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Clarice de Assis Libânio
ARTE, CULTURA E TRANSFORMAÇÃO NAS VILAS E FAVELAS:
um olhar a partir do Grupo do Beco
Belo Horizonte
Novembro de 2008
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Clarice de Assis Libânio
ARTE, CULTURA E TRANSFORMAÇÃO NAS VILAS E FAVELAS:
um olhar a partir do Grupo do Beco
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pósgraduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do título de mestre em
Sociologia.
Orientadora: profª Ana Lúcia Modesto
Belo Horizonte
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG
Departamento de Sociologia e Antropologia
Novembro de 2008
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Clarice de Assis Libânio
ARTE, CULTURA E TRANSFORMAÇÃO NAS VILAS E FAVELAS:
um olhar a partir do Grupo do Beco
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pósgraduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do título de mestre em
Sociologia.
Dissertação defendida e aprovada em:
Banca examinadora:
____________________________________________
Prof.ª Ana Lúcia Modesto
___________________________________________
Prof. Ronaldo de Noronha
__________________________________________
Prof. José Márcio Pinto de Moura Barros
Belo Horizonte
-- de novembro de 2008
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Para meus pais, que me deram muito mais do que
exemplo.
Para meus filhos, que me dão, a todo dia, força e
alegria.
Para meu marido, inexplicável.
Para todos aqueles que me inspiraram a crença de
que sim, é possível um mundo diferente.
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AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, ao Grupo do Beco, claro, por sua confiança em mim, por seu
carinho, por sua amizade, pela tolerância com a demora desse trabalho, pelo
companheirismo, pelo apoio nas horas difíceis e pela força, energia e
disponibilidade. Um abraço especial ao Nil e à Jose, que considero hoje amigos de
coração.
Aos amigos do Favela é Isso Aí, sem os quais nada teria sido possível nesses anos
de muita fé e muita descrença.
À minha orientadora, Ana Lúcia, pela infinita paciência, enorme competência,
orientação impecável e fundamental respeito ao meu momento e minhas
dificuldades.
Ao José Márcio Barros, a quem não me canso de agradecer as oportunidades e
inspirações que tem me dado sempre.
Aos meus pais, que me deram a grande chance de “escolher” essa profissão e me
encantar com ela.
Ao meu marido e meus filhos, pela compreensão, pelas ausências e pelo apoio em
todos os momentos.
Obrigada!
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Existir é diferir, e, de certa forma, a diferença é a
dimensão substancial das coisas, aquilo que elas
têm de mais próprio e mais comum. É preciso partir
daí, evitando qualquer explicação; para onde tudo
caminha, mesmo a identidade, de onde falsamente
partimos. Pois a identidade é apenas um mínimo,
não passando de uma espécie, e espécie
infinitamente rara, de diferença, assim como o
repouso é apenas um caso do movimento e o círculo
uma variedade singular da elipse.
Gabriel Tarde, In Monadologia e Sociologia
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RESUMO
A dissertação tem como ponto de partida a pesquisa realizada pela autora, no ano
de 2002, que culminou na publicação, em 2004, do Guia Cultural das Vilas e Favelas
de Belo Horizonte. Naquele trabalho, a autora visitou as 226 vilas e favelas da
Capital Mineira e cadastrou cerca de 7.000 artistas em atividade nesses locais.
Durante a pesquisa, foi possível perceber que apenas 20% desses artistas tinham
algum tipo de rendimento com as atividades culturais. Dessa constatação nasceu a
hipótese de que a arte traz, a esse público, algo mais do que uma possibilidade de
geração de renda. Esse algo a mais passa por uma modificação em sua forma de se
relacionar com sua comunidade e para fora dela, bem como possibilita a
transformação da visão que as favelas e seus moradores têm junto à mídia e à
cidade em geral. O texto traz, então, uma visão dessas possibilidades de
transformação através da arte, tendo como estudo de caso o Grupo do Beco, grupo
de teatro formado por moradores da Barragem Santa Lúcia, em Belo Horizonte, e
sua peça, Bendita a Voz Entre as Mulheres. A peça, construída a partir de
entrevistas com 20 mulheres da comunidade, traz a história de Bendita, uma mulher
que foi estuprada, expulsa de casa pelo pai, espancada, traída pelo marido e que
consegue, contra todas as expectativas, mudar de vida a partir do momento em que
se envolve com a arte, como cantora. A partir dessa experiência, a autora discute
como a arte e a cultura são instrumentalizadas nas favelas, como meio de melhorar
a auto-estima daqueles que com elas se envolvem, de criar novas formas de
socialização e convivência grupal e, por fim, de ampliar a participação política, por
vias não tradicionais, e o acesso aos bens e serviços da cidade e direitos do
cidadão.
Palavras-chave: Favelas. Belo Horizonte. Arte e cultura popular.
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ABSTRACT
This dissertation has as starting point the research accomplished by the author, in
the year of 2002, which culminated in the publication, in 2004, of the Cultural Guide
of the Villas and Slums of Belo Horizonte. To accomplish that work, the author visited
the 226 villas and slums of the Capital of Minas Gerais, and registered about 7000
artists in activity in those places. During that research, it was possible to notice that
only 20% of those artists had some kind of revenue with their cultural activities. From
this verification was born the hypothesis that art brings to that public something more
than a possibility of income generation. This something more promotes a
modification in their relationship with their community and beyond it, as well as it
makes possible the transformation of the image that the slums and their residents
have, in the opinion of the media and of the city in general. The text, then, brings a
vision of those possibilities of transformation through the arts, having as case study
the Grupo do Beco (Group of the Alley), theater group of residents of the Barragem
Santa Lúcia, in Belo Horizonte, and their play, Blessed the Voice Among the Women.
This play, built from interviews with 20 resident women from that community, brings
the history of Bendita (Blessed), a woman that was raped, expelled from home by her
father, beaten, cheated by her husband, and she achieves, against all expectations,
to change her life starting at the moment she gets involved in art, as a singer.
Starting from this experience, the author discusses as art and culture are
instrumentalized in the slums, as a way of improving the self-esteem of those that are
involved in it, of creating new forms of socialization and grupal coexistence, and,
finally, of enlarging the political participation by non-traditional means, and the
access to the goods and services of the city, and the citizen's rights.
Key words: Slums. Belo Horizonte. Art and popular culture.
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LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 – Planta de situação das vilas e favelas de Belo Horizonte.................. 56
FIGURA 2 - Unidades de Planejamento de Belo Horizonte, segundo Região
Administrativa......................................................................................................... 72
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LISTA DE TABELAS
TABELA 1
Número de núcleos constantes do universo de trabalho oficial da
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URBEL, segundo número de domicílios e população total
residente, por Regional ................................................................................
TABELA 2
Número de grupos culturais cadastrados e de pessoas
64
envolvidas e média de pessoas por grupo, por vila e grupos por
vila, segundo Regional .................................................................................
TABELA 3
Grupos culturais cadastrados, segundo área cultural, por
66
Regional (%)................................................................................................
TABELA 4
Grupos culturais cadastrados, segundo tempo na atividade, por
68
Regional ................................................................................................
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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
AVSI
Associação de Voluntários para o Serviço Internacional
CEURB/UFMG
Centro de Estudos Urbanos
CHISBEL
Coordenação de Habitação de Interesse Social de Belo Horizonte
COHAB-MG
Companhia Habitacional do Estado de Minas Gerais
DBP
Departamento Municipal de Habitação e Bairros Populares
DVS
Departamento de Vigilância Social
FAMOBH
Federação das Associações de Moradores de Belo Horizonte
IBGE
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IQVU
Índice de Qualidade de Vida Urbana
PLAMBEL
Planejamento da Região Metropolitana de Belo Horizonte
PROAS
Programa de Reassentamento de Famílias em Decorrência de
Obras Públicas ou Vítimas de Calamidades
PRODECOM
Programa de Desenvolvimento de Comunidades
PROFAVELA
Programa Municipal de Regularização de Favelas
RMBH
Região Metropolitana de Belo Horizonte
SEPLAN/MG
Secretaria de Estado do Planejamento e Coordenação Geral
SMAC
Secretaria Municipal de Ação Comunitária
UPM
Unidade de Planejamento
URBEL
Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte
UTP
União dos Trabalhadores da Periferia
ZEIS
Zona de Especial Interesse Social
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 13
1.1 Trilhas e pistas da pesquisa.......................................................................... 15
2 METODOLOGIA ................................................................................................. 18
3 CONCEITOS E REPRESENTAÇÕES DA FAVELA........................................... 23
3.1 Um século de favela: do bom selvagem ao abusado.................................. 23
3.2 Morro, asfalto, comunidade, cidade – o território como conceito-chave.. 34
4 UM BREVE RELATO SOBRE AS FAVELAS DE BELO HORIZONTE ............. 42
4.1 Histórico e caracterização da ocupação ...................................................... 42
4.2 Ocupação atual............................................................................................... 54
4.2.1 Características gerais da ocupação .......................................................... 55
4.2.2 Aspectos demográficos e indicadores sociais......................................... 59
4.2.3 Infra-estrutura e serviços urbanos ............................................................ 61
4.2.4 Organização social...................................................................................... 63
4.3 Produção artístico-cultural............................................................................ 64
5 BENDITA A VOZ ENTRE AS MULHERES – O CASO DO GRUPO DO BECO 71
5.1 O território....................................................................................................... 71
5.1.1 Características gerais da ocupação .......................................................... 71
5.1.2 Aspectos demográficos.............................................................................. 75
5.1.3 Qualidade de vida e infra-estrutura ........................................................... 76
5.1.5 Organização social e participação............................................................. 78
5.1.6 Manifestações culturais.............................................................................. 80
5.2 O Grupo........................................................................................................... 81
5.3 A peça.............................................................................................................. 89
5.3.1Teatro popular e criação coletiva ............................................................... 89
5.3.2 O texto e sua construção............................................................................ 92
5.3.3 Pessoas e personagens.............................................................................. 100
6 O PAPEL DA ARTE DA CULTURA NAS VILAS E FAVELAS .......................... 110
6.1 Auto-estima, identidade, diversidade ........................................................... 112
6.2 Grupo, redes, interação ................................................................................. 121
6.3 Mobilização, participação, cidadania............................................................ 124
7 CONCLUSÕES ................................................................................................... 129
REFERÊNCIAS...................................................................................................... 134
ANEXOS ................................................................................................................ 138
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1 INTRODUÇÃO
O trabalho que agora apresento é fruto de quase 20 anos de experiências, vivências
e pesquisas que desenvolvi junto aos moradores de vilas e favelas de Belo
Horizonte.
Essa trajetória se inicia em meados da década de 1980, quando iniciei minha
atividade profissional, ainda estudante, na Cia. Urbanizadora de Belo Horizonte –
URBEL, órgão da Prefeitura responsável pela política pública de habitação e
urbanização nessas comunidades.
Desde aquela época, fosse como estagiária, no princípio, fosse como profissional já
formada, depois, algumas questões me intrigavam e foram, aos poucos,
consolidando minha visão e teorias sobre as favelas, seus moradores e seu lugar na
sociedade.
Entre essas questões, a central e que informava todas as outras, basicamente, era a
noção de que havia uma divisão muito “clara” entre os moradores das favelas e os
moradores dos bairros, ainda que as divisões urbanas e culturais não fossem
explícitas em muitos casos.
Sempre fiquei muito intrigada com o fato de que tanto os moradores dos bairros
quanto os moradores das favelas referiam-se uns aos outros como seres diferentes:
nós e eles, os outros, os que não são nós. A noção de cidade dividida, apesar de
vizinha e convivente (no uso do espaço urbano, nas relações de trabalho etc.) ficou
para mim, desde então, como uma incógnita e, ao mesmo tempo, uma verdade a ser
combatida, sempre.
A bandeira da não-divisão da cidade, aliás, vem de família, porque meu pai,
sociólogo, desde que me entendo por gente trabalha com a regularização das
favelas e na minha infância e adolescência, divorciado, me levava para as reuniões
nas comunidades como programa familiar de sábado à tarde. Naquela época, claro
que eu, filha, não me sentia nada satisfeita com o programa com o pai, mas hoje
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sinto que ele me ensinou a ver com os mesmos olhos os “de lá” e os “de cá”.
Dentro da URBEL, nos quase dez anos que por lá fiquei, trabalhei em vários setores,
na articulação comunitária, na habitação, no social. Mas o trabalho que mais me
despertou e construiu minha vida profissional até hoje foi na área da pesquisa social.
Conhecer a realidade dessas comunidades sempre foi para mim o que havia de
mais instigante naqueles trabalhos.
Ao sair da instituição, para dedicar-me ao meu primeiro mestrado (aliás, capítulo à
parte), nunca deixei de pesquisar as vilas e favelas, de querer entender melhor
sobre elas e sobre a divisão da cidade.
Nesse momento, gostaria de abrir dois parênteses: um, sobre meus dois mestrados;
o outro, sobre a forma de conhecer as comunidades.
Em relação ao primeiro parêntese, me formei em ciências sociais, habilitação em
antropologia, no ano de 1992. Em 1994 já estava no mestrado da sociologia e
escolhi como tema o relacionamento existente entre bairros e favelas em Belo
Horizonte, seus afastamentos, estigmas e visões dominantes na sociedade.
Naquela época, fiz todos os créditos, mas não consegui finalizar a dissertação, parte
por me sentir órfã dentro do departamento com meu tema, parte por continuar
(desde sempre) trabalhando muito enquanto estudava.
Dez anos depois, jubilada, decidi tentar novamente a prova do mestrado e retomei o
tema, porém, já dentro de outras bases, tendo a cultura como foco, a partir de minha
experiência com a elaboração do Guia Cultural de Vilas e Favelas, do qual falarei
adiante.
Quanto ao segundo parêntese, confesso que já ouvi (por mais de uma vez)
comentários, explícitos ou velados, sobre as pessoas que, como eu, não nasceram
nas favelas, não vivem sua problemática na pele, mas querem estudá-las, conhecêlas e contribuir, de alguma maneira, para mudar o quadro de exclusão e divisão que
se apresenta.
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Os comentários são sempre na linha de que nós, “os de fora”, estamos lá para sugar
“os de dentro”, para utilizarmos de seu conhecimento e sua vivência para nossas
teses e depois, como ratinhos de laboratório, descartá-los, não dar retorno, não
contribuir.
Já houve épocas em que me indignei com essas afirmações, mas hoje não levanto
mais a voz para protestar. Primeiro, porque sei que, de fato, é muito comum essa
prática, de pessoas que não têm compromisso com as outras, tão comum que o
“estudante universitário que sobe o morro” já virou personagem cristalizado nessas
comunidades. Segundo, porque sei que só com minha prática posso ter a chance,
ainda que mínima, de ser enquadrada em outra categoria: a daqueles que realmente
gostariam que a cidade fosse mais integrada, menos dividida, menos segregada.
1.1 Trilhas e pistas da pesquisa
Voltando ao processo de construção desta dissertação, no ano de 2002 comecei um
trabalho de pesquisa que tinha como objetivo fazer um levantamento nas favelas de
Belo Horizonte, mapeando todos os tipos de manifestações artísticas e culturais
existentes nessas comunidades.
O produto desse trabalho, lançado em agosto de 2004, foi o Guia Cultural das Vilas
e Favelas de Belo Horizonte, que cadastrou 6.911 artistas em atividade nessas
áreas, número este que vem se mostrando, a cada dia, apenas uma amostra do que
realmente fervilha na área cultural das comunidades periféricas da Capital.
Naquela época, esses resultados de fato foram para mim – e para grande parte das
pessoas ligadas ao cenário cultural mineiro – uma surpresa. A partir do
desvelamento desses grupos, descobrimos como estávamos desinformados a
respeito dessa “arte invisível”, presos em nosso apartamento e de uma certa forma
distantes dessa realidade.
Aliás, a experiência do Guia foi fundamental para que eu me deparasse com meus
próprios preconceitos. Como já disse, trabalho com favelas desde 1987, foi meu
16
primeiro estágio, meu primeiro emprego e é o que faço, desde então. Sempre me
gabei de não ter preconceitos com relação aos moradores das favelas, a transitar
pelas comunidades, etc., etc.
Entretanto, quando a questão é a cultura, sem querer, a gente começa a reproduzir
o que ouve sistematicamente: aquela visão de que o que tem em favela é samba e
pagode e, hoje, hip hop. Sempre há esses rótulos, de tudo muito massificado, como
se fosse uma coisa só, igual, “a pobreza é toda igual, os barracos são iguais, a
cultura é igual”.
Quando me aprofundei nesse olhar para a cultura das comunidades, percebi que, de
fato, as coisas não são assim, é tudo bem ao contrário: se a favela de fora parece
um bloco, de cultura semelhante, do lado de dentro é completamente diferente. O
que eu já sabia do ponto de vista urbano, social e arquitetônico, fiquei sabendo com
relação ao que é artístico e cultural. A pluralidade e a diversidade são muito
grandes.
Foi no contexto do Guia que vim a conhecer o trabalho do Grupo do Beco e passei
então a acompanhar mais de perto sua trajetória, me encantei com eles e
redirecionei todo meu projeto de pesquisa para a dissertação.
Após o lançamento do Guia, me deparei com a necessidade de dar continuidade às
ações de apoio e divulgação dessa rica e intensa produção cultural que havíamos
mapeado, justamente por ter certeza de que o trabalho de pesquisa, apesar de toda
sua importância, perde seu objetivo se não avançar para a realização concreta da
mudança que se espera.
Confesso que foi essa minha incapacidade, desde sempre, de ser imparcial nos
processos de pesquisa, que me levou a fundar a ONG Favela é Isso Aí, dando,
então, continuidade às demandas identificadas mediante o Guia.
Lembranças e motivações à parte, a dissertação que agora, finalmente, publico, traz
reflexões baseadas, principalmente, em uma questão que muito me chamou a
atenção nos resultados do Guia: se somente 20% dos artistas cadastrados tinham
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renda com a atividade artístico-cultural, quais eram as motivações para continuarem
desenvolvendo seus trabalhos nessa área? Com essa questão em mente, parti,
então, para a pesquisa e as discussões que aqui se apresentam.
O trabalho está estruturado em seis capítulos, ademais dessa introdução. O
segundo traz as metodologias adotadas para a pesquisa, tanto do Guia, que aqui
também entra como fonte fundamental de informações, quanto do relacionamento
com o Grupo do Beco, recorte que fiz para minha dissertação.
O terceiro busca trazer uma discussão sobre a formação e componentes principais
da “mitologia urbana” que se formou em relação às favelas, suas representações e
conceitos principais.
Em seguida, o capítulo 4 volta seu olhar especificamente para a cidade de Belo
Horizonte e conta um pouco da história de ocupação e desocupação das áreas
faveladas ao longo das décadas e das sucessivas políticas públicas implantadas.
O capitulo 5 trata da realidade específica do Grupo do Beco: seu território, seus
atores, sua peça e suas motivações.
Por fim, os capítulos 6 e 7 trazem uma reflexão mais teórica que busca responder
àquela pergunta fundadora e dão algumas linhas que mostram a arte nas vilas e
favelas para além de sua função estética ou econômica.
Espero que essa experiência, vivida nos últimos 20 anos de minha vida profissional,
tenha algo a acrescentar ao debate de muitos, em Minas e fora dela, para o
reconhecimento das comunidades de vilas e favelas como elas são, ou seja, partes
do mesmo tecido social e urbano de que as cidades se constroem.
Como diria meu pequeno Benjamin, espantado ao ver, entre um prédio e outro, a
paisagem de um morro coalhado de casinhas: “Mãe, a favela ‘tá’ no meio do
mundo!!!”.
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2 METODOLOGIA
O trabalho para elaboração desta dissertação foi realizado através de três etapas
básicas, sobre as quais se discorrerá a seguir.
A primeira foi o aproveitamento da pesquisa do Guia Cultural de Vilas e Favelas de
Belo Horizonte, desenvolvido pela autora do presente estudo entre 2002 e 2004,
com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte – Fundo de
Projetos Culturais.
O projeto realizou o cadastramento, através de pesquisa de campo iniciada em
março de 2002 e concluída em novembro do mesmo ano, de todas as
manifestações culturais, artísticas, folclóricas e populares existentes e em
desenvolvimento nas vilas e favelas de Belo Horizonte. Vale destacar que entre o
início da pesquisa e sua publicação passaram-se quase três anos, por atraso na
liberação dos recursos, obrigando a que duas atualizações fossem feitas no período.
Para proceder ao levantamento dos dados, foram consideradas as seguintes áreas
culturais: Música, Teatro, Dança, Artes Plásticas, Artes Visuais, Literatura,
Artesanato, Folclore e Religiosidade, Escolas de Samba e Blocos Carnavalescos e
outras (atividades de caráter múltiplo, de cunho social ou que não se enquadravam
em nenhuma categoria mencionada).
Iniciou-se a pesquisa pela difícil delimitação do universo de trabalho. Difícil porque
percebeu-se que as áreas de ocupação com perfil designado vilas e favelas têm
grande fluidez em seu surgimento e adensamento, restando sempre a sensação de
que a base de dados está desatualizada.
Assim, optou-se por adotar a listagem oficial fornecida pela então Secretaria
Municipal de Habitação/URBEL, que indicava a presença de 226 áreas, incluindo
vilas e favelas com decreto ZEIS (Zona de Especial Interesse Social), além de
conjuntos habitacionais construídos pelo Poder Público municipal e outras áreas não
decretadas.
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É importante realçar que das 226 áreas apontadas pela URBEL àquela época, 12
não foram localizadas em campo – algumas, porque já se urbanizaram e se
incorporaram à malha dos bairros do entorno; outras, porque de fato não existem
mais, como é o caso da Vila Camponesa (Regional Leste), desapropriada pelas
obras do metrô; e outras, porque ainda não estavam habitadas à época da pesquisa
de campo, como é o caso do Conjunto São Gabriel (Regional Nordeste). Quanto às
demais, foram todas visitadas pela equipe de campo do Guia e tiveram as
manifestações culturais e artísticas cadastradas.
Encontraram-se também núcleos de baixa renda não constantes da listagem oficial
da URBEL, mas optou-se por não incluí-los no levantamento, já que o parâmetro
adotado era o cadastramento das áreas constantes do universo reconhecido pelo
Poder Público municipal.
Definido o território, partiu-se para a realização de entrevistas com lideranças
comunitárias, a partir das quais se iniciou a busca de artistas e grupos culturais,
formando uma rede de informantes. O mapeamento em rede permitiu identificar e
cadastrar um número relevante de artistas em atividade, mas deixou de fora vários
deles, que não tinham sido indicados por ninguém, quebrando, de alguma maneira,
o ciclo da pesquisa que se propunha censitária.
Além do descompasso entre o universo de trabalho da URBEL e as vilas realmente
existentes na cidade, já mencionado, outros problemas enfrentados foram a
desatualização do cadastro de lideranças fornecido pelo órgão, a existência de
diversas lideranças no mesmo local, dificultando a identificação daquelas com maior
legitimidade e o desconhecimento, por parte das lideranças, dos artistas de sua
própria comunidade.
Foram utilizados dois questionários básicos para a pesquisa: um deles era destinado
às lideranças e levantava todo o contexto urbano e social da comunidade, incluindo
aspectos de saúde, educação, saneamento, segurança pública, iluminação, inclusão
social, emprego e renda; o outro era destinado aos artistas e buscava conhecer de
perto sua atividade, principais problemas e realizações.
20
Além do cadastro dos artistas, foram também realizados cadastros de equipamentos
culturais, meios de comunicação locais e festas de cada uma das comunidades.
Os questionários foram digitados e tabulados e os dados e análises estatísticas
obtidos foram incorporados neste trabalho, como poderá ser visto no Capítulo 4.
Finalmente, vale destacar que o Guia, hoje, encontra-se totalmente desatualizado,
uma vez que a dinâmica das comunidades é bem grande, principalmente no que se
refere à formação e dissolução de grupos culturais. Entretanto, algumas
atualizações já estão sendo feitas e serão incorporadas, quando possível, na análise
deste trabalho.
A segunda etapa da pesquisa, após a escolha do Grupo do Beco como sujeito da
dissertação, foi a realização de entrevistas em profundidade com os participantes e
atores envolvidos no Grupo.
É importante, antes disso, destacar que a escolha do Grupo do Beco não se deu por
sua representatividade no universo da produção cultural das comunidades, já que,
no total de quase 700 grupos cadastrados pelo Guia, apenas 37, ou seja, menos de
5%, eram ligados à área do teatro.
A escolha se pautou pela tipicidade do trabalho do Grupo, dentro da temática
escolhida, isto é, um grupo que declaradamente se propunha a fazer arte em prol da
transformação social, um grupo que acreditava que o papel das manifestações
culturais nas vilas e favelas estava muito mais relacionado aos seus aspectos
sociais e políticos do que estéticos ou econômicos.
Após a escolha, o Grupo foi contatado e o projeto apresentado. A primeira reação foi
de rejeição. O Grupo colocou que já tinha sido, muitas vezes, objeto de análise de
outros estudantes e que não queriam ser sempre “ratinhos de laboratório”. Em
seguida, houve o questionamento, da parte deles, do que receberiam em troca da
pesquisa, fato que se dissolveu pelo contato permanente e aproximação mútua.
Realizaram-se, então, entrevistas coletivas com o Grupo, para conhecer sua história,
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trajetória, sonhos, expectativas, etc. Esses encontros foram em número de quatro ou
cinco, todos gravados e conduzidos livremente a partir de um roteiro de questões de
cunho qualitativo.
As dificuldades de agenda do Grupo, somadas à necessidade e importância de se
ouvir cada um dos membros em separado, fizeram com que se partisse, então, para
as entrevistas individuais. No total, foram realizadas entrevistas com sete
representantes do Beco, com duas a três horas de duração cada uma, também
utilizando a mesma metodologia. Não foi possível entrevistar dois membros do
Grupo, além de um ator contratado, por problemas de agenda.
As entrevistas individuais aprofundaram mais na história de vida de cada ator do
Grupo, conhecendo sua trajetória prévia à sua entrada para o teatro e sua leitura da
importância da arte e da cultura em sua vivência e na de sua comunidade.
Em seguida, as entrevistas foram transcritas e analisadas, de forma a compor um
panorama geral do Grupo e do trabalho por ele desenvolvido. Em alguns momentos
do texto ora apresentado, são citadas partes das entrevistas sem, entretanto,
identificar o nome da pessoa ouvida, como forma de se preservar cada um dos
atores do Grupo.
Por fim, a terceira etapa do trabalho foi dada, não necessariamente nessa ordem,
pela leitura e análise de bibliografia relativa ao tema do trabalho e pela leitura e
análise dos materiais do Grupo, incluindo matérias de jornais, vídeos, fotos e o texto
da peça “Bendita a Voz entre as Mulheres”.
Do ponto de vista da bibliografia, mostrou-se ser pouco extensa e de difícil
identificação. Em primeiro lugar, no que se refere a um olhar específico sobre as
favelas de Belo Horizonte, já que a maioria absoluta dos trabalhos publicados foca
as favelas do Rio de Janeiro como fenômeno nacional. Em segundo, no que tange
às relações entre cultura e desenvolvimento social e humano, temática da qual muito
se tem falado, mas pouco publicado em termos de pesquisas empíricas conclusivas.
Talvez tenha sido esta a etapa mais difícil do trabalho, não somente porque
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incorporou mais de perto o aspecto teórico em si e avançou na trilha das conclusões
do estudo, mas fundamentalmente, e principalmente, porque se utilizaram
parâmetros muito mais subjetivos na leitura das informações disponíveis.
Ao contrário dos dados do Guia, trabalhados estatisticamente e com potencial de
comparabilidade entre as diversas comunidades – ao contrário, também, das
informações vindas das entrevistas qualitativas, que focavam as histórias de vida em
suas particularidades, encontrando pontos de afastamento e aproximação –, a
análise da peça trouxe muito mais um olhar sobre o discurso, as representações e
visões dos próprios atores sobre sua comunidade, sua realidade e dificuldades,
vistas pelo ponto de vista de um observador não-morador, não detentor do código
utilizado pelos criadores da obra.
Nesse sentido, como se verá no capítulo dedicado à peça, buscou-se muito mais
descrever as falas e seu encadeamento do que interpretá-las de uma maneira
acabada e estanque, fornecendo ao leitor as respostas prontas.
23
3 CONCEITOS E REPRESENTAÇÕES DA FAVELA
Antes de iniciar a discussão a respeito da gênese e evolução das favelas em Belo
Horizonte e situar o tema da dissertação nesse contexto, buscar-se-á traçar um
breve relato a respeito dos aspectos simbólicos da temática favela. A intenção é
discorrer sobre as visões e representações da favela ao longo do tempo, abordando
um aspecto fundamental e determinante tanto para a identidade dos artistas
moradores dessas comunidades quanto para seu posicionamento perante o restante
da sociedade.
O que se pretende neste capítulo é apresentar um panorama das representações
sociais hegemônicas sobre as favelas, de forma a contextualizar o estudo das
manifestações artísticas ocorrentes nesses espaços e seus resultados do ponto de
vista da ação e da transformação social. Também interessa analisar como a
identidade da favela foi sendo construída ao longo do tempo, conformando essa
visão dominante.
3.1 Um século de favela: do bom selvagem ao abusado
Quando se pretende falar a respeito dos conceitos e representação das favelas na
sociedade em geral, bem como sua transformação ao longo do tempo, há, ao
contrário da temática da produção artística e seu papel, uma série de estudos já
disponíveis que aprofundam essa questão.
Ainda que praticamente todos eles estudem o fenômeno favela na cidade do Rio de
Janeiro, podem ser utilizados como referência para a discussão que se pretende
aqui realizar, pela proximidade das representações encontradas lá e cá a respeito
desses locais. Ademais, há que se lembrar que é a imagem da favela carioca que é
disseminada por todo o País e mesmo no exterior como estereótipo, pela mídia, o
que acaba contribuindo para nivelar um pouco as visões da sociedade a respeito de
todos os outros tipos de comunidade e ocupações humanas no restante do Brasil.
24
De acordo com Pandolfi (2003):
[...] poucos termos são ao mesmo tempo tão evidentes e tão opacos quanto
favela. Sua evidência se dá num duplo sentido. O primeiro é estar ganhando
visibilidade crescente, atraindo as atenções, ocupando de forma constante
espaços significativos na mídia, constituindo-se em tema recorrente de
debates. O segundo é que basta sua simples menção para que se produza,
de modo automático, um efeito de reconhecimento e de assentimento. Isso
significa não apenas que o termo se tornou de uso corrente, mas também
que os seus sentidos passaram a ser partilhados, generalizados. Todos
concordam a respeito do que é uma favela, todos são capazes de visualizar
e de identificar claramente uma favela. (p. 21)
Essa familiaridade distante com o universo da favela, mediada pela televisão que
coloca dentro de cada casa a “realidade” dos morros, tem como conseqüência a
pasteurização, a homogeneização das áreas periféricas ou comunidades urbanas
ocupadas por populações de baixa renda. Áreas de morro, áreas de palafitas,
alagados, fundos de vale, áreas consolidadas urbanisticamente, áreas construídas
com materiais alternativos, áreas com ou sem infra-estrutura. Não importa: ao final,
tudo é visto como o estereótipo da favela carioca, no modelo Rocinha, por exemplo.
Essa concordância guarda relação com o fato de que as favelas são um
dado concreto, são observáveis, têm uma objetividade. Elas delimitam um
espaço com características próprias, que as distinguem do seu entorno. São
estas características físicas, suas marcas externas mais aparentes, que, em
primeiro lugar, dão base à sua identificação como ocupações irregulares do
espaço urbano, cujas construções são toscas e feitas de forma
desordenada. Desassistidas e privadas de infra-estrutura, de serviços
básicos e de condições de higiene e saúde, estão mais sujeitas às
intempéries, com deslizamentos nas que se localizam em áreas de risco de
encostas, e enchentes naquelas instaladas em terrenos planos. Espaçosdormitório, as favelas seriam formadas por uma população que dela se
desloca para trabalhar ou buscar trabalho e lá se encontra por absoluta falta
de alternativa. Conseqüentemente, tão logo se apresente uma alternativa
razoável, essa população tenderia a deixá-las, não vendo sua presença ali
como algo definitivo. Mais do que dormitórios, portanto, elas seriam espaços
transitórios, locais de passagem. (PANDOLFI, 2003, p. 21).
No caso específico de Belo Horizonte, a situação encontrada nas áreas
denominadas “vilas e favelas” desmente, na grande maioria dos casos, esse
panorama. Como se verá no capítulo que se segue, a partir da década de 1980 uma
série de programas foram sendo implantados nessas áreas, transformando sua
situação urbanística e reduzindo significativamente os problemas de infra-estrutura e
saneamento básico. Por outro lado, é cada vez maior o número de famílias que,
nascidas e crescidas nas favelas, não desejam se mudar de suas comunidades e
25
afirmam categoricamente as vantagens do “morro” em relação ao “asfalto”.
