação, a revista em quadrinhos O Pato Donald (publicação mais longeva do Brasil, tendo chegado ao número 2435 em setembro de 2014) trazia em sua capa, além do famoso pato, o ‘brasileiro’ Zé Carioca, como apelo de vendas e identificação com o público alvo. A capa foi ilustrada por Luis Destuet, argentino, que foi o autor das capas e das primeiras histórias Disney produzidas no Brasil a partir de 1951, inclusive as do Zé Carioca. Nas mãos de Luis Destuet, entretanto, Zé Carioca perde as primeiras características de malandragem e vadiagem da fase americana. Da mesma forma, o Rio abre uma loja de instrumentos musicais e convida os amigos para virem à inauguração, avisando-os que os esperará no ‘Aeroporto de Congonhas’.5 4 “O Rei do Carnaval” Zé Carioca: 70 anos – volume 1. Ed. Abril, 2012. pp.162- 173 5 Pato Donald n 165. Ed. Abril, janeiro de 1955. Ver http://coa.inducks.org/story.php?c=B+PD++165-D Consultado em 11/09/2014 Página Em “A Volta do Zé Carioca”, publicada originalmente em 1955, por exemplo, Zé Carioca 3 de Janeiro ou qualquer de seus elementos a ele associado não fazem parte das histórias. VII Simpósio Nacional de História Cultural Anais do Evento Esse Zé Carioca ‘trabalhador’ e ‘correto’ será mantido também nas primeiras histórias escritas por brasileiros, principalmente, as primeiras do paulista Jorge Kato, que foi o autor de “Papai Noel por Acaso”, de dezembro de 1959 (publicada em O Pato Donald n. 424), e de outra istória também chamada de “A Volta de Zé Carioca”, de março de 19606. Nessa segunda, repetindo o primeiro quadrinho do personagem na tira semanal estadunidense de 1942, no primeiro quadro aparece a imagem típica do Rio de Janeiro, com o Pão de Açúcar e o Cristo Redentor, com Zé chegando dos Estados Unidos de avião. Com a entrada de Waldyr Igayara de Souza como roteirista e desenhista_ em companhia de Izomar Camargo, existe uma maior adesão a temas brasileiros. Mas será com a entrada de Carlos Edgard Herrero no final da década de 1960, e principalmente, das parcerias entre Renato Canini e Ivan Saidenberg no início da década seguinte que o Rio e a malandragem passam definitivamente a compor o personagem, agora com um olhar brasileiro, retomando então a trilha das primeiras tiras de Zé Carioca. Esses artistas usaram a ‘outra cidade’ como local de moradia do papagaio e suas constantes tentativas de ‘melhorar de vida’, não através do trabalho, mas de golpes e calotes em diversos cenários cariocas. Foi Canini que, por exemplo, aboliu os clássicos paletó, chapéu-panamá e gravata borboleta dos primeiros tempos do personagem e vestiulhe de leveza com uma camiseta branca e calças. Além disso, fixou a moradia de Zé Carioca na fictícia Vila Xurupita, dotadas de diversas características então atribuídas às favelas: o barraco, a pobreza de seus habitantes, a cor negra de personagens e figurantes, um time de futebol e uma escola de samba (vale dizer que outros artistas optaram por manter o visual tradicional). Assim, o ‘morro’ e a favela ganham relevância fundamental nas histórias. Mais do que mero cenário, era o ambiente onde muitas histórias se desenrolam e/ou começam, construindo o universo de Zé Carioca naquela que é considerada por críticos e leitores a sua melhor fase, a de Assimilação (Santos, 2002). Nas histórias dessa fase, além de festas Desse o seu surgimento em fins do século XIX, a favela é estigmatizada quanto à origem de seus moradores (étnica e/ou rural) e como local de violência, vadiagem, 6 O Pato Donald n. 434. Ed. Abril, março de 1960. Ver http://coa.inducks.org/story.php?c=B+PD++434C. Consultado em 11/09/2014 Página especulação imobiliária, remoção... 