VII Simpósio Nacional de História Cultural
HISTÓRIA CULTURAL: ESCRITAS, CIRCULAÇÃO,
LEITURAS E RECEPÇÕES
Universidade de São Paulo – USP
São Paulo – SP
10 e 14 de Novembro de 2014
IMAGENS DO RIO DE JANEIRO NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
DO ZÉ CARIOCA
Mario Brum*
Trataremos nesse paper das representações da cidade do Rio de Janeiro e do
cotidiano do morador da cidade através das histórias em quadrinhos (HQs) do Zé Carioca.
O personagem foi criado pelo estadunidense Walt Disney durante sua visita ao Brasil no
começo da década de 1940, dentro da Política de Boa Vizinhança promovida pelo
governo dos Estados Unidos como forma de angariar simpatia da América Latina para
alianças no esforço da II Guerra Mundial.
A produção dessas HQs possui várias fases: desde a produção norte-americana
da década de 1940 até a produção por artistas brasileiros nas décadas de 1960 a 1990. As
diferenças entre essas fases serão abordadas nesse trabalho como forma de analisarmos
os diferentes enfoques sobre o Rio de Janeiro a partir de uma projeção internacional sobre
a cidade que ora a destacava como ‘jóia do Atlântico’, ora indicava a existência de uma
Se a criação do personagem se deu através do olhar estrangeiro, mais
especificamente estadunidense, sobre o Brasil, num segundo momento iremos ver como
a produção local foi ‘abrasileirando’ o personagem e trazendo às suas histórias diversos
*
Doutor em História Social pela -UFF com Pós Doutorado em Planejamento Urbano –UFRJ e Professor
do PPECC/FEBF-UERJ com bolsa Pós Doutorado CAPES.
Página
benesses da cidade dos cartões postais.
1
‘outra cidade’, onde pobreza e malandragem se conjugavam para freqüentar e colher as
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hábitos e comportamentos associados ao cotidiano do morador do Rio de Janeiro e além,
do brasileiro urbano típico, notadamente os das classes mais populares que vivem em
‘morros’ e ‘vilas’, sambam, jogam futebol, têm dificuldades financeiras... histórias em
que paisagens e locais da cidade do Rio de Janeiro são tanto pano de fundo quanto
componentes do argumento.
‘UM OUTRO TIPO DE VIDA’: ZÉ CARIOCA MADE IN USA
A aparição seminal de Zé Carioca se deu no filme Alô, Amigos!, no episódio
Aquarela do Brasil, em que fauna, flora e paisagens tropicais surgem ao som da voz e
música de Ary Barroso, até que o papagaio surge à frente do Pato Donald para ciceroneálo num passeio pelo Rio: Pão de Açúcar, Cristo, Floresta da Tijuca, Urca, calçadão de
Copacabana, a Praia de Copacabana...
Sintomaticamente, logo na primeira tira destaca-se outra característica marcante
da cidade, como podemos ver nos recordatórios (as caixas de texto que contêm a narrativa
da história)1: “Rio de Janeiro, uma joia incrustada no Atlântico azul! Cidade de praias
maravilhosas e arquitetura arrojada.../ Hotéis de luxo e finos restaurantes! Muita
riqueza, luxos e romance!/Mas, como em todas as cidades, existe uma parte que leva
outro tipo de vida.”2 Nessa tira vemos no primeiro quadrinho o Pão de Açúcar, cartão
postal da cidade; no segundo, o calçadão de Copacabana com seus restaurantes; e no
terceiro, os famosos barracos da cidade, que convivem ao fundo com chaminés de fábricas
e ‘o outro tipo de vida’.
E é sobre as tentativas desse outro tipo de vida participar da sociedade de ‘luxo
seduzia jovens filhas de milionários, em que surgem a personagem Rosinha e seu pai,
Rocha Vaz, que até hoje são destaques na galeria de personagens de Zé Carioca. Zé
Carioca se passa por milionário, empresário de artistas, guia na selva Amazônica...