De qualquer forma, o imaginário coletivo continua identificando favela por seus
traços estereotipados e exagerados que, na maioria dos casos, não encontram eco
na realidade.
Partilhada pela mídia, pela academia, pelo Estado, pelas agências de
desenvolvimento e pelas ONGs, essa representação das favelas extrai a
sua força justamente de sua evidência, do fato de corresponder a dados
concretos e de poder ser objetivamente observada. Nelas existem pobres,
haja vista o próprio aspecto das moradias, a infra-estrutura e os serviços
públicos são realmente precários, e não há como negar que hoje o tráfico
de drogas tem ali uma de suas faces mais visíveis. Entretanto, se tudo isso
é verdade e constitui uma pauta de graves problemas a serem
solucionados, é preciso notar que é nessa evidência mesma que reside a
opacidade da favela, pois ela produz a certeza de que já se conhece a
favela, sem que seja preciso conhecê-la efetivamente. Ela induz e direciona
o nosso olhar, condicionando o que ver e como ver; leva-nos a perceber e
tratar como unidade a favela e os favelados, aquilo que, de fato, é marcado
por uma extrema diversidade. A representação sobre a favela impõe-se,
assim, à realidade das favelas. (PANDOLFI, 2003, p. 23).
A visão atualmente dominante a respeito das favelas no Brasil, da qual Belo
Horizonte não foge à regra, foi sendo construída ao longo do último século, tempo
de existência dessa formação urbana tipicamente nacional. 1
O discurso mais disseminado na análise da gênese e formação das favelas tem o
ano de 1897 como marco fundador, relacionado à ocupação do Morro da
Providência, no Rio de Janeiro, por veteranos da Guerra de Canudos, com
autorização do Ministério da Guerra, de onde teriam trazido o nome de uma planta
(fava) comum nas duas regiões.
Entretanto, Souza afirma que na verdade a ocupação desta área é anterior a 1865,
sendo que apenas no final deste século começou a ser vista como problema digno
de atenção pela sociedade, tanto do ponto de vista demográfico e urbano quanto
higiênico e sanitário.
1
Para maiores detalhes sobre a evolução das representações das favelas, ver Zaluar (2004), Silva
(2005) e Valladares (2005). Apesar de algumas diferenças nas abordagens dos três autores, a linha
histórica que traçam sobre as favelas cariocas é semelhante e foi utilizada como referência neste
capítulo.
26
Segundo Maurício Abreu (1994), os barracões situados em morros não
eram raros na paisagem carioca do século XIX. Alguns relatórios de 1865 já
citavam essas habitações. Dispersas e pouco numerosas, no entanto, não
se destacavam na paisagem urbana da época. Tais habitações populares
ainda não faziam parte das preocupações da sociedade, mais assustada
com os cortiços e casas de cômodos que não paravam de crescer na
cidade, principalmente no centro. [...]
Além de perigosos, os cortiços e casas de cômodos eram considerados
ambientes insalubres, anti-higiênicos e focos de doenças (cólera, peste,
varíola e febre amarela) que assolaram a cidade a partir de 1850. (SILVA,
2005, p. 25).
E é justamente da desocupação dos cortiços, pela guerra sanitarista, que vão se
intensificar as ocupações no Morro da Providência e outros morros cariocas,
transformando aos poucos um nome próprio (Morro da Favella) no nome genérico
favela.
Foi a partir do ‘Morro da Favella’ que se começou a generalizar, na
imprensa, a associação do termo ‘favela’ à imagem de ‘perigo’ e de
‘desordem’. A favela já era lugar de malandros e marginais. [...]
Tais conceitos são reforçados com a Revolta da Vacina (1904) e, com o
decorrer dos anos, gradativamente a imagem de ‘terra sem lei’ acaba por
refletir-se também em outros espaços populares da cidade com paisagens
semelhantes. Os distúrbios mais sérios da Revolta da Vacina teriam
ocorrido do sopé do Morro da Providência, onde muitos moravam ou
passaram a refugiar-se, o que acabou aumentando a má fama da favela....
(SILVA, 2005, p. 27).
Deslocando-se a população dos cortiços para os morros e áreas menos centrais,
desloca-se também a preocupação sanitarista e higienista. “Assim, o discurso
higienista, que enfatizava os riscos das habitações precárias para a saúde pública,
passou a direcionar-se para esse tipo de alternativa habitacional.” (SILVA, 2005, p.
29).
Os discursos veiculados pela mídia e poderes constituídos, desde então, mostram o
Rio de Janeiro com uma visão dual, de duas cidades distintas dentro da mesma
Capital Federal. De acordo com Zaluar (2004), todos os autores que trataram a
cidade entre 1908 e 1923 usaram o conceito de dualidade em suas descrições,
pensamento cuja origem insere-se na visão dual da própria sociedade brasileira. “No
Rio de Janeiro, essa reflexão sobre a dualidade brasileira encontrou na oposição
favela x asfalto uma de suas encarnações.” (ZALUAR 2004, p. 13).
E ainda:
27
[...] a classificação bipolar surge de uma ordem social imaginada de tal
modo que qualquer ambigüidade, fronteira sombreada e experiência
contínua oferecem poucos instrumentos para pensar esses problemas.
Essa classificação é devedora de uma ordem social que se estriba na
clareza de quem são os amigos e os inimigos, ou seja, uma ordem prémoderna, das sociedades de pequena escala, das províncias, mas
dificilmente aplicável às metrópoles. (ZALUAR, 2004, p. 19-20);
Negativa quando se refere a condições de vida e segurança, positiva quando se fala
de arte e cultura, a favela conquista adeptos e perseguidores desde seu
aparecimento.
Do ponto de vista dos admiradores, vale citar o modernismo, já na década de 1920,
como um dos movimentos que reafirmou a beleza da favela e a idealizou como
característica genuinamente nacional, retrato da garra e criatividade do povo
brasileiro.
Logo também seria reconhecida como ‘berço do samba’ e dona de uma
admirável beleza rústica, para indignação dos setores conservadores.
Essa nova concepção da favela contribuiu para o aparecimento de uma
lógica paradoxal que, dali até a década de 1980, conduziria os olhares
sobre o território. O espaço popular da década de 1920 em diante passa a
ser visto também na condição de palco de ‘musas e poetas’ do samba. Em
sua pobreza, afinal, havia espaço para a beleza e o lirismo da cultura
popular brasileira. É a exotização da favela e de seus moradores. (SILVA,
2005, p. 34).
A imagem do bom favelado foi mote nessa época e nas décadas vindouras,
especialmente na sociedade carioca, que tanto conviveu e convive com artistas
moradores das comunidades pobres. Ícone dessa convivência, Hélio Oiticica foi um
artista que, na década de 1960, era amigo do famoso Cara de Cavalo e realizou
obra de protesto após seu massacre pela polícia carioca.
A estereotipia das favelas e seus moradores faz-se presente não só na
forma conservadora [...] como também em uma forma supostamente
progressista. Na primeira, os jovens aparecem como criminosos em
potencial ou como colaboradores de forças criminosas. Na representação
progressista, os residentes em favelas, há algumas décadas, eram
identificados por alguns setores sociais como ‘bons favelados’. O juízo
estabelecia uma analogia com a visão romântica do bom selvagem, símbolo
antimoderno de uma cidade racional e individualista. Embora essa
idealização ainda se faça presente, tornou-se mais comum, entre os que
assumem a perspectiva identificada como progressista, sua identificação
como vítimas passivas – e intrinsecamente infelizes – de uma estrutura
social injusta. (SILVA, 2005, p. 60).
28
De acordo com Oliveira e Marcier (apud ZALUAR, 2004), que estudaram os
conceitos e representações da favela por intermédio de letras de música, a favela foi
vista, ao longo de sua existência, das seguintes maneiras: o espaço do pobre, o
espaço do samba (ainda que este tenha subido, e não descido o morro), a nãocidade, o locus da marginalidade urbana e, por fim, como uma questão social.
Ao mesmo tempo em que, por uma visão idealizada, as letras de música
enaltecem o lugar, enaltecem também os laços de vizinhança,
companheirismo e união existentes entre os moradores da favela. Em nítida
oposição à ‘cidade’, onde predominariam as relações impessoais, a favela
seria o locus, por excelência, das relações personalizadas: nela, todos se
conhecem, todos se ajudam [...]. (OLIVEIRA; MARCIER apud ZALUAR,
2004, p.79).
Mas as próprias letras de música reforçam a favela como o local da violência, ontem
e hoje.
Mas se o conjunto dessas letras, produzindo uma visão mítica da
marginalidade, tende por isso mesmo a reforçar o estigma que
historicamente foi lançado sobre a favela como uma espécie de território
sem lei e sobre seus moradores como ‘classes perigosas’, em outras tantas
letras a imagem se dá exatamente na direção contrária [...] ao estigma da
malandragem se contrapõe a representação de um trabalho duro e mal
remunerado; ao da criminalidade, a caracterização de uma gente decente e
honesta, que socializa seus filhos por meio de uma ética que enaltece o
trabalho e recusa a delinqüência. ‘Ser pobre é não delinqüir’. (OLIVEIRA;
MARCIER apud ZALUAR, 2004, p.96).
Vista também como lugar da desordem, inúmeros artigos veiculados pela imprensa
apresentam a favela como
[...] um espelho invertido da civilização (ZALUAR, 1998) e oposta aos
anseios por uma cidade moderna, ordenada, civilizada e limpa. Colaborou
para a construção deste estigma o fato de a lei de então classificar de
vagabundo todo aquele que não tivesse domicílio certo [...], o que incluía, é
claro, os moradores das favelas, pois suas casas não eram consideradas
residências fixas, mas sim de caráter provisório. Como se não bastasse,
ainda ocupavam terrenos de terceiros. (SILVA, 2005, p. 30).
De acordo com Silva (2005), as principais marcas da representação social
hegemônica sobre as favelas são os conceitos de ausência, de homogeneidade e de
distância. Assim, a favela é o lugar do “falta”, do “não tem”; as formas de ocupação
são consideradas todas muito semelhantes; e a distância entre nós e eles é sempre
reforçada, tanto do ponto físico quanto mental e social.
29
Concentrando a pobreza, elas também expõem de forma pura aquilo que é
apontado como sua característica peculiar, tanto em termos positivos
quanto negativos. Por um lado, são tidas como o lugar, por excelência, de
determinadas formas de expressão marcadamente populares, como o
samba e o carnaval. Por outro, são temidas como territórios dominados pela
violência, por grupos, como os do tráfico de drogas, que impõem seu
predomínio por meio das armas e do terror.
Se por um lado a violência é percebida como traço identificador das favelas,
por outro ela é atribuída não só à pobreza, mas também à ausência do
Estado. Cumpre destacar, porém, que essa ausência não se traduz apenas
na incapacidade de garantir a ordem, impondo o monopólio da violência
legítima, mas também na inexistência de investimentos significativos em
infra-estrutura, saneamento, saúde, educação e transporte. Portanto,
ficando à margem daquilo que configura a pauta de direitos mínimos da
cidadania, as favelas teriam na exclusão social mais uma de suas marcas
identificadoras básicas. (PANDOLFI, 2003, p. 22).
Nesse sentido, os próprios conceitos utilizados nos dias atuais pelos Poderes
Públicos para definir as áreas de favela estão focados na noção de ausência. A
favela, em geral, pode ser caracterizada, nas representações que dela se faz, como
o lugar por excelência da ausência, da falta.
O eixo da representação da favela é a noção de ausência. Ela é sempre
definida pelo que não teria: um lugar sem infra-estrutura urbana – água, luz,
esgoto, coleta de lixo –, sem arruamento, sem ordem, sem lei, sem moral e
globalmente miserável. Ou seja, o caos. (SILVA, 2005, p. 24).
Essa concepção da favela como local sem ordem, sem higiene, sem moral, sem lei,
está na origem das políticas públicas destinadas às favelas, que, desde seu início,
estiveram predominantemente focadas na remoção das famílias desses locais.
No caso do Rio de Janeiro, a expansão das favelas vai se dando de maneira
gradual, chegando ao ano de 1920 com cerca de 100 mil pessoas habitando
diversos núcleos, marcando definitivamente a afirmação dessa forma de solução
habitacional no seio da Capital da República. Em resposta aos apelos da sociedade
pela “civilização” da cidade, é criado o Plano Agache, em 1927, que tinha como
objetivo a “remodelação, extensão e embelezamento” da cidade, mas que,
entretanto, não logrou realizar a remoção das favelas do cenário da Cidade
Maravilhosa.
Somente na década de 1940 a remoção de algumas áreas de favela se dá, com a
constituição dos Parques Proletários, que tratavam não somente de construir novas
moradias – muito mais precárias, às vezes, do que as de origem dos removidos –,
30
mas também de impor-lhes regras de convivência, de moral e bons costumes, numa
“pedagogia civilizatória”.
Silva (2005) atenta para o fato de que pelo menos um ponto positivo adveio da
política dos Parques Proletários: a formação de organizações comunitárias dos
moradores de favelas, que deram origem a todo um movimento associativo cujo
ápice foram os anos de 1960.
Em 1948 realiza-se o primeiro censo das favelas do Rio de Janeiro, pela prefeitura,
que trouxe uma série de concepções vigentes à época, expressas pela voz oficial da
municipalidade.
Segundo o texto, os ‘pretos e pardos’ prevaleciam nas favelas por serem
‘hereditariamente atrasados, desprovidos de ambição e mal ajustados às
exigências sociais modernas’. [...] ‘Renasceu-lhe [ao ‘preto’] a preguiça
atávica, retornou a estagnação que estiola [...] como ele todos os indivíduos
de necessidades primitivas, sem amor próprio e sem respeito à própria
dignidade’ [...]. (ZALUAR, 2004, p. 13).
Assim, além de ser o local da desordem e da falta de higiene e moral, a favela
aparece como culpada por sua própria existência, por abrigar pessoas preguiçosas,
atrasadas, sem amor próprio, praticamente animais.
A política de remoções continua nas décadas de 1950 e 1960, ao mesmo tempo em
que se intensificam as ocupações de novas áreas. Em 1970, as estimativas indicam
um total de 162 favelas no Rio de Janeiro, com população de aproximadamente 565
mil habitantes. Silva relaciona a necessidade de liberar terrenos para a especulação
imobiliária na zona sul com a intensificação da prática remocionista nas décadas de
1960 e 1970.
Por um lado, o discurso sustentava-se na idéia de suprimento do déficit
habitacional, oferecendo aos moradores das favelas a possibilidade de
aquisição da casa própria, em condições legais. Por outro, ao atuar de
forma muito mais enfática na zona sul da cidade, área muito valorizada do
ponto de vista imobiliário, revelou-se o compromisso de liberar terrenos para
a expansão imobiliária, de acordo com os interesses do mercado. (SILVA,
2005, p. 44).
Durante os anos do Governo Militar, a visão dominante era mais fortemente a da
necessidade de se disciplinar os favelados, recuperar moralmente, socialmente e
31
higienicamente as famílias e resgatar a estética da cidade.
[...] entre 1962 e 1973, quase 140 mil pessoas foram removidas e
transferidas para conjuntos habitacionais. Os impactos foram profundos:
redes sociais desfeitas e a proximidade do local de trabalho, que propiciava
uma economia significativa com o transporte, não existia mais. Da mesma
forma, fazer qualquer tipo de ‘bico’ para engrossar o orçamento tornou-se
difícil.
Para completar, as famílias não tinham mais com quem deixar os filhos ou
com quem pegar algum dinheiro emprestado. Toda uma rede de relações
criada ao longo de anos na vida da favela foi esfacelada. (SILVA, 2005, p.
47).
Somente a partir do final da década de 1970 começa a se criar um novo olhar sobre
as favelas e suas formas de tratamento. Tanto a partir de fatores exógenos, como as
políticas e preocupações de organismos internacionais e órgãos financiadores,
quanto endógenos, como a formação de organizações fortes de moradores e a
atuação da Igreja Católica, vão sendo transformadas as políticas remocionistas em
políticas urbanizadoras.
Os frágeis barracos, facilmente destrutíveis, desapareceram. Desde o final
dos anos 70, a favela tem luz em cada casa. Durante os anos 80 ela
adquiriu serviços, mais ou menos precários, de água e esgoto. Ninguém fala
mais de remoção. (ZALUAR, 204, p. 21).
Nessa nova concepção, o importante passa a ser recuperar, urbanizar e regularizar
as áreas de favela, para que seus moradores possam ter melhores condições de
vida no próprio local. Essa visão foi o germe do programa Favela-Bairro, da
Prefeitura do Rio de Janeiro, que perdura até os dias atuais. Fundamental nesse
processo também é a participação popular, por meio das organizações comunitárias.
O processo de democratização ocorrido durante a década de 1980 deu
novo impulso ao associativismo nas favelas, o que implicou a maior
organização em torno de reivindicações estruturais. Paradoxalmente, a
definição histórica das favelas centrada na degradação da paisagem
facilitou o aumento de reivindicações por obras de infra-estrutura. A
organização popular conseguiu uma significativa ampliação do acesso
regular à água, esgoto, coleta de lixo, asfaltamento e iluminação. Além
disso, difundiram-se as construções de escolas, creches e postos de saúde,
bandeiras centrais na busca de uma melhor qualidade de vida para os
moradores. O item no qual menos se avançou foi justamente o que coloca
em questão, de modo mais incisivo, as formas de apropriação e uso do
espaço urbano – no caso, o acesso à titulação da propriedade. (SILVA,
2005, p. 51).
Como se verá no próximo capítulo, o processo apresentado foi muito semelhante ao
32
ocorrido em Belo Horizonte, onde, a partir da década de 1980, surgiu o
PRODECOM, marco histórico na consolidação das favelas da cidade.
A partir da década de 1990, em geral, e particularmente a partir dos anos 2000, uma
nova transformação na visão e representações sobre as favelas vem se
processando. Essa nova visão está intimamente relacionada ao incremento do
tráfico de drogas e às guerras nos morros cariocas, e, mais recentemente, na cidade
de São Paulo, que trazem um novo modelo de marginalidade e convivência com a
violência, tanto aos moradores das favelas quanto à população como um todo.
A crueldade e a frieza dos chefes do tráfico são apresentadas cotidianamente na
mídia e contribuem para o acirramento das distâncias sociais e da discriminação
dada pelo local de moradia.
A lógica que caracteriza, de forma consciente ou não, a percepção desses
setores sociais é de que o direito ao exercício da cidadania não é inerente
ao nascimento do indivíduo no Estado-nação, conforme define a
Constituição brasileira. O reconhecimento da cidadania é relativizado, de
acordo com a cor da pele, o nível de escolaridade, a faixa salarial e/ou o
espaço de moradia dos residentes na cidade. O juízo se expressa, de forma
particular, no maior ou menor grau de tolerância com as diferentes
manifestações de violência, de acordo com o alvo da agressão e não com o
ato em si. (SILVA, 2005, p. 7-8).
As pesquisas realizadas por MV Bill e Celso Athayde, (2006) por um lado, e por Luiz
Eduardo Soares, por outro, e que tiveram como produtos o livro “Cabeça de Porco” e
o documentário “Falcões do Tráfico”, esse último apresentado no Fantástico, Rede
Globo, mostram uma face cruel do tráfico e uso de drogas nas favelas e bairros
populares em várias partes do País.
Da mesma forma que as obras de Zuenir Ventura (“Cidade Partida”) e Caco
Barcellos (“Abusado”) trazem a presença de um novo ator no cenário social da
favela: não mais o bom favelado, o bandido protetor da comunidade, o padrinho,
mas, sim, um ser mostrado pela mídia como quase “monstro”, com valores
completamente diferentes dos dominantes na sociedade, frio e pragmático.
O propósito do livro é traçar um vasto painel realista sobre a violência
instalada em vários estados brasileiros. A intenção não é denunciar. É
compartilhar com os leitores preocupações e reflexões, na perspectiva de
33
manter viva a esperança. O inferno está perto de nós, é verdade. Mas há
saída, sim. Basta olhar de perto e sentir o sopro de humanidade que vibra
sob a máscara dos monstros. (ATHAYDE, 2006, p. 14).
O contraponto dessa visão, hoje, é a redescoberta das artes das favelas pela grande
mídia, através do funk e do rap, principalmente. Chegando às emissoras de maior
audiência, haja vista o programa Central da Periferia, na Rede Globo, mais uma vez
a indústria cultural busca na arte popular a expressão vendável e o alimento para o
mercado do entretenimento. De acordo com Zaluar (2004):
[A favela] sempre foi sobretudo o espaço onde se produziu o que de mais
original se criou culturalmente nesta cidade: o samba, a escola de samba, o
bloco de carnaval, a capoeira, o pagode de fundo de quintal, o pagode de
clube. Mas onde também se faz outro tipo de música (como o funk), onde se
escrevem livros, onde se compõem versos belíssimos ainda não musicados,
onde se montam peças de teatro, onde se praticam todas as modalidades
esportivas, descobrindo-se novos significados para a capoeira, misto de
dança, esporte e luta ritualizada. (ZALUAR, 2004, p. 22).
Finalizando, o que se buscou mostrar neste capítulo é como os conceitos e
representações da favela, ao longo do tempo, pautaram-se por uma dualidade, um
paradoxo que tem como seus dois termos exaltação e discriminação.
Ainda que o segundo tenha predominado no imaginário popular, ligado
principalmente ao recrudescimento da violência e do tráfico de drogas a partir da
década de 1990 e a respectiva ênfase da mídia em seus aspectos negativos, é o
primeiro aspecto que tem contribuído para a transformação das formas de inserção
social e mobilização dos moradores das favelas com o restante da sociedade.
Ao longo da história, foi através de suas manifestações artísticas, endêmicas ou
importadas, que a favela teve algum tipo de reconhecimento e aceitação. Primeiro,
pelo samba e o carnaval; depois, pelo rap e pelo funk. Hoje, por sua multiplicidade e
diversidade cultural, é por intermédio da arte que o morador de favela encontra seu
lugar e seu valor nas representações sociais. Por isso, esse é o objeto deste
trabalho.
34
3.2 Morro, asfalto, comunidade, cidade – o território como conceito-chave
Como não poderia deixar de ser, a discussão a respeito das favelas, suas
representações e sua produção cultural passa necessariamente por um conceitochave que é o de território. Esse conceito é tão importante para a temática que,
qualquer que seja o viés que se adote, passa-se necessariamente por essa
discussão.
O trabalho, a cultura, o consumo, a moradia, os serviços, as ruas e
avenidas, enfim, as bases materiais e simbólicas da sociedade repousam
nas condições espaço-temporais em que as ações e intenções humanas se
efetivam concretamente. A cidade é obra humana territorialmente impressa.
É por isso que, quando falamos em sociedade, estamos falando sempre de
uma relação sujeito-território. (SILVA, 2005, p. 100).
A importância do território para os moradores da periferia é maior do que deixam
antever as reportagens sobre moradores em fuga do tráfico e a construção social de
uma imagem do eterno migrante sem laços, mais vinculável, de fato, à população de
rua.
No caso de Belo Horizonte, em sua grande maioria oriundos de cidades do interior
de Minas ou de estados do Nordeste, os moradores das vilas e favelas enxergam,
apesar de quaisquer problemas, seu local de moradia como uma conquista.
Defender a casa com unhas e dentes, às vezes às expensas da própria vida,
recusar-se a mudar – a não ser em casos extremos –, construir com as próprias
mãos o seu lar e edificar laços de vizinhança duradouros são as regras e não as
exceções nas vilas e favelas.
É claro que esse sentimento é mais forte entre os mais velhos. Mas também entre
aqueles que já nasceram na favela, a afirmação da origem e o apego ao território
parecem ser processos presentes, ainda que as identidades sejam cada vez mais
múltiplas e não condicionadas apenas a este ou aquele fator.
Como recolhido em uma das entrevistas com o Grupo do Beco, companhia de teatro
cuja trajetória é narrada neste trabalho,
35
“ser identificado como artista de favela tem para nós um lado
positivo e um lado negativo. O positivo é que, de uma forma ou
de outra, nos dá mais visibilidade e faz com que as pessoas
fiquem mais curiosas para conhecer o nosso trabalho. Quanto
ao negativo, é perceber que todos se espantam ao ver a
qualidade de nosso trabalho, como se favelado não pudesse
fazer nada bom!”. (Entrevista com o Grupo Beco)
Nesse caso, a instrumentalização da origem territorial como fator distintivo esbarra
na difícil constatação de que o preconceito existe e parece se alastrar, em proporção
direta ao aumento da insegurança social.
A afirmação do território como base da identidade construiu, ao longo da história,
algumas dicotomias que identificam o lugar social de onde se fala, no caso das
favelas. Uma das principais dicotomias é aquela utilizada na expressão morro x
asfalto. Fruto de uma época e de uma configuração espacial específica (os morros
cariocas, e antes da chegada da urbanização), a dicotomia ainda hoje é usada – na
mídia, pela população e por pesquisadores – para marcar a distância entre as
comunidades faveladas e o restante da cidade.
Ademais, a utilização do termo “morro”, em contraposição a “asfalto”, além de não
refletir a real situação da maior parte das favelas, que se configura de maneira
diferencial no espaço, também traz em si o errôneo pressuposto de que haveria uma
identidade comum dada pelo local de moradia, isto é O Favelado, com maiúsculas.
As favelas e loteamentos irregulares são identificados, em geral, pelos
órgãos públicos municipais do Rio de Janeiro como espaços informais, em
função da ausência do cumprimento de determinadas normas urbanas
legais. Nesse caso, os bairros seriam os espaços formais. A generalização
dos termos contribui para ampliar a imprecisão sobre as características
desses territórios. O termo asfalto, utilizado historicamente pelos moradores
da favela para denominar os bairros, tem caído em desuso. Atualmente, nas
favelas cariocas, quando se fala a respeito da própria localidade, utiliza-se,
em geral, comunidade; mas quando se refere a outros espaços análogos, é
usual o termo favela. (SILVA, 2005, pé de página, p. 57).
Essa discussão insere um novo conceito, que é o de comunidade. Mais complexo do
ponto de vista de sua conceituação, o termo comunidade é utilizado, nas favelas,
para designar um espaço social de iguais, ou seja, é um conceito fundamentalmente
de identidade coletiva. Fazem parte da comunidade não apenas aqueles que
36
residem em seus limites físicos, mas aqueles com os quais se estabelece uma
identificação, com os quais se partilham as dificuldades e cumplicidade da vida na
favela.
A dicotomia cidade x favela, também comum, indica que as áreas faveladas
estariam fora da polis – como se isso fosse possível –, seriam a ela externas e
estranhas.
Eu tenho muito medo da cidade. A gente sempre, ai, eu tenho medo de
subir o morro, mas eu tenho muito medo da cidade. Eu tenho muito medo
de ser engolido por ela, dessa coisa do calculismo, tudo é concorrência,
tudo. Você encontra uma pessoa, cê conversa com a pessoa, a pessoa já tá
querendo te sugar, não como referência, mas como concorrência, entende?
Eu fico me fiscalizando o tempo inteiro pra eu não me vender pra ela, sabe,
porque eu tenho os meus ideais, eu tenho a minha ideologia, e eu tenho
muito medo da cidade. Eu tenho muito medo, porque a cidade, ela não é
humana. As relações humanas não existem, quando existem, são raras.
Sabe, assim, essa coisa da superficialidade, eu não güento, eu não suporto.
A favela, por mais fingimento, por mais fofoca que tenha, tem o lado
humano. Por mais que fique uma pessoa o tempo inteiro na rua, vendo,
controlando quem tá chegando, quem tá saindo, se você for conversar com
essa pessoa, cê vai ver que tem um humano ali. Se você precisar dela,
igual eu precisei, minha mãe faleceu, ela ficou aqui com meu pai, ficou
telefonando pra Deus e o povo, sabe, deu maior assessoria, fez comida,
sabe? Morre alguém no bairro Anchieta! O vizinho nem sabe que morreu!
Eu tenho medo disso! A cidade, ela é muito maior! Essa coisa da
concorrência exacerbada. E é tudo como um código de barra! A favela não
tem, num dá essa importância que o código de barra tem. A cidade não.
(CÉSAR - Grupo do Beco apud NOGUEIRA, 2004, p. 50).
As próprias letras de música expressam esta oposição:
[...] se, por um lado, nas letras das composições, o retrato da favela é feito
com base em suas características intrínsecas, por outro, essa mesma
imagem se constrói de forma relacional, sendo os elementos definidores
traçados a partir da e com referência à cidade.
Quando isso ocorre, o que chama a atenção, num primeiro plano, é a rígida
demarcação que se estabelece entre ambas, fazendo com que a cidade
seja vista como uma coisa e a favela como outra. Inúmeras são as
referências musicais que tratam a favela como algo alheio, algo que não faz
parte, algo, enfim, que é distinto da cidade, não importa a situação, os
personagens ou os sentimentos que aí estejam envolvidos. (OLIVEIRA,
apud ZALUAR, 2004, p. 90).
Referindo-se a artigo da revista Veja denominado “A periferia cerca a cidade”, Silva
(2005, p. 58) aponta:
37
[...] os espaços periféricos e favelados são vistos, nessa proposição, como
externos à polis, ou seja, ao território reconhecido como o lugar, por
excelência, de exercício da cidadania. Nessa lógica, o reconhecimento da
cidadania é relativizado de acordo com a cor da pele, o nível de
escolaridade, a faixa salarial e o espaço de moradia.
E completa: "O primeiro passo é acabar com a relação favela e asfalto. O
reconhecimento realmente democrático dos direitos à cidade passa por uma nova
apropriação do espaço urbano. A cidade, antes de mais nada, é uma só." (SILVA,
2005, p. 90).
Em Belo Horizonte, ao contrário do Rio de Janeiro, um termo habitualmente usado,
tanto no passado quanto nos dias atuais, é o de vila, como sinônimo de favela.
Ainda que haja tentativas de classificar e hierarquizar as duas designações, fato é
que ambas sempre foram usadas para tratar os mesmos espaços, apenas
considerando a distinção de que o termo vila seria menos pejorativo do que o termo
favela.
A Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte, responsável pela implementação da
política pública habitacional na cidade em geral, e nas favelas, em particular, define
favela como uma ocupação espontânea e irregular, sem propriedade legal, sem
infra- estrutura, por população de baixa renda (economicamente carente). Mais uma
vez a noção de ausência se impõe, assim como a noção de irregularidade, daquilo
que não é o certo, o desejável.
Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as favelas são
classificadas como aglomerados subnormais, isto é, ao pé da letra, localidades
abaixo do normal.
[...] também designados ‘assentamento informal’, independente do material
utilizado em sua construção, como, por exemplo: favela, mocambo,
alagado, barranco de rio, etc. O que caracteriza um aglomerado subnormal
é a ocupação desordenada e quando de sua implantação não havia posse
da terra ou título de propriedade. (IBGE, Manual do Recenseador, censo
2000, p. 43).
Também para o Planejamento da Região Metropolitana de Belo Horizonte
(PLAMBEL), primeiro órgão responsável pela normatização do espaço urbano na
Região Metropolitana de Belo Horizonte, o conceito de favela reforçava a noção de
38
“desobediência” ou desordem, ainda que tivesse a importância de introduzir, por
outro lado, o reconhecimento do “fenômeno favela” como alternativa habitacional.
Favelas são assentamentos residenciais de baixa renda, destituídos de
legitimidade do domínio de terrenos, cuja forma de ocupação se dá em altas
densidades e em desobediência aos padrões urbanísticos legalmente
instituídos.
Conformam-se em espaços de topografia acidentada, fragmentados em
áreas de reduzidas dimensões e ocupadas por construções rudimentares.
Seu sistema de articulação é adaptado às condições topográficas locais,
constituindo-se em grande parte de caminhos de pedestre, sendo raras as
vias para acesso externo.
O fenômeno favela faz parte intrínseca da paisagem das grandes cidades
brasileiras. Tem sua origem no modelo capitalista dependente no qual se
insere o País. As favelas surgem como estratégia de apropriação do espaço
pelos estratos de mais baixo poder aquisitivo e de menores condições de
participação nos benefícios da cidade.
Assim, na RMBH (Região Metropolitana de Belo Horizonte) essas
aglomerações não podem ser consideradas como algo externo à sua
comunidade socioeconômica, mas compreendidas como a alternativa
encontrada por determinadas pessoas para se abrigarem e estarem
próximas aos seus “negócios”; enfim, como maneira de habitar.
O Poder Público, identificado com a lógica do sistema econômico, tende a
canalizar seus investimentos segundo políticas excludentes, fazendo com
que as camadas de menor poder aquisitivo pouco usufruam dos benefícios
da urbanização. (PLAMBEL, 1983).