4 juninas, Carnaval, feijoada, futebol e do samba, são tratados temas como preconceito, VII Simpósio Nacional de História Cultural Anais do Evento ignorância, malandragem, ambiente de construções precárias... A favela era a reificação dos próprios estigmas, em que um local que tenha todas ou a maior parte dessas características passou a ser visto pela sociedade como uma ‘favela’. (Brum, 2012 p. 40) O MALANDRO DO MORRO: A VILA XURUPITA Ao tratarmos as visões sobre a favela refletidas nas HQs de Zé Carioca, compreendemos os quadrinhos como uma representação da realidade, ainda que por vezes fortemente estilizada. Assim, as HQs podem ser compreendidas como uma demonstração de visões de mundo e de um imaginário social, como fez Robert Darnton em “O Grande Massacre de Gatos” demonstrando o universo mental dos camponeses franceses e alemães a partir de ‘inocentes’ contos de fada, onde podemos ver que, naquele universo sócio-cultural da Europa Ocidental dos séculos XVII e XVIII, a fome é um aspecto constante; a nobreza figura como um elemento superior (o sonho da pobre moça casar com um príncipe encantado); a gula como grave pecado, entre outras representações apreendidas através dos contos. Nas histórias de Zé Carioca, com autores que roteirizaram e desenharam temas extremamente contemporâneos e relacionados ao cotidiano das favelas. Demonstrar as visões que existiam sobre a favela, principalmente as que permeavam a classe média, extrato ao qual pertenciam esses artistas, e que era reproduzidas em jornais, músicas, filmes, documentos do Estado, eram representadas através de seus traços e roteiros e reproduziam essas visões nas HQs. Vemos isso a partir da entrada de Renato Canini nos quadros da editora Abril. Canini, cujo traço de Canini é bem característico, podendo ser facilmente reconhecido, é maior expoente dessa fase, mas não o único. No entanto, como a Editora Abril não indicava os artistas das histórias nessa época, não podemos reconhecer de modo indubitável os outros argumentistas e desenhistas das HQs, no que optamos por analisar a produção do período mostrando as mediações do universo sócio-cultural desses artistas ambiente onde as histórias se desenrolam e, principalmente, a Vila Xurupita como arquétipo da favela carioca. Nessa fictícia vila, além de habitarem os principais personagens que irão compor o universo do Zé Carioca _o urubu Nestor, o pato de olhos Página Assim, nessa fase, vemos que a cidade do Rio ganha maior dimensão como 5 coletivamente. Até porque nos interessa mais mostrar a difusão dessas percepções. VII Simpósio Nacional de História Cultural Anais do Evento verdes Afonsinho, Pedro Feijoada e a frequente presença da namorada rica Rosinha_ estruturam-se a escola de samba Unidos da Vila Xurupita7, o Vila Xurupita Futebol Clube, a festa junina8, a feijoada9... diversos elementos tidos, embora não de modo exclusivo, como típicos das favelas. Um exemplo dessa caracterização popular da favela ocorreu numa publicação em pleno auge da moda disco, quando é aberta uma discoteca na Vila Xurupita que esvazia a roda de samba, com Zé Carioca defendendo a valorização do samba: “Um cara do morro não resiste a uma boa batucada.”10 A noção da Vila Xurupita como morro se destaca na fase de assimilação. Na verdade, na primeira metade da década de 1970 há uma indefinição quanto ao local de moradia do personagem, ocorrendo algumas vezes de situá-lo no também fictício ‘Morro do Papagaio’11. Com o passar do tempo, porém, a Vila Xurupita foi se consolidando nas histórias e, junto a isso, a descrição do local em que ‘morro’ e ‘favela’ eram tratados como sinônimos. Um exemplo disso foi “A Copa do Morro é nossa”, publicada em meio ao Mundial de Futebol de 1982. Na história o ‘Vila Xurupita Futebol Clube’ disputa o torneio enfrentando o time ‘do outro lado do corrégo’, desenhado como uma vala negra que divide a favela. Uma curiosidade é que a história faz alusão ao Corinthians como ‘patrono’ do time da Vila Xurupita. Assim, vemos o constante uso do termo ‘morro’_ com a respectiva caracterização de favela_ como ambiente das histórias através das referências que os personagens comumente fazem (“aqui no morro”), além, claro, da maneira como ela é barracos à beira do abismo e precariamente equilibrados. Em “O sucessor” Zé Carioca e outros personagens aparecem à porta do barraco de Pedrão, feito de tábuas, tendo ao fundo vários barracos amontoados.12 Já na história “A noite dos zumbis”, Zé Carioca