1
Apresentaremos sempre a tradução para o português, quando for o caso de história produzida no
exterior. Até porquê nossa argumentação se volta mais para a produção nacional e o seu contexto.
2
“Como Almoçar de graça” Zé Carioca: 70 anos – volume 1. Ed. Abril, 2012. pp.12- 16
3
Que vão da página 12 a 158 de Zé Carioca: 70 anos – volume 1. Ed. Abril, 2012. A maior parte delas
já fora publicadas pela Editora Abril anteriormente, embora nessa edição a Editora diz se manter o mais
fiel possível ao original.
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mundo, Zé Carioca não hesita em dar calotes, aplicar golpes, ao mesmo tempo em que
2
e riqueza’ que se desenvolve todo o enredo dessas primeiras tiras 3. Para adentrar esse
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Mas a malandragem e a pouca ou nenhuma aptidão para o trabalho são
características presentes no personagem nessa primeira fase, que Santos (2002) classifica
como a fase americana, composta pelas tiras semanais e mais histórias fechadas
ocasionais publicadas em gibis nos Estados Unidos e exportadas para outros países.
Podemos ver tais características, que irão acompanhá-lo por toda sua produção
posterior, principalmente a brasileira, também na história Rei do Carnaval, com arte de
Carl Buettner, publicada ainda em 19424. A diferença na história do gibi é que Zé Carioca
não vive em um barraco, e sim dorme num banco de praça.
DOS ESTADOS UNIDOS AO RIO DE JANEIRO - VIA ARGENTINA E SÃO
PAULO
Além da produção estadunidense, nos anos seguintes Zé Carioca ganhou
produções na Europa (Itália e Espanha) de histórias e figurinhas, embora seu papel fosse
de coadjuvante e as histórias não fossem ambientadas no Rio (Santos, 2002, p. 43). O
papagaio fazia sucesso em países latinos e, particularmente, no Brasil.
De modo que, em 1950 quando a Editora Abril é fundada, sua primeira
publicação, a revista em quadrinhos O Pato Donald (publicação mais longeva do Brasil,
tendo chegado ao número 2435 em setembro de 2014) trazia em sua capa, além do famoso
pato, o ‘brasileiro’ Zé Carioca, como apelo de vendas e identificação com o público alvo.
A capa foi ilustrada por Luis Destuet, argentino, que foi o autor das capas e das
primeiras histórias Disney produzidas no Brasil a partir de 1951, inclusive as do Zé
Carioca.
Nas mãos de Luis Destuet, entretanto, Zé Carioca perde as primeiras
características de malandragem e vadiagem da fase americana. Da mesma forma, o Rio
abre uma loja de instrumentos musicais e convida os amigos para virem à inauguração,
avisando-os que os esperará no ‘Aeroporto de Congonhas’.5
4
“O Rei do Carnaval” Zé Carioca: 70 anos – volume 1. Ed. Abril, 2012. pp.162- 173
5
Pato Donald n 165. Ed. Abril, janeiro de 1955. Ver http://coa.inducks.org/story.php?c=B+PD++165-D
Consultado em 11/09/2014
Página
Em “A Volta do Zé Carioca”, publicada originalmente em 1955, por exemplo, Zé Carioca
3
de Janeiro ou qualquer de seus elementos a ele associado não fazem parte das histórias.
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Esse Zé Carioca ‘trabalhador’ e ‘correto’ será mantido também nas primeiras
histórias escritas por brasileiros, principalmente, as primeiras do paulista Jorge Kato, que
foi o autor de “Papai Noel por Acaso”, de dezembro de 1959 (publicada em O Pato
Donald n. 424), e de outra istória também chamada de “A Volta de Zé Carioca”, de março
de 19606. Nessa segunda, repetindo o primeiro quadrinho do personagem na tira semanal
estadunidense de 1942, no primeiro quadro aparece a imagem típica do Rio de Janeiro,
com o Pão de Açúcar e o Cristo Redentor, com Zé chegando dos Estados Unidos de avião.