Por fim, basta olhar o Dicionário para compreender como o conceito de favela é
utilizado e definido pela sociedade brasileira: um local tosco e sem higiene. No Novo
Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda, o vocábulo favela
está assim definido:
Favela. S.f. Bras. 1. Conjunto de habitações populares toscamente
construídas (por via de regra em morros) e desprovidas de recursos
higiênicos. [Sin.: morro (RJ) e caixa-de-fósforos (SP).] 2. V. faveleiro.
(HOLANDA, s/d., p. 618).
É possível, também, um olhar para outras regiões do planeta para se discutir o
conceito de favela. “Planeta Favela” (Planet of Slums), de Mike Davis, é um livro
escrito por um americano sobre um tema que os brasileiros teimam em dizer que é
genuinamente nacional, a Favela. A pesquisa mostra como as periferias em todo o
mundo vêm crescendo em ritmo acelerado, a partir de estudos de crescimento
demográfico das grandes metrópoles, indicando que, seja na América, ou na Ásia, a
tendência é que o mundo se transforme em um grande bolsão de pobreza.
Nesse livro, o autor deixa de lado o purismo conceitual, adotado por muitos
39
estudiosos das favelas brasileiras, e, seguindo as definições adotadas pela ONU2,
compara áreas em todo o mundo com características semelhantes, principalmente a
alta densidade demográfica e concentração de populações economicamente
carentes em bolsões de pobreza urbana. De acordo com ele,
[...] os autores de The Challenge of Slums [...] conservam a definição
clássica da favela, caracterizada por excesso de população, habitações
pobres ou informais, acesso inadequado à água potável e condições
sanitárias e insegurança da posse da moradia. Essa definição operacional,
adotada oficialmente numa reunião da ONU em Nairóbi, em outubro de
2002, está ‘restrita às características físicas e legais do assentamento’ e
evita as ‘dimensões sociais’, mais difíceis de medir, embora igualem-se, na
maioria das circunstâncias, à marginalidade econômica e social. (DAVIS,
2006, p. 33).
Retomando a discussão anterior, a importância do território como fator de identidade
para o morador da favela é impactada pelas visões negativas que as diversas
designações do espaço carregam. Se a favela é sempre definida como lugar da
ausência, da subnormalidade e da irregularidade, como esse morador se vê ao
habitar tal território?
[...] Suas obras sempre foram interpretadas e tratadas como ilegais,
irregulares, informais, subnormais e clandestinas, por não obedecerem aos
padrões racionais de edificação, por terem se constituído sem o crivo do
controle governamental e por não possuírem documentação escriturada de
propriedade.
Essa situação está longe de ser exclusiva das favelas, embora seja
geralmente dirigida a elas. Segundo as informações da Secretaria de
Programas Urbanos do Ministério das Cidades, pelo menos 60% dos
domicílios urbanos no Brasil não estão devidamente regularizados. (SILVA,
2005, p. 93).
Nos dias atuais, os moradores mais politizados e envolvidos em movimentos tendem
a chamar seu território ou pelo nome de comunidade ou pelo nome de favela,
assumindo a designação sem medo de negar a origem. Nessa perspectiva,
concordam com a afirmação de que
[...] a favela não é um problema, nem uma solução. A favela é uma das
mais contundentes expressões das desigualdades que marcam a vida em
sociedade em nosso país, em especial nas grandes e médias cidades
brasileiras. É nesse plano, portanto, que as favelas devem ser tratadas, pois
são territórios que colocam em questão o sentido mesmo da sociedade em
que vivemos. SILVA, 2005, p. 91).
2
O documento citado é The Challenge of Slums [O desafio das favelas], relatório publicado em
outubro de 2003 pelo Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas (UN-Habitat).
40
Independentemente de suas possíveis diferenças conceituais, neste trabalho serão
usadas as designações favela, vila e comunidade, indistintamente, referindo-se
sempre aos territórios que são objeto desta dissertação e da produção artística de
origem popular na cidade de Belo Horizonte.
Buscamos compreender o uso que os próprios moradores fazem do termo
comunidade, pensando a apropriação do espaço em suas mais variadas
formas e sentidos, entendendo a formação dos vínculos de sociabilidade
que aí vão se forjar. É fato que [...] o termo comunidade inundou o senso
comum, mas a apropriação feita pelos moradores das favelas assume a
tentativa de encontrar para si uma conotação diferenciada, na forma de um
exercício de construção identitária. Eles se autodenominam “comunidade”,
constroem sua identidade grupal a partir dessa idéia que lhes soa protetora
e digna, numa estratégia defensiva às estigmatizações que o termo favela
recebe. Contudo, o seu uso generalizado acaba por reforçar exatamente a
idéia de carência a ser preenchida por assistencialismo e reforça o rótulo de
exclusão. A conquista dessa auto-estima, alicerçada como está nos valores
da classe dominante, acaba por reforçar a identidade negativa quando não
há, de fato, uma elaboração daqueles valores e de seus próprios, quando
não há transformação. (NOGUEIRA, 2004, p. 92).
Finalizando, pode-se aproveitar um termo que é gíria nas comunidades e foi utilizado
por Magnani como categoria analítica, qual seja, o “pedaço” (atualmente mais
conhecido como “quebrada”).
São dois os elementos básicos constitutivos do “pedaço”: um componente
de ordem espacial, a que corresponde uma determinada rede de relações
sociais. [...] Não basta, contudo, morar perto ou freqüentar com certa
assiduidade esses lugares: para ser do “pedaço” é preciso estar situada
numa particular rede de relações, que combina laços de parentesco,
vizinhança, procedência. (MAGNANI, 2003, p. 137-8).
Concordando com o autor, percebe-se que, de fato, são as relações focadas no local
de moradia, no caso das áreas periféricas, que determinam, além da família, a maior
parte da rede social dos indivíduos. Além disso, é no território que se constroem as
relações mais duradouras e mais personalizadas, menos possíveis em ambientes de
trabalho, lazer ou estudo, considerando a alta rotatividade que se registra nessas
esferas.
Vê-se, desta forma, que a periferia dos grandes centros urbanos não
configura uma realidade contínua e indiferenciada. Ao contrário, está
repartida em espaços territorial e socialmente definidos por meio de regras,
marcas e acontecimentos que os tornam densos de significação, porque
constitutivos de relações. Se se compara, por exemplo, este quadro com o
que ocorre em bairros ocupados por outros segmentos sociais, pode-se
avaliar a importância que o “pedaço” representa para as camadas de rendas
41
mais baixas. Diferentemente daqueles setores – onde na maioria das vezes
os vínculos que ampliam a sociabilidade restrita da família nuclear não são
os de vizinhança, mas o que se estabelecem a partir de relações
profissionais –, uma população sujeita às oscilações do mercado de
trabalho e a condições precárias de existência é mais dependente da rede
formada por laços de parentesco, vizinhança e origem. (MAGNANI, 2003, p.
139-40).
42
4 UM BREVE RELATO SOBRE AS FAVELAS DE BELO HORIZONTE
4.1 Histórico e caracterização da ocupação
Como apresentado no capítulo anterior, o surgimento das favelas está relacionado
ao processo de metropolização e urbanização deflagrado a partir do final do século
XIX, que, entretanto, foi mais fortemente acelerado no Brasil a partir de meados do
século XX.
A industrialização e o êxodo rural são alguns dos fatores componentes desse
processo que, ligados à incapacidade de absorção da população migrante pelas
malhas urbanas e às ineficientes políticas públicas tanto para as áreas urbanas
quanto rurais, geraram um quadro grave de condições de habitabilidade nas
cidades. No Rio de Janeiro, a questão sanitária foi um dos mais fortes argumentos
tanto para a desarticulação dos cortiços quanto para as sucessivas tentativas de
remoção das favelas ao longo do último século.
Belo Horizonte não foge a esse cenário, vivenciando processos bastante
semelhantes aos ocorridos no Rio de Janeiro. Entretanto, o que diferencia o
surgimento das favelas na cidade é que aqui foi a própria hierarquização urbana que
propiciou a formação das favelas, como se estivessem “programadas” desde a
criação da nova Capital Estadual.
Belo Horizonte foi planejada pela Comissão Construtora da Nova Capital,
buscando expressar espacialmente uma idéia de modernidade – que
representasse o centro político-administrativo de Minas Gerais. Para tanto,
foram observadas as referências importadas: ‘conhecimento e proximidade
com relação ao plano de Washington, à reforma realizada por Haussmann
em Paris e, sobretudo, ao plano de La Plata, na Argentina’ (GOMES &
LIMA, 1999, p. 121). Suas largas ruas, desenhadas em xadrez e cortadas
diagonalmente por avenidas, são a expressão da vanguarda, ignorando as
determinações topográficas e hídricas, não se prendendo às especificidades
do lugar, a partir da prática de um urbanismo do alinhamento, da
classificação e da ordem. (OSTOS, 2004, p. 26)
De acordo com os relatos e estudos sobre a cidade planificada por Aarão Reis, a
ocupação do espaço urbano da nova capital foi planejada e sua planta tinha setores
predestinados a diversas atividades, bem como à moradia de funcionários públicos,
43
membros da elite e militares. No entanto, “os operários, tão necessários à
construção da cidade, como ressaltado nos relatórios dos primeiros prefeitos, não
têm espaço para morar." (AFONSO e AZEVEDO in POMPEMAYER, 1987, p. 111.
Uma das principais conseqüências do plano segregador da cidade foi o inchaço de
suas zonas suburbanas e áreas convencionalmente consideradas inadequadas à
moradia humana.
Em 1912 (15 anos depois da inauguração da capital), 60% da população
localizava-se nas zonas suburbanas e rural, o que mostra a importância
dessa tendência no processo de crescimento da cidade. [...] As exigências
para construir e morar no centro, o alto preço dos terrenos e a precariedade
da infra-estrutura nas zonas suburbanas e rural fez com que parte dos
setores mais pobres da população tentasse resolver seu problema
habitacional através de ocupações não controladas de áreas centrais,
próximas a seus locais de trabalho. Desde o início da construção da cidade,
conhecem-se relatos acerca do surgimento de favelas nas áreas centrais,
bem como de iniciativas do Poder Público visando erradicá-las. As primeiras
favelas de Belo Horizonte abrigavam principalmente os operários que
vieram para construir a cidade e se concentravam em duas zonas: Córrego
do Leitão (atual Barro Preto) e a ‘Favela’ ou Alto da Estação (hoje Santa
Tereza). (AFONSO e AZEVEDO in POMPEMAYER, 1987, p. 112.
Da mesma forma que o surgimento das favelas em Belo Horizonte não pode ser
desvinculado do surgimento da cidade, também seu crescimento se fez de forma
concomitante. Em 1955, o IBGE realizou levantamento nas favelas do município,
cadastrando então 36.432 moradores. No ano de 1965, esse número havia mais que
triplicado: 119.799 pessoas residiam em áreas consideradas faveladas. (AFONSO e
AZEVEDO in POMPEMAYER, 1987).
Havia uma contradição entre o modelo, os seus desdobramentos e as
condições concretas, que o negavam. O modelo de cidade almejada, pelas
frações das elites mineiras, orientada para um futuro dominado pela idéia de
progresso, era contraposto inclusive pela localização das classes populares
em áreas irregulares na própria zona urbana, ocupando cafuas, barracos e
barracões, o que era tomado como a face visível do atraso, da ineficácia e
da falta de beleza, contrariando o plano original, “concebido por Aarão Reis
antes mesmo de ter sido definido o sítio onde ela (a capital) seria localizada”
(GUIMARÃES, 1991, p. 45). O adensamento das áreas periféricas, como
Lagoinha, Floresta, Santa Efigênia, Calafate e a subdivisão dos terrenos
das ex-colônias agrícolas (zona rural), era tido como a expressão da
desordem, contrariando a concepção de Aarão Reis, que previa o
crescimento de Belo Horizonte do centro para a periferia. A ameaça ao
modelo se configurou a partir do crescimento da periferia para o centro e da
lógica de investimentos públicos no espaço, do centro para a periferia. Tal
ameaça era a grande visibilidade do fosso entre o modelo original,
concebido através de uma lógica formal, estatista, e a realidade vivida
concretamente, dialetizada, qualificada, porém, como “desordem”, como
ameaça. (OSTOS, 2004, p. 31-32.
44
Assim, pode-se afirmar que as favelas do município são, em sua maioria, de
ocupação muito antiga. Uma ou duas gerações já nasceram nesses locais e
continuam ocupando-os. No entanto, o surgimento de novas ocupações e o
adensamento populacional nas áreas já existentes também tem sido levado a cabo
pela migração de novas famílias antes residentes em outros bairros da própria
capital, como se verá mais adiante.
Um dos problemas mais sérios encontrado nas favelas está relacionado à sua
localização, predominantemente em beiras de córregos e encostas extremamente
íngremes e, muitas vezes, de alto grau de periculosidade para seus moradores. A
disponibilidade dessas áreas para ocupação deriva justamente de sua qualidade
inferior, uma vez que os melhores terrenos foram reservados e ocupados por
populações com maior poder aquisitivo, seguindo a lógica do mercado imobiliário,
restando à classe baixa ocupar as áreas consideradas insalubres ou inabitáveis.
Pela via da análise espacial, percebe-se a existência de uma inclusão
efetiva dos diversos grupos sociais na cidade, ainda que numa participação
social perversa, em que o caso das favelas é exemplar. Afinal, se
determinado grupo existe, necessariamente ocupa de alguma forma o
espaço, se apropria dele – ainda que de um espaço relegado, mesmo que
tal participação se dê pela desqualificação. O que confirma a idéia de que
se trata de uma inclusão perversa é a observação das diferentes
possibilidades de apropriação desse espaço e, ainda, o impacto subjetivo
que tal apropriação implica. A inclusão perversa mostra-se, por exemplo, na
apropriação de ruas e viadutos, por moradores e trabalhadores. Mostra-se
também em sua outra face, no surgimento de fenômenos como os
chamados “condomínios fechados” (um novo feudo?) que efetua a
transformação da rua, espaço público, em privado; na desejada construção
de uma segregação espontânea. A inclusão perversa, observada pela ótica
do espaço, pode ser apontada ainda em diversos outros exemplos (como
elevadores de serviço, shopping centers e a própria existência da favela,
como se verá), mas pode, ainda, como é mais comum, ser apontada pela
via da apropriação da mão-de-obra, desqualificada e aprisionada.
(NOGUEIRA, 2004, p. 66).
Dependendo do ponto de vista que se adota, o processo de favelização em Belo
Horizonte pode ser percebido como mecanismo de exclusão social, ao mesmo
tempo em que se revela como uma construção de novos valores pela classe baixa,
onde se avalia o custo de se morar na favela e o benefício de não morar em áreas
periféricas mais distantes e se "opta" pela comodidade em detrimento do status.
Do ponto de vista econômico, a favela foi a possibilidade de inserção das
classes populares no espaço e nos circuitos econômicos que se
45
estabelecem no e com o espaço urbano. A proximidade do centro histórico
de Belo Horizonte e dos centros regionais, em muitos casos, propiciou uma
redução no custo de transporte e aumentou os contatos para obtenção de
trabalho, viabilizando a permanência nos lugares da cidade “escolhidos” –
compreendidos como local de oportunidades e maior acesso aos benefícios
sociais. (OSTOS, 2004, p. 81-2).
A hipótese é que essa população não aceita ser empurrada para a periferia e acaba
construindo uma inclusão na malha urbana a seu modo e dentro de suas condições.
Assim, o que se vê é a convivência espacial das favelas com bairros de classe
média
e
alta,
configurando
um
contraste
não
apenas
urbanístico,
mas,
principalmente, social e desbancando o conceito espacial de periferia para tratar
esses aglomerados humanos.
Esse cenário, tão presente na configuração urbana do município de Belo Horizonte,
coloca a premência de que as favelas sejam encaradas não mais como situação
transitória de moradia, mas antes como tendência constante no crescimento dos
núcleos urbanos, em especial no Terceiro Mundo.
Em decorrência dessa constatação, faz-se necessário cada vez mais pensar o
fenômeno favela não como aberração a ser extirpada da cidade, mas antes como
uma parte da malha urbana que, como outra qualquer, deve ser consolidada e
beneficiada mediante o atendimento de infra-estrutura básica e da articulação com o
entorno da cidade.
Nesse sentido, pode-se perceber uma evolução das políticas públicas específicas
para áreas faveladas, que seguem tendências semelhantes em todo o País, já que
condicionadas, na maioria das vezes, pela orientação política nacional e pela
representação coletiva e imagem da favela construída e disseminada na sociedade,
como antes discutido.
No caso de Belo Horizonte, desde a criação da capital até os dias de hoje,
ocorreram mudanças significativas no modo como o Poder Público vem encarando
as favelas e as soluções para o problema habitacional.
A fim de possibilitar que se perceba a dimensão em que ocorreram as citadas
46
mudanças, far-se-á um panorama geral das políticas públicas em favelas desde a
criação de Belo Horizonte. 3
A partir da fundação da cidade, em 1897, até início da década de 1980, ou seja,
mais de oitenta anos depois, a política oficial para favelas era a do desfavelamento.
É claro que ao longo desse período houve modificações nas diversas políticas
implantadas, mas todas elas calcadas na mesma filosofia: a de que a cidade deveria
ser "limpa" e os "invasores" enviados para fora do perímetro urbano. Esse
pensamento não era exclusivo da capital mineira, como já relatado, apresentando
similaridades com os processos em desenvolvimento no Rio de Janeiro e o
tratamento dispensado pelo governo às favelas cariocas.
Desde a criação da capital até o Estado Novo, o favelamento e sua erradicação
eram vistos como problema policial. Os moradores das áreas faveladas mais antigas
da capital narram diversos episódios de confrontos com a polícia e o eterno medo de
serem desalojados com o uso da força, sem direitos ou destino certo, muitas vezes,
inclusive, em “batidas”-surpresa, durante a noite. Em conseqüência, não havia
também investimento, por parte dos moradores, em suas habitações, com medo do
prejuízo financeiro com as demolições, o que fez com que só tardiamente algumas
áreas se consolidassem.
Em 1955, foi criado o DBP – Departamento Municipal de Habitação e Bairros
Populares, cuja política era ainda o desfavelamento, mas com o oferecimento de
outra moradia à família removida. Nessa época, já se registrava a formação e
organização de entidades comunitárias para defesa dos interesses dos moradores
das favelas. Entretanto, da mesma forma que o ocorrido no caso carioca, as famílias
continuavam a ser “empurradas” para conjuntos habitacionais populares longe do
centro da cidade, com todos os impactos que isso significava nos sistemas de
parentesco, vizinhança e ajuda mútua, bem como na empregabilidade da população
removida.
Após o golpe militar de 1964, a repressão aos movimentos favelados emergentes foi
recrudescida, voltando o desfavelamento a ser encarado como problema de polícia.
3
Para uma visão completa da questão, até a década de 1980, ver AFONSO E AZEVEDO, 1987.
47
Nesse período, em Belo Horizonte, a prefeitura operava como engrenagem
auxiliar para os interesses nacionais. Se é certo que as condições gerais
requeridas pela industrialização eram asseguradas em muitos aspectos
(como a atualização da infra-estrutura do espaço, por exemplo) pelos
investimentos maciços, efetuados pelo Estado em nível federal e estadual, à
prefeitura cabia um papel complementar, que se explicitava, sobretudo, no
âmbito da dominação política: desmobilização das massas, extinção dos
partidos políticos e o tratamento das favelas como problema policial, esta
última, com clara ajuda do governo municipal. (OSTOS, 2004, p. 44).
A história do movimento popular nas favelas de Belo Horizonte é assunto vasto e
não será tratado neste trabalho. Entretanto, faz-se necessário citar alguns nomes,
por sua importância na organização e mobilização dos moradores, consolidação e
garantia da manutenção da posse da terra e conquista de melhorias para as favelas
da cidade.
Fundamentais nesse processo foram a União dos Trabalhadores da Periferia (UTP),
fundada por Chico Nascimento, além da Pastoral de Favelas, da Igreja Católica, por
meio de representantes como Padre Piggi, Padre Mauro e Padre Mário, cada qual
com sua contribuição e apoio aos moradores das favelas da capital.
A União dos Trabalhadores da Periferia objetivava congregar associações
de favelados e fornecer um plantão jurídico para buscar indenizações justas
para aqueles que fossem desalojados para realização de obras públicas.
Em 1981, estavam filiadas cerca de 40 associações comunitárias de
favelas. (SOMARRIBA, 1984, p. 51).
Na década de 1960, as organizações de moradores foram perseguidas e extintas
pelo Governo Militar, incluindo-se as que representavam os interesses das vilas e
favelas.
[Em Belo Horizonte], logo após a mudança de regime, em março/abril de
1964, a Federação de Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte é
colocada sob intervenção federal, que dura até agosto, quando se decreta
sua extinção por ter sido, após inquérito policial-militar, considerada
subversiva. Durante os meses de intervenção, fizeram ‘batidas’ nas sedes
das UDCs em busca de ‘material subversivo’. Vários líderes do movimento
de favelados foram intimados a depor no Departamento de Vigilância Social
(DVS) e alguns foram processados e cumpriram penas de reclusão.
(SOMARRIBA, 1984, p. 46).
Em dezembro de 1965, criou-se um órgão de assessoria ao DBP, os chamados
"Serviços Municipais para o Desfavelamento das Áreas Urbanas e Suburbanas".
"Este, nos três primeiros meses de existência, destruiu número muito maior de
48
barracões do que o DBP o fizera durante seus dez anos de funcionamento anterior."
(AFONSO e AZEVEDO in POMPEMAYER, 1987, p. 119).
No ano de 1971 foi criada a Coordenação de Habitação de Interesse Social de Belo
Horizonte (CHISBEL). Continuando na linha das políticas anteriores, a CHISBEL
substituiu a contrapartida utilizada pelo DBP (uma nova casa em troca da derrubada
dos barracos) pelo pagamento de indenizações em espécie, que, na maioria das vezes,
era insuficiente para a compra de outra moradia, a não ser em outra favela da capital.
A CHISBEL planejava o total desfavelamento de Belo Horizonte, através de
um convênio com o BNH e a Companhia Habitacional do Estado de Minas
Gerais (COHAB-MG), para construção de moradias. Elegia o
desfavelamento como a solução para os “problemas sociais” de Belo
Horizonte e acreditava na possibilidade de acabar com as favelas, conforme
intenção expressa em relatórios: “A CHISBEL estima poder, num plano a se
desenvolver até 1980, inicialmente estagnar e, a seguir, reduzir as favelas
existentes em Belo Horizonte”. Essa intenção não foi alcançada
concretamente, sua ação ficou restrita aos desfavelamentos para realização
de obras públicas programadas, agindo como sustentáculo dos órgãos
executores. Nos relatórios (discurso) e na prática, a partir da década de
oitenta, é visível a mudança de orientação da CHISBEL: “a enorme
migração e a diminuição do poder aquisitivo de um modo geral fizeram com
que a população favelada crescesse de uma forma assustadora”, o que
impõe uma mudança visando atingir um objetivo mais concreto –
“desfavelar somente para urbanizar”. O entendimento do termo “urbanizar”,
na redação realizada à época, é o da liberação da área para a execução da
obra programada, não estando relacionado à provisão de infra-estrutura
para a favela e, sim, à sua eliminação, para dar passagem às obras
públicas, constantes no “Plano de Obras” da administração municipal.
Portanto, “urbanizar” era o mesmo que “remover” favelas, “liberar” a área,
quando não “limpá-la”. (OSTOS, 2004, p. 47).
É a década de 1980 que vai trazer um novo panorama e uma nova visão em relação
ao tratamento dispensado às favelas da capital mineira.
Quais foram os fatores que possibilitaram o reconhecimento das favelas, no
discurso oficial do Estado? Os movimentos populares, muitos de base local,
foram se reorganizando e reivindicando sua participação no sistema político
que buscavam recriar, a partir da sensibilização quanto às condições de
vida das classes populares. Para isso, no caso de BH, contribuíram as
situações agravadas pelas enchentes de 1979 e 1982, com inúmeros
desabrigados e os protestos: quebra-quebras de ônibus em Venda Nova
(distrito de Belo Horizonte) e na região da Cidade Industrial (SOMARRIBA,
1984, p.50); a invasão da prefeitura em 1981, para que as favelas fossem
“reconhecidas no mapa”, ou seja, fossem reconhecidas como lugares nos
quais a atuação do Estado deveria se concretizar, no sentido da garantia
dos direitos de cidadania; reivindicações, solicitando ajuda, para
reconstrução de abrigos para as famílias removidas pela CHISBEL.
(OSTOS, 2004, p. 56).
49
Em 1981, o Governo do Estado, em parceria com a entidade alemã GTZ, implantou
o Programa de Desenvolvimento de Comunidades (PRODECOM), dentro da
Secretaria de Estado do Planejamento e Coordenação Geral (SEPLAN/MG).
Pioneiro em uma nova visão sobre as favelas, o Programa passou a atuar em Belo
Horizonte de maneira estrutural, no sentido de urbanizar favelas e bairros
periféricos, promover o acesso ao título de propriedade, dotar as comunidades de
equipamentos públicos e fortalecer a participação e os movimentos comunitários
locais. Para tanto, focou sua atuação nos principais aglomerados da cidade, e foi o
responsável pela instalação, em regime de mutirão, de grande parte da infraestrutura que ainda hoje existe nesses locais.
A novidade do PRODECOM foi, em primeira medida, não considerar o
desfavelamento e o afastamento das classes populares para áreas
distantes da cidade como solução, isto é, considerou a ocupação desses
espaços como uma conquista de seus moradores e como um direito a ser
garantido. (OSTOS, 2004, p. 61).
As áreas de atuação do Programa foram o Aglomerado Santa Lúcia e o Aglomerado
da Serra, na Regional Centro-Sul; a Vila Senhor dos Passos e a Pedreira Prado
Lopes, na Regional Noroeste; as vilas Vista Alegre, Ventosa e Cabana Pai Tomás e
o Aglomerado Morro das Pedras, na Regional Oeste; e a Vila Cemig, na Regional
Barreiro; entre outras áreas.
Se, para a CHISBEL, urbanizar foi remover famílias, para dar lugar à obra
programada, para o PRODECOM, urbanizar foi manter famílias, melhorar as
condições de infra-estrutura, enfim, conferir melhores condições materiais
ao “lugar” das classes populares urbanas. Esses programas atuavam no
mesmo período, com práticas diferenciadas, não existindo, em Belo
Horizonte, uma superação completa da prática de desfavelamento,
principalmente daquela prática que, além de desfavelar, não se
responsabilizava pelo destino de seus moradores. (OSTOS, 2004, p. 58).
Conviventes na mesma época, as duas políticas públicas divergiam em sua
essência, conceito e prática. Uma, praticada pela administração municipal, outra,
proposta pelo Governo do Estado, seu choque de concepções foi um marco para a
proposição de uma nova política consensual para o tratamento das áreas faveladas
da capital. “Em Belo Horizonte, a “era da urbanização” não excluiu a “era do
desfavelamento”, pelo contrário: foi no auge da atuação do PRODECOM (de 1979 a
50
1983) que houve mais desfavelamentos em Belo Horizonte.” (OSTOS, 2004, p. 59).
Apesar do grande avanço conquistado pela atuação do PRODECOM, em
comparação com as políticas anteriores, os críticos do Programa apontam algumas
falhas. Por um lado, a pequena capacidade do Programa em responder à questão
da propriedade da terra e, por outro, o efeito perverso gerado pela autonomia dada
às entidades comunitárias, que passaram a gerir recursos e, em muitos casos, de
forma irregular.
Com o apoio da Igreja e de amplas parcelas da população, o movimento de
favelados aprovou, por meio da Câmara Municipal, em 1983, a lei do PROFAVELA –
Programa Municipal de Regularização de Favelas. Essa lei reconhecia as favelas
instaladas no município até 1980 como áreas especiais de zoneamento, o chamado
Setor Especial 4 (SE-4), que deveriam: 1- ter legislação específica; 2- ser
urbanizadas respeitando a tipicidade da ocupação local e 3 - sofrer processos de
regularização fundiária, cabendo ao Estado transferir para os moradores a
propriedade da terra.
‘A favela não é um problema, mas uma solução’. Esse era o slogan da
União dos Trabalhadores da Periferia (UTP) de Belo Horizonte, que lutava
pelo reconhecimento do direito de permanecer nas favelas. Ao lado da UTP,
houve o trabalho da Igreja, com diversas pastorais apoiando as
organizações populares. O Padre Piggi, um dos grandes defensores do
direito do favelado à posse da terra, buscava o reconhecimento desse
direito e da capacidade das classes populares urbanas de resolver os
problemas relacionados à favela. Suas observações eram e continuam
sendo baseadas na capacidade de investimento das famílias nesses
espaços e de reconstrução de comunidades, principalmente quando não há
risco de expulsão, quando há garantia e estabilidade para a realização das
melhorias. Em suma, acreditava, e ainda acredita, reconhecia, e continua
reconhecendo, que as classes populares urbanas eram e continuam sendo
agentes de sua própria melhoria. (OSTOS, 2004, p. 78).
Apesar da criação da Secretaria Municipal de Ação Comunitária (SMAC), designada
para implantar essa lei, o PROFAVELA só foi regulamentado e entrou efetivamente
em funcionamento em 1986, com a criação da Companhia Urbanizadora de Belo
Horizonte (URBEL).
Até o fim da década de 1980 e início dos anos 90, a URBEL, como gestora do
PROFAVELA, atuava no sentido de regularizar os terrenos ocupados por favelas
51
que fossem de propriedade municipal. No entanto, tinha como política não intervir
nas áreas onde o problema das remoções era mais grave, ou seja, nos terrenos de
propriedade particular. Ao mesmo tempo, a falta de recursos fazia com que a
urbanização ficasse em segundo plano.
A atuação do órgão ficou restrita, no período, pelas limitações apontadas, mas de
fato a aprovação da Lei do PROFAVELA trouxe ganhos reais à questão das favelas
em Belo Horizonte.
A primeira conquista das classes populares urbanas foi o reconhecimento
dos lugares, considerados “ilegais”, como partes da cidade. [...] Contar
esses lugares incluiu sua figuração na base cartográfica do município, uma
legislação específica e mais permissiva, uma abertura do aparelho do
Estado ao diálogo acerca de seus problemas e potencialidades, para
desfazer concepções e, principalmente, para alterar o planejamento acerca
do futuro desses lugares. [...]
Como desdobramento dessa primeira conquista figura o reconhecimento do
direito de quem usa a propriedade e não de quem a explora. Portanto, os
beneficiados por programas sociais, melhorias físicas, emissão de título de
propriedade são as pessoas que moram nas áreas de interesse social,
mesmo que essas pessoas sejam locatárias. [...]
A segunda conquista é a garantia da tipicidade e das características dos
assentamentos, mediante um parcelamento específico do solo que institui a
figura do lote-padrão e do lote máximo. Essa conquista é frontalmente
contrária à lógica da especulação imobiliária, pois impede remembramentos
(união de lotes), dificultando sua compra para construção de edifícios, e cria
condições reais (pois, baseadas em características reais) para a
regularização fundiária. [...]
A terceira conquista é o direito de participar das decisões, incluindo a
elaboração do planejamento e a politização do padrão de financiamento
público. Isso abre a possibilidade de alteração da verticalidade do poder
autoritário, de alteração da distribuição dos recursos públicos no espaço e,
principalmente, do reconhecimento e conservação dos direitos, com
destaque para os descritos acima. (OSTOS, 2004, p. 71-2).
A partir do início da década de 1990, o órgão centrou fogo na urbanização de
favelas, diminuindo até praticamente extinguir-se sua atuação na legalização de
terras, uma vez que não restavam mais terrenos públicos para regularizar.
Com o início das administrações dos partidos de esquerda no município, a URBEL
adotou nova filosofia de ação em favelas. Essa filosofia é a de que os dois
processos (legalização e urbanização) não podem ser levados a cabo em separado.
Ao contrário, deve-se investir em uma atuação casada, denominada Intervenção
Estrutural, como única forma de garantir a permanência dos moradores de favela em
suas comunidades, consolidando-as e elevando as condições de habitabilidade
52
nesses locais.
Em 1994, foi criado um Sistema Municipal de Habitação, com duas linhas
de atuação: a primeira, a recuperação ambiental e a regularização fundiária
dos assentamentos existentes, isto é, favelas e conjuntos habitacionais; a
segunda, a produção de novos assentamentos, com a construção de novas
moradias. (OSTOS, 2004, p. 84).