e 7 “O sucessor” Zé Carioca n. 1423, fevereiro de 1979. pp. 3 - 9 8 “Zé Carioca e o Coroné Zé Buscapé” Zé Carioca n. 1649, junho de 1983 pp. 3 - 12 9 “O campeão da feijoada” Zé Carioca n. 1663, setembro de 1983 pp. 3 - 10 10 “Em ritmo de sambão” Almanque Disney n. 95, abril de 1979. pp. 35-39 11 Vemos isso, por exemplo, na história “Agência Moleza de Investigação” Zé Carioca n. 1233, junho de 1975, pp. 3 - 11 12 “O sucessor” Zé Carioca n. 1423, fevereiro de 1979. pp. 3 - 9 Página Nesse período, a Vila Xurupita tem uma arquitetura altamente irregular, com 6 ilustrada. VII Simpósio Nacional de História Cultural Anais do Evento Nestor andam em meio à favela tendo todo o fundo do quadro repleto de barracos de madeira distribuídos de modo desordenado13. Mas a ideia de pobreza e irregularidade das moradias da favela não eram apenas o fundo da cena ou o ambiente das histórias. O barraco de Zé Carioca, embora não fosse desenhado uniformemente nas histórias, era caracterizado como apertado e/ou de material precário, podendo tanto figurar pendurado em um barranco, sendo sustentado apenas por dois galhos de árvore14, quanto uma construção de quatro tábuas em cada lado, à beira do barranco15 ou ainda, tendo o teto com vários furos16. Vimos que essa imagem da pobreza e precariedade era largamente difundida no período, servindo como principal argumento para o programa remocionista executado na virada das décadas de 1960/70 e que, embora não concluído, alimenta desde esse período os desejos por parte de setores mais abastados da sociedade carioca de eliminar totalmente a favela da paisagem carioca. Emblematicamente, o tema da remoção ligado ao da especulação imobiliária é tratado em algumas histórias desse período, sendo a ausência de propriedade por parte dos moradores uma das descrições da favela mais presente e a razão pela qual em várias histórias os moradores da Vila Xurupita são ameaçados de ‘remoção’ (termo que não é utilizado nas histórias). Numa história publicada em 1977, Zé Carioca vende aos moradores da Vila Xurupita apartamentos no ‘Chatô Xurupitê’, no que dois conversam no quadro ao verem o anúncio: “Xi, vai ser um espigão!”_ “A exploração imobiliária chegou à Vila Xurupita!”. O ‘espigão’, na verdade, não passava de cinco barracos em cima do outro gradualmente o morro/favela sai das histórias e a Vila Xurupita vai ganhando características físicas de um bairro simples, similar ao subúrbio, embora ela nunca sido declaradamente localizada nele. A saída de Renato Canini, contratado no começo dessa 13 “A noite dos Zumbis” Zé Carioca n. 1463, novembro de 1979. pp. 3-10 14 “O grande prêmio de Vila Xurupita” Zé Carioca n. 1281, maio de 1976. pp. 3-13 15 “O técnico que veio de longe” Zé Carioca n. 1445, julho de 1979. pp. 3-11 16 “Tem buraco no telhado” Zé Carioca n. 1465, dezembro de 1979. pp. 3-8 17 “A imobiliária do Zé” Zé Carioca n. 1329, abril de 1977. pp. 3-10 Página Percebemos uma inflexão nas histórias ao final da década de 1970, em que 7 (uma antecipação da verticalização das favelas nas décadas posteriores).17 VII Simpósio Nacional de História Cultural Anais do Evento fase e de grande importância nessa caracterização (Santos, 2002, p. 65) dos quadros da editora é elemento e sintoma dessa inflexão em que as HQs de Zé Carioca estariam se afastando demais do ‘padrão Disney’. Nesse sentido, os barracos e a irregularidade do terreno vão dando lugar a casas de alvenaria. Inclusive a moradia dos amigos e a do próprio Zé Carioca vão ganhando esses contornos, embora as HQs mantivessem os elementos atribuídos à cultura popular na Vila Xurupita. A vestimenta ‘clássica’ do personagem, de casaca, chapéu e gravata borboleta, voltou a ser usada de modo alternado à vestimenta mais informal (as edições comemorativas de 20 e 25 anos, da revista, respectivamente de 1981 e 1986, apresentam o personagem vestido de modo diferente em cada uma). Por outro lado, a tipificação da Vila Xurupita como favela parece ter sido algo tão marcante na caracterização do personagem que ela foi ‘recuperada’ em algumas