Com a entrada de Waldyr Igayara de Souza como roteirista e desenhista_ em
companhia de Izomar Camargo, existe uma maior adesão a temas brasileiros. Mas será
com a entrada de Carlos Edgard Herrero no final da década de 1960, e principalmente,
das parcerias entre Renato Canini e Ivan Saidenberg no início da década seguinte que o
Rio e a malandragem passam definitivamente a compor o personagem, agora com um
olhar brasileiro, retomando então a trilha das primeiras tiras de Zé Carioca.
Esses artistas usaram a ‘outra cidade’ como local de moradia do papagaio e suas
constantes tentativas de ‘melhorar de vida’, não através do trabalho, mas de golpes e
calotes em diversos cenários cariocas. Foi Canini que, por exemplo, aboliu os clássicos
paletó, chapéu-panamá e gravata borboleta dos primeiros tempos do personagem e vestiulhe de leveza com uma camiseta branca e calças. Além disso, fixou a moradia de Zé
Carioca na fictícia Vila Xurupita, dotadas de diversas características então atribuídas às
favelas: o barraco, a pobreza de seus habitantes, a cor negra de personagens e figurantes,
um time de futebol e uma escola de samba (vale dizer que outros artistas optaram por
manter o visual tradicional).
Assim, o ‘morro’ e a favela ganham relevância fundamental nas histórias. Mais
do que mero cenário, era o ambiente onde muitas histórias se desenrolam e/ou começam,
construindo o universo de Zé Carioca naquela que é considerada por críticos e leitores a
sua melhor fase, a de Assimilação (Santos, 2002). Nas histórias dessa fase, além de festas
Desse o seu surgimento em fins do século XIX, a favela é estigmatizada quanto
à origem de seus moradores (étnica e/ou rural) e como local de violência, vadiagem,
6
O Pato Donald n. 434. Ed. Abril, março de 1960. Ver http://coa.inducks.org/story.php?c=B+PD++434C. Consultado em 11/09/2014
Página
especulação imobiliária, remoção...
4
juninas, Carnaval, feijoada, futebol e do samba, são tratados temas como preconceito,
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ignorância, malandragem, ambiente de construções precárias... A favela era a reificação
dos próprios estigmas, em que um local que tenha todas ou a maior parte dessas
características passou a ser visto pela sociedade como uma ‘favela’. (Brum, 2012 p. 40)
O MALANDRO DO MORRO: A VILA XURUPITA
Ao tratarmos as visões sobre a favela refletidas nas HQs de Zé Carioca,
compreendemos os quadrinhos como uma representação da realidade, ainda que por vezes
fortemente estilizada. Assim, as HQs podem ser compreendidas como uma demonstração
de visões de mundo e de um imaginário social, como fez Robert Darnton em “O Grande
Massacre de Gatos” demonstrando o universo mental dos camponeses franceses e
alemães a partir de ‘inocentes’ contos de fada, onde podemos ver que, naquele universo
sócio-cultural da Europa Ocidental dos séculos XVII e XVIII, a fome é um aspecto
constante; a nobreza figura como um elemento superior (o sonho da pobre moça casar
com um príncipe encantado); a gula como grave pecado, entre outras representações
apreendidas através dos contos.
Nas histórias de Zé Carioca, com autores que roteirizaram e desenharam temas
extremamente contemporâneos e relacionados ao cotidiano das favelas. Demonstrar as
visões que existiam sobre a favela, principalmente as que permeavam a classe média,
extrato ao qual pertenciam esses artistas, e que era reproduzidas em jornais, músicas,
filmes, documentos do Estado, eram representadas através de seus traços e roteiros e
reproduziam essas visões nas HQs.
Vemos isso a partir da entrada de Renato Canini nos quadros da editora Abril.