Na esteira dessa filosofia, foram implantados dois programas, principalmente, que
consideram a necessidade das intervenções casadas ou estruturais. O primeiro
deles foi o Programa Alvorada, implantado a partir de 1993 em convênio entre a
PBH/URBEL e a Associação de Voluntários para o Serviço Internacional (AVSI),
entidade ligada ao Ministério Italiano. O segundo, que ainda encontra-se em
desenvolvimento, é a elaboração dos Planos Globais Específicos, que são
instrumentos de planejamento para cada uma das favelas em separado. Nesses
planos, construídos com participação da população, estão indicadas as principais
obras e ações sociais necessárias para cada comunidade, bem como a prioridade
de sua execução, custos e projetos de intervenção. De posse de seu Plano Global,
em geral as lideranças e moradores partem para a reivindicação da execução das
intervenções, em etapas, no Orçamento Participativo.
Todas as mudanças nas formas de ver e tratar as favelas e seus moradores,
ocorridas nas últimas décadas, não podem ser atribuídas a um único fator, mas
antes se inserem dentro de contextos multifacetados e dinâmicos, que necessitam
investigação histórica mais detalhada do que é possível fazer neste projeto.
No entanto, pode-se atribuir a evolução na atuação do Estado em favelas a três
fatores básicos: ao contexto político-social nacional, que, desde a criação da cidade,
passou por duas ditaduras e se encontra hoje em processo de consolidação
democrática; às orientações políticas específicas dos diversos governos que se
sucederam na direção da capital e do Estado de Minas Gerais; e às pressões dos
movimentos sociais ligados às áreas faveladas, com o apoio da Igreja Católica.
Por outro lado, vê-se que a postura do Poder Público municipal com relação às
favelas pode estar sendo novamente transformada, com a adoção constante de
práticas de remoção de famílias para realização de obras e intervenções viárias,
53
utilizando-se para tanto do Programa de Reassentamento de Famílias em
Decorrência de Obras Públicas ou Vítimas de Calamidades (PROAS), bem como na
filosofia dos novos Planos Globais Específicos, que acabam por trazer de volta o
fantasma da CHISBEL e do desfavelamento.
[...] persistem intervenções ‘removedoras de favelas’, para abrir espaço para
uma nova fase de reprodução da metrópole de Belo Horizonte:
prolongamento da avenida Pedro II, acesso à região Noroeste; avenida
Antônio Carlos, acesso à região da Pampulha e Norte; construção da nova
rodoviária no eixo leste-oeste. E persistem as propostas de “urbanização”,
algumas delas com ênfase em projetos viários, em detrimento dos projetos
de desenvolvimento social e de regularização fundiária. Nesses momentos,
ganha visibilidade uma concepção de que as casas, os casebres, bairros
inteiros, são “coisas” que continuam no caminho do progresso, do
desenvolvimento norteado, ou melhor, definido por ele. (OSTOS, 2004, p.
171).
Por enquanto, essa postura ainda é tímida4, mas reflexões técnicas levadas a cabo
dentro do Poder Público apontam para uma situação em que o desfavelamento pode
se impor gradativamente às comunidades como única opção possível, em especial
quando foram “restando” à ação do Estado apenas as áreas críticas, de risco ou
sem condições viáveis de consolidação. Como dito em um documento oficial da
URBEL:
[...] os mapas elaborados sobre a ocupação em áreas de risco, de serventia
e sob torres de alta tensão revelam problemas especialmente no que diz
respeito à declividade, devendo-se, no entanto, considerar que nesse último
caso o processo de ocupação, uma vez consolidado, pode mudar o quadro.
A se considerar apenas o parâmetro estabelecido em lei de uso e ocupação
do solo, seria recomendável a remoção da maior parte das ocupações, o
que não é o caso, devendo cada situação ser objeto de análise específica.
(PBH/CEURB, 1999, p. 119).
Nesse sentido, faz-se necessário refletir que, na prática, tanto no Brasil quanto em
escala mundial, as práticas remocionistas não foram totalmente eliminadas, em
nome de uma suposta tendência urbanizacionista das comunidades periféricas. O
que se vê é que ambas as posturas são conviventes no tempo e mesmo no espaço
e alternam-se, de acordo com os interesses em vigor.
De acordo com Davis, em todo o mundo há processos em andamento de remoção
4
Após a realização desse trabalho, foram realizadas grandes obras públicas na cidade, que
realizaram a remoção de vilas inteiras, como é o caso das vilas Suzana I e II e São Miguel/Vietnã,
removidas pela obra da Linha Verde, que liga o centro de Belo Horizonte ao Aeroporto de Confins.
54
dos “entraves humanos”.
A segregação urbana não é um status quo inalterável, mas sim uma guerra
social incessante, na qual o Estado intervém regularmente em nome do
‘progresso’, do ‘embelezamento’ e até da ‘justiça social para os pobres’,
para redesenhar as fronteiras espaciais em prol de proprietários de
terrenos, investidores estrangeiros, a elite com suas casas próprias e
trabalhadores de classe média. (DAVIS, 2006, p. 105).
Ao analisar áreas faveladas em todo o mundo, o autor ressalta que as práticas
remocionistas continuam acontecendo em escala global e ampliada.
A escala contemporânea de remoção populacional é imensa: todo ano,
centenas de milhares, por vezes milhões de pobres – tanto aqueles que têm
a posse legal quanto os invasores – são despejados à força de bairros do
Terceiro Mundo. Em conseqüência, os pobres urbanos são nômades,
‘moradores transitórios num estado perpétuo de realocação’ (como o
urbanista Tunde Agbola caracteriza o seu sofrimento em sua Lagos natal).
(DAVIS, 2006, p. p. 106).
A Prefeitura de Belo Horizonte também está implantando um novo programa,
denominado Vila Viva, que tem gerado muita discussão nas comunidades afetadas,
como é o caso da Serra e do Morro das Pedras, entre outras. Os principais
questionamentos referem-se ao fato de que o número de remoções propostas é
significativo e as mudanças introduzidas, ao visar os benefícios das obras viárias
para a cidade como um todo, correm o risco de prejudicar a dinâmica social de
algumas áreas.
4.2 Ocupação atual
Ao se analisar os dados disponíveis a respeito da ocupação e situação atual das
favelas da cidade, em seu perfil geral, percebeu-se que há discrepâncias nas
informações, de acordo com a fonte consultada.
Por um lado, cada órgão público ou entidade possui informações sobre seu campo
específico de atuação (saúde, educação, obras, etc.), mas não há um banco de
dados consolidado que centralize as informações disponíveis sobre cada uma das
favelas da cidade, de forma a permitir uma consulta acerca de seu perfil, carências e
55
atividades em desenvolvimento.
Por outro lado, os números mudam de acordo com a fonte secundária escolhida (ex:
IBGE e URBEL), em virtude de metodologias distintas de coleta e cálculo, bem como
pela adoção de diferentes delimitações territoriais para determinação dos universos
de pesquisa. Casar, por exemplo, os limites das Zonas de Especial Interesse Social
(ZEIS), decretadas e utilizadas como referência pela URBEL, com os dos Setores
Censitários do IBGE, é tarefa penosa e, em muitos casos, impossível.
Há ainda o problema da discordância das lideranças comunitárias, em alguns locais,
quanto aos dados oficiais apresentados tanto pelo IBGE quanto pela URBEL, que
consideram subdimensionados no que se refere ao número de habitantes e
superdimensionados quanto às taxas de cobertura de serviços públicos e infraestrutura.
Para efeito deste trabalho, optou-se por utilizar o Plano Estratégico de Diretrizes e
Intervenções para Zonas de Especial Interesse Social (Planão), desenvolvido pela
URBEL/PBH em parceria com o Centro de Estudos Urbanos (CEURB/UFMG) no
ano de 1999. Apesar da defasagem temporal, este material tem a vantagem de
permitir a comparação entre todas as vilas e favelas de Belo Horizonte, com dados
coletados mediante uma pesquisa amostral com metodologia única para toda a
cidade. Quando possível, outras fontes de informação serão apresentadas e
cotejadas.
4.2.1 Características gerais da ocupação
Em 2000, segundo o Censo Demográfico do IBGE, o município possuía 2.238.526
habitantes. A população residente em vilas, favelas e conjuntos habitacionais
populares construídos pelo Poder Público, por sua vez, era, em 2002, segundo
estimativas da URBEL, de 498.656 pessoas residentes em 121.132 domicílios, ou
seja, cerca de 22% dos habitantes da Capital Estadual residiam em áreas com esse
perfil.
56
A FIG. 1 traz a distribuição das áreas que a URBEL considera como parte de seu
público-alvo.
FIGURA 2 – Planta de situação das vilas e favelas de Belo Horizonte
Fonte: Secretaria Municipal de Habitação / URBEL. Universo de Trabalho 2002..
57
A TAB. 1, a seguir, mostra um resumo deste universo, no ano de 2002, distribuído
segundo as nove administrações regionais da cidade.
TABELA 1
Número de núcleos constantes do universo de trabalho oficial da URBEL, segundo
número de domicílios e população total residente, por Regional
Regional
Núcleos
Domicílios
População
Barreiro
32
13.099
56.566
Centro-Sul
18
19.495
72.116
Leste
27
22.088
89.152
Nordeste
32
10.380
43.668
Noroeste
26
11.873
50.218
Norte
19
13.129
56.810
Oeste
30
19.333
81.227
Pampulha
16
2.643
10.398
Venda Nova
26
9.092
38.501
Total Geral
226
121.132
498.656
Fonte: Secretaria Municipal de Habitação / URBEL, 2002.
Como se pode ver, as regionais com maior participação no total da população
residente em favelas são Leste e Oeste (18% e 16%, respectivamente), ao passo
que a Pampulha é a que apresenta menor número de moradores em áreas incluídas
no universo de trabalho da URBEL.
É importante destacar que há grande heterogeneidade entre as diversas áreas
constantes deste universo de trabalho. Há diferenças entre as regionais, entre as
vilas e mesmo dentro de uma mesma vila, com áreas com perfis específicos e
distintos entre si. Entretanto, para fins desta caracterização geral, buscar-se-á
mostrar as situações mais recorrentes encontradas.
Como já mencionado, em geral as vilas de Belo Horizonte são de ocupação antiga e
encontram-se em elevado estágio de consolidação. Os dados constantes do Planão
indicam que 18% das famílias entrevistadas sempre moraram em favelas, isto é,
nasceram nesses locais e continuam ocupando-os, ao passo que 43% residem em
58
favelas há mais de dez anos.
Os moradores das vilas, favelas e conjuntos habitacionais da cidade são, em sua
maioria, oriundos da própria capital ou Região Metropolitana, situação encontrada
entre 64% dos entrevistados. Esse número indica que a motivação inicial da
ocupação das favelas belo-horizontinas, com a vinda de migrantes de outras cidades
do interior do Estado e do restante do País, vem sendo gradativamente substituída
por um processo de migração interna à própria cidade e região lindeira.
Fruto do empobrecimento da população, esse movimento é motivado, muitas vezes,
pela incapacidade da família em pagar aluguéis, encontrando, então, condições de
moradia mais baratas, ao mesmo tempo em que busca se aproximar de seus locais
de trabalho – centro da cidade, zona sul –, reduzindo gastos com deslocamentos e
pagamento de transporte.
Ademais, vale mencionar que vem sendo registrado aumento absoluto da população
residente nas favelas da cidade nos últimos anos, não apenas pela ocupação de
novas áreas, já que são poucos os espaços livres ainda não ocupados, mas,
principalmente, pelo adensamento dos lotes e pela verticalização das edificações.
Esse processo se dá tanto pela subdivisão e venda de partes dos lotes quanto pela
construção de novas edificações ou pavimentos para receber as famílias de filhos e
outros parentes.
De acordo com o documento consultado, está havendo um processo de
“encortiçamento” das favelas da cidade. Como conclui o documento do Planão:
O contínuo processo de favelização hoje presente nas cidades coloca para
o Poder Público um triplo desafio: o de ser capaz de regularizar e urbanizar
as áreas já existentes e de integrá-las à malha urbana, o de controlar o
processo de ocupação e, ao mesmo tempo, desenvolver programas de
habitação popular capazes de atender a essa população, a fim de evitar que
o quadro da questão da moradia se agrave ainda mais. (PBH/CEURB,
1999, p. 121).
Quanto ao uso dos domicílios, predominam os residenciais unifamiliares – as casas
(cerca de 87%), a despeito do processo de adensamento mencionado. Os usos
mistos – residencial e comercial – representam apenas 8% dos imóveis, ainda que
59
tenha havido crescimento, nos últimos anos, dos pequenos negócios informais,
como alternativas ao desemprego ou complementação da renda familiar. De acordo
com os dados do Planão, do total de domicílios mistos encontrados, mais de 45%
eram bares.
No que se refere ao regime de ocupação dos domicílios, 82% são próprios, 10%
cedidos, 4% alugados e 4% estão em outras situações. Entre os que afirmaram ser
proprietários de suas residências, 80% não possuem escritura dos imóveis, o que
confirma que a questão da regularização fundiária continua sendo um fator definidor
da ocupação das favelas e uma necessidade ainda sem solução na cidade, mesmo
após os 20 anos da Lei do PROFAVELA.
4.2.2 Aspectos demográficos e indicadores sociais
Do ponto de vista da distribuição da população por gênero, seguindo o perfil
encontrado na população do município como um todo, pouco mais da metade dos
habitantes das vilas, favelas e conjuntos populares de Belo Horizonte são do sexo
feminino. Quando se analisa o sexo dos responsáveis pelos domicílios, entretanto,
essa situação se altera, já que 72% deles são homens.
Esse quadro também vem sendo alterado, já que estudos recentes apontam a
crescente elevação do percentual de domicílios chefiados e sustentados
exclusivamente por mulheres. Dados do IBGE para 2007 apontam que as mulheres,
na média nacional, são, em 33% dos domicílios, as pessoas de referência dos
arranjos familiares.
Em relação ao perfil etário, é significativo o percentual de pessoas nas faixas
inferiores. Segundo dados do Planão, as vilas e favelas contam com 32% de
crianças e adolescentes abaixo dos 14 anos, quando na Capital essa faixa abriga
24% da população. Do total da população residente nas comunidades sob foco,
quase 64% estão abaixo dos 30 anos, patamar esse que é de 53% na média belohorizontina. Essa distribuição etária aponta para a concentração da demanda por
serviços públicos em duas áreas fundamentais: primeiro, na educação de crianças e
60
adolescentes; e segundo, na oferta de programas de qualificação profissional e
empregabilidade.
Do ponto de vista dos indicadores educacionais, vê-se que a situação das vilas e
favelas também dista da apurada na média da cidade. Enquanto em Belo Horizonte
o analfabetismo entre pessoas com 5 anos ou mais gira em torno de 7%, o
levantamento da URBEL indica taxa de 8,3%, considerando apenas aqueles acima
de 7 anos, ou seja, tal número seria bem maior se incluídas as crianças de 5 e 6
anos, grande parte das quais não tinha ainda, em 2002, acesso à escola formal.
Acima de 60 anos a situação é ainda mais grave: a taxa de analfabetismo é de 14%
em Belo Horizonte e cerca de 40% nas favelas pesquisadas.
Ao se analisar o grau de instrução da população, vê-se que cerca de 47%
estudaram no máximo até a 4ª série do ensino fundamental; 35% cursaram entre a
4ª e a 8ª série do ensino fundamental; 9,5% cursaram o ensino médio, completo ou
incompleto; e apenas 0,5% alcançou o ensino superior.
Os dados do Planão indicam que cerca de 40% da população em idade escolar
residente nas vilas e favelas encontram-se fora da escola, sendo a situação mais
grave nas faixas etárias abaixo de 7 anos, onde 79% estão fora da creche ou não
têm acesso à educação infantil. É importante realçar que esse dado provavelmente
já foi alterado com as novas políticas educacionais implantadas nos últimos anos, de
inclusão das crianças nas escolas públicas a partir dos 6 anos.
Quanto à escolaridade dos responsáveis pelos domicílios, 16% são analfabetos;
53% estudaram no máximo até a 4ª série; 24% até a 8ª série do ensino fundamental;
e cerca de 4% apenas acessaram o ensino médio. Se por um lado a escolaridade
média dos chefes de domicílio é, em geral, inferior à apurada pelo conjunto da
população, por outro o percentual de chefes que alcançaram o ensino superior é
ligeiramente maior, da ordem de 1,8%.
Ligada à baixa escolarização de parte significativa da população também registra-se
a falta de qualificação profissional. De acordo com os dados do Planão, quase 27%
das pessoas que trabalham o fazem em profissões manuais não especializadas;
61
19% estão em profissões manuais especializadas em prestação de serviços e 16%
prestam serviços domésticos.
De fato, ao se fazer o cruzamento dos dados confirma-se que há uma correlação
positiva entre escolarização, qualificação e remuneração. Ao se analisar a renda
individual da população entrevistada, vê-se que 95% recebem menos de 5 salários
mínimos mensais, percentual este que fica na casa dos 81% quando se trata de
renda familiar. Essa diferença indica que a sobrevivência das famílias depende da
introdução de vários membros no mercado de trabalho, de forma a realizar a
complementação da renda do domicílio.
Vale destacar ainda que 14% dos chefes de domicílio não possuem nenhum
rendimento, vivendo das benesses de terceiros. Ademais, 1/3 deles encontravam-se
desempregados à época da pesquisa.
4.2.3 Infra-estrutura e serviços urbanos
As informações relativas às formas de ocupação do espaço nas favelas indicam,
como antes mencionado, que vem ocorrendo um processo de “encortiçamento”, de
adensamento das vilas, favelas e conjuntos populares em Belo Horizonte, com
conseqüências diretas nas condições de vida dessa população.
Se essas áreas já não eram suficientemente servidas pelos serviços urbanos
básicos, com a chegada de mais moradores e a sua disposição irregular no espaço
a situação se agrava e sua solução fica cada vez mais cara para o Poder Público.
Uma outra questão interessante apontada no Planão é o fato de que, muitas vezes,
as áreas que já foram objeto de programas de melhorias públicas apresentam, nos
dias atuais, situação pior que outras nunca beneficiadas. A explicação encontrada
refere-se justamente aos processos de adensamento e verticalização das
edificações, somados à ausência de manutenção das redes implantadas.
Do ponto de vista da cobertura dos serviços de saneamento básico, tem-se que 72%
62
dos domicílios nas favelas de Belo Horizonte contam com rede de esgoto oficial,
93% são abastecidos por intermédio da rede de água da COPASA e 80% têm
acesso aos serviços de coleta de lixo por parte da SCOMLU.
Em relação à energia elétrica, 92% dos domicílios são atendidos por meio de padrão
da CEMIG, ao passo que outros 6% usam a luz de “bico” ou “gato”.
Em resumo, vê-se que aos poucos as áreas vão sendo quase que totalmente
cobertas, quantitativamente falando, pelos serviços de água, esgoto e energia
elétrica. Do ponto de vista qualitativo, entretanto, é possível afirmar que os maiores
problemas ligados à temática da urbanização são a intermitência no abastecimento
de água, a falta de pavimentação das ruas, a falta de manutenção dos serviços
implantados, como já relatado, e a inexistência de equipamentos urbanos.
Nesse último aspecto, realça-se que 19% das áreas não possuem telefones
comunitários, 35% não têm posto de saúde, 81% não contam com posto policial e,
temática mais próxima do objeto dessa dissertação, 81% não dispõem de nenhum
tipo de equipamento de lazer e cultura. Entre as vilas que possuem algum tipo de
área de lazer implantada, destacam-se os campos de futebol, quadras esportivas e
raríssimas praças.
Finalizando a temática da qualidade de vida, viu-se que, apesar de toda a
heterogeneidade existente, as favelas de Belo Horizonte são formadas por casas
com tamanho médio de 50 m2, com 5 cômodos e 2,5 quartos. O padrão construtivo
varia de bom (52%) a regular (43%), sendo reduzido o número de edificações
consideradas precárias5.
5
Critérios utilizados para definição do padrão construtivo (Fonte: PBH/CEURB) – edificação precária
– paredes de adobe e/ou madeira, piso de terra batida e/ou madeira, cobertura de lona e/ou lata;
edificação regular – parede de alvenaria parcialmente revestida e/ou não revestida, piso de madeira
e/ou cimento, cobertura de zinco e/ou amianto; edificação boa – parede de alvenaria revestida e/ou
parcialmente revestida, piso de cimento e/ou cerâmica, cobertura de laje e/ou telha de cerâmica.
63
4.2.4 Organização social
Do ponto de vista da organização social, a pesquisa do Planão buscou ver o grau de
participação e de conhecimento, por parte dos moradores, das entidades
associativas e representativas existentes em cada uma das áreas.
Os resultados obtidos apontam para uma avaliação de que o associativismo nas
favelas de Belo Horizonte varia de médio a fraco. De acordo com os dados, 48% dos
entrevistados desconhecem a existência de associação de moradores na área
pesquisada. Entre os que conhecem, a metade afirma nunca ter participado de
nenhuma atividade da associação.
O próprio Orçamento Participativo, que envolve grande mobilização e campanha de
divulgação nos meios de comunicação da cidade, conta com apenas 7% de
participação nas vilas e favelas, enquanto 16% dos moradores afirmaram apenas
conhecer o programa.
A pesquisa apontou também que há, entre a população, profunda descrença quanto
ao Poder Público e à possibilidade de solução dos problemas. Ao serem
questionados a respeito de quem resolve os problemas da vila, 22% responderam
‘ninguém’, 20% mencionaram a Prefeitura de Belo Horizonte – PBH – e 16% citaram
as associações de moradores.
Apesar de tal descrença, 60% dos informantes consideram que tem havido
melhorias no local nos últimos anos, com destaque para ações de pavimentação das
vias (42% das citações), saneamento básico, transporte e urbanização em geral.
À época do levantamento dos dados em campo, as principais demandas das
comunidades eram, em ordem de importância: segurança, saneamento básico,
saúde e urbanização.
64
4.3 Produção artístico-cultural
Focando mais especificamente o objeto de estudo deste trabalho, e dada a
inexistência de informações de ordem cultural sobre as favelas nos órgãos públicos,
serão apresentados a seguir dados e informações levantados pelo Guia Cultural das
Vilas e Favelas de Belo Horizonte, relativos às manifestações artísticas existentes
em cada uma das favelas da capital.
Tendo realizado, no ano de 2002, pesquisa de campo em todas as favelas da
cidade, o Guia cadastrou 739 grupos artísticos em atividade, considerando as
diversas áreas culturais. Esses grupos envolvem quase 7 mil pessoas em sua
produção, incluindo artistas profissionais e jovens em processo de formação (ver
Tab. 2).
TABELA 2
Número de grupos culturais cadastrados e de pessoas envolvidas e média de
pessoas por grupo, por vila e grupos por vila, segundo Regional
Regional
Núcleos
Grupos
culturais
Pessoas
envolvidas
Média de
pessoas por
grupo
Média de
pessoas por
vila
Média de
grupos por
vila
Barreiro
32
132
769
5,8
24,0
4,1
Centro-Sul
18
116
1.587
13,7
88,2
6,4
Leste
27
90
1.128
12,5
41,8
3,3
Nordeste
32
89
1.069
12,0
33,4
2,8
Noroeste
26
86
528
6,1
20,3
3,3
Norte
19
61
432
7,1
22,7
3,2
Oeste
30
98
982
10,0
32,7
3,3
Pampulha
16
20
139
7,0
8,7
1,3
Venda Nova
26
47
277
5,9
10,7
1,8
226
739
6.911
9,4
30,6
3,3
Total geral
Fonte: LIBÂNIO, 2004.
65
Como se vê, o maior número de grupos culturais foi encontrado no Barreiro, seguido
das regionais Centro-Sul e Oeste, ao passo que o maior número de pessoas
envolvidas registrou-se na regional Centro-Sul, onde os grupos têm, em média, 14
membros (número este de menos de 6 pessoas por grupo no Barreiro e em Venda
Nova). Destaca-se que metade dos 739 cadastrados são pessoas que trabalham
sozinhas, de maneira não só individual, mas também isolada.
É importante realçar que esses números já se encontram defasados, visto, por um
lado, a grande dinâmica dessas áreas, com nascimento e morte de grupos em
tempo recorde, e, por outro, a própria impossibilidade de identificar todos os artistas
residentes nas favelas, já que muitos deles produzem isoladamente em sua própria
residência, sem visibilidade, divulgação ou contato com outros artistas locais6.
De qualquer maneira, tais números são um norte, um indicativo útil do que de fato
pode ser ainda encontrado nas favelas da cidade, do potencial que são essas áreas,
sem pretensões de esgotá-las em toda sua multiplicidade e dinâmica.
Se, nas palavras de Gabriel Tarde, as pessoas tendem a supor homogêneo tudo
aquilo que desconhecem, a primeira boa surpresa que se tem ao se debruçar sobre
o Guia é que a diversidade é a grande marca da produção cultural das vilas e
favelas. Há representantes e artistas nas favelas em todas as áreas culturais, em
diversos estilos, cada qual com sua especificidade.
A TAB. 3, a seguir, traz a distribuição dos grupos por área cultural, segundo
Regional.
6
Para se ter uma idéia do tamanho desse universo, o Projeto Banco da Memória, realizado pela ONG
Favela é Isso Aí, atualizou os dados do Guia Cultural em 18 comunidades, no ano de 2006. Os
resultados encontrados indicam a presença, naquele ano, de 776 grupos culturais nas 18
comunidades, envolvendo 4.220 artistas. Esses números são impressionantes, considerando que, em
2004, o Guia Cultural das Vilas e Favelas havia cadastrado cerca de 7.000 artistas nas 226 favelas
de Belo Horizonte, ou seja, menos de duas vezes mais do que cadastrou em apenas 18 vilas e
favelas. Tais diferenças numéricas têm como explicação dois fatores distintos: por um lado, a própria
dinâmica da produção cultural nas comunidades, que de fato é crescente e vem adquirindo
visibilidade e reconhecimento. Por outro, houve mudança na metodologia de pesquisa de campo,
com envolvimento de jovens moradores das próprias comunidades pesquisadas no processo de
coleta de dados, o que modificou sobremaneira a inserção do projeto nesses locais e ampliou a sua
abrangência.
66
TABELA 3
Grupos culturais cadastrados, segundo área cultural, por Regional (%)
Regional
Barreiro
Área Cultural
Artes
Artes
Folclore e
Artesanato Dança
Literatura Música Teatro Outras
Plásticas Visuais
religiosidade
16,8
2,3
29,8
7,6
1,5
5,3
32,8
3,8
-
9,3
-
16,0
18,7
2,7
-
46,7
6,7
-
Leste
19,1
1,1
13,5
18,0
1,1
4,5
37,1
2,5
3,4
Nordeste
16,5
1,0
26,8
13,4
-
2,1
32,0
6,2
2,1
Noroeste
6,0
-
18,1
15,7
2,4
1,2
50,6
7,2
-
Norte
16,9
-
23,7
10,2
1,7
3,4
35,6
5,1
3,4
Oeste
7,1
2,0
25,5
10,2
4,1
1,0
45,9
4,1
-
Pampulha
10,5
-
26,3
5,3
-
-
42,1
5,3
10,5
Venda Nova
10,6
-
38,3
12,8
-
-
36,2
2,1
-
Total Geral
13,0
1,0
23,8
12,6
1,7
2,4
39,4
4,7
1,3
Centro-Sul
Fonte: LIBÂNIO, 2004.
A área de música foi a que apresentou maior incidência de registros na pesquisa,
com 39% do total de grupos cadastrados. Essa prevalência da música, por um lado,
relaciona-se ao fato de que é mais fácil encontrar os músicos nas comunidades, pois
esses têm maior visibilidade e reconhecimento junto aos vizinhos. Entretanto,
também é um indicador de um maior desenvolvimento dessa área cultural nas vilas
e favelas, em detrimento de outras.
O pessoal do funk e do rap; pagodeiros e forrozeiros e evangélicos em geral são os
que mais se destacam numericamente nessas áreas e que conformam as principais
correntes e expressões musicais atuais nas vilas da capital. Além deles, encontramse também diversos músicos de axé, MPB, rock e pop rock, death metal, rap core,
samba, música sertaneja, música clássica e instrumental, música sacra, reggae,
blues, rap romântico/charme, funk melody, chorinho, música caipira, moda de viola,
música romântica, new age, etc., etc., etc., além de outras classificações
inclassificáveis, com combinações rítmicas para todos os gostos.
Depois da música aparece o artesanato, correspondente a 24% dos grupos ou
artistas-solo das favelas, os quais têm dois perfis distintos. De um lado, os mais
velhos: senhoras, donas de casa, que há décadas fazem trabalhos manuais,
67
bordados, tricô e outros do gênero; senhores que fazem da madeira, do couro e do
gesso sua matéria de trabalho. De outro lado, a nova geração: adolescentes que
buscam uma fonte de renda na produção de bijuterias, embalagens, tapeçaria,
produtos com materiais reciclados. Apesar da diversidade também ser a marca
dessa área cultural, com registro de técnicas, materiais e suportes diversos, foi
possível perceber sutil supremacia numérica dos artesãos que fazem bijuterias,
bordados e artefatos de madeira.
Dança e artes plásticas, que em outras épocas eram consideradas artes de elite,
comparecem em terceiro lugar relativo nas vilas e favelas, cada uma com 13% dos
artistas cadastrados. Na dança, os grupos mais representativos são aqueles ligados
à capoeira e à street dance. Já nas artes plásticas, o desenho e o grafite são as
grandes vedetes. Essa última modalidade vem sendo incentivada pelo Projeto
Guernica7, da Prefeitura, que foi citado por vários dos entrevistados nas vilas e
favelas da cidade.
Teatro, literatura, folclore e religiosidade e artes visuais foram, em ordem
decrescente, as áreas com menor número de grupos e artistas-solo encontrados na
pesquisa, ainda que também tenham seus representantes legítimos. Na área de
teatro predominam os grupos ligados a instituições religiosas, católicas ou
evangélicas.
Na literatura, área que sofre com a dificuldade de se localizar os artistas, que em
geral produzem sozinhos e não têm como publicar ou divulgar seu trabalho, há
maior representatividade da poesia. Entre os sete representantes encontrados na
área das artes visuais predominam os fotógrafos, com menor expressão da
produção de vídeo.
A única área cultural que parece vir perdendo participantes nos últimos anos é
aquela agrupada sob o título de folclore e religiosidade, que tem como principal
manifestação o congado. As entrevistas com os grupos encontrados mostraram que
7
O projeto Guernica foi criado no ano de 1999, na gestão do então prefeito Célio de Castro, e buscou
se constituir em espaço de estudo e pesquisa sobre a pichação urbana, a questão do patrimônio, do
urbanismo e da história, direcionando e oferecendo oficinas de técnicas artísticas do grafite.
68
eles têm sofrido reduções sucessivas no número de integrantes, com a morte de
pessoas das gerações mais velhas e pouco interesse dos jovens em manter a
tradição das guardas.
Ao se tomar as especificidades de cada regional, é possível perceber que os grupos
ou artistas ligados às artes plásticas são mais expressivos na regional Leste,
enquanto aqueles ligados à dança se sobressaem nas regionais Centro-Sul e Leste.
A regional Noroeste tem a maioria dos grupos ligada à música; e a Oeste foi a região
onde se encontrou maior número de grupos da área de folclore e religiosidade em
atuação.
Em relação ao tempo em que desenvolvem a atividade (ver TAB. 4), são maioria nas
vilas e favelas da Capital os grupos com no máximo 5 anos de existência, inclusive,
com ocorrência significativa de artistas que estão desenvolvendo seus trabalhos há
menos de 1 ano. As regionais Barreiro e Norte são as que têm maior incidência de
grupos com mais de 11 anos de existência.
TABELA 4
Grupos culturais cadastrados, segundo tempo na atividade, por Regional
Regional
até 1 ano
2a5
anos
Tempo na atividade
6 a 10 11 a 20 21 a 30
anos
anos
anos
31 a 40
anos
41 anos
ou mais
Barreiro
14,5
39,7
18,3
21,4
3,0
0,8
2,3
Centro-Sul
16,0
64,0
14,7
2,7
1,3 -
Leste
13,5
39,3
21,3
15,7
9,0
Nordeste
13,4
43,3
25,8
14,4
3,1 -
Noroeste
19,3
44,6
21,7
6,0
3,6
2,4
2,4
Norte
25,4
35,6
8,5
20,3
3,4
1,7
5,1
Oeste
18,4
40,8
18,4
14,3
6,1
2,0 -
Pampulha
42,1
31,6
15,8
5,3
5,3 -
Venda Nova
19,1
46,8
8,5
17,0
6,4
2,1 -
Total Geral
17,5
43,4
18,2
14,0
4,4
1,1
1,3
1,1 -
-
1,3
Fonte: LIBÂNIO, 2004.
De acordo com as colocações do Guia Cultural, o fato de não gerar renda, na
69
maioria dos casos, faz com que a atividade artística fique muitas vezes em segundo
plano pelos moradores das favelas, e que seja rapidamente abandonada nos casos
de necessidade, o que explica a alta rotatividade dos grupos culturais nesses locais.