histórias posteriores, já na década de 1980. De modo que, embora as HQs do personagem não possua cronologia, foram feitas referências à mudança de status da Vila Xurupita não sendo mais um ‘morro’. A favela passou a ser tratada por alguns roteiristas como parte do passado do personagem. Numa história que parece justificar a mudança, é Zé Paulista que chega de visita ao primo Zé Carioca e pergunta: “Faz tempo que eu queria saber uma coisa. Como é que você e seus amigos, tão duros, saíram dos barracos e vieram morar nessas casas?” A história retoma a localização dos barracos como sendo no “Morro do Papagaio”, pois a Vila Xurupita continuava sendo o ambiente principal das HQs, embora não mais na condição de favela. A explicação que o argumentista colocou, narrada por Zé Carioca ao incrédulo primo, é de que o morro foi posto abaixo para construção de um espigão (remetendo à ilegalidade da posse e da permanente ameaça de remoção que falamos anteriormente) o que fez com que Zé Carioca e sua turma ficassem sem casa, abrigados sob um viaduto até um gênio fazer com que eles ganhassem na loteria e conseguissem do personagem ocorre a partir de uma foto descoberta pelos sobrinhos em que Zé Carioca empurra um barraco. Ao ser indagado sobre a foto, ele diz: “Ela me lembra uma passagem 18 “Esse cara é um gênio” Zé Carioca n. 1583, março de 1982. pp. 3-11 Página Em “Como mudar uma casa”, a referência à moradia anterior na favela por parte 8 comprar um conjunto de casas para morar.18 VII Simpósio Nacional de História Cultural Anais do Evento chata da minha vida! / Foi no tempo em que eu morava no morro...”19. O enredo trata de Zé que, cansado de subir o morro, quer levar seu barraco para baixo, desenhado como uma rústica construção acompanhada de vários outros barracos precariamente pendurados no morro. Numa história comemorativa dos 40 anos do personagem que trataria de sua infância, o personagem como narrador de sua própria biografia conta aos sobrinhos: “Vivi num dos mais belos locais do Rio de Janeiro”. Essa frase, num recordatório, era acompanhada da visão do Pão de Açúcar do alto do morro sendo visto por um Zé ainda bebê. No quadro seguinte, o recordatório complementa “Dependendo do ângulo do qual a gente olhava, é claro...” sendo esse ‘outro ângulo’ os barracos da favela.20 A partir da produção de fim da década de 1970, o inverso do ‘passado na favela’ do personagem e da caracterização da Vila Xurupita como bairro pobre e ‘não-favela’ se mostra, entre vários elementos, na ilustração da moradia de Zé Carioca como uma casa de alvenaria às vezes simples, de poucos móveis, ou como uma casa mais decorada e conservada21. A ‘nova’ casa de Zé chega a ter quintal, onde a preguiça característica do personagem passou a ser acompanhada de uma rede entre duas árvores que, não de modo uniforme, passam a ter presença frequente nas HQs.22 Vale dizer que as favelas do Rio também passam nesse período por intensas transformações. Fracassado o programa remocionista da década de 1970 pela inadimplência dos removidos, a ‘favelização’ dos conjuntos; a abertura da Barra da Tijuca como alternativa à expansão imobiliária, as favelas cariocas eram uma realidade crescente em número e população. De modo que o Estado, em todos os níveis, passou a ter a de alvenaria. 19 “Como mudar uma casa” Zé Carioca n. 1581, fevereiro de 1982. pp. 3-9 20 “A infância do Zé Carioca” Zé Carioca n. 1589, abril de 1982. pp. 3-12 21 “O pingüim do papagaio”, Zé Carioca 1751, maio de 1985. pp 3-10; “Zé Baiano” Zé Carioca 1531, março de 1981, pp. 3-9. 