Canini, cujo traço de Canini é bem característico, podendo ser facilmente reconhecido, é
maior expoente dessa fase, mas não o único. No entanto, como a Editora Abril não
indicava os artistas das histórias nessa época, não podemos reconhecer de modo
indubitável os outros argumentistas e desenhistas das HQs, no que optamos por analisar
a produção do período mostrando as mediações do universo sócio-cultural desses artistas
ambiente onde as histórias se desenrolam e, principalmente, a Vila Xurupita como
arquétipo da favela carioca. Nessa fictícia vila, além de habitarem os principais
personagens que irão compor o universo do Zé Carioca _o urubu Nestor, o pato de olhos
Página
Assim, nessa fase, vemos que a cidade do Rio ganha maior dimensão como
5
coletivamente. Até porque nos interessa mais mostrar a difusão dessas percepções.
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verdes Afonsinho, Pedro Feijoada e a frequente presença da namorada rica Rosinha_
estruturam-se a escola de samba Unidos da Vila Xurupita7, o Vila Xurupita Futebol
Clube, a festa junina8, a feijoada9... diversos elementos tidos, embora não de modo
exclusivo, como típicos das favelas.
Um exemplo dessa caracterização popular da favela ocorreu numa publicação
em pleno auge da moda disco, quando é aberta uma discoteca na Vila Xurupita que
esvazia a roda de samba, com Zé Carioca defendendo a valorização do samba: “Um cara
do morro não resiste a uma boa batucada.”10
A noção da Vila Xurupita como morro se destaca na fase de assimilação. Na
verdade, na primeira metade da década de 1970 há uma indefinição quanto ao local de
moradia do personagem, ocorrendo algumas vezes de situá-lo no também fictício ‘Morro
do Papagaio’11. Com o passar do tempo, porém, a Vila Xurupita foi se consolidando nas
histórias e, junto a isso, a descrição do local em que ‘morro’ e ‘favela’ eram tratados como
sinônimos. Um exemplo disso foi “A Copa do Morro é nossa”, publicada em meio ao
Mundial de Futebol de 1982. Na história o ‘Vila Xurupita Futebol Clube’ disputa o
torneio enfrentando o time ‘do outro lado do corrégo’, desenhado como uma vala negra
que divide a favela. Uma curiosidade é que a história faz alusão ao Corinthians como
‘patrono’ do time da Vila Xurupita.
Assim, vemos o constante uso do termo ‘morro’_ com a respectiva
caracterização de favela_ como ambiente das histórias através das referências que os
personagens comumente fazem (“aqui no morro”), além, claro, da maneira como ela é
barracos à beira do abismo e precariamente equilibrados. Em “O sucessor” Zé Carioca e
outros personagens aparecem à porta do barraco de Pedrão, feito de tábuas, tendo ao
fundo vários barracos amontoados.12 Já na história “A noite dos zumbis”, Zé Carioca e
7
“O sucessor” Zé Carioca n. 1423, fevereiro de 1979. pp. 3 - 9
8
“Zé Carioca e o Coroné Zé Buscapé” Zé Carioca n. 1649, junho de 1983 pp. 3 - 12
9
“O campeão da feijoada” Zé Carioca n. 1663, setembro de 1983 pp. 3 - 10
10
“Em ritmo de sambão” Almanque Disney n. 95, abril de 1979. pp. 35-39
11
Vemos isso, por exemplo, na história “Agência Moleza de Investigação” Zé Carioca n. 1233, junho de
1975, pp. 3 - 11
12
“O sucessor” Zé Carioca n. 1423, fevereiro de 1979. pp. 3 - 9
Página
Nesse período, a Vila Xurupita tem uma arquitetura altamente irregular, com
6
ilustrada.
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Nestor andam em meio à favela tendo todo o fundo do quadro repleto de barracos de
madeira distribuídos de modo desordenado13.