De fato, a dificuldade em se obter rendimentos com a atividade artística é uma
característica generalizada nesses locais: em todas as áreas pesquisadas, a média
é de apenas 20% de artistas e grupos que sobrevivem de arte e cultura, em especial
aqueles ligados ao artesanato, que de fato têm um produto mais “palpável” para
vender no mercado, seguidos dos músicos de pagode e forró, estilos que já têm na
cidade um circuito de bares e casas de show voltado para diversos segmentos
sociais, com tradição de acolher esses grupos.
A grande maioria dos grupos encontrados continua dependendo de seus trabalhos
“oficiais” para manter a atividade artística, quase como um luxo. Nas vilas e favelas
da cidade se encontram fazendo arte pessoas com as mais diversas ocupações:
pedreiros, office-boys, faxineiras, porteiros, motoristas, vigias, donas de casa,
estudantes, domésticas, etc. É claro que há também aqueles que persistem e se
dedicam integralmente à arte, mesmo que isso signifique passar provações e
dificuldades de toda ordem.
As regionais Pampulha, Venda Nova, Nordeste e Norte são as que apresentam
maior incidência de artistas que vivem da atividade, ao passo que Leste, Centro-Sul
e Barreiro são os locais onde há menor percentual de pessoas vivendo
exclusivamente de arte nas vilas e favelas.
É importante realçar que o principal local utilizado pelos grupos e artistas
cadastrados para desenvolver os trabalhos é sua própria casa, local onde ensaiam,
pintam, serram, criam e tentam vender sua produção.
Após desenvolvidos, há casos em que os trabalhos são mostrados em locais
públicos, em geral em eventos filantrópicos, como colégios, igrejas, centros culturais,
associação de moradores, bares, casas de shows, praças públicas e ruas, além do
70
projeto Arena da Cultura8, que já deu oportunidade a diversos grupos entrevistados
para a capacitação e realização de apresentações. Entretanto, ainda são poucos os
artistas pesquisados nas vilas e favelas de Belo Horizonte que de fato estão
inseridos no mercado de arte e cultura da capital.
Em busca de patrocinadores, as principais demandas dos artistas cadastrados pelo
Guia Cultural referem-se a locais para mostrar seu trabalho, transporte para realizar
apresentações fora das vilas, compra de matéria-prima, uniformes, instrumentos e
equipamentos para o Grupo, cursos de aperfeiçoamento, divulgação e outras do
tipo.
Há também diversos grupos que já têm CD gravado, mas não sabem como divulgálo, onde vendê-lo ou a quem recorrer. Também nessa situação estão os artesãos,
que não têm onde mostrar seu trabalho e comercializá-lo.
Por fim, a pesquisa do Guia Cultural realçou que os artistas das favelas colocam
como fundamental a valorização do trabalho pelo público em geral e a quebra do
preconceito, ainda vigente entre partes da população, que vê artistas como
desocupados, grafiteiros como pichadores e marginais, moradores de vilas e favelas
como bandidos, artistas de rua como pedintes.
No próximo capítulo, será mostrado o caso de um grupo artístico em particular: o
Grupo do Beco, formado por moradores do Aglomerado Santa Lúcia, que tem como
foco o teatro como instrumento de transformação social.
O Grupo foi escolhido como estudo de caso para esta dissertação justamente pelo
fato de ser emblemático dos processos e relatos encontrados durante a pesquisa do
Guia Cultural, em que a arte ultrapassa sua função de fruição e também sua função
econômica e assume novos significados e papéis para os artistas das comunidades
faveladas.
8
O Arena da Cultura é um projeto realizado desde 1998 pela Secretaria (atual Fundação) Municipal
de Cultura de Belo Horizonte, em parceria com as nove regionais da cidade. Suas ações concentramse nas áreas de formação, capacitação e difusão cultural, com foco em jovens, adolescentes e
adultos.
71
5 BENDITA A VOZ ENTRE AS MULHERES – O CASO DO GRUPO DO BECO
5.1 O território
O Grupo do Beco, do qual se falará mais detidamente a seguir, é formado por jovens
moradores do Aglomerado Santa Lúcia. Atualmente, o Aglomerado é formado por
quatro vilas: Santa Rita de Cássia (mais conhecida como Morro do Papagaio),
Estrela, Santa Lúcia e Vila Esperança (ou Bicão).
Considerando a importância do território na formação da identidade e da própria
produção artística do Grupo, optou-se por trazer algumas informações sobre o
Aglomerado e sua ocupação atual.
5.1.1 Características gerais da ocupação
Localizado na Regional Centro-Sul, o Aglomerado tem como vizinhos bairros de alto
padrão construtivo e poder aquisitivo médio-alto, notadamente Santo Antônio, São
Pedro, Sion, São Bento e Belvedere (ver FIG. 5, com as Unidades de Planejamento
de Belo Horizonte), cujas principais vias de acesso são as avenidas Prudente de
Morais e Nossa Senhora do Carmo.
Ao contrário do Aglomerado, que em 1994 era considerado a Unidade de
Planejamento (UPM) com pior qualidade de vida entre as 81 da cidade
(SECRETARIA MUNICIPAL DE PLANEJAMENTO / PBH, 1994), os bairros do
entorno são dotados de toda a infra-estrutura sanitária e viária, bem como atendidos
pelos serviços urbanos e sociais básicos. Contam também com comércio bem
desenvolvido, com grande variedade de estabelecimentos.
Além da questão da oferta de mão-de-obra para os bairros de maior poder
aquisitivo, as relações do Aglomerado com o entorno próximo se dão mediante a
utilização, pela população da favela, de serviços públicos instalados nos bairros
vizinhos, entre eles escolas e unidades de saúde. Paralelamente, a utilização dos
72
serviços privados fica comprometida pelo baixo poder aquisitivo da população da
Barragem, que acaba, então, por não ter acesso às ofertas disponíveis em seu
entorno.
Venda Nova
Se rra
Verde
Mantiqu eira/Se sc
Piratining a
Céu Azu l
Venda
Nova
Norte
Ja queli ne
Jardim
Europa
Isidoro Norte
S.Joã o
Batista
Copa ca bana
Furqui m
Wernek
Plana lto
Sa nta Amélia
Garças /
Braú nas
São
Bernardo
Ja rd im
Feli ci dade
Nordeste
Primeiro
de Maio
Pampulha
Bel mo nte
Jaragu á
Pampul ha
Co nfi sco
Capi tão
Ed uardo
Ri beiro
de Abreu
Tupi /
Fl oramar
Gorduras
Sã o Francisco
São Paul o / Goi ânia
Sarandi
UFMG
Castelo
Ouro
Preto
Cachoei rinha
Caiçara
Abílio
Machado
Noroeste
Antônio
Carlos
Mariano
de Ab re u
Bo a
Vista
Insti tuto
Agronômi co
Prado
Lopes
Jardim
Montanhês
Sta. Inês
Cristi ano
Machado
Concórdia
Pompéia
Glóri a
Barro
Preto
Camargos
PUC
Oeste
Bairro
das
Indústri as
Sta.Efig ênia
Baleia
Savassi
Santo
Antônio
Morro das
Pedras
C abana
Anchieta/
Sion
Barragem
S.Bento
Sta.Lúcia
Betânia
Leste
Centro
Prudente Fran ci sco
d e Morais
Sal es
Barroca
Ja rd im
América
Santa
Maria
Taquaril
Flo re sta /
Sta.Tereza
Padre Eu stáqui o
Bel vedere
Se rra
Cafezal
Mang abeiras
Centro-Sul
Estoril / Buritis
Lindéi a
Barrei ro
de Baixo
Pi lar Oeste
Barrei ro
de Cima
Cardoso
Olhos
D'Água
Jato bá
Barreiro
Barrei ro -Sul
FIGURA 2 - Unidades de Planejamento de Belo Horizonte, segundo Região
Administrativa
Fonte: PBH / SMPL, 1994.
Os desníveis entre o Aglomerado e seu entorno continuam quando se analisam os
rendimentos da população. Em 1994, o estudo do Índice de Qualidade de Vida
Urbana (IQVU) mostrava que a renda média da Barragem era cerca de 20 vezes
menor do que a registrada nos bairros vizinhos.
73
A UPM Barragem também apresentava a pior situação de infra-estrutura da região,
considerando indicadores diversos, como cobertura das redes de esgoto,
pavimentação e telefonia, padrão de acabamento das residências e densidade
habitacional. O lazer também é restrito à população, que, ainda hoje, só tem o
Parque Ecológico da Barragem à disposição, local este que praticamente não
atende os moradores das vilas Estrela e Santa Rita, dadas as distâncias e
dificuldade de acesso ao local.
Do ponto de vista da formação histórica da área, dados recolhidos em cartórios e
registros oficiais indicam que toda a região do Aglomerado pertencia à Colônia
Afonso Pena e seu processo de ocupação espontânea teria se iniciado a partir dos
anos de 1920 pela região da Vila Estrela. Segundo moradores mais antigos do local,
a área recebeu o nome de Estrela devido à presença, àquela época, de uma única
moradia ali instalada, cuja luz da lamparina reluzia no alto e, quando vista ao longe,
parecia uma estrela.
Se, por um lado, as vilas Santa Rita e Estrela são as de ocupação mais antiga,
ambas formadas por populações oriundas do interior do Estado e mesmo de outros
bairros da Capital, por outro a área de ocupação mais recente é a Vila Esperança
(Bicão), cujos moradores mais antigos encontram-se no local há, no máximo, 20
anos. Entretanto, seu processo de adensamento ainda está em curso, encontrandose registros de pessoas que continuam se mudando para a área. Possui o pior
acesso do Aglomerado, ocupando uma encosta considerada de risco geológico e
sem infra-estrutura, além de não estar incluída na atual Zona de Especial Interesse
Social (ZEIS), que garante diretrizes especiais para as regiões ocupadas por
favelas.
Quanto à vila Santa Lúcia, seu histórico relaciona-se à construção da Barragem, em
1957, que tinha como objetivo represar as águas do Córrego do Leitão, que
inundavam toda a região próxima à Cidade Jardim na época das chuvas. De acordo
com dados da URBEL, a região da vila Santa Lúcia pertencia a um único dono que
repassou os terrenos ao Estado como forma de pagamento de suas dívidas, no
início dos anos de 1970.
74
Conforme constante no documento consultado, a comunidade do Aglomerado
compreendia área maior do que a atualmente existente. Aos poucos, parte da área
foi sendo urbanizada, cedendo lugar à construção de partes dos bairros São Bento e
São Pedro.
Nessa época, foram retiradas famílias da região conhecida por “ninho de rato” ou
“caminho de rato”, sendo o parcelamento realizado pela empresa "Pampulha", que,
segundo moradores da Vila, não indenizou as famílias, que acabaram por se
mudarem para a barragem Santa Lúcia, engrossando a ocupação que já existia.
Apenas por volta de 1974 se iniciou o processo de urbanização do Aglomerado,
quando o então prefeito Jorge Carone pavimentou a rua Principal, implantou energia
elétrica e pontos de água em alguns becos. Foram também construídos chafarizes,
permitindo que a comunidade buscasse água em local mais próximo da moradia.
Entretanto, as maiores conquistas para a comunidade se deram no final dos anos de
1970 e início da década de 1980, mediante intervenção do PRODECOM – Programa
de Desenvolvimento de Comunidades, já mencionado no Capítulo 4. Esse programa
não só contribuiu para a instalação de redes de infra-estrutura e saneamento básico
em todo o Aglomerado, como implantou escolas, creches, postos de saúde e
equipamentos sociais diversos na favela.
A partir da década de 1990, a comunidade tem se mobilizado para participação nos
Orçamentos Participativos, conquistando obras pontuais de urbanização, tais como
abertura, alargamento e pavimentação de becos diversos, além da elaboração de
seu Plano Global Específico.
De acordo com a avaliação constante no documento do Plano Global, desde
meados dos anos de 1990 o Aglomerado vinha sofrendo com a escalada da
violência, especialmente relacionada ao tráfico de drogas, com focos variáveis ao
longo do tempo.
Por outro lado, moradores e lideranças locais avaliam que o aumento da violência
coincidiu com a instalação do 22º Batalhão da Polícia Militar no limite da área, há
75
cerca de 15 anos, inclusive com aumento do armamento das facções rivais da
chamada “guerra” no Aglomerado.
Há na comunidade várias entidades que desenvolvem ações visando ao combate à
violência, com especial destaque para a Paróquia Nossa Senhora do Morro, tema
que será tratado mais adiante neste trabalho. De acordo com os entrevistados para
composição deste estudo, nos últimos anos houve arrefecimento das disputas
internas, com redução dos processos de violência, ainda que continue havendo
momentos e épocas de maior tensão na área.
5.1.2 Aspectos demográficos
Do ponto de vista do perfil demográfico, de acordo com dados da URBEL9, havia no
Aglomerado, no ano 2000, 4.639 domicílios, totalizando em torno de 18 mil
habitantes na área. Esses números são questionados pelas lideranças locais, que
estimam a presença de 35 mil moradores na comunidade.
A dinâmica migratória no Aglomerado é grande, uma vez que é pequeno o
percentual de famílias que residem no local há mais de 20 anos. A mobilidade das
famílias se dá tanto dentro da própria vila quanto para outros bairros e vilas da
Capital. A questão da violência é apontada como um dos fatores que contribuem
nesse sentido, e é também considerada responsável pela presença de quase 8% de
domicílios vagos na comunidade (dados de 2000).
A taxa de ocupação dos domicílios para fins residenciais é de 85%, enquanto as
unidades comerciais são mais concentradas nas ruas São Tomás de Aquino (Santa
Rita) e rua Principal, que atravessa todo o Aglomerado. Os estabelecimentos mais
comuns são bares e mercearias.
Quanto ao regime de ocupação das residências, 86% eram próprias no ano 2000,
9
A título de esclarecimento, para obtenção destes números a equipe que elaborou o Plano Global do
Aglomerado realizou uma contagem de domicílios em todas as ruas e becos da comunidade, quadra
a quadra, de forma a identificar a quantidade de famílias e população residente no local.
76
mas os moradores não possuem escritura de seus terrenos.
O perfil demográfico do Aglomerado, no que se refere ao sexo e à idade da
população, tem pequena diferença ao padrão do município, com ligeiro predomínio
do gênero masculino e população mais jovem, ainda que também em processo de
envelhecimento.
Quanto ao analfabetismo, segundo dados do IBGE, era de 15% no Aglomerado
relativos aos maiores de 5 anos de idade, acima, portanto, da média belohorizontina. Os dados constantes do Plano Global indicam que, no ano 2000, 27%
dos chefes de família da comunidade eram analfabetos, percentual este de 21%
entre seus cônjuges.
Uma das conseqüências do baixo grau de instrução dos responsáveis pelos
domicílios é a restrição de suas possibilidades de inserção no mercado de trabalho,
limitada àquelas profissões que exigem menor qualificação e permitem menores
rendimentos. Por um lado, é grande no Aglomerado a presença de empregadas
domésticas, faxineiras, pedreiros e serventes e, por outro, o desemprego atinge
quase 25% dos chefes de domicílio, percentual este que era de 7% na média de
Belo Horizonte, segundo dados da Fundação João Pinheiro para 1998. Dados já
atualizados para o ano de 2008 mostram que esse índice é de 9,6% na Região
Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH).
Também os rendimentos apurados são menores do que os registrados na média da
Capital. A renda familiar no Aglomerado é inferior a três salários mínimos mensais
(situação presente em 54% dos domicílios) e a renda per capita média é inferior a
meio salário mínimo por pessoa/mês
5.1.3 Qualidade de vida e infra-estrutura
Do ponto de vista das condições de vida e habitabilidade, o Aglomerado apresenta
situação desigual entre as diversas regiões que o compõem. Em geral, os domicílios
da comunidade apresentam padrão variável de regular a bom, mas vê-se na Vila
Esperança/ Bicão a presença de edificações com padrão construtivo precário e em
77
área de risco.
Os dados da URBEL apontam casas com tamanho médio de 49 m2 e média de 4,7
cômodos, com paredes de alvenaria em 87% dos casos. O amianto é o material
utilizado como cobertura em quase 60% das residências, ao passo que a presença
de pintura externa às edificações é pequena, predominando as casas rebocadas ou
chapiscadas.
A carência de áreas verdes também é uma constatação na área, visto que a maioria
dos domicílios não tem espaço suficiente para o plantio.
Como antes mencionado, a infra-estrutura instalada na favela apresenta menor
cobertura do que a dos bairros vizinhos, de classe média e média-alta. Entretanto,
ao se analisar a questão internamente vê-se que houve evolução nesses
indicadores entre 1991 e 2000, com aumento das taxas de saneamento básico em
todo o Aglomerado.
No ano 2000, os domicílios ligados à rede de esgoto eram 83% do total; 89% eram
servidos através de rede de água da COPASA; 82% tinham seu lixo coletado e
quase 100% dos domicílios eram ligados à rede elétrica (ainda que 14% deles
através de redes clandestinas, os chamados bicos ou gatos).
Ainda que tenha havido melhorias nos últimos anos, as principais causa mortis entre
os menores de um ano no Aglomerado ainda eram, no ano 2000, as infecções
perinatais; doenças respiratórias, infecciosas e parasitárias, estas últimas de
veiculação hídrica, ligadas a precárias condições de higiene e falta de saneamento
básico. Entre os adultos, predominam mortes por doenças cardiovasculares e
respiratórias, além das mortes violentas.
As principais reivindicações da comunidade nesse mesmo ano eram, por ordem de
ocorrência: combate à violência e aumento do policiamento (63%), melhoria do
saneamento básico (42%), implantação de posto médico e melhoria do serviço de
saúde (28%).
78
Em resumo, o Aglomerado encontra-se em elevado estágio de consolidação,
considerando a infra-estrutura instalada, os equipamentos existentes e atendimento
dos serviços públicos, parte dos quais implantados na década de 1980 por
intermédio da atuação do PRODECOM.
Apesar da ampliação do atendimento de infra-estrutura e da melhoria das condições
de habitabilidade no Aglomerado, nos últimos anos, o documento da URBEL
apontou que a qualidade de vida da população não teve ascensão proporcional, em
virtude, por um lado, da escalada da violência, que amedronta os moradores,
interfere em seu cotidiano e os expõe a riscos diários, e, por outro, o aumento do
desemprego, comprometendo o consumo e a manutenção da família.
Quando se analisam os dados do IQVU para 1994, percebe-se que a Unidade
Barragem é considerada a pior área de Belo Horizonte em termos de qualidade de
vida – não pelos aspectos infra-estruturais, mas, ao contrário, pelo baixo
desempenho dos aspectos sociais, com destaque para as variáveis renda,
segurança, cultura, esporte e lazer, principalmente.
É importante reforçar, como já relatado, que os entrevistados consideram que, nos
últimos anos, esse panorama vem sendo alterado, com redução da violência e
melhoria da qualidade de vida da população.
5.1.5 Organização social e participação
No que se refere à organização social, de acordo com dados retirados do Plano
Global, datado do ano 2000, há uma série de entidades em atuação no Aglomerado,
em diversas áreas e com objetivos distintos. Ainda que essa situação certamente
tenha sido alterada nos últimos anos, vale tecer um breve comentário a respeito do
tema, de forma a mostrar um perfil do associativismo na área.
Em primeiro lugar, realça-se que todas as vilas do Aglomerado contam com
associações de moradores, ainda que a participação seja pequena e até mesmo
declinante. Entre elas, menciona-se a Associação da União Comunitária da
79
Barragem Santa Lúcia e o Centro de Defesa Coletivo da Vila Santa Rita.
Em segundo, encontram-se em atuação na comunidade diversas entidades
governamentais e não-governamentais, com destaque para o Projeto Agente Jovem
da Cidadania, do Governo Federal, em parceria com a PBH; do projeto "Polos
reprodutores de cidadania" – desenvolvido pela Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais em conjunto com a Coordenadoria de Direitos
Humanos; e do Centro Catequético, tendo Padre Mauro como pároco.
As lideranças formais e informais da área reclamam da falta de participação da
população como um todo e da sobrecarga de atividades, uma vez que as mesmas
pessoas acabam assumindo funções e tarefas múltiplas. Uma das causas citadas
para a baixa participação foi a reclusão dos moradores em virtude do tráfico e da
violência, criando uma cultura da não-participação. A apatia relativa da população
também é atribuída ao descrédito em relação ao Poder Público e às sucessivas
ações introduzidas por entidades exógenas ao Aglomerado.
Como se discutirá no próximo capítulo deste trabalho, é possível perceber no
Aglomerado, como na maioria das favelas da cidade, uma ampliação da participação
via movimento cultural, paralelamente à redução da participação tradicional nas
organizações comunitárias, indicando a emergência de novas formas de ação
política nessas localidades.
O Plano Global apontou também que, em 2000, as diversas ações em
desenvolvimento na Barragem, por entidades governamentais ou da sociedade civil,
em geral eram feitas de maneira desarticulada, isolada e mesmo com sobreposição
dos trabalhos, contribuindo também para dividir a já restrita participação dos
moradores.
O próprio processo de elaboração do Plano Global do Aglomerado, conduzido pela
URBEL, encontrou dificuldades diversas para formar o Grupo de Referência com as
lideranças locais, apesar da atuação intensa na comunidade durante mais de um
ano.
80
Finalizando a caracterização do território que abriga o Grupo do Beco, serão
apresentadas algumas características relativas aos aspectos artísticos e culturais.
5.1.6 Manifestações culturais
No Aglomerado Barragem o Guia Cultural das Vilas e Favelas cadastrou 27 grupos
em 2002, que envolviam 603 artistas em suas atividades. É importante destacar que
esse número já se encontra alterado nos dias atuais, dada a grande dinâmica
encontrada nessas áreas, como antes mencionado.
Para atualizar esses dados, a equipe da ONG Favela é Isso Aí trabalhou na
comunidade durante o período de um mês, ao final de 2007, tendo sido cadastrados,
então, pela equipe, 43 artistas e/ou grupos culturais que desenvolvem trabalhos
artísticos na comunidade, envolvendo um total de 502 pessoas.
Na época da pesquisa de campo, a música era a manifestação mais importante na
comunidade, tanto do ponto de vista quantitativo (21 grupos, ou seja, 49% do total
encontrado) quanto qualitativo, pela representatividade da cultura tradicional local.
Entre os 21 grupos musicais destacavam-se aqueles ligados ao pagode,
notadamente na vila Estrela. Os grupos encontrados na área da música foram,
segundo o estilo:
Pagode e Samba – oito grupos (Que Delícia, Simplicidade, Super Samba Show,
Curtição, Ousadia do Samba, Supla Samba, Pura Sedução, Nossa Cara); e um
artista-solo (Mareno Santa);
Rap – seis grupos (Versos do Morro, Mente Fria, R.A.P - Respeito Atitude e
Proceder, União da Sul, Real Mina, Irmãos de Sangue 3 Insano);
Música Gospel – um grupo (Ei );
Forró, brega e sertanejo – 1 grupo (Alex é o show o mineirinho do forró);
Punk Rock alternativo – um grupo (Hematoma):
Rock – dois grupos (22 HC, Desk Top);
DJ de Funk, Black music e hip hop ( DJ Lui);
Um Bloco Carnavalesco (Bloco Caricato dos Invasores Santo Antônio).
81
Em segundo lugar, vinham os grupos ligados à área de artesanato, num total de 9
representantes, com destaque para o Grupo da 3ª Idade Nossa Senhora da Guia,
formado por 28 pessoas.
Nas artes plásticas foram cadastrados quatro grupos, com destaque para o artista
Pelé, que trabalha com pintura e grafite.
Na área da dança se destacam quatro grupos:
dança afro - 2 grupos (Primeira Dança Afro-brasileiras e Africanas, Vozibilidade
dos Tambores);
capoeira - 1 grupo (Grupo Cuenda);
quadrilha - 1 grupo (Quadrilha do Sabuco Duro).
As demais áreas culturais apresentam menor número de grupos dentro do
Aglomerado, mas também têm seus representantes legítimos. Na área de teatro
realça-se o Grupo do Beco, na área de folclore e religiosidade há a Guarda de
Marujos São Cosme e Damião.
Além dos mencionados, encontraram-se no Aglomerado um produtor cultural e um
grupo de organização de eventos culturais.
A maior necessidade relatada pelos artistas entrevistados é a de recursos materiais
e financeiros para produção do trabalho artístico, citada por 38 deles (84,4%). Cinco
(11,1%) disseram ter necessidade de divulgação de seu trabalho e 13 (28,9%)
disseram ter necessidade de espaço para produzir, ensaiar, expor e/ou apresentar
seu trabalho.
5.2 O Grupo
O Grupo do Beco é juridicamente representado pela Associação Cultural do Grupo
do Beco, instituída no ano de 2001. Entretanto, o Grupo e seus integrantes atuam na
comunidade do Aglomerado Santa Lúcia dede 1995, primeiramente por meio do
grupo Armação (1995/1998), depois EMcenAÇÃO (1998/2001).
82
De acordo com os membros do Grupo, o nome original da companhia foi alterado
durante o processo de planejamento estratégico, por não representar as
especificidades do Grupo, podendo aplicar-se a qualquer coletivo teatral, em
qualquer parte. A opção foi a colocação de um nome que relacionasse o Grupo com
seu território e especificidade, daí, “Grupo do Beco”.
A história de formação do Grupo se inicia com a inscrição de Nil César num curso de
teatro no TU – Teatro Universitário, com duração de três meses. Logo surgiu a
oportunidade de participar do 27º Festival de Inverno da UFMG, em Ouro Preto,
onde ficou 20 dias na oficina ministrada por Fernando Limoeiro. Na volta, Nil propôs
ao grupo de jovens da comunidade - JUSC - repassar a eles seu aprendizado. Como
era monitor dentro de um projeto social de vinculação religiosa, a Casa Santa Paula,
braço social do Colégio Santa Dorotéia, localizado dentro do Aglomerado Santa
Lúcia, iniciou os ensaios dentro do espaço da instituição, direcionando também as
aulas para as crianças e jovens atendidas pela Casa para o teatro.
Foi lá que Nil conheceu parte dos integrantes do grupo, deu aulas de teatro a eles e,
quando sairam da Casa Santa Paula, foi por eles convidado a criar um trabalho
teatral fora da Casa. Juntamente com os jovens, fundaram o projeto “Adolescer ou
Não” (1999), montando algumas peças no período (ver abaixo).
As principais peças realizadas pelo Grupo, desde sua fundação, foram:
“Consumidores à Beira de um Ataque de Nervos” – 1996;
“O Casal” – 1998;
“Casamento e Bronca na Roça”, “Coisa de Criança” e “O Afilhado da Morte”,
todas em 1999;
“Quis 500?”, uma crítica sobre as comemorações dos 500 anos de Brasil – 2000;
“Bendita a Voz entre as Mulheres” – 2003;
“Morro de Amores” – 2006 / 2007;
“A Laje” – em fase de montagem - 2008.
Formado por moradores do próprio Aglomerado, o Grupo coloca como seu
diferencial a utilização da linguagem do teatro como instrumento para um trabalho
de transformação social.
83
Com oito anos de existência, [o Grupo] vem trabalhando com o objetivo de
buscar referências da cultura erudita e técnicas que, somadas à riqueza
cultural da própria comunidade, ampliem as possibilidades de expressão de
seus moradores. Desde o início, vem tentando fazer com que o teatro,
atividade popular em sua origem mas elitizada em nossos tempos, volte a
ser acessível ao povo. (FONSECA, 2004, p. 3).
De acordo com o coordenador e fundador do Grupo, Nil César, o processo de
planejamento estratégico, conduzido em 2004 por Rômulo Avelar, assessor do
Grupo Galpão e ex-presidente da Lei Estadual de Incentivo à Cultura, demonstra
que o “negócio” do Grupo do Beco não é teatro, mas, sim, transformação social. Isso
significa que o teatro, nesse caso, é pensado apenas como uma ferramenta a
serviço de um engajamento mais efetivo dos atores com a comunidade onde vivem.
Interessante observar as colocações que resultaram desse planejamento estratégico
e que indicam as intenções e concepções do Grupo. Ao pensarem sobre quem são
os “clientes” do Grupo do Beco, ou seja, a quem dirigem suas ações, foi concluído
pelos seus membros:
[...] os clientes principais do Grupo são os moradores do Aglomerado Santa
Lúcia. Entretanto, existem outros públicos de grande relevância, que devem
ser considerados em todas as ações a serem programadas: os habitantes
da cidade de Belo Horizonte, com destaque para aqueles que residem nas
imediações do Aglomerado, para os moradores de outras comunidades
carentes e para todos aqueles que se aproximam do Grupo, na condição de
voluntários ou não. (FONSECA, 2004, p. 26).
Quanto ao benefício esperado por esses “clientes”, o Grupo conclui que:
Os clientes, sejam eles moradores do Aglomerado Santa Lúcia ou não, têm
a expectativa de que o Grupo do Beco promova melhorias no padrão de
qualidade de vida de sua comunidade. Esperam que o trabalho
desenvolvido resulte em transformação social. Além disso, é crescente o
número de pessoas que vê o Grupo como uma equipe capaz de promover a
aproximação de dois universos absolutamente distantes: o dos moradores
de favela e o da população de classes média e alta. Essas pessoas
esperam que o Grupo seja uma “ponte” sobre o grande abismo existente
entre esses mundos. (FONSECA, 2004, p. 27).
Nesse sentido, considera-se como diferencial competitivo do Grupo, ante outros
projetos sociais com os quais disputam recursos e visibilidade, a opção de trabalhar
as ações de transformação social tendo como base o teatro. Ademais, reforça-se
84
com outros diferenciais:
- O Grupo optou por adotar como tema para a sua arte a realidade da
própria comunidade, ou seja, “cenas da vida real”. São moradores de uma
favela falando sobre seu cotidiano, seus anseios e seus conflitos, sem o
filtro da mídia, que distorce os fatos e reforça o preconceito.
- A própria existência da Casa do Beco é um diferencial. O espaço abrigará
o primeiro teatro sediado em uma favela em Minas, e um dos únicos do
País.
- Os integrantes do Grupo são capacitados para cumprir seu papel de
“ponte” entre a favela e o restante da cidade. Grandes investimentos vêm
sendo feitos na sua bagagem pessoal, para que possam desempenhar
funções de representação em eventos políticos, sociais, culturais e
acadêmicos.
- O Grupo tem credibilidade em sua própria comunidade e vem
consolidando também um conceito positivo nos meios cultural e acadêmico
de Belo Horizonte. (FONSECA, 2004, p. 27).
Ressalte-se que o foco no uso da arte como ferramenta de transformação social veio
junto à história dos integrantes do Grupo, que tinham, desde jovens, envolvimento
com os movimentos sociais na comunidade. De acordo com texto do próprio Grupo:
O histórico do Grupo é marcado pelo envolvimento de integrantes com
movimentos sociais comunitários – Associação de Moradores, Cooperativa
Cultural, Comissão de Direitos Humanos, bem como mobilizações diversas
em defesa do coletivo. Essas intervenções tinham como base o
entendimento, ainda comungado pelo Grupo, de que a arte e a cultura estão
extremamente vinculadas à vida social da comunidade. Atualmente, em
função da opção de aprimorar o trabalho artístico, o vínculo direto com as
instituições do movimento social diminuiu. Contudo, a própria concepção de
trabalho cultural que o Grupo adota contempla o envolvimento com
questões sociais. Dito de outra maneira, este enfoque permeia todo o
trabalho. Além disso, o Grupo está sempre presente, dentro do possível,
nas mobilizações de interesse comunitário, tais como a Caminhada pela
Paz no Aglomerado Santa Lúcia e o Circuito Off, que envolve um coletivo de
artistas da cidade em torno de discussões pertinentes às demandas da
10
classe artística.
Note-se que, apesar do afastamento dos movimentos sociais, acima mencionado, o
Grupo ainda realiza trabalhos em parceria, dentro e fora da comunidade. Do ponto
de vista interno, o principal parceiro é a Paróquia Nossa Senhora do Morro (com
oficinas para a comunidade), enquanto as parcerias externas mais relevantes são
dadas pelo apoio do Grupo Galpão (com assessoria a projetos e viabilização de
formação artística dos atores) e a participação, até 2007, em um coletivo de projetos
10
Diagnóstico do Grupo no Curso de Gestão, 2004.
85
sociais que se chamava Rede Telemig Celular de Arte e Cidadania.
À época da pesquisa para este trabalho, a equipe do Grupo era composta por nove
pessoas, sendo dois atores, cinco atrizes e duas produtoras. Os membros do Grupo
são: Nil César (fundador e diretor), Suzana Cruz, Célia Rodrigues, Cris Corrêa,
Ivanete Guedes, Janete Maia, Maicon Sipriano, Josemeire Alves e Graziane
Gonçalves, as duas últimas como produtoras. Além deles, havia um ator contratado
para a peça Bendita, não considerado membro do Grupo11.