22 “O jurado assustado”, Zé Carioca 1925 janeiro de 1992. pp 3-10; “Professor de malandragem” Zé Carioca 1816, novembro de 1987, pp. 3-10.” ;“O táxi do Zé” Zé Carioca 1531, março de 1981, pp. 39. Página típicos de quem não sabia até quando permaneceria no local, passou a dar lugar a casas 9 urbanização de favelas como política e o barraco de madeira e demais materiais precários, VII Simpósio Nacional de História Cultural Anais do Evento Isso é visto de modo claro numa história de 1983, em que o primeiro quadro é um plano da Vila Xurupita deserta em que as casas de alvenaria aparecem em primeiro plano, estando ao fundo casas mais simples de madeiras situadas em encostas logo atrás das primeiras.23 Em “Às voltas como Beijoqueiro” (referência à folclórica figura da década de 1980), Zé Carioca anda numa Vila Xurupita em que pequenas escarpas ao fundo têm barracos de madeira, em contraste com a casa de alvenaria em que mora o papagaio.24 Deste modo, não sabemos se foi uma intenção clara dos artistas sobre as mudanças que ocorriam nas favelas ao ilustrarem uma Vila Xurupita, ainda que não mais como favela e que agora seja plana, que continua a ter barracos no fundo do quadro em várias histórias, existindo similaridade com as favelas reais que têm ‘partes melhores’, mais próximas do ‘asfalto’, ou seja, da cidade formal, ladeadas com partes mais pobres e precárias. A possível ‘melhora’ de vida do personagem, e num certo sentido a ‘urbanização’ da Vila Xurupita, dentro do que foi exigido pelos ‘padrão Disney’ não significou que Zé Carioca estivesse finalmente rico ou integrado à parte mais nobre do Rio de Janeiro, característica seminal do personagem mantida na maior parte de sua trajetória desde Hollywood. A ‘distância’ dessa cidade e os preconceitos comuns por parte dos cariocas moradores de seu litoral atlântico, mais especificamente da Zona Sul (a Barra da Tijuca ainda dava seus primeiros passos como sonho de consumo por parte das classes média e alta nas décadas de 1970 e 1980) em relação aos moradores dos subúrbios (e das favelas) é retratada em das histórias distantes sete anos no tempo e em locais de moradia diferentes por parte dos personagens. A primeira, ainda nos tempos da arquitetura irregular do morro que ilustra o “Zé Farofeiro” (o termo vem do fato das famílias que vêm de locais distantes levarem o almoço pronto para praia). Nessa HQ, Zé e os amigos combinam um piquenique na praia e descem o morro tendo a praia ao fundo sendo sucessivamente expulsos praia após 23 “O Dia do Sinistro”, Zé Carioca 1653, julho de 1983. pp 3-10 24 “Às voltas com o Beijoqueiro”, Zé Carioca 1721, outubro de 1984. pp 3-10 Página carioca tratava o que considera como ‘invasores’ das praias localizadas em seus bairros: 10 primeiro quadro sob o qual tem como título o termo pejorativo com que a classe média VII Simpósio Nacional de História Cultural Anais do Evento praia.25 Na segunda, já mostrando a casa de alvenaria, o personagem chega na praia após uma longa caminhada com o sol se pondo e reclama com Nestor “Toda vez é isso! Por que colocaram a praia tão longe da minha casa?” Nestor retruca: “Você é que colocou sua casa longe da praia!” A solução de Zé, fracassada, foi levar a casa inteira para a praia, sob resistência de um policial.26 Na década de 1990 o personagem passou por mais uma atualização, dessa vez junto com sua galeria, que passam a usar um visual mais colorido, com bonés, bermudas e camisas estampadas, aproximando-se da indumentária usada por jovens das periferias do Rio e São Paulo. Inclusive sem haver a uniformidade típica das HQs, mantendo apenas o padrão das roupas e as características do personagem que haviam se consolidado nas duas décadas anteriores. No começo de 2000, a Abril fecha seu núcleo de produção de HQs e os artistas passam a trabalhar em estúdios terceirizados, com a produção nacional de quadrinhos Disney praticamente se encerrando, tendo apenas alguns artistas produzindo ocasionalmente histórias do Zé Carioca. A última inédita foi “Zé das Selvas”, publicada em outubro de 2000.27 A produção brasileira pela Editora Abril seria retomada mais de uma década depois 2012, no volume 2 da edição de comemoração dos 70 anos do personagem, com duas histórias que mantiveram o visual criado nos anos 1990: uma história de dois jovens artistas estreantes, Fernando Ventura e Diego Munhoz (arte-final) e outra de dois veteranos que já fizeram juntos 64 HQs: Arthur Faria Júnior e Luiz Podavin. CONCLUSÃO Embora seja uma criação estadunidense e os Estúdios Disney nos Estados percebido nas HQs italianas, dinamarquesas, holandesas... com temas e paisagens característicos desses países. 