Mas a ideia de pobreza e irregularidade das moradias da favela não eram apenas
o fundo da cena ou o ambiente das histórias. O barraco de Zé Carioca, embora não fosse
desenhado uniformemente nas histórias, era caracterizado como apertado e/ou de material
precário, podendo tanto figurar pendurado em um barranco, sendo sustentado apenas por
dois galhos de árvore14, quanto uma construção de quatro tábuas em cada lado, à beira do
barranco15 ou ainda, tendo o teto com vários furos16.
Vimos que essa imagem da pobreza e precariedade era largamente difundida no
período, servindo como principal argumento para o programa remocionista executado na
virada das décadas de 1960/70 e que, embora não concluído, alimenta desde esse período
os desejos por parte de setores mais abastados da sociedade carioca de eliminar totalmente
a favela da paisagem carioca.
Emblematicamente, o tema da remoção ligado ao da especulação imobiliária é
tratado em algumas histórias desse período, sendo a ausência de propriedade por parte
dos moradores uma das descrições da favela mais presente e a razão pela qual em várias
histórias os moradores da Vila Xurupita são ameaçados de ‘remoção’ (termo que não é
utilizado nas histórias).
Numa história publicada em 1977, Zé Carioca vende aos moradores da Vila
Xurupita apartamentos no ‘Chatô Xurupitê’, no que dois conversam no quadro ao verem
o anúncio: “Xi, vai ser um espigão!”_ “A exploração imobiliária chegou à Vila
Xurupita!”. O ‘espigão’, na verdade, não passava de cinco barracos em cima do outro
gradualmente o morro/favela sai das histórias e a Vila Xurupita vai ganhando
características físicas de um bairro simples, similar ao subúrbio, embora ela nunca sido
declaradamente localizada nele. A saída de Renato Canini, contratado no começo dessa
13
“A noite dos Zumbis” Zé Carioca n. 1463, novembro de 1979. pp. 3-10
14
“O grande prêmio de Vila Xurupita” Zé Carioca n. 1281, maio de 1976. pp. 3-13
15
“O técnico que veio de longe” Zé Carioca n. 1445, julho de 1979. pp. 3-11
16
“Tem buraco no telhado” Zé Carioca n. 1465, dezembro de 1979. pp. 3-8
17
“A imobiliária do Zé” Zé Carioca n. 1329, abril de 1977. pp. 3-10
Página
Percebemos uma inflexão nas histórias ao final da década de 1970, em que
7
(uma antecipação da verticalização das favelas nas décadas posteriores).17
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fase e de grande importância nessa caracterização (Santos, 2002, p. 65) dos quadros da
editora é elemento e sintoma dessa inflexão em que as HQs de Zé Carioca estariam se
afastando demais do ‘padrão Disney’.
Nesse sentido, os barracos e a irregularidade do terreno vão dando lugar a casas
de alvenaria. Inclusive a moradia dos amigos e a do próprio Zé Carioca vão ganhando
esses contornos, embora as HQs mantivessem os elementos atribuídos à cultura popular
na Vila Xurupita. A vestimenta ‘clássica’ do personagem, de casaca, chapéu e gravata
borboleta, voltou a ser usada de modo alternado à vestimenta mais informal (as edições
comemorativas de 20 e 25 anos, da revista, respectivamente de 1981 e 1986, apresentam
o personagem vestido de modo diferente em cada uma).
Por outro lado, a tipificação da Vila Xurupita como favela parece ter sido algo
tão marcante na caracterização do personagem que ela foi ‘recuperada’ em algumas
histórias posteriores, já na década de 1980. De modo que, embora as HQs do personagem
não possua cronologia, foram feitas referências à mudança de status da Vila Xurupita não
sendo mais um ‘morro’. A favela passou a ser tratada por alguns roteiristas como parte
do passado do personagem.