Nos dias atuais, atores e produtoras revezam-se na realização de tarefas
administrativas e gerenciais, tanto do Grupo em si quanto do espaço cultural
denominado Casa do Beco. A Casa do Beco é um espaço conquistado pelo Grupo
no ano de 2003, por meio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura e patrocínio da
Telemig Celular.
Está situada em imóvel de três andares, dois dos quais do Grupo, na rua que limita a
comunidade com o bairro e às margens da área de lazer da Barragem. Estratégica
do ponto de vista de sua localização e acessibilidade, a intenção do Grupo é
transformar a Casa do Beco em um Centro Cultural com teatro, atendendo tanto a
comunidade quanto ao público externo.
O trabalho cresce e, hoje, já não é mais tão distante o sonho de seus
integrantes de construírem um centro cultural em sua comunidade, onde
possam continuar contribuindo, mas em outra dimensão, para a melhoria
das condições de vida de seus moradores. No final de 2003, o Grupo deu
um grande passo em direção a essa meta: adquiriu dois andares de um
edifício estrategicamente localizado próximo à Barragem Santa Lúcia. No
momento, busca recursos para a concretização da reforma do espaço, que
irá abrigar, futuramente, um teatro com capacidade para 100 espectadores,
uma biblioteca e salas destinadas a ensaios e cursos. O Grupo do Beco já
desenvolve neste local, mesmo antes da reforma, um trabalho artístico com
cerca de quarenta adolescentes, que visa ao seu desenvolvimento pessoal,
ao resgate de sua auto-estima e à conquista de sua cidadania. (FONSECA,
2004, p. 4).
Na época da pesquisa com o Grupo, foi evidenciado que a Casa sofria com as más
condições estruturais do imóvel e com a resistência de moradores, especialmente
11
Após a finalização das entrevistas, o Grupo passou por modificações, com saída de membros e
reestruturação dos processos internos. Entre alguns fatores, pesou a falta de recursos para sustento
dos atores e o surgimento de conflitos internos.
86
jovens, que passaram a depredar o espaço e utilizar seu andar superior para
práticas ilícitas e satisfação das necessidades fisiológicas. Uma explicação
encontrada pelo Grupo do Beco para essa situação refere-se ao fato de que, antes
da compra do imóvel, funcionava no local uma academia de capoeira, muito utilizada
por esses jovens, que teriam ficado insatisfeitos com a nova destinação do imóvel.
Outra explicação perpassa pelos códigos internos da “guerra” e do tráfico, com a
demarcação de territórios. Felizmente, após a conclusão da pesquisa, essa situação
foi resolvida e a Casa totalmente reformada.
Ressalte-se que durante todo esse tempo, o Grupo trabalhou para trazer para a
Casa eventos, oficinas e espetáculos com maior aceitação junto a esse público, que
não tem afinidade específica com a área do teatro. Mediante parcerias com outros
grupos culturais das periferias, vem realizando, desde então, oficinas de percussão,
dança e outras do tipo.
É importante frisar que, além do projeto que viabilizou a compra da Casa do Beco, o
Grupo já conseguiu aprovar e realizar diversos projetos, via leis de incentivo à
cultura, destacando-se:
“Mãos de Mulher” – Lei Estadual de Incentivo à Cultura – Realizado entre 2002 e
2003, com previsão de oficinas para a formação de atores do Grupo do Beco e a
realização de entrevistas com mulheres da comunidade, como subsídio para a
montagem de um espetáculo teatral. Como resultado, pode-se destacar a criação
de “Bendita a Voz entre as Mulheres”, peça da qual se falará mais
detalhadamente a seguir;
“Grupo do Beco – Manutenção e Cursos” – Fundo Municipal de Incentivo à
Cultura (2002) – Em execução entre 2003 e 2004. Foi constituído por oficinas
para a formação artística dos atores do Grupo do Beco, oficinas para a
comunidade e pela circulação do espetáculo “Bendita a Voz entre as Mulheres”
pela cidade de Belo Horizonte, em especial em comunidades da periferia e outros
espaços alternativos;
“Grupo do Beco – Manutenção e Programação 2004” – Fundo Municipal de
Incentivo à Cultura (2003) – Foram realizadas oficinas para formação artística de
atores do Grupo do Beco, oficinas artísticas para a comunidade do Aglomerado
Santa Lúcia e execução de apresentações teatrais nas nove regionais da cidade
87
de Belo Horizonte;
Teatro na Laje – Brazil Foundation (2006) – Foram desenvolvidas oficinas
artísticas na comunidade, que tiveram como produto a montagem de um
espetáculo, que seria apresentado nas lajes da comunidade.
Vale destacar ainda o trabalho realizado pelo Grupo com os jovens de sua
comunidade, através de dois projetos: o “Adolescer ou não”, que oferece formação
teatral para jovens, e o Projeto “Jogos Teatrais”, que busca trabalhar, através do
teatro, noções como auto-estima, cidadania, participação e identidade, entre outras.
Fruto deste trabalho, foi realizada a montagem, em 2004, do espetáculo “Em Que
Mundo Você Vive”, por cinco jovens do Projeto Adolescer ou Não, apresentado em
locais diversos e com grande aceitação do público. A peça tratava da realidade dos
jovens das comunidades, vista por eles próprios, na convivência com a violência e
com a atração do mundo do crime, contrapostas aos sonhos de uma vida melhor, ao
lado da pessoa amada.
Ao longo de sua trajetória e ainda nos dias atuais, um dos principais problemas
enfrentados pelo Grupo do Beco é a falta de remuneração de seus integrantes. Com
dificuldades para garantir a própria sobrevivência, os atores e produtores acabam
tendo que trabalhar em empregos convencionais, prejudicando sua dedicação ao
trabalho artístico.
Além dos problemas financeiros, houve relatos, por parte dos integrantes, de
problemas de ordem comportamental e interpessoal, dificuldades operacionais,
complicações de ordem técnica e artística e problemas com a infra-estrutura de
ensaios e funcionamento da Casa do Beco.
O Grupo do Beco, a exemplo de praticamente todos os grupos e entidades
culturais do País, tornou-se extremamente dependente das leis de incentivo
à cultura existentes nos níveis federal, estadual e municipal. Essa situação
torna-se cada vez mais incômoda, na medida em que esses mecanismos
começam a se mostrar insuficientes para o atendimento à crescente
demanda de recursos para o setor. Na verdade, os patamares de renúncia
fiscal são irrisórios diante da explosão do mercado cultural brasileiro, o que
provoca grandes disputas pelos incentivos e reduz drasticamente os
montantes aprovados para cada projeto.
É preciso, pois, buscar fontes de captação de recursos alternativas às leis
88
de incentivo. O Grupo do Beco, particularmente, vem sofrendo com a
instabilidade dessas leis, o que chega a ameaçar a própria continuidade de
suas atividades. A falta de recursos, tanto para os trabalhos artísticos e
sociais quanto para a sobrevivência de seus próprios integrantes, é um
obstáculo a ser transposto, para que o Grupo ganhe estabilidade e cumpra
suas finalidades. É fundamental, portanto, que sejam avaliadas as fontes de
recursos existentes no mercado e identificados meios para sua captação
efetiva.
Além disso, há que se considerar as enormes dificuldades enfrentadas por
seus integrantes, geradas pela sua própria condição de favelados. É preciso
empreender esforços dobrados para que o Grupo consiga se impor em um
ambiente marcado pela enorme desconfiança e pelo preconceito da
sociedade. Embora já exista entre os seus membros uma forte preocupação
com a qualidade em todos os seus aspectos, é necessário considerar as
enormes barreiras para a obtenção de melhorias nos processos de trabalho,
pela carência generalizada de recursos e pela própria cultura da favela.
Há que se levar em conta também as limitações técnicas e de formação dos
próprios integrantes do Grupo, que se apresentam como um sério obstáculo
a ser transposto. Essas pessoas, embora se destaquem em sua
comunidade e apresentem enorme potencial, ainda não têm a formação
adequada para o cumprimento dos objetivos propostos.
Além disso, devem ser consideradas também as dificuldades geradas pela
ocorrência, nos últimos meses, de diversos conflitos internos, que vêm
provocando instabilidade no Grupo. Tais conflitos, naturais em trabalhos
coletivos, devem, no entanto, ser objeto de atenção especial, na medida em
que vêm se sucedendo com certa regularidade. (FONSECA, 2004, p. 4-/5).
Ao serem questionados sobre os pontos fracos que ameaçam a atuação do Grupo,
os membros apontam também problemas relacionados à segurança na favela,
prejudicando a livre circulação em alguns locais.
Outro ponto apontado como positivo e negativo ao mesmo tempo é o fato de o
Grupo estar sediado em uma favela. Se, por um lado, esse fator traz discriminação e
preconceito, por outro, paradoxalmente, contribui para ampliar a curiosidade do
público em relação ao trabalho desenvolvido. Ademais, “atrai o interesse da mídia e
de profissionais da área de artes cênicas”.
Os pontos fortes e diferenciais apontados pelo Grupo são:
Diferencial de imagem – o próprio fato de estar sediado na favela e propor-se a
fazer um trabalho diferenciado;
Existência do hábito de reuniões de planejamento e tomada de decisões;
Concretização do projeto Mãos de Mulher, por meio das entrevistas com as
moradoras e possibilidade de ampliação da rede de apoiadores a partir da peça
“Bendita”;
Inserção comunitária dos integrantes do Grupo e respaldo da comunidade;
89
Existência da Casa do Beco;
Existência do Projeto Jogos Teatrais.
Na meta traçada pelo Grupo prevê-se, para daqui a cinco anos, torná-lo referência
brasileira no campo sociocultural. Essa meta tem sido trabalhada considerando os
pontos fracos identificados no planejamento estratégico. É importante destacar que
a proposta de visibilidade nacional do Grupo não está focada nos aspectos artísticos
(tornar-se um grupo de teatro reconhecido nacionalmente), mas, sim, nos aspectos
sociais (tornar-se referência nacional no campo sociocultural), confirmando sua
missão e foco ligados à transformação social.
No que se refere à busca pela qualidade artística e aprimoramento nos campos
administrativo e de produção, o Grupo já participou de projetos e capacitações
diversos, entre eles o “Arena da Cultura”, da PBH; o curso “Administração de Grupos
Teatrais”, em parceria com o Grupo Galpão; o Curso de Planejamento e Gestão
Cultural, realizado com recursos do Fundo Municipal de Incentivo à Cultura pelo
antropólogo José Márcio Barros. Ademais, o Grupo já recebeu consultoria de vários
artistas profissionais de Belo Horizonte, relatados adiante.
Para Rômulo Avelar, essa experiência é ímpar pelo poder de mobilização e pelo
compromisso com a comunidade. “Esse trabalho é o primeiro passo para a
consolidação de um novo movimento cultural no Aglomerado Santa Lúcia e tem
como objetivo a abertura de oportunidades de crescimento para os jovens da
região.”
5.3 A peça
5.3.1Teatro popular e criação coletiva
Ainda que não seja o foco deste trabalho discutir o teatro como linguagem artística e
aprofundar em seus aspectos técnicos, serão traçados alguns elementos que
permitam ao leitor conhecer as bases filosóficas adotadas pelo Grupo do Beco na
90
elaboração de seu trabalho, especialmente na peça analisada nesta dissertação.
De acordo com Nil César, o Grupo não segue uma teoria teatral na montagem de
suas peças, não adota uma metodologia específica e única. O que há, de acordo
com ele, é uma busca pessoal sua, como diretor, que acaba por ser repassada e
reflete na organização do Grupo. “Como filosofia a gente segue o teatro de Boal, de
Brecht, de Gianfrancesco Guarnieri e de Viola Spolin, entre outros autores.”
Os autores citados por Nil César têm, cada qual, sua contribuição para a formação
do teatro contemporâneo, configurando um panorama que praticamente perpassa a
maior parte dos grupos de teatro da atualidade. Bertold Brecht dá essa base comum
e constitui-se em referencial dos demais autores citados, mediante criação das
técnicas teatrais do chamado Teatro Épico.
O Teatro Épico utiliza uma série de instrumentais diretamente ligados à
técnica narrativa do espetáculo, onde os mais significativos são: a
comunicação direta entre ator e público, a música como comentário da
ação, a ruptura de tempo-espaço entre as cenas, a exposição do urdimento,
das coxias e do aparato cenotécnico, o posicionamento do ator como um
crítico das ações da personagem que interpreta, e como um agente da
12
história.
Percebe-se que no Grupo do Beco, todos esses elementos estão presentes,
inclusive na disposição do cenário, que é remontado pelos próprios atores ao longo
da encenação.
Vale destacar que o processo de construção das peças do Grupo adota a criação
coletiva,
processo de construção do espetáculo em que o texto é gerado pelo jogo
dos atores que, guiados ou não por um diretor, debruçam-se sobre um
tema, uma história ou qualquer outro tipo de material. Em muitos casos, não
apenas a função do dramaturgo é substituída pelo trabalho dos intérpretes,
como também outras funções de criação, como o cenógrafo, o figurinista, o
iluminador, o diretor musical.
Em geral, os atores que optam pela criação coletiva estão no contexto do
teatro de grupo e têm como objetivo ampliar sua participação, deixando de
ser apenas aqueles que se encarregam de criar personagens e representálas para se tornarem autores e produtores. 13
Nessa linha está o trabalho de improvisação como base do texto teatral, método
12
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desenvolvido por Viola Spolin, que, além de ser considerada a avó norte-americana
do teatro improvisacional, teve o mérito de sistematizar o sistema de jogos teatrais,
que são, inclusive, o nome de um dos projetos desenvolvidos atualmente pelo Grupo
do Beco com crianças da comunidade.
Por fim, dois autores fundantes da filosofia que o Grupo busca trabalhar em suas
peças são Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, ambos ícones do teatro popular
no Brasil das décadas de 1950, 1960 e 1970.
Ressalte-se que Augusto Boal foi o fundador do Teatro do Oprimido, cujas técnicas
e práticas difundiram-se pelo mundo, notadamente nas três últimas décadas do
século XX, sendo largamente empregadas não só por aqueles que entendem o
teatro como instrumento de emancipação política, mas também nas áreas de
educação e saúde mental e no sistema prisional. O autor preconiza que o teatro
deve ser um auxiliar das transformações sociais e formar lideranças nas
comunidades. Para isso, organizou uma sucessão de exercícios simples, porém,
capazes de oferecer o desenvolvimento de uma boa técnica teatral amadora,
auxiliando a formação do ator de teatro.
Gianfrancesco Guarnieri, por sua vez, destaca-se por ter lançado textos voltados à
realidade
nacional,
que
discutiam,
com
densidade
dramática,
problemas
sociopolíticos de impacto. Eles Não Usam Black-Tie (1958) e Gimba (1960) são dois
grandes exemplos de sua produção, tendo como mote, respectivamente, a vida dos
operários em greve e a dura sobrevivência das populações marginalizadas nos
morros cariocas.
Esses textos ostentam, pela temática e proposições estéticas, vínculos com
o realismo socialista; possuindo o mérito de deslocar o olhar cênico para as
camadas populares, seus problemas e contradições próprias, sem a óptica
14
paternalista tradicional.
Tendo os problemas sociais como fonte de sua dramaturgia, vários autores
reforçaram o que veio a ser chamado de Teatro Popular, seja através das histórias
da periferia urbana, seja da pobreza do Brasil rural da década de 1950.
14
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Nasce assim uma tendência que seria predominante nos anos seguintes.
Jorge Andrade, Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho, Paulo
Pontes, Dias Gomes, Antônio Callado, Augusto Boal, Millôr Fernandes
fazem parte de uma geração que descobre nos problemas sociais a fonte
de sua dramaturgia. No dizer de Paulo Pontes, o povo é "a única fonte de
identidade nacional". Entende-se esse povo como aquele que é explorado,
que leva uma vida à margem dos meios de produção e do saber. A idéia de
que os fracos, unindo-se, derrotam os fortes, ganha muitas versões. Os
heróis que morrem por uma causa coletiva – Lampião, Antônio Conselheiro,
15
Padre Cícero, Zumbi, Tiradentes – merecem várias peças.
Configura-se, nesse contexto, a ressignificação da arte, como espaço de reflexão da
realidade, de construção de uma nova consciência e de aproximação entre ficção e
vida real. No caso do Grupo do Beco, como se verá a seguir, essa aproximação vai
além de uma “imersão artística” dos atores e diretores na construção da peça, já que
toda ela é ambientada e redigida a partir da vivência dos próprios membros do
Grupo e seus iguais.
5.3.2 O texto e sua construção
No ano de 2003 foi produzida a peça “Bendita a Voz entre as Mulheres”, pelo Grupo
do Beco, produto do projeto Mãos de Mulher, antes mencionado, e que foi escolhida
para análise neste trabalho.
A peça, que estreou em Belo Horizonte no Dia Internacional da Mulher, 8 de março
de 2003, já foi apresentada em escolas (públicas e particulares), espaços culturais
como o Galpão Cine Horto e o Centro Cultural da UFMG, Casa do Conde, entre
outros.
Também foi mostrada no Teatro Marília, no Projeto “Novos Registros”, promovido
pelo Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. A apresentação de “Bendita” foi
seguida de debate sobre o processo de produção do espetáculo, tendo em destaque
a realização das entrevistas e a utilização delas como fonte de pesquisa artística. As
vinte gravações, com os depoimentos das mulheres entrevistadas, foram doadas
pelo Grupo do Beco ao Arquivo Público da cidade. Nil César também já deixou seu
15
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93
registro no Museu da Pessoa, motivado por esse processo de conhecimento das
histórias das mulheres da vila.
É importante realçar que, apesar de já ter experiências anteriores com outras
montagens, foi a partir deste projeto e da montagem de “Bendita” que o Grupo do
Beco modificou suas relações com o meio artístico da cidade e ampliou sua
visibilidade para fora dos limites da comunidade onde vivem seus membros.
Fundamentais nesse processo foram as etapas de formação de membros do Grupo
na área de gestão cultural; a parceria conquistada com o assessor de planejamento
do Grupo Galpão; a conquista de financiamento via Leis de Incentivo à Cultura e ,
por fim, o envolvimento de uma série de profissionais já consagrados no mercado
para montagem da peça.
Nesse sentido, cita-se o envolvimento, no projeto, dos diretores Ana Domitila e Júlio
Maciel, do Grupo Galpão; do diretor musical Ricardo Garcia; da dramaturga Letícia
Andrade; do cenógrafo e figurinista Léo Piló; da preparadora vocal Babaya; da
coreógrafa Dudude Herrmann; além de Valéria Braga, Anthônio, Amaury Borges e
Lica Gimarães. Com o apoio desses profissionais, foram realizadas oficinas de
expressão corporal, interpretação, improvisação, técnica vocal e musicalização,
capacitando o Grupo do ponto de vista artístico e técnico e permitindo também dar o
salto de qualidade no cenário cultural da cidade.
É importante destacar que o olhar que se pretende aqui sobre a peça não tem o
objetivo de se constituir como uma análise da narrativa propriamente dita,
considerando os diversos métodos existentes para esse tipo de trabalho, mas antes
busca, livremente, entender o contexto do Grupo e da comunidade onde vivem a
partir de um texto teatral. Concordando com Magnani, “a produção da significação
transcende o plano textual lingüístico-discursivo, principalmente quando nela
intervêm outros códigos – a linguagem do corpo, dos gestos, dos objetos”
(MAGNANI, 2003, p. 78) e, no caso do Grupo do Beco, os códigos da comunidade.
O Projeto “Mãos de Mulher”, que deu origem à peça, foi o primeiro aprovado pelo
Grupo ante a Lei Estadual de Incentivo à Cultura. Realizado entre 2002 e 2003,
94
idealizou-se a realização de entrevistas com mulheres da comunidade, como
subsídio para a montagem de um espetáculo teatral.
A pesquisa foi realizada com 20 mulheres, com idades variáveis entre 21 e 80 anos,
por intermédio do método da história oral. Incentivou-se cada entrevistada a contar
um pouco de sua vida, “revelando vivências, experiências e sonhos permeados pelo
machismo, pela discriminação racial e social, retratando também a diversidade de
perfis existentes na comunidade”.
A leitura das entrevistas deixa antever uma realidade que, de fato, é o panorama
mais comum encontrado hoje no Brasil perante as famílias de baixa renda: a cada
dia, a mulher assume um papel mais ativo na família e na sociedade, não apenas
como esteio emocional e força impulsora, mas também como provedora e
sustentáculo de marido e filhos.
“É o caso, por exemplo, da única mulher pastora do
Aglomerado, da dona de casa que fica por conta dos filhos, da
mulher que trabalha fazendo carretos, da líder comunitária e da
mulher mais velha, dentre outras.” (Entrevista com o Grupo do
Beco)
A opção do Grupo pelo foco nas mulheres como fio condutor das pesquisas e da
própria peça foi baseada na percepção de que a temática de gênero é fundante nas
relações que se estabelecem nas classes baixas, em geral, e na Barragem Santa
Lúcia, em particular. Nas palavras de uma das atrizes do Grupo do Beco:
"Também a questão da força que as mulheres do morro têm,
acho que ninguém ainda reparou nisso, nem elas mesmas. O
tanto que elas são chefes de família, responsáveis pela
construção desse morro. A maioria aqui na ocupação do morro
era mulher, elas faziam os barracos delas, os policiais
chegavam aqui à meia-noite e destruíam tudo, aí elas iam
montando tudo de novo. Então, tudo isso aqui foi construído à
base de mulher, e os homens procuram o caminho mais fácil
que é a bebida, infelizmente. Vê-se que aqui os malandros são
minoria. O resto são pessoas que querem um futuro na vida,
que querem ter uma profissão bacana, são mães que lutam
para os filhos estudarem, para terem uma profissão melhor que
a delas, para que eles não sejam humilhados, não passarem a
situação que elas já passaram. Porque morar em favela não é
95
fácil, a humilhação às vezes é muita, você chega às vezes num
bairro e o pessoal te trata mal mesmo. Infelizmente, isso ainda
é realidade." (Entrevista com o Grupo do Beco)
Os membros do Grupo chamam a atenção para o fato de que também nos projetos
sociais e artísticos, as mulheres se sobressaem.
“O próprio Grupo do Beco tem 7 mulheres e 2 homens, porque,
no meu ponto de vista, as mulheres são muito mais
observadoras e elas querem mudar a situação daqui do morro,
por isso o Grupo tem tantas mulheres.” (Entrevista com o
Grupo do Beco)
De acordo com as entrevistas, o processo de construção dos personagens da peça
foi muito marcante para as próprias atrizes, também moradoras do Aglomerado, mas
que nunca tinham tido um olhar atento para a realidade que vivenciavam, não
tinham ainda colocado a questão de gênero como um foco no seu dia-a-dia.
Outra atriz do Grupo comenta:
"As entrevistadas, quando vão falar da vida delas, a expressão
delas cai totalmente, porque elas têm a vida muito sofrida.
Fiquei surpresa com o jeito de levarem a vida, enfrentarem o
marido. Se tinha alguma coisa incomodando, elas chegavam
no marido e falavam, nem que tivessem que brigar com eles,
nos tapas mesmo. Eu achei uma forma de saber me defender,
achei muito bonito isso, porque a maioria fica calada, os
homens fazem delas o que quiserem, ficam com outras
mulheres na cama mesmo, no mesmo quarto que elas e ainda
mandam levar comida pra eles e elas não fazem nada, ficam
caladas, como se o marido tivesse o direito de fazer delas o
que quiser, mas esta entrevistada que eu fui na casa dela foi
completamente diferente – a firmeza dela, a coragem que ela
sempre teve." (Entrevista com o Grupo do Beco)
A partir dessas histórias, o texto do espetáculo foi construído em processo
colaborativo entre os integrantes do Grupo do Beco e a dramaturga Letícia Andrade,
além dos diretores da Peça, Ana Domitila e Júlio Maciel, ambos integrantes do
Grupo Galpão e apoiadores do Grupo do Beco.
"Mãos de Mulher tem como desdobramentos importantes
96
instrumentos de construção da memória coletiva do
Aglomerado Santa Lúcia: o pequeno acervo de depoimentos
das mulheres entrevistadas, além de incluir-se nesse conjunto
de instrumentos, serviu como matéria-prima para a produção
de um videodocumentário, já em fase de edição e dirigido por
Marcelo Braga (Emvídeo) – também produtor – e Rodolfo Vaz
(ator do Grupo Galpão). Também foi utilizado como fonte do
trabalho acadêmico ‘AGLOMERADO SANTA LÚCIA – PARA
ALÉM DO HORIZONTE PLANEJADO – representações do
trabalho feminino nas histórias de vida de mulheres da
periferia’, da moradora e [então] estudante de história pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Josemeire
Alves, desenvolvido em 2002." (Entrevista com o Grupo do
Beco)
Do ponto de vista da estrutura, a peça contém os elementos clássicos dos dramas: a
apresentação de uma carência inicial, a ocorrência de um dano que agrava a
carência, a desagregação causada pelo dano e, por fim, a reparação do dano,
recuperando um certo equilíbrio. Ao analisar as peças circenses, Magnani destaca:
[...] em cada uma das peças analisadas, o dano responsável pelo
desencadeamento da ação dramática sobrepõe-se a uma situação inicial já
marcada pela carência, o que coloca as personagens identificadas com o
bem [...] à mercê das forças do mal: pobreza [...]; doença [...]; orfandade
[...]; incredulidade [...]; violência [...]; desobediência [...]; desemprego [...];
morte [...]. (MAGNANI, 2003, p. 87).
Atente-se a que, no caso de Bendita, a situação de carência inicial inclui a moradia
precária na favela, a discriminação racial (“macaca, macaca, preta fedorenta!”) a
bebida do pai, a resignação da mãe e a convivência com as situações adversas da
comunidade. De acordo com a sinopse da peça, enviada pelo Grupo aos meios de
comunicação, “Bendita” conta a saga de uma mulher:
[...] negra, pobre e com um sonho que a acompanha desde o nascimento –
o de ser cantora. A personagem-título do espetáculo do Grupo do Beco
vive, no palco, um pouco da vida de cada mulher moradora de favelas
brasileiras. Sofre, na infância, as mazelas do preconceito racial; é violentada
na juventude e traída pelo parceiro. Contudo, Bendita também sonha e é a
força deste sonhar que a desperta para a felicidade.
Após a carência inicial, o segundo momento é a ocorrência de um fato que vai
introduzir a ação dramática.
Essa situação de carência é agravada pelo dano propriamente dito: crime
97
[...]; sedução [...]; roubo [...]; maldição fatal [...]. A partir dessas rupturas, a
ação dramática encaminha-se em direção ao estabelecimento do equilíbrio
e resolução da carência, com casamento e reafirmação dos laços conjugais
[...]; justiça [...]; perdão [...] amor materno e fraterno [...]; fé [...];
reconhecimento da inocência [...]. (MAGNANI, 2003, p. 87).
A protagonista Bendita tinha desde criança o sonho de ser cantora e, apesar de
todas as dificuldades, lutou pelo seu sonho, enfrentando um pai alcoólatra, um
amigo que a violou, espancou, traiu, e um marido que entendia que lutar pela vida
era para as mulheres dos outros, e não para a sua.
“O dano – seja qual for sua natureza – acarreta sempre desagregação nas relações
familiares, ou, nos casos em que a situação inicial já apresenta algum tipo de
desequilíbrio nesse plano, constitui um fator de agravamento.” (MAGNANI, 2003, p.
87.) No caso de Bendita, o dano é dado pelo estupro pelo vizinho Caxeta e posterior
gravidez. A desagregação nas relações familiares se expressa pela expulsão de
casa pelo pai, pelo corte forçado do relacionamento com a mãe e o irmão, pela
convivência diária com a traição dentro de casa, o espancamento e a humilhação.
Por fim, culmina com a morte do pai que, alcoolizado, enfrenta o “genro” violador e é
por ele assassinado.
Contra todas as probabilidades, dadas pelas estatísticas e chances de progressão
social junto aos moradores de favela, Bendita luta e atinge seu objetivo. Livra-se do
marido desequilibrado, casa-se com o homem que tinha sonhado, enfrenta-o quando
este tenta desconsiderar sua vontade e alcança o sonho de ser cantora.
A reparação do dano, no final, termina restabelecendo o equilíbrio ou, no
mesmo plano, com uma volta à situação anterior – harmonia no lar [...];
eliminação do perigo [...]; ou, em outro plano, com um novo casamento [...]
e, finalmente, pela exaltação do sentimento ou virtude desqualificados na
etapa da carência. (MAGNANI, 2003, p. 87-8).
Por um lado, a estória da peça é considerada pelos integrantes do Grupo como uma
estória universal, que encontra identificação entre mulheres em situações sociais
muito diferentes daquela vivida pela personagem central. Como mostras dessa
identificação é citada a profusão de lágrimas e risos despertados na platéia durante
as apresentações, e os relatos recolhidos nos debates que se seguem.
98
No caso específico do Grupo, essa identificação ampliada é favorecida pela forma
como foram construídas as personagens, isto é, a partir da compilação da fala de
várias mulheres, cada qual com suas vivências, constituindo uma noção muito
interessante de perfil compartilhado. Ademais,
[...] o ‘efeito de realidade’ de certos discursos, isto é, a sensação que
produzem de remeter diretamente aos fatos, não é o resultado de uma
adequação entre discurso e realidade, mas da correspondência entre
discurso e representações prévias, através de determinados mecanismos e
manobras estilísticas próprias do gênero. (MAGNANI, 2003, p. 92).
Verifica-se que a identificação é tanta que, às vezes, o próprio Grupo se espanta,
como foi o caso de uma apresentação seguida de debate realizada com alunas do
curso de psicologia de uma faculdade de Belo Horizonte. Nesse dia, a comoção na
sala de aula foi tão grande e escandalosa que os membros do Grupo,
compenetrados na encenação, faziam grande esforço para não rir da histeria que a
peça despertou nas mulheres, classe média e média alta, nível universitário.
De acordo com Canclini, esse suposto desencontro entre os emissores e receptores
nada mais é que resultado da própria característica do campo das artes, onde os
diferentes referenciais e vínculos com a sociedade produzem diferentes leituras e
significados das obras. Ademais, "o caráter aberto das peças artísticas e os textos
literários modernos os tornam particularmente disponíveis para que no processo de
comunicação os vazios, os lugares virtuais sejam ocupados com elementos
imprevistos". (CANCLINI, 2000, p. 150).
Se, por um lado, são retratatados sentimentos e vivências de identificação ampla,
por outro, na estória contada na peça, fala-se da vida particular das moradoras da
Barragem Santa Lúcia, cada qual ouvida durante a montagem da peça.
Ao se analisar a peça Bendita do ponto de vista técnico, pensando nas
características e tendências da arte e do teatro contemporâneo, é possível perceber
uma série de aspectos relevantes.
Em primeiro lugar, vê-se que é muito presente no trabalho do Grupo a referência da
realidade onde vive, sem fronteiras muito claras entre representação e vivência.
99
Especificamente a respeito da peça “Bendita”, fica totalmente explícito como o
contexto interfere no processo criativo do Grupo, já que todos os atores são pessoas
da comunidade e o tema proposto por eles parte diretamente de suas histórias e
vivências.
E se o ator é, ao mesmo tempo, material e organizador de seu trabalho, o
Grupo do Beco expressa com clareza a dubiedade dos papéis de produtor e
artista, quando distribui funções administrativas aos atores e torna
necessária a complementação de renda para sustento do Grupo, em
atividades que perpassam pelos papéis de babá, oficineiro e outras do tipo.
Entretanto, se o teatro é a arte de reavivar memórias, comunicando ao ser
humano um outro plano, diferente da realidade cotidiana, também transmite
verdades que permaneciam ocultas, é um ato revelador, ao mostrar,
poeticamente, aquilo que a crueza do dia-a-dia dificulta o reconhecimento.
Essa característica do teatro é muito forte na proposta do Grupo do Beco,
não apenas pela forma de elaboração dos textos, baseados nas histórias da
comunidade, mas também pela opção de realizar debates após cada
apresentação, discutindo com o público os elementos que perpassam, mas
extrapolam o roteiro original da peça. (ALBERTO, 2006, p. 5).
Relatos de Nil César e demais integrantes do Grupo a respeito dos debates com os
espectadores mostram como é distante a percepção do público em geral, moradores
da cidade formal, sobre a vida em uma favela. Surpresas ante situações tão comuns
e cotidianas para o Grupo do Beco mostram que, de fato, há muito caminho a se
trilhar antes de conseguir, através de que meio artístico seja, uma nova visão sobre
as comunidades de baixa renda da cidade.
"Eis também o papel do teatro na sociedade: a construção de uma ponte que
permite a comunhão entre realidades distintas, a celebração de uma vivência
experimentada de maneira mediada pela prática do ator." (ALBERTO, 2006, p.7).