25 “Zé farofeiro” Zé Carioca 1429, março de 1979. pp 3-10 26 “Eu quero uma casa na praia”, Zé Carioca 1721, janeiro de 1986. pp 3-10 27 “Zé das Selvas” Zé Carioca n. 2165, outubro de 2000. pp 3-9. Página países, dentre eles o Brasil, dotou os personagens de cores locais, como pode ser 11 Unidos tenham mantido uma produção intensa dos quadrinhos, a produção em outros VII Simpósio Nacional de História Cultural Anais do Evento No Brasil, com um personagem ‘brasileiro’, isso foi potencializado. O Zé Carioca estadunidense foi ‘comido’, no sentido antropofágico defendido pelo modernista Oswald de Andrade, para quem “a antropofagia não é apenas deglutição de elementos externos à cultura brasileira mas também valorização desta, especialmente em sua vertente popular” (Souza, 2007.p 120). Foi justamente a caracterização do Zé Carioca do morro, preguiçoso, malandro, apreciador do futebol e do samba que tornou o personagem sucesso de vendas, com a revista se tornando quinzenal entre as décadas de 1970 e 1980. Entre os Anos de Chumbo e o fim da década de 1990, Zé Carioca vivenciou os contrastes dos brasileiros, da torcida pela seleção na Copa, da venda de jogadores para o exterior ou da ameaça a perda do ‘campo de pelada’ para a especulação imobiliária; se endividou, cantou, sambou, perdeu casa, foi ‘removido’, morava ‘longe’... O discurso tão presente no imaginário carioca de uma “cidade partida”, termo consagrado no livro do jornalista Zuenir Ventura (1994) que indica a coexistência de duas cidades, grosso modo, uma próspera e civilizada e outra atrasada e inculta... Classificação à qual não concordamos, mas o que nos interessa mais aqui é o fato dessa percepção estar presente nas descrições da cidade nos mais variados campos da cultura, dos quais as Histórias em Quadrinhos são um deles. Essa dualidade foi o fio condutor de toda a trajetória do personagem em que Zé Carioca tenta se inserir na parte próspera com o menor esforço possível, através de planos mirabolantes e golpes, encontrando permanente resistência. Em muitas histórias ele vai parar na delegacia e as dívidas do personagem deram origem à criação dos personagens “Anacozeca” (Associação Nacional dos Cobradores do Zé Carioca) que participaram de diversas histórias em que o mote era a cobrança das suas dívidas. As Histórias em Quadrinhos, ainda que possam trabalhar com a ficção e o fantástico, são representações de uma realidade tal com percebida pelos seus contemporâneos. Para além do fantástico nas origens dos heróis da Marvel Comics Da mesma forma, a produção brasileira de Zé Carioca, principalmente entre as décadas de 1970 e 1990 mostraram, de forma leve e humorada, e nem sempre inocente, Página peso da energia atômica no imaginário dos Estados Unidos da década de 1960. 12 (explosões nucleares, aranhas radioativas, genes modificados etc.), temos a dimensão do VII Simpósio Nacional de História Cultural Anais do Evento experiências e dramas reais de milhões de brasileiros que vivem nas ‘Vilas Xurupitas’ de todo o Brasil. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRUM, Mario. Cidade Alta. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012. GONÇALVES, Rafael Soares. Favelas do Rio de Janeiro. História e Direito, Rio de Janeiro: Pallas/PUC, 2013. LEITE, Sidney Ferreira. O filme que não passou: Estados Unidos e Brasil na Política da Boa Vizinhança – a diplomacia através do cinema. Tese de Doutorado em História Social. Universidade de São Paulo. São Paulo, USP, 1998. OLIVEIRA, Anazir Maria de; et alli. Favelas e organizações comunitárias. Petrópolis: Ed. Vozes, 1993 PEGORARO, Celbi. “A criação do Zé Carioca” Zé Carioca: 70 anos – volume 1. Ed. Abril, 2012. p.3-8 SANTOS, Roberto Elísio dos. Para Reler os Quadrinhos Disney. Rio de Janeiro: Paulinas, 2002. Página 13 SOUZA, Ricardo Luiz de. “Ruptura e incorporação: a utopia antropofágica de Oswald de Andrade” Scripta, Belo Horizonte, v. 11, n. 20, p.113-126, 1º sem. 2007.