Numa história que parece justificar a mudança, é Zé Paulista que chega de visita
ao primo Zé Carioca e pergunta: “Faz tempo que eu queria saber uma coisa. Como é que
você e seus amigos, tão duros, saíram dos barracos e vieram morar nessas casas?” A
história retoma a localização dos barracos como sendo no “Morro do Papagaio”, pois a
Vila Xurupita continuava sendo o ambiente principal das HQs, embora não mais na
condição de favela. A explicação que o argumentista colocou, narrada por Zé Carioca ao
incrédulo primo, é de que o morro foi posto abaixo para construção de um espigão
(remetendo à ilegalidade da posse e da permanente ameaça de remoção que falamos
anteriormente) o que fez com que Zé Carioca e sua turma ficassem sem casa, abrigados
sob um viaduto até um gênio fazer com que eles ganhassem na loteria e conseguissem
do personagem ocorre a partir de uma foto descoberta pelos sobrinhos em que Zé Carioca
empurra um barraco. Ao ser indagado sobre a foto, ele diz: “Ela me lembra uma passagem
18
“Esse cara é um gênio” Zé Carioca n. 1583, março de 1982. pp. 3-11
Página
Em “Como mudar uma casa”, a referência à moradia anterior na favela por parte
8
comprar um conjunto de casas para morar.18
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chata da minha vida! / Foi no tempo em que eu morava no morro...”19. O enredo trata de
Zé que, cansado de subir o morro, quer levar seu barraco para baixo, desenhado como
uma rústica construção acompanhada de vários outros barracos precariamente
pendurados no morro.
Numa história comemorativa dos 40 anos do personagem que trataria de sua
infância, o personagem como narrador de sua própria biografia conta aos sobrinhos: “Vivi
num dos mais belos locais do Rio de Janeiro”. Essa frase, num recordatório, era
acompanhada da visão do Pão de Açúcar do alto do morro sendo visto por um Zé ainda
bebê. No quadro seguinte, o recordatório complementa “Dependendo do ângulo do qual
a gente olhava, é claro...” sendo esse ‘outro ângulo’ os barracos da favela.20
A partir da produção de fim da década de 1970, o inverso do ‘passado na favela’
do personagem e da caracterização da Vila Xurupita como bairro pobre e ‘não-favela’ se
mostra, entre vários elementos, na ilustração da moradia de Zé Carioca como uma casa
de alvenaria às vezes simples, de poucos móveis, ou como uma casa mais decorada e
conservada21. A ‘nova’ casa de Zé chega a ter quintal, onde a preguiça característica do
personagem passou a ser acompanhada de uma rede entre duas árvores que, não de modo
uniforme, passam a ter presença frequente nas HQs.22
Vale dizer que as favelas do Rio também passam nesse período por intensas
transformações. Fracassado o programa remocionista da década de 1970 pela
inadimplência dos removidos, a ‘favelização’ dos conjuntos; a abertura da Barra da Tijuca
como alternativa à expansão imobiliária, as favelas cariocas eram uma realidade crescente
em número e população. De modo que o Estado, em todos os níveis, passou a ter a
de alvenaria.
19
“Como mudar uma casa” Zé Carioca n. 1581, fevereiro de 1982. pp. 3-9
20
“A infância do Zé Carioca” Zé Carioca n. 1589, abril de 1982. pp. 3-12
21
“O pingüim do papagaio”, Zé Carioca 1751, maio de 1985. pp 3-10; “Zé Baiano” Zé Carioca 1531,
março de 1981, pp. 3-9.
22
“O jurado assustado”, Zé Carioca 1925 janeiro de 1992. pp 3-10; “Professor de malandragem” Zé
Carioca 1816, novembro de 1987, pp. 3-10.” ;“O táxi do Zé” Zé Carioca 1531, março de 1981, pp. 39.