Entende-se que a experimentação na área técnica é outra das características do
Grupo do Beco, sempre trabalhando oficinas de corpo, voz, postura, entre outras,
como já mencionado. Após Bendita, é feita nova montagem pelo Grupo, Morro de
Amores, uma peça de rua onde todos os atores estavam sobre pernas de pau, numa
homenagem aos grupos do teatro popular em geral e ao Grupo Galpão, em
particular. Para essa montagem, todos os atores tiveram que trabalhar novas
técnicas e experimentar além do que já tinham costume de realizar com suas peças
anteriores.
100
Além da utilização da linguagem, contemporânea por estar próxima da fala
popular, da temática do dia-a-dia, e da proximidade com a realidade, na
minha observação acredito também que o trabalho do Grupo do Beco como
um todo é contemporâneo, por diversos motivos.
Em primeiro lugar, por ser um grupo que tem em seu cerne a
experimentação e a criação coletiva como motes. A partir das entrevistas
com as mulheres da favela, cada ator constrói seu personagem em
improvisações, que aos poucos vão sendo moldados coletivamente e se
consolidam num papel dentro da peça. No caso do texto de “Bendita a Voz
entre as Mulheres”, foi ele todo redigido sobre essas improvisações, de
maneira coletiva. (ALBERTO, 2006, p. 7).
Do ponto de vista do espaço cênico, o Grupo também reflete as características do
teatro contemporâneo, uma vez que suas montagens, em geral, prescindem da
caixa cênica tradicional, adaptando-se a espaços diversos – escolas, igrejas, centros
comunitários. Essa escolha coaduna-se com a filosofia do Grupo, que entende a
necessidade de propiciar o acesso à arte pelas comunidades carentes, o que, por si
só, pressupõe uma maleabilidade nos cenários e jogos de cena.
Comentário importante nesse sentido refere-se ao projeto Teatro na Laje, proposto
pelo Grupo e aprovado pela organização internacional Brazil Foundation, que
consiste, justamente, na realização de espetáculos sobre lajes, nos telhados da
comunidade, para pequenos públicos ali presentes, aproximando comunidade e
teatro, realidade e ficção, vida cotidiana e fruição artística.
Destaca-se outra característica da arte contemporânea que se impõe ao Grupo:
[...] o questionamento constante a respeito do limite entre arte e realidade.
Será que o que o Grupo do Beco está fazendo é arte? Retratar a realidade
de sua vila, mostrar a história de suas mulheres? Enfim, é nessa dúvida
constante que seus trabalhos se desenvolvem, evoluem e ampliam seu
público a cada dia.
Segundo reflexão de Cristina Tolentino, o papel do ator no teatro
contemporâneo se confunde com a sua realidade: o ator é aquilo que ele
carrega, sua obra é o que ele constrói ao longo de sua trajetória. Nesse
sentido, é indiscutível a profunda relação com o trabalho do Grupo do Beco
– o ator no limite da auto-representação – quando é que eles são
moradores da favela, quando são atores? E quando esse afastamento ou
aproximação é percebido pelo público? (ALBERTO, 2006, p. 8).
5.3.3 Pessoas e personagens
Impõe-se que a personagem Bendita, por exemplo, é uma composição de diversas
101
mulheres entrevistadas. Desvela-se uma delas, Mariza, mãe aos vinte e um anos:
[...] ser mãe pra mim está sendo o máximo, é uma coisa assim inexplicável
sabe, também ser mãe parece que você ganhou alguma coisa a mais, sabe,
uma coisa muito importante, e que você vai ter que levar pra vida inteira e,
por exemplo, fazer essa poesia, e sabe, encaminhar ela pra vida, e isso, por
exemplo, ensinar ela coisas assim, como é estar aqui neste mundo e tal, e
pra ela ser uma pessoa de bem. (Extrato das entrevistas do projeto Mãos de
Mulher)
Afigura-se outra, Durica, que enfrenta o marido, mesmo fisicamente:
Uma vez, foi no Natal, eu tava fazendo a ceia aqui pra gente cear, eu e os
meninos e ele, aí ele me chamou: ô Dú, vem cá. Eu disse: num posso não,
eu tô fazendo a comida aqui, depois eu vou beber. E ele: não, vem cá,
depois você fala que ninguém te chamou. Eu disse: espera eu terminar
aqui, se não vai queimar. Aí ele: depois fala, anda preta, vem cá.
Eu peguei e fui... saí daqui, fui lá no Ladim e lá tinha um baile... Que que
ocê tava fazendo? Fritando um frango, ele tinha pedido pra fritar pra ele, pra
tirar o gosto do buteco... Eu peguei e fui, larguei, baixei o fogo e fui. Cheguei
lá, ele abriu uma cerveja e falei assim: ô preto, num quero tomar cerveja
agora não, depois eu tomo, deixa eu terminar lá em casa primeiro? Não,
vamos tomar essa aqui, depois você termina.
Aí um moço lá tava dançando e tava muito cheio, o moço me esbarrou, vim
com o braço assim, a minha mão esbarrou assim no rosto dele, aí ele pegou
e virou pra mim e falou comigo assim: ô preta, num bate na minha cara não!
Mas eu num ti bati não, o moço que tava dançando com você que esbarrou
na minha mão e esbarrou no seu rosto.
Ocê me bateu, mulher, num me bate na minha cara não! Falei assim: Mas
eu não te bati... ô moço, explica pra ele que foi o sinhô que esbarrou em
mim. Foi, seu Zé, fui eu que esbarrei... e ele: não puxa o saco dela, ela
bateu em mim.
Aí eu achei desaforo, e eu falei e ele pondo aqueles nomes feios em mim,
eu num te bati na cara... Ah bateu, sim. Não bati não. E eu chamei: então, já
que eu bati, vem cá pra mim te bater então (risos) enfezei, enfezei aí eu
bati, mas sentei, montei nele, empurrei ele lá no chão, sentei a perna assim
no pescoço dele assim ó pra levar...
Lá... no meio da rua, no Natal, dia vinte quatro pra vinte cinco, peguei a
minha perna e tracei no pescoço dele, amassei, e eles gritando: Bate
Durica, e eu PÁ, PÁ, PÁ na cara dele. Aí, eu agora eu bati, ainda até cortei
meu pé aqui ó, tem a marca até hoje, nem sei onde que cortou. Aí, ele
levantou, eu já vim cá pra casa, passei a mão num pedaço de pau: vem,
vem que agora nós vamos conversar é aqui dentro.
Agarrei nos badalo dele, agarrei, meu filho, na hora que ele veio eu bati a
minha mão lá, segurou e eu mudei de mão, fui lá de novo, com essa mão
aqui... já tava meio cansada (gargalhadas). Ah, mas aqui é que foi fogo, o
pai da Dalva é que me tirou, mas ele me xingou demais, coitadinho.
(Extrato das entrevistas do projeto Mãos de Mulher)
Percebe-se essa cena, inclusive, dentro da peça, como uma das que desperta no
público o riso e o relaxamento. Bendita controlando e dominando o segundo marido,
João, através do “aperto” nos testículos. A questão da introdução da comicidade no
102
texto aparece em outros momentos e será discutida posteriormente.
De acordo com os membros do Grupo, relatos como o de Mariza e Durica são
apenas alguns que colaboram para a formação da personagem Bendita, entre as
diversas falas das mulheres da favela.
Configura-se Bendita como a menina que não se conforma, desde pequena, com as
situações que lhe são dadas ou impostas: com o fato de ser xingada de macaca na
escola pelos meninos, de não ser branca como o irmão Samuel, de ter um pai que
bebe e uma mãe conformada, de ter que se submeter às agressões do marido
forçado e de quase ter que abrir mão de seu sonho por causa do segundo marido.
Mesmo diante da violência de Caxeta, seu estuprador e marido forçado, reage com
coragem: (após ser agredida, grávida).
“Fica longe, Caxeta. Você não vai me tocar nunca mais. Seu nojento! Meu
filho é a única coisa que me restou, cê num vai fazê nada com ele. Vai
embora!”
Fica claro que Bendita é a representação da mulher favelada que batalha, não se
dobra ante as carências e problemas e não se cala defronte as injustiças. Bendita
pode perfeitamente ser o retrato de qualquer uma das provedoras das casas da
comunidade, uma mulher capaz de sustentar casa, família, marido, filhos...
Além da protagonista, Bendita, o texto conta com outros personagens marcantes e
importantes para a composição do quadro social, no palco e fora dele, que serão
elencados a seguir.
Apresentam-se os personagens masculinos, que são quatro: José Maria Ferreira da
Silva, o Pai; Caxeta, o Violador; Samuel, o Irmão inocente; João / Jonny Cat, o Galã
que se torna segundo marido. Na estória, cada um deles tem seu papel nos diversos
momentos condutores da ação.
Vê-se que José, o pai, é homem que desde o início da peça já mostrava sua
fraqueza: o apelo do boteco. Pela bebida, trocava uma noite de amor com a mulher
Maria, o acompanhamento do crescimento dos filhos, a dignidade diante do
103
estuprador de sua filha, dono da biboca onde ele pendurava as contas, enfim
acabou por trocar a própria vida. José se mostra o estereótipo do morador de favela
do sexo masculino, no ponto de vista de seus habitantes: honesto, trabalhador, bom
marido, mas dominado pela cachaça.
"(No nascimento da filha): É o paizão. Vem pro papai, vem. Minha primeira
filha, vai ser o orgulho da família. Olha, olha Maria, ela ri que nem minha vó.
(decidido) Então, vai chamar Bendita! [...]. Isso merece uma comemoração
daquelas, (Maria e Bendita se empolgam), vô pro boteco."
Se o processo de pesquisa para constituição da peça tivesse ouvido também
homens, certamente José teria sido um modelo dos mais comuns, mais universal
dentro das comunidades, pelo menos como representação. Também seu destino
trágico, assassinado por uma briga despropositada num bar, referencia-se aos
diversos acontecimentos que são registrados cotidianamente nas favelas: morte sem
propósito claro ou justificado, brigas simples terminando em tragédia, a defesa da
honra como último bastião da dignidade dos estigmatizados, de uma forma ou de
outra.
Agora, volta-se o olhar para o seu opositor na peça, Caxeta. Amigo da família,
sedutor, atrai Bendita para ver seus equipamentos musicais (o sonho dela é cantar),
a seda e a estupra, desmaiada. Nesse momento, o pai entra e se depara com a
cena. Caxeta recebe de brinde pelo acontecido a mulher, que engravida e passa a
viver em sua casa, dividindo o quarto com as diversas amantes que ele leva para a
cama.
Caxeta é personificado, pelos moradores das comunidades, como o anti-homem,
com H maiúsculo, o anti-herói: desonesto, mentiroso, agressivo, covarde, violento,
totalmente vil.
“(após o estupro e a chegada de José) Eu acho melhor você ficar de bico
calado, senão eu te mato e te jogo na rua, tá entendendo? (joga Bendita no
chão).”
Se dá bem durante toda a peça, humilha, maltrata e bate em Bendita, mesmo
quando grávida, despreza sua mãe e sua filha, mas ao final, no momento da
reparação, é quem tem que fugir, após assassinar o “sogro” José, e acaba
104
perseguido pela polícia e por Samuel.
Constitui-se Samuel, o irmão, como criança que cresce ao longo da peça. Branco
(diferente da irmã), ingênuo, configura-se quase como um anjo: é dele o papel de
ligar a mãe e a filha expulsa de casa, de consolar Maria nos momentos de
desespero e tristeza, de velar o pai morto e, mais, até de garantir sua subida aos
céus [...]
"(com o pai morto no chão) Sabe, pai, a mãe me contou que quando morria
alguém lá na roça, as pessoas amarravam um barbante na mão do morto e
esticava bem esticadinho, bem lá no alto que é pra alma do defunto ir direto
pro céu. (Desenrola o barbante e fica olhando para o céu) Pronto! Pode
subir pai. Sobe, pai! (a alma de Zé sobe no barbante, mas Samuel não
percebe, olha para “o corpo” caído do pai e, um tempo depois: Num vai subi
não?!) (Entra Dita. Samuel agacha no “corpo do pai”, pega o chapéu,
coloca-o na cabeça e fala para Dita) – Ô Dita, será que o pai não foi pro
céu? (pausa, vai saindo e dizendo para si mesmo) Será que eu não amarrei
direito? (saem os dois)."
Também é Samuel que vai atrás do foragido Caxeta para vingar o assassinato do
pai e restabelecer a honra da família ultrajada.
Revela-se, por fim, o último personagem masculino, João, também conhecido
artisticamente como Jonny Cat. Já no início da peça, antes de Bendita ser
“desgraçada” por Caxeta, os dois haviam se conhecido num ônibus lotado e tido
atração um pelo outro. João ainda não era Jonny Cat, estava justamente indo fazer
uma entrevista para o emprego de locutor numa rádio. Na trama novelesca, é
justamente nessa rádio que a mãe de Bendita a inscreve para um concurso de
cartas, contando a história de sua vida. Essa carta é a premiada e Bendita, quando
vai buscar o prêmio, uma panela de pressão, acaba por reencontrar João, agora
Jonny.
Se, por um lado, João/Jonny se define a contraponto simbólico de Caxeta (homem
honesto, apaixonado, carinhoso, galã), por outro não poderia deixar de incorporar as
características que o definem como homem na favela: machista, ciumento, quer
mandar na mulher, começa também a beber, e, depois de casado, tenta impedir que
ela continue cantando. “Não, mulher minha não é artista não”, “[...] a gente já
conversou que essa história de cantá não vai levar a nada, num dá camisa a
105
ninguém...”.
Mas, apesar da tentativa de domínio sobre a mulher, no final vê-se que é ela quem
escolhe seu destino. Enfrenta o marido e toma para si a decisão.
"João – quer saber de uma coisa: VO/CÊ NÃO VAI CAN/TAR!
Bendita – ah, num vô não? (levanta a mão e, em câmara lenta, enquanto
toca um pandeiro, abaixa e gruda no saco dele. Solta a mão)
Bendita – ah, minha mão cansou! (repete a câmara lenta, e ela com a outra
mão continua a apertar o saco)
Bendita – ô Couves, liga minha música aí agora. (Bendita solta-o, que vai
até a frente caindo) (todos aglomeram-se sobre ele em burburinhos.
Bendita pega o microfone e começa a cantar)."
João acaba por aceitar a opção da mulher e mesmo a dizer pra todo mundo que é
seu “tipo” empresário (e ela: “tipo segurança mesmo”...), acompanhando a mulher
artista pelas apresentações e afastando os engraçadinhos que tentam dela se
aproximar.
Quanto às personagens femininas, Maria evidencia-se como uma das mais
relevantes. Mãe de Bendita, Maria oscila entre a resignação/submissão ao marido
alcoólatra, e a resistência e apoio ao sonho de sua filha.
"Quando eu dava banho nele eu tinha minhas intenções, porque dar banho
em bêbado num é coisa que eu sonhei pra minha vida, não! (ela liga o rádio
– música de sedução) Pssssiu! (faz uma pose sensual numa cadeira,
esperando Zé repará-la, Zé não ouve, Maria chama de novo) Pssssiu! (faz
a pose novamente e deixa um olho aberto para ver a reação de Zé, ele se
mexe, mas não a repara; Maria decepciona-se, desmancha a pose; olha
para o público, desanimada, vai para perto dele, dançando com um xale,
passando-o nos pés e no rosto do marido, que por sua vez estapeia seu
próprio rosto achando que o xale era mosquito; ela ri da reação dele e
senta-se ao seu lado)."
Nota-se, aqui, o padrão recorrente entre as mulheres do morro: Maria, a mãe, a
genitora, a mulher universal, ama o marido e por ele suporta a agressividade, a
bebedeira, o trabalho desgastante, enfim, as agruras do dia-a-dia. Maria é o
estereótipo – real e não exagerado – da mulher de classe baixa moradora de favela:
trabalhadora, sustenta marido e filhos e busca uma vida melhor para a família. Como
a história de vida de uma das atrizes do Grupo do Beco:
“Minha mãe faleceu há poucos anos, era doméstica de manhã
106
e catava papelão à tarde. Eu e minha irmã catávamos com ela,
papelão, latinha, era a tarde inteira assim.
Minha mãe é exemplo de vida, ela é guerreira, se não fosse ela
eu não tinha estudado. Eu fui começar a estudar com 9 anos,
porque meu pai dizia que a gente não tem que estudar, ‘tem
que agradecer a deus pela vidinha que nós temos’.
Meu pai ainda é vivo – pelo que me lembro, até os meus 8, 10
anos, ele trabalhava de pedreiro. Depois, ele tava fazendo uma
obra e caiu da laje, quebrou uma costela, mas não foi nada
grave assim não, se ele tiver que carregar um botijão, ele
consegue, etc., mas não trabalhou mais não, é aposentado
agora. Meu pai sempre foi muito acomodado, deixava tudo nas
costas da minha mãe, nunca tomou frente de nada.” (Entrevista
com o Grupo do Beco)
Destaca-se outra mulher importante na peça: Anunciação, a fofoqueira solteirona da
vila. Com perfil bastante estereotipado e responsável pelos momentos cômicos da
peça, toma conta da vida de todos e precipita o destino de Bendita. Não aceita
cabresto: homem para ela, nem pensar! Ninguém vai mandar nela não.
"Anunciação – Maria!
Maria – Oi, Anunciação.
Anunciação – Cumé que ocê tá, heim? E a Dita, aquela lá não sai mais de
casa, não?
Maria – Ela deve tá trabalhando demais.
Anunciação – É, o marido dela deve tá prendendo ela dentro de casa, de
chicote e tudo.
Maria – Oh, Anunciação, bate na boca três vezes. Nossa Senhora protege
minha filha.
Anunciação – Se precisar de mim, eu tô aí: levo e trago notícias. Pra mim
não é nenhum problema. Eu não tenho marido para mim prender, né?"
O caráter cômico de Anunciação é reforçado pela montagem: ela aparece sempre
emoldurada por uma janela aberta, que carrega para todos os lados, imagem típica
da fofoqueira de bairro ou das cidades do interior, que muito têm a ver com as
favelas.
De acordo com Magnani (2003), a comicidade é também uma das características do
drama popular e do chamado melodrama, não como elemento estranho a ele, mas
como parte de sua própria estrutura. Além de aliviar um pouco a tensão do público
após momentos dramáticos, a comicidade cumpre o papel de distrair o público,
prender sua atenção e fazer com que agüente mais um ou dois atos até o desfecho
final.
107
Anunciação, dentro das entrevistas com as mulheres, mostra-se brigona igual à
Durica:
"Eu briguei com a dona Figênia, tadinha... (risos). Hoje ela mora na
Capelinha. Eu coloquei minha lata... eu levantei cinco horas da manhã e
coloquei a lata na fila, pra marcar lugar pra pegar água que tinha chegar 7
horas. Aí eu fui, pus a lata na fila e fui embora dormir. E a minha hora, a
minha vez da minha lata chegou, ela foi e tirou minha lata e pôs pra trás da
fila e a fila tava grande e eu tinha que levar minha irmã prá escola e aí eu
perguntei: Quem é que tirou minha lata daqui? Ah, foi fulana... Ah, chegou e
eu já fervi nela. Dei nela umas duas latadas boas nas costas (risos) pá!
Costa afora, ela correu lá em casa e contou pro meu pai." (Extrato das
entrevistas do projeto Mãos de Mulher)
Forte igual à Beth, pastora evangélica:
"Eu não sou dona do mundo, mas sou filha do dono. Outra coisa, não existe
nada que eu não possa fazer, nada. Eu aprendi uma coisa, as pessoas, por
piores que elas sejam, têm sempre um lado bom, [...] eu aprendi a lição,
mesmo morando na favela, veja um rapaz armado, sei que ele tem algo de
bom e eu valorizo o que há de bom nessa pessoa, quem vem até a mim,
valorizo essa pessoa. Então, deixo essa mensagem: todos têm uma coisa
boa, valorize o que ela tem de bom e você muda tudo na vida da pessoa, o
maior problema é que vemos alguém armado e já dizemos que não vale
nada, ele vale sim. [...]
Eu sou uma mulher fora de série. Por exemplo, camisetas iguais, mesmo
padrão, tamanho, e cor, então, quando uma camiseta sai com defeito, com
uma gola virada ao contrário, ela saiu da série, então uma mulher fora de
série é porque eu sou diferente das outras mulheres. Estão em casa
preocupadas com filhos, marido, eu sou a única mulher que é líder, né? E
aqui da Barragem sou a única que preocupa com areia, cimento, a loja
predileta pra mim é depósito de construção. Quanto vale martelo, prego,
gosto de ver se tá na medida certa, coisas semelhantes, então eu sou fora
de série.
Mas todos nós somos fora de série, tá? Eu digo isso porque tenho
convicção, mas nossa carteira de identidade prova que somos diferentes
uns dos outros, então as pessoas é que ainda não descobriram que são
fora de série em uma área, entendeu? Por isso é que digo que sou fora de
série, basta você se considerar, ninguém é igual a ninguém, alguma coisa é
diferente." (Extrato das entrevistas do projeto Mãos de Mulher)
Segue-se outra personagem: Consolação, mãe de Caxeta. Consolação tem a
resignação da mãe que não concorda, mas no fundo sempre desculpa as atitudes
dos filhos e acha que a vida de cada um é o fardo que tem que carregar. Por outro
lado, é quem ajuda Bendita na ausência da mãe, apóia, consola, ajuda.
"Consolação – (percebe o choro de Bendita) Menina... (pausa, escuta) Ô,
menina, vem cá vê o bordado que eu tô fazendo. (Bendita chorando vai ao
encontro de Consolação) Senta aqui. Ô minha filha, cê é fia da Maria num
108
é? Num liga para esse meu fio, não, que ocê se acostuma. No meu tempo
de moça, briga de namorado era normal. E eu, quando tinha sua idade,
assim, eu era namoradeeeeira, tive sete namorados..."
Uma atriz do Grupo do Beco que participou das entrevistas com as mulheres do
morro realça:
"Nas entrevistas, o que mais me surpreendeu foi a questão do
amor da mulher pelo filho dela. Ela tem um filho que está
preso, então toda vez que ela vai visitar, ela tem que tirar a
roupa toda, ela fala assim que é muito constrangedor para ela
ficar tirando a roupa para visitar o filho na cadeia, daí ela disse
pra ele que não ia visitar ele mais porque era uma situação
muito difícil para ela. Se o filho dela visse isso acho que ele
não ia mais mexer com droga, ou roubar, porque eu vi a
tristeza no olhar da mãe dele quando ela falou – até cheguei
em casa e contei para os meus sobrinhos, falei para eles
tomarem muito cuidado, para não entrarem nessa vida, porque
não tem volta, vão morrer cedo – isso me marcou muito.
Ao mesmo tempo, era uma pessoa muito alegre – com tudo o
que ela passou – outro filho dela morreu há pouco tempo, ela
levantando o astral da gente – eu até comecei a chorar, ao ver
a força que ela tem." (Entrevista com o Grupo do Beco)
Apesar das dificuldades vividas pelas mulheres na peça, sua última cena demonstra
uma mensagem de esperança e resistência, onde todos os atores cantam juntos no
palco a música Nome Sagrado:
“O nome de mulher é tão sagrado
Mulher é nome pra ser respeitado
A cobra não morde uma mulher gestante
Porque respeita seu estado interessante
Minha mãe também tem nome de mulher
Tenho que defender
Eu choro quando vejo ela sofrer
Deus nosso Senhor devia castigar
O infeliz
Que faz uma mulher chorar.“
É importante realçar que a questão do gênero é somente um dos recortes possíveis
a partir da peça. Apesar de forte e estruturante na narrativa, não é o foco deste
trabalho, uma vez que o que se pretende aqui é tratar do papel da arte na
transformação social nas comunidades faveladas.
Como se buscará discutir no próximo capítulo, é através das manifestações
artísticas que os moradores das comunidades vêm sendo confrontados com novas
109
realidades
e
novos
horizontes.
Esse
confronto
propicia-lhes
vivências
e
oportunidades que têm se revelado transformadoras em aspectos que vão desde a
questão da auto-estima e da identidade pessoal até as formas de relacionamento e
participação em processos coletivos em suas comunidades.
A peça “Bendita a Voz entre as Mulheres” foi escolhida para efeitos de análise neste
trabalho justamente por trazer para a ficção esse processo de transformação a partir
da arte.
Nas palavras de uma das atrizes do Grupo:
"Agora, como atriz, eu acho que a gente serve como exemplo,
porque as pessoas acham que a gente do morro tem que ser
faxineira, tem que ser pedreiro, e a gente mostra que pode ser
algo a mais, sabe? Não tenho nada contra, para mim não
existe serviço subalterno, a humildade tem que estar em
primeiro lugar, né? Se eu tiver que ser, vou ser. Mas se a
pessoa quer ser uma professora, uma advogada, por que não
correr atrás?" (Entrevista com o Grupo do Beco)
Percebe-se que a peça reforça, por intermédio de sua narrativa, dois momentos
distintos na vida de Bendita: antes e depois de seu envolvimento com a arte, como
cantora. Antes, submissão, falta de controle de seu destino, violência doméstica,
passividade, depressão. Depois, auto-estima elevada, desejo de lutar por seus
ideais, reconhecimento, satisfação pessoal e controle das relações familiares.
Na peça, vê-se que é através da arte que Bendita se reconhece e parte para a ação.
Na realidade dos artistas das favelas, a situação mostra-se muito parecida, em todos
os aspectos.
110
6 O PAPEL DA ARTE DA CULTURA NAS VILAS E FAVELAS
A análise da questão cultural nas vilas e favelas de Belo Horizonte, em geral, e do
caso do Grupo do Beco, em particular, leva à reflexão a respeito do papel da arte e
da cultura nas comunidades ditas periféricas.
Essa reflexão se impõe a partir do momento em que se verifica que a produção
cultural, na maioria das vezes, não representa fonte de renda para esses artistas.
Conforme apontado pelo Guia Cultural das Vilas e Favelas de Belo Horizonte,
somente 20% dos artistas cadastrados têm algum tipo de renda com essa atividade.
A partir dessa constatação, é possível aventar a hipótese de que a atividade artística
cumpre outros papéis diferentes nas vilas e favelas, não diretamente relacionados
ao mercado cultural stricto sensu. Nem renda e nem visibilidade, já que também
apenas uma pequena parcela dos envolvidos na produção cultural na periferia
conquista espaço na mídia ou chega a sobressair-se fora de sua comunidade, como
é o caso do Grupo do Beco.
Essa visão considera a cultura como um recurso, ou seja, como um capital do qual
se lança mão com objetivos e em momentos distintos.
A cultura é, hoje, vista como algo em que se deve investir, distribuída nas
mais diversas formas, utilizada como atração para o desenvolvimento
econômico e turístico, como mola propulsora das indústrias culturais e como
uma fonte inesgotável para novas indústrias que dependem da propriedade
intelectual. (YÚDICE, 2004, p. 11).
A instrumentalização da cultura, mais do que teoria, vem sendo praticada com
freqüência nas vilas e favelas e em projetos sociais, que se utilizam das práticas
artísticas para obter resultados e atingir objetivos os mais diversos. “[...] a cultura é
invocada para resolver problemas que anteriormente eram da competência das
áreas econômica e política.” (YÚDICE, 2004, p. 13).
Algumas hipóteses estão presentes nessa reflexão e informam o presente trabalho.
Considerando as falas dos artistas entrevistados e o estudo das práticas culturais
111
nas comunidades, o que se verifica é que a produção artística nas vilas e favelas,
instrumentalizada, pode atender a três facetas principais.
Em primeiro lugar, há os aspectos relacionados à elevação da auto-estima, autoreconhecimento e construção de uma nova representação do indivíduo perante o
outro e o Grupo. Em segundo, realçam-se aspectos relacionados às formas de
sociabilidade e convivência intergrupal. E, por fim, são fundamentais nesse processo
os aspectos ligados à participação e mobilização comunitária, mediante novas
formas de ação coletiva e ampliação dos direitos da cidadania.
Ao longo da experiência adquirida com a elaboração do Guia Cultural das Vilas e
Favelas e na atuação ligada à ONG Favela é Isso Aí, construiu-se o entendimento
de que, para os moradores das comunidades, participar de grupos artísticos tem
reflexos em seu crescimento pessoal, individual, sem sombras de dúvida.
Entretanto, também pode ser percebida uma questão de cunho mais coletivo, já que
a participação nesses grupos promove e constrói novas relações, novas articulações
e novos movimentos dentro da própria comunidade.
Os poucos estudos existentes que relacionam cultura com redução da violência e da
criminalidade indicam que o impacto não é só pessoal, mas, ao contrário, extrapola
as fronteiras do indivíduo, perpassando por impactos comunitários, sociais, ainda
que muitas vezes não esperados ou mensuráveis.
O presente capítulo pretende trazer um olhar sobre esses aspectos, por meio da
análise da bibliografia disponível, de forma a subsidiar uma visão da temática em
pauta.
Nesse sentido, é importante salientar que a bibliografia específica sobre o tema
deste trabalho é escassa – e essa foi uma das principais dificuldades para a
discussão da problemática em foco. Apesar de muito se falar sobre arte e
transformação social, pouco se tem avaliado e publicado a respeito dos reais
impactos e implicações das políticas culturais sobre as populações marginalizadas
ou em risco social.
112
6.1 Auto-estima, identidade, diversidade
A expressão auto-estima é a que mais se ouve quando se relaciona arte e favela.
Tanto na fala dos muitos projetos sociais que atualmente trabalham nesse enfoque,
quanto dos próprios artistas e envolvidos na produção cultural, moradores dessas
comunidades, parece uníssona a afirmação de que a arte e a cultura transformam o
indivíduo no que ele tem de mais íntimo: sua visão de si mesmo.
Essa temática aparece como relevante ao se aventar a hipótese de que é a partir da
transformação de sua visão de si mesmo, de seu auto-reconhecimento e elevação
da auto-estima que o sujeito, morador de favela ou não, transcende a barreira do
individual e transforma sua ação e relacionamento com o mundo.
A transformação do indivíduo pode, assim, impactar no coletivo, e esse impacto tem
como fonte geradora uma série de variáveis, que, entretanto, ainda não são tão
claras para os pesquisadores. Definir indicadores para a cultura ainda é uma tarefa
em construção.
Os pesquisadores dos estudos culturais muitas vezes enxergam a agência
cultural de forma mais circunscrita, como se a expressão ou a identidade
individual ou grupal em si levasse à mudança. Mas, como Iris Marion Young
aponta: “nós nos encontramos situados em relações de classe, gênero,
raça, nacionalidade, religião e assim por diante, [dentro de uma 'dada
história de significados sedimentados e uma paisagem material, interagindo
com outros no campo social'] que são fontes tanto de possibilidades de
ação quanto de coação. (YÚDICE, 2004, p. 15).
Vale realçar que grande parte do que aqui será dito não se aplica somente a
moradores de vilas e favelas, em que pese a constante necessidade da sociedade
de marcar as diferenças individuais a partir das diferenças sociais.
No caso da forma como a arte impacta o indivíduo, as diferenças sociais ficam um
pouco menos evidentes. De qualquer forma, ainda que o que será dito se aplique à
grande parte dos indivíduos, o objetivo aqui é falar dos artistas moradores de favelas
e suas relações com a atividade artística.
113
O envolvimento dos moradores das favelas com a arte, especialmente quando se
encontram na condição de produtores, de “fazedores de arte”, tem sido apontado
como um importante fator de transformação social. Como antes mencionado, os
argumentos vão em direção da elevação da auto-estima, da construção de uma
nova visão de si mesmo e, portanto, da produção de novas formas de se relacionar
com o mundo e com a comunidade.
Por outro lado, vê-se que esse processo ainda é restrito e de pequena dimensão,
principalmente pelo fato de que se desvalorizam, na sociedade, as artes ditas
populares, em contraposição tanto às eruditas quanto às de massa.
Mesmo nos países em que o discurso oficial adota a noção antropológica de
cultura, aquela que confere legitimidade a todas as formas de organizar e
simbolizar a vida social (obs.: que também é o caso do Brasil desde a era
Gilberto Gil no Ministério da Cultura), existe uma hierarquia dos capitais
culturais: a arte vale mais que o artesanato, a medicina científica mais que a
popular, a cultura escrita mais do que a transmitida oralmente. (CANCLINI,
2000, p. 194).
Há relatos muito interessantes que falam de como os indivíduos moradores de
favela se sentem mais confiantes após envolver-se com a arte. De como perdem a
vergonha de circular por locais que antes consideravam inadequados para si. De
como passam a participar de círculos de amizade e relacionamento que antes lhes
pareciam inacessíveis. De como passam a ter acesso à informação e ao
conhecimento em áreas diversas. Enfim, de como deixam de se sentir humilhados e
diminuídos em virtude de seu local de moradia e transformam a vergonha em força,
orgulho pela origem e auto-afirmação.