Página
típicos de quem não sabia até quando permaneceria no local, passou a dar lugar a casas
9
urbanização de favelas como política e o barraco de madeira e demais materiais precários,
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Isso é visto de modo claro numa história de 1983, em que o primeiro quadro é
um plano da Vila Xurupita deserta em que as casas de alvenaria aparecem em primeiro
plano, estando ao fundo casas mais simples de madeiras situadas em encostas logo atrás
das primeiras.23 Em “Às voltas como Beijoqueiro” (referência à folclórica figura da
década de 1980), Zé Carioca anda numa Vila Xurupita em que pequenas escarpas ao
fundo têm barracos de madeira, em contraste com a casa de alvenaria em que mora o
papagaio.24
Deste modo, não sabemos se foi uma intenção clara dos artistas sobre as
mudanças que ocorriam nas favelas ao ilustrarem uma Vila Xurupita, ainda que não mais
como favela e que agora seja plana, que continua a ter barracos no fundo do quadro em
várias histórias, existindo similaridade com as favelas reais que têm ‘partes melhores’,
mais próximas do ‘asfalto’, ou seja, da cidade formal, ladeadas com partes mais pobres e
precárias.
A possível ‘melhora’ de vida do personagem, e num certo sentido a
‘urbanização’ da Vila Xurupita, dentro do que foi exigido pelos ‘padrão Disney’ não
significou que Zé Carioca estivesse finalmente rico ou integrado à parte mais nobre do
Rio de Janeiro, característica seminal do personagem mantida na maior parte de sua
trajetória desde Hollywood.
A ‘distância’ dessa cidade e os preconceitos comuns por parte dos cariocas
moradores de seu litoral atlântico, mais especificamente da Zona Sul (a Barra da Tijuca
ainda dava seus primeiros passos como sonho de consumo por parte das classes média e
alta nas décadas de 1970 e 1980) em relação aos moradores dos subúrbios (e das favelas)
é retratada em das histórias distantes sete anos no tempo e em locais de moradia diferentes
por parte dos personagens.
A primeira, ainda nos tempos da arquitetura irregular do morro que ilustra o
“Zé Farofeiro” (o termo vem do fato das famílias que vêm de locais distantes levarem o
almoço pronto para praia). Nessa HQ, Zé e os amigos combinam um piquenique na praia
e descem o morro tendo a praia ao fundo sendo sucessivamente expulsos praia após
23
“O Dia do Sinistro”, Zé Carioca 1653, julho de 1983. pp 3-10
24
“Às voltas com o Beijoqueiro”, Zé Carioca 1721, outubro de 1984. pp 3-10
Página
carioca tratava o que considera como ‘invasores’ das praias localizadas em seus bairros:
10
primeiro quadro sob o qual tem como título o termo pejorativo com que a classe média
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praia.25 Na segunda, já mostrando a casa de alvenaria, o personagem chega na praia após
uma longa caminhada com o sol se pondo e reclama com Nestor “Toda vez é isso! Por
que colocaram a praia tão longe da minha casa?” Nestor retruca: “Você é que colocou
sua casa longe da praia!” A solução de Zé, fracassada, foi levar a casa inteira para a
praia, sob resistência de um policial.26
Na década de 1990 o personagem passou por mais uma atualização, dessa vez
junto com sua galeria, que passam a usar um visual mais colorido, com bonés, bermudas
e camisas estampadas, aproximando-se da indumentária usada por jovens das periferias
do Rio e São Paulo. Inclusive sem haver a uniformidade típica das HQs, mantendo apenas
o padrão das roupas e as características do personagem que haviam se consolidado nas
duas décadas anteriores. No começo de 2000, a Abril fecha seu núcleo de produção de
HQs e os artistas passam a trabalhar em estúdios terceirizados, com a produção nacional
de quadrinhos Disney praticamente se encerrando, tendo apenas alguns artistas
produzindo ocasionalmente histórias do Zé Carioca. A última inédita foi “Zé das Selvas”,
publicada em outubro de 2000.27
A produção brasileira pela Editora Abril seria retomada mais de uma década
depois 2012, no volume 2 da edição de comemoração dos 70 anos do personagem, com
duas histórias que mantiveram o visual criado nos anos 1990: uma história de dois jovens
artistas estreantes, Fernando Ventura e Diego Munhoz (arte-final) e outra de dois
veteranos que já fizeram juntos 64 HQs: Arthur Faria Júnior e Luiz Podavin.
CONCLUSÃO
Embora seja uma criação estadunidense e os Estúdios Disney nos Estados
percebido nas HQs italianas, dinamarquesas, holandesas... com temas e paisagens
característicos desses países.
25
“Zé farofeiro” Zé Carioca 1429, março de 1979. pp 3-10
26
“Eu quero uma casa na praia”, Zé Carioca 1721, janeiro de 1986. pp 3-10
27
“Zé das Selvas” Zé Carioca n. 2165, outubro de 2000. pp 3-9.
Página
países, dentre eles o Brasil, dotou os personagens de cores locais, como pode ser
11
Unidos tenham mantido uma produção intensa dos quadrinhos, a produção em outros
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No Brasil, com um personagem ‘brasileiro’, isso foi potencializado. O Zé
Carioca estadunidense foi ‘comido’, no sentido antropofágico defendido pelo modernista
Oswald de Andrade, para quem “a antropofagia não é apenas deglutição de elementos
externos à cultura brasileira mas também valorização desta, especialmente em sua
vertente popular” (Souza, 2007.p 120).
Foi justamente a caracterização do Zé Carioca do morro, preguiçoso, malandro,
apreciador do futebol e do samba que tornou o personagem sucesso de vendas, com a
revista se tornando quinzenal entre as décadas de 1970 e 1980. Entre os Anos de Chumbo
e o fim da década de 1990, Zé Carioca vivenciou os contrastes dos brasileiros, da torcida
pela seleção na Copa, da venda de jogadores para o exterior ou da ameaça a perda do
‘campo de pelada’ para a especulação imobiliária; se endividou, cantou, sambou, perdeu
casa, foi ‘removido’, morava ‘longe’...
O discurso tão presente no imaginário carioca de uma “cidade partida”, termo
consagrado no livro do jornalista Zuenir Ventura (1994) que indica a coexistência de duas
cidades, grosso modo, uma próspera e civilizada e outra atrasada e inculta... Classificação
à qual não concordamos, mas o que nos interessa mais aqui é o fato dessa percepção estar
presente nas descrições da cidade nos mais variados campos da cultura, dos quais as
Histórias em Quadrinhos são um deles.
Essa dualidade foi o fio condutor de toda a trajetória do personagem em que Zé
Carioca tenta se inserir na parte próspera com o menor esforço possível, através de planos
mirabolantes e golpes, encontrando permanente resistência. Em muitas histórias ele vai
parar na delegacia e as dívidas do personagem deram origem à criação dos personagens
“Anacozeca” (Associação Nacional dos Cobradores do Zé Carioca) que participaram de
diversas histórias em que o mote era a cobrança das suas dívidas.
As Histórias em Quadrinhos, ainda que possam trabalhar com a ficção e o
fantástico, são representações de uma realidade tal com percebida pelos seus
contemporâneos. Para além do fantástico nas origens dos heróis da Marvel Comics
Da mesma forma, a produção brasileira de Zé Carioca, principalmente entre as
décadas de 1970 e 1990 mostraram, de forma leve e humorada, e nem sempre inocente,
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peso da energia atômica no imaginário dos Estados Unidos da década de 1960.
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(explosões nucleares, aranhas radioativas, genes modificados etc.), temos a dimensão do
VII Simpósio Nacional de História Cultural
Anais do Evento
experiências e dramas reais de milhões de brasileiros que vivem nas ‘Vilas Xurupitas’ de
todo o Brasil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Janeiro: Pallas/PUC, 2013.
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Boa Vizinhança – a diplomacia através do cinema. Tese de Doutorado em História Social.
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Andrade” Scripta, Belo Horizonte, v. 11, n. 20, p.113-126, 1º sem. 2007.
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Imagens do Rio de Janeiro nas Histórias em Quadrinhos do Zé