Esse é um processo de empoderamento, neologismo da moda originário do inglês
empowerment, geralmente aplicado em processos de desenvolvimento local, que
tem sido usado significando tomar o destino em suas próprias mãos, reconhecer sua
importância e seu papel na construção da sociedade e agir em prol da
transformação das condições de vida.
No caso das vilas e favelas, pode-se dizer que o empoderamento começa
justamente pela construção de uma nova identidade. Se, como se discutiu no
primeiro capítulo, o que o morador de favela recebe como sua imagem, construída e
114
disseminada na sociedade, é um retrato que soma ausências a desvios de caráter, o
reflexo no espelho, o que devolve tende a ser uma imagem invertida desse
personagem no qual não se reconhece.
A identidade só existe no espelho e esse espelho é o olhar dos outros, é o
reconhecimento dos outros. É a generosidade do olhar do outro que nos
devolve nossa própria imagem ungida de valor, envolvida pela aura da
significação humana, da qual a única prova é o reconhecimento alheio.
(SOARES in ATHAYDE, 2005, p. 206).
Romper o ciclo vicioso do espelho e do sentimento de revolta e inadequação é um
processo difícil que tem na arte um aliado precioso, justamente como mecanismo de
visibilidade do eu frente ao outro.
Nós nada somos e valemos nada se não contarmos com o olhar alheio
acolhedor, se não formos vistos, se o olhar do outro não nos reconhecer e
salvar da invisibilidade – invisibilidade que nos anula e que é sinônimo,
portanto, de solidão e incomunicabilidade, falta de sentido e valor. Por isso,
construir uma identidade é necessariamente um processo social, interativo,
de que participa uma coletividade e que se dá no âmbito de uma cultura e
no contexto de um determinado momento histórico. (SOARES in ATHAYDE,
2005, p. 206).
Nesse sentido, entende-se que a arte e a produção cultural lançam o indivíduo para
fora da invisibilidade, conferem-lhe existência (positivamente qualificada, o que é
melhor) e contribuem para essa inclusão na coletividade.
A literatura a respeito da temática da identidade é vasta e a cada dia vem sendo
alimentada por novas discussões e vieses. Não se pretende, neste capítulo,
aprofundar a questão da identidade e seus autores, mas, sim, contribuir para a
análise de um dos três papéis da cultura (instrumentalizada) na favela, propostos
neste trabalho.
Retornando à questão, vários autores apontam o caráter contrastivo da identidade. É
na relação com o outro que o indivíduo se constrói para si mesmo. A identidade
contrastiva implica a afirmação de nós diante dos outros, motivo pelo qual surge por
oposição, não se afirmando isoladamente.
Sendo a identidade uma experiência da relação, que se dá sempre na
esfera da inter-subjetividade, dos símbolos, das linguagens, da cultura, ela é
115
sempre uma experiência histórica e social.
Não há como focalizar a problemática da identidade e driblar a questão do
pertencimento. (SOARES in ATHAYDE, 2005, p. 207).
No caso em pauta, fica claro que o artista morador de favela se posiciona a partir da
visão que a sociedade tem dele, visão sobre a qual não tem domínio e não
consegue mudar, apesar de todos os esforços.
O dualismo, que aparta o morro e o asfalto, impõe ao morador das favelas
uma habilidade muito especial na construção de sua identidade (mal vista,
como mostramos, pelos outros moradores da cidade) e, principalmente, no
trânsito pelo resto da cidade – que parece desconhecer o que, de fato,
existe e acontece nesse que, para eles, seria o “outro lado”.
Seus moradores são ininterruptamente bombardeados por inúmeras
construções ideológicas (como o discurso da pobreza, o mito da
marginalidade, as diferentes máscaras do preconceito, as ações
discriminativas, etc.), e são por elas influenciados, claro, e sobre elas agem
por diversos mecanismos, que atuam na construção identitária e na
organização social, micro e supra. A população moradora das favelas
apresenta incontáveis iniciativas na busca de seu desenvolvimento a partir
da base comunitária, valorizando os atores locais e participando
efetivamente na dinâmica social. Podemos perceber diversas estratégias de
defesa e oposição, de resistência, de busca de melhores condições de vida,
de luta contra a invalidação da qual são objetos, colocados regularmente
numa posição de bode expiatório dos problemas da cidade. (NOGUEIRA,
2004, p. 83).
Essa visão é conformada especialmente a partir dos preconceitos, dos estereótipos
e estigmas, dos pontos negativos que forçam a oposição, que pedem um
posicionamento positivo e proativo.
Uma das formas mais eficientes de tornar alguém invisível é projetar sobre
ele ou ela um estigma, um preconceito. Quando o fazemos, anulamos a
pessoa e só vemos o reflexo de nossa própria intolerância. Tudo aquilo que
distingue a pessoa, tornando-a um indivíduo; tudo o que nela é singular
desaparece. O estigma dissolve a identidade do outro e a substitui pelo
retrato estereotipado e a classificação que lhe impomos. (SOARES iIn
ATHAYDE, 2005, p. 175).
A diferença e a afirmação da diferença se expressam e se constroem durante o
contato com o outro, isto é, a identidade dos sujeitos é construída na relação, o que
leva à afirmação de que a relação é, portanto, mais importante que os termos, os
conteúdos preestabelecidos. As formas de relacionamento do morador de favela
com os moradores do restante da cidade é que são marcantes para a construção
mútua das imagens e das identidades. Nesse sentido, a manifestação artística
transforma completamente a relação estabelecida, confrontando assim novas
116
configurações identitárias.
Os relatos dos integrantes do Grupo do Beco expressam bem essa transformação. A
partir de seu envolvimento com a prática artística, afirmam que passaram a ver-se a
si mesmos e a serem vistos de maneira diferente pela sociedade. Conquistaram o
respeito e a admiração dos outros, revertendo toda uma história de invisibilidade
e/ou discriminação e preconceito da qual já haviam sido vítimas e atores, de uma
forma ou de outra.
A fala de uma das atrizes é paradigmática:
"[Para mim] é mais uma satisfação pessoal. Dinheiro, dinheiro,
não entra não, é mais a alegria de estar ali, a sensação de
estar passando uma energia para o público, de poder dar aula
de teatro pros meninos do Bicão, a alegria deles quando
encontram com a gente, é mais a alegria de estar podendo
repassar do que receber.
Também a questão de você ir a alguns lugares que quando
pequena não tinha coragem de entrar, passava e achava aquilo
um monstro, tipo shopping, Palácio das Artes, teatros, coisas
mais chiques – antes a gente não entrava, hoje para a gente é
supernatural. Ficava com vergonha, oprimido, sentindo desse
tamanhozinho – de estar ali e achar que aquilo ali não é seu
espaço, seu lugar, seu mundo." (Entrevista com o Grupo do
Beco)
Concebe-se que, além de contribuir para uma nova visão de si mesmo, a atividade
artística tem o papel da dar voz àqueles que tradicionalmente foram excluídos das
esferas públicas. Durante muito tempo retratados pelos agentes que subiam o
morro, ou antes pelos que olhavam o morro de longe, atualmente os moradores das
favelas têm se instrumentalizado para se expressar através da arte e dos meios de
comunicação popular, alternativa.
[...] as vantagens das elites tradicionais na formação e nos usos do
patrimônio se relativizam frente às transformações geradas pelas indústrias
culturais. A redistribuição maciça dos bens simbólicos tradicionais pelos
canais eletrônicos de comunicação gera interações mais fluidas entre o
culto e o popular, o tradicional e o moderno. (CANCLINI, 2000, p. 197).
Em relação à questão dos meios de comunicação, apesar de não ser o enfoque
deste trabalho, faz-se necessário tecer algumas considerações, dada sua estreita
117
relação com a favela, as representações sociais e a produção artística local. Em
linhas gerais, é possível identificar as seguintes interfaces da temática em pauta
com a análise dos meios de comunicação de massa:
Recepção x produção – isto é, o quanto a população favelada constrói e contribui
para o conteúdo da mídia e o quanto absorve conteúdos construídos pelas
classes hegemônicas. No caso das vilas e favelas, a principal interação com a
mídia ainda é no papel de receptores, seja por falta de condições de acesso à
produção, seja pela desconfiança da população com os meios de comunicação,
focada tanto em experiências pessoais negativas quanto no próprio uso que o
jornalismo policial faz da favela e sua imagem;
Mídia e favelas – como, nos dias atuais, os moradores de vilas e favelas se
apropriam das mídias alternativas (e quais são elas) para transmitir uma imagem
própria de si e de sua comunidade;
Mídia e violência – como se apresenta o estereótipo da favela nos jornais e como
essas matérias repercutem nas comunidades e seus moradores;
Mídia e juventude – interessa ver, por um lado, como há a recusa da mídia
tradicional por uma parte dessa juventude das periferias, principalmente pelo
movimento hip hop, que se queixa de rotulagem, discriminação, sensacionalismo.
Por outro, como a juventude, mediante diversos projetos socioculturais, vem
usando as novas mídias para transformar e fazer a diferença.
É importante destacar que todos os itens acima poderiam ser aprofundados no
contexto do trabalho em pauta, uma vez que têm interface com as vivências do
Grupo do Beco e dos moradores das comunidades. Entretanto, o que mais interessa
aqui é o que relaciona mídia, juventude e projetos socioculturais.
De fato, o que se vê é que os movimentos artísticos e culturais nas comunidades
existem há mais tempo, ainda que não com a força e o apoio que têm tido nos dias
atuais. Antes, eram muito ligados à ação da Igreja, que exercia o papel de
estimulador e apoiador, como o próprio caso do Grupo do Beco exemplifica. Hoje em
dia, o que se depreende é que há uma ampliação dessa abrangência, das redes de
apoiadores, enfim, que a temática encontrou um terreno fértil na sociedade.
Há evidências de que a sociedade e a mídia que a representa têm, nos últimos
118
anos, prestado atenção às manifestações que surgem nos espaços populares,
principalmente para as artes das periferias urbanas, o que traz às comunidades
outro tipo de visibilidade e reconhecimento, que não passa pelo sensacionalismo da
mídia tradicional.
É sabido que a entrada da arte popular urbana nas agendas, especialmente no
Brasil, da mesma forma que os processos ambientais, por exemplo, vem puxada
pela ação das organizações não-governamentais e dos movimentos sociais. A
reboque, vem a mídia, interessada naquilo que é a “bola da vez”. Também o Poder
Público vem a reboque, criando políticas para atender às pautas dessa agenda,
pressionado ou sensibilizado pelos movimentos sociais.
É importante salientar que, em Belo Horizonte, a mídia, apesar dessa abertura,
ainda não conseguiu, em sua maioria, conciliar as notícias das comunidades com as
notícias dos outros bairros da cidade ou outros grupos sociais. Quando se destaca a
produção das favelas, é sempre com um caráter “folclórico”, isto é, uma exceção que
deve ser conhecida e apoiada por sua estranheza e raridade.
No Rio e São Paulo, talvez, essa postura possa estar um pouco diferente, visto que
a própria Rede Globo incorporou em sua programação projetos que trazem o
cotidiano das periferias e das artes populares de todo o País.
Destaque-se que a atratividade da produção cultural das favelas, pelo menos em
Minas, fica restrita também pelo fato de que a arte que nelas é feita não tem o apelo,
a priori, do ponto de vista das massas. Ao contrário do Rio de Janeiro (onde o foco é
o funk, que arrasta multidões), ou de São Paulo (com predomínio do rap), percebese que em Belo Horizonte a produção das comunidades é, por um lado,
extremamente diversificada e, por outro, dispersa, com pouca união e mobilização
dos grupos. Por fim, acaba pesando contra uma tendência a focar na cultura de
caráter “regional” mineira, nas manifestações mais ligadas à origem rural, tradicional
(contraposto ao moderno) e de menor apelo nos meios de comunicação.
"Os produtos gerados pelas classes populares costumam ser mais representativos
da história local e mais adequados às necessidades presentes do grupo que os
119
fabrica. Constituem, nesse sentido, seu patrimônio próprio." (CANCLINI, 2000, p.
196).
Desse modo, pode-se dizer que a arte das periferias representa o particular, em
oposição ao universal, e o tradicional, em oposição ao moderno. Sendo assim, não
apresentam, a princípio, atratividade para fora das fronteiras da comunidade.
Para reverter esse quadro, nos últimos anos, o que se tem visto é a apropriação de
algumas mídias pelas comunidades periféricas, cujo grande exemplo é a Rádio
Favela.
A emissora tem um papel fundamental na cidade, pois se assume como um
veículo da favela, não usa nenhum tipo de subterfúgio ao se autodenominar.
Misael Avelino, um de seus fundadores, desapega-se da carga negativa que
o termo carrega e, em suas próprias palavras, “usa o microfone para
amplificar o que os moradores de favelas têm a dizer”. [...] a Rádio Favela
se torna um marco em Belo Horizonte, justamente por questionar e propor
uma nova representação da favela e dos moradores de favelas. (CRUZ in
LIBÂNIO, 2004, p. 66).
Foram encontradas, na pesquisa para o Guia Cultural das Vilas e Favelas, em 2004,
22 rádios comunitárias, além de 11 jornais impressos ou fanzines nas áreas
visitadas. Por um lado, são veículos que, a rigor, não se enquadrariam, a não ser
pela questão técnica, na definição de mass media, por seu pequeno alcance e
audiência. Por outro, vêm ampliando seus horizontes, saindo cada qual de sua
favela (super local, prestação de serviços comunitários) e realizando verdadeiros
movimentos de integração entre as diversas favelas existentes, entre si e com o
restante da cidade.
Nesse contexto, as tecnologias de comunicação e informação (TICs) abrem
novas perspectivas. A informação colocada no ciberespaço potencialmente
pode ultrapassar limites físicos e atingir um público diferido (não presencial
e imediato) e difuso (uma ampla gama de pessoas).
[...] Grupos sociais das favelas, principalmente os culturais, identificaram, há
um tempo, a potencialidade desse deslocamento e estão investindo nos
processos comunicativos no ciberespaço como forma de intensificar as
trocas entre diferentes atores das cidades. A internet surge como um canal
para os moradores de favelas apresentarem suas demandas na esfera de
visibilidade midiática. (CRUZ in LIBÂNIO, 2004, p. 68).
Vê-se que a comunicação popular também tem sido ampliada em todo o País,
principalmente após a criação do programa dos pontos de cultura, pelo Ministério da
120
Cultura, que tem o mérito de dotar de equipamentos e capacitar jovens e
movimentos socioculturais para a prática da comunicação via rádio, vídeo, jornais e
outros meios, principalmente a internet.
Feito tal parênteses, retoma-se a discussão a respeito da importância da cultura
para o fortalecimento das identidades locais, apoiadas pelas novas mídias. Entendese que estas, ao contrário do que se imagina de fora, são construídas a partir da
diversidade de manifestações, e não de uma suposta homogeneidade ou unicidade.
Aliás, de acordo com Yúdice, “a cultura como recurso pode ser comparada à
natureza como recurso, especialmente desde que ambas negociem através da
moeda da diversidade” (YÚDICE, 2004, p.13). E no caso das favelas, pode-se dizer
que a diversidade aparece não somente como nata (os estereótipos da “criatividade
do pobre” e da “musicalidade do negro”, entre outros), mas também, e
principalmente, como uma construção cotidiana, como forma de resistência, de
recusa aos rótulos e de marcação de uma diferença.
De fato, a teoria antropológica discute que, da mesma forma que a identidade, a
diversidade se constrói não pelo isolamento, mas via contato entre culturas, já que
as sociedades humanas nunca se encontram isoladas – em especial, nas áreas
urbanas, como aqui, mantêm entre si estreitos relacionamentos. Parte das
diferenças constitutivas das identidades é justamente fruto do desejo de oposição,
de se distinguirem, de serem elas próprias.
Por meio das novas músicas não tradicionais como o funk e o rap, eles
procuram estabelecer novas formas de identidade, mas não aquelas
pressupostas na autocompreensão do Brasil, tão anunciadas, como sendo
uma nação de diversidade sem conflitos. Pelo contrário, a música é sobre a
desarticulação da identidade nacional e a afirmação da cidadania local.
(YÚDICE, 2004, p. 162).
Concebe-se que a diversidade cultural, mais do que um direito formal, é exercitada
como prática e torna-se objeto de políticas específicas para sua proteção e
promoção,
seja
pelos
poderes
públicos,
governamentais e organismos internacionais.
seja
pelas
organizações
não-
121
Segundo Barros,
[...] diversidade cultural refere-se [...] aos diversos modos de agir com e
sobre a natureza, mas também aos dinâmicos e inesgotáveis processos de
atribuição de sentidos e significados.
A idéia de desenvolvimento que a cultura realiza [...] é tanto a geração de
um bem subjetivo – o desenvolvimento espiritual do homem e o
aprimoramento das relações sociais através dos inúmeros processos de
socialização, quanto a constituição de uma economia de bens simbólicos,
um mercado de troca de sentidos que permite e desafia a vida coletiva.
Na primeira dimensão, a cultura gera desenvolvimento humano porque
fornece instrumentos de conhecimento, reconhecimento e autoreconhecimento, ou seja, gera identidade. Na segunda dimensão, a cultura
oportuniza a vida coletiva e pode incidir sobre as condições materiais de
vida, gerando riquezas e organizando um mercado de bens culturais.
(BARROS, 2008, p. 50).
A Convenção para a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões
Culturais, adotada pela UNESCO em 2005, visa, entre outros:
defender a riqueza cultural, em sua capacidade de gerar interação;
promover e proteger a diversidade das expressões culturais;
fortalecer as ligações entre cultura e desenvolvimento, este considerado tanto no
seu sentido material quanto no seu sentido simbólico.
Adotando-se a diversidade como vivência e discurso, uma nova identidade do
morador de favela, construída a partir de sua valorização como artista, seja em seu
meio e comunidade, seja fora deles, tem conseqüências diretas nas formas de
socialização e relacionamentos e contribui para a construção de uma nova visão dos
moradores de favela na sociedade. É sobre isso que se falará a seguir.
6.2 Grupo, redes, interação
Outro aspecto que merece ser realçado quando se fala de arte e favela é a
importância das manifestações culturais na formação ou fortalecimento de grupos
sociais e no estabelecimento de redes de relacionamento interna e externa.
Nesse sentido, engloba-se a faceta da arte como fator de socialização, aspecto
especialmente importante quando se fala de juventude. Ainda que o recorte etário
não seja excludente nesse aspecto, é com os jovens que a arte assume seu
122
principal papel, pois são justamente eles que se encontram num ponto de inflexão
mais grave no que se refere aos riscos sociais e à tomada de decisões a respeito
dos rumos e destinos futuros.
Estudos a respeito da evolução da criminalidade nas vilas e favelas têm tendido a
mostrar queda nas taxas de homicídios em áreas em que se implantam projetos que
têm na arte seu instrumento de aglutinação de jovens. Nessa linha, destaca-se o
projeto Fica Vivo, em Belo Horizonte, realizado pelo Governo do Estado, e os
projetos adotados pela ONG Afroregae, no Rio de Janeiro. Ambos têm a intenção de
trabalhar a redução da violência por meio da arte e da cultura.
A defesa da centralidade da cultura para a solução de problemas sociais
não é novidade, mas ela tomou diferentes formas no passado [...]. A arte se
dobrou inteiramente a um conceito expandido de cultura que pode resolver
problemas, inclusive o de criação de empregos. [...] os artistas estão sendo
levados a gerenciar o social. (YÚDICE, 2004, p. 28-9).
Esse autor, estudando sobre o funk no Rio de Janeiro, comenta:
Embora o funk tenha sido inicialmente visto pelas classes médias e
autoridades como uma arma usada pelos jovens pobres para se insinuar no
espaço social das elites, dentro do contexto da iniciativa para se renovar a
cidade com a participação de todos, esse movimento musical tornou-se um
recurso, bem parecido com o samba de outrora, para a integração daqueles
setores da sociedade segregados uns dos outros. (YÚDICE, 2004, p. 197).
Além da integração dentro da própria comunidade, portanto, o autor realça a
importância da arte como fator de integração externa, isto é, de construção de um
relacionamento com a sociedade que até então discriminava aquilo que vinha das
favelas. Nesse sentido, entende-se que tem sido muito importante o papel das
ONGs e projetos socioculturais que utilizam como estratégia a aproximação das
pessoas (moradoras das favelas e dos bairros) via manifestações artísticas e
culturais, de forma que elas possam se conhecer mutuamente e interagir,
momentânea ou duradouramente.
Ateste-se que as redes de relacionamento que se têm formado a partir desses
processos de integração, via cultura e arte, são, em geral, de caráter aberto,
flexíveis, sem organização rígida. Ademais, são baseadas nos encontros cotidianos,
com aspecto muitas vezes efêmero, inscrição local e composição mutável.
123
Constata-se que esse tipo de socialidade é o mais comum entre os grupos culturais
da periferia e deles para o restante da cidade. Estabelecem-se relações fundadas
nas afinidades (identificações, mais do que identidades) musicais e de hábitos, que
acabam por formar novos grupos e redes onde a arte é o fio condutor e o cimento
que une as pessoas. Maleáveis e mutáveis, essas relações podem ter, muitas
vezes, pequena duração, mas grande papel na coesão social.
Silva realça:
[...] quando os preconceitos e estereótipos são deixados de lado, é possível
enxergar regras, acordos e normas nas favelas. As relações de parentesco,
de vizinhança e do reconhecimento das instituições locais são modos que
formalizam contratos de aquisição de benfeitorias e a cessão de posse de
imóveis. As associações de moradores há muito tempo oferecem e
garantem os registros que formalizam as transações imobiliárias entre pares
do local, funcionando como um cartório popular. Há, enfim, extensas redes
sociais que constroem modos bastante particulares de reconhecer a posse
de imóveis e terrenos. (SILVA, 2005, p. 93).
No caso de Belo Horizonte, especificamente, o que se vê é que há um duplo
movimento de identificação entre os moradores das favelas, considerando as
categorias trabalhadas por Canclini. Por um lado, há a identificação local-local,
baseada nas relações de vizinhança, amizade e parentesco que se estabelecem
dentro de uma mesma vila, e, por outro, a identificação local-metropolitano, ainda
que incipiente, que se baseia nas trocas simbólicas e interações do tipo profissional
e de afinidades culturais entre os diversos grupos situados na cidade como um todo.
Exemplos dessa segunda forma de interação existentes são os movimentos culturais
e políticos da juventude, como o D-ver-Cidade Cultural e o Hip-hop Chama.
Entre as organizações vicinais, nos Estados Unidos, logo surgiram nos anos
20 deste século as gangues juvenis nos bairros pobres, habitados por
imigrantes que ainda não se haviam integrado ou ascendido socialmente. Já
no Rio de Janeiro, e posteriormente em outras cidades brasileiras, nesse
mesmo período surgiram, nas favelas e bairros populares, as escolas de
samba, os blocos de carnaval e os times de futebol para representá-los e
expressar a rivalidade entre eles. Várias diferenças entre os dois países
ficam claras desde então: entre as gangues estadunidenses, os conflitos
eram manifestamente violentos [...]. No Rio de Janeiro, a rivalidade entre os
bairros pobres e as favelas, sem excluir totalmente o conflito violento,
expressava-se na apoteose dos desfiles e concursos carnavalescos, nas
competições esportivas entre os times locais, atestando a importância da
festa como forma de conflito e socialidade que prega a união, a
comensalidade, a mistura, o festejar como antídotos da violência sempre
presente mas contida ou transcendida pela festa. (ZALUAR, 2004, p. 20).
124
É importante realçar que, em outra época, até o início dos anos de 1990, essa
interação entre as comunidades em Belo Horizonte se deu menos no campo dos
movimentos culturais e mais na reivindicação comunitária e urbana, notadamente
com a ação de entidades como a União dos Trabalhadores da Periferia (UTP), a
Federação das Associações de Moradores de Belo Horizonte (FAMOBH) e das
pastorais da Igreja Católica. Entretanto, nos últimos anos essa participação
organizada foi declinando, inclusive reforçada com a morte de vários de seus líderes
históricos.
Para finalizar essa reflexão, cabe apontar a necessidade de se introduzir novas
variáveis e categorias para avaliar os processos vivenciados pela juventude, em sua
busca de afirmação e diferenciação. Nas favelas, são os jovens que introduzem
novas perspectivas, através de seus relacionamentos e práticas, distintos dos
tradicionalmente vividos pelos moradores das comunidades.
O enfrentamento da violência presente no Rio de Janeiro [...] exige a
criação de mecanismos que ampliem o tempo e o espaço sociais de seus
moradores, que permitam o reconhecimento da cidade como o lugar do
encontro das diferenças por excelência. A esse respeito, os jovens têm
muito a ensinar. Em diferentes realidades, eles formam contrastantes redes
sociais, marcadas pela produção de práticas inovadoras de sociabilidade,
de regras de convivência e de parâmetros para disputas pelas posições
mais prestigiadas. Eles formulam mecanismos variados para a expressão
dos seus desejos, temores e crenças – enfim, da sua subjetividade.
Em uma ordem urbana marcada pela segregação, estão cada vez mais
buscando novos espaços. Seja por meio da cultura – música, dança,
capoeira, teatro – do engajamento na defesa ambiental ou na busca da
democratização da educação – como demonstram os cursos prévestibulares comunitários –, eles conquistam novos contatos e, com isso,
novas redes. (SILVA, 2005, p.62).
6.3 Mobilização, participação, cidadania
Finalizando a discussão sobre o papel da cultura, instrumentalizada, nas vilas e
favelas de Belo Horizonte, a partir do estudo de caso do Grupo do Beco, faz-se
fundamental discutir os aspectos desse papel que se relacionam com a política
(micropolítica?), com a participação e com a cidadania. Nesse sentido, cabe discutir
que a arte e a cultura vêm substituindo nas favelas as formas tradicionais de
mobilização e participação, a partir da constituição das redes de afinidades, antes
125
mencionadas.
Para Zaluar, a cidade moderna perdeu a importância da ação política de seus
indivíduos. Na polis grega, a oratória era vista como forma de diferenciação,
afirmação e imortalidade do indivíduo.
A ironia do que se vive hoje nas cidades brasileiras, incluindo o Rio de Janeiro, é que a
polis, a cidade inventada pelos gregos, como forma política, criação do espaço público
e da convivência democrática, é o locus da busca da imortalidade, da permanência de
uma pessoa na memória dos homens pela atividade pública, pela ação política na
condução das ‘ações que se fazem por meio de palavras’, pelo ‘ato de encontrar as
palavras adequadas no momento certo, independentemente da informação ou
comunicação que transmitem’. É o discurso, como meio de persuasão, que dava o
significado e a imagem dominante da vida na polis grega: tudo era decidido mediante
palavras e persuasão, e não através da força e da violência. (ZALUAR, 2004, p. 15-6).
Essa reflexão aponta para a possibilidade de que a manifestação artística nas
favelas substitua, nos dias atuais, a oratória como forma de diferenciação do
indivíduo. “As artes, o esporte e, em alguns momentos, a atividade guerreira na
defesa das nações substituíram essa procura, sem se oporem totalmente ao mundo
da intimidade ou à esfera privada.” (ZALUAR, 2004, p. 16).
É importante destacar que a queda da participação política e o aumento do
envolvimento nas manifestações artísticas são movimentos paralelos nas cidades,
ainda que não pareçam existir entre eles relações de causalidade. O que se tem
percebido, nas periferias dos grandes centros, é que a juventude vem utilizando
novas formas de expressão, realizando uma ação micropolítica, na busca do
reconhecimento, da inserção social e de conquista dos direitos da cidadania.
Nota-se, não somente no Brasil, mas em outras partes do mundo, que a juventude
tem traçado novas formas de participação, que, em geral, perpassa fortemente pela
veia do artístico e do uso das ferramentas da comunicação popular, como já
mencionado. Apesar de que muitos possam discordar de que esses sejam
movimentos com caráter político (ainda que muitas vezes não tenham a política
como fim), fica claro que é, sim, uma participação que tem resultados importantes,
ainda que se constitua de uma forma diferente daquela praticada pelas gerações
anteriores.
126
Há que se relevar que essa atuação não se baseia mais nos movimentos sindicais,
que ao longo das décadas foram perdendo força em velocidade diretamente
proporcional ao aumento do desemprego e da oferta de mão-de-obra no mercado;
nem nas associações de bairro, que ficaram cada vez mais enfraquecidas pela falta
de participação, ou foram cooptadas pelos governos. No caso das organizações
populares, sua desmobilização se deu a partir dos anos de 1990, em que as
tradicionais associações de moradores foram perdendo espaço de ação e força em
suas comunidades. Essa perda relaciona-se, por um lado, à resolução de grande
parte dos problemas urbanos vividos nas favelas, que durante décadas foram sua
bandeira e, por outro, ao próprio esvaziamento da participação popular nessas
áreas, seja pelo medo e aumento da violência, seja pela falta de atratividade dos
processos tradicionalmente adotados, seja pela recusa ao aparelhamento pelo qual
passaram grande parte das entidades comunitárias, nos diversos governos e
partidos que se sucederam nas administrações públicas.
O desgaste do modelo que tem o ideal comunitário e a valorização da
participação como elementos centrais da ação política, referência comum a
inúmeros movimentos sociais surgidos na década de 70, processou-se
lentamente ao longo das décadas seguintes. É que a sobreposição, ocorrida
em meados da década de 80, do tráfico às associações de moradores nas
favelas do Rio de Janeiro (ZALUAR, 1995) teria não apenas fortalecido a
organização do narcotráfico como aparelho, mas também explicitado o
descrédito da utopia participativa emancipatória. Essa utopia fora
responsável por quase uma década de mobilização popular, num
movimento tão intenso, criador de novos atores e aglutinador de
composições específicas de forças sociais, que chegou a merecer o nome
de Novo Associativismo Local (PEPPE, 1992). (MAFRA in ZALUAR, 2004,
p. 286).
Nesse sentido, pode-se dizer que o cultural, as manifestações artísticas, passam a
assumir esse outro papel, também muito importante, que é a discussão dos direitos
da cidadania por uma outra via, mais lúdica, mais moderna e, por seu próprio
caráter, muito mais atrativa e aglutinadora da juventude, trazendo aqueles que não
participariam dos movimentos coletivos tradicionais.
Nas favelas de Belo Horizonte, o que se tem percebido é que o aumento da
violência, ocorrido na década de 1990, principalmente, gerou uma reação da
população, moradores, entidades e Poder Público, que teve como mote o caminho
da produção cultural. A uma ação que contribuía para a queda da qualidade de vida
127
nas favelas e para a ampliação do estigma no restante da sociedade, houve uma
mobilização para uma reação em bases diametralmente opostas.
Nota-se que outro processo que contribuiu para a transformação das práticas de
ação coletiva nas favelas foi o crescimento do número de universitários nessas
áreas, o que tem contribuído sobremaneira para a geração de um novo pensamento
sobre as comunidades, construídos de dentro, e não de fora delas.
Soma-se a isso o fortalecimento das comunidades e sua juventude a partir da
constituição de um novo olhar da mídia, já discutido; a mudança de foco dos projetos
sociais
que
atuam
nessas
áreas,
com
ações
menos
voltadas
para
a
profissionalização e mais para a produção artística e, por fim, a presença de uma
série de projetos públicos, em âmbito municipal (por exemplo, o Arena da Cultura e
o Guernica), estadual (Fica Vivo, Vozes do Morro e Valores de Minas) e federal
(Pontos de Cultura, Cultura Viva, etc.), que introduzem novas ferramentas e eixos
conceituais para a prática da mobilização social nas vilas e favelas.
[...] Fernandes distingue essas iniciativas de ação de cidadania como o Viva
Rio de movimentos representativos, sejam eles sindicatos, associações de
bairros ou mesmo movimentos sociais. As iniciativas de ação de cidadania
“não dependem do complexo jogo político que é obrigatório nos sistemas
representativos para que sejam legitimadas suas decisões (FERNANDES,
1994, p. 71). O que se procura é o poder da manobra, para mover outras
pessoas à ação, sem o retardo da inércia nem a morosidade da burocracia.
(YÚDICE, 2004, p. 196).
Ainda segundo o autor:
[...] a história revela uma dialética interessante entre a desvalorização de
grupos minoritários [...] e o ativismo daqueles grupos que inverteram a tese
da “cultura da pobreza”, valorizando exatamente aquilo que os
desqualificava aos olhos da cultura dominante. (YÚDICE, 2004, p. 42).
Nesse universo, introduz-se a discussão a respeito dos direitos da cidadania, não
uma suposta “cidadania de segunda-classe”, ou “subcidadania”, definidas, mais uma
vez, pelas ausências, pela precariedade do acesso aos serviços públicos e à
democracia, mas a garantia de que os seres conviventes na cidade têm, por
definição, o mesmo direito a ela, independente de seu lugar de moradia.
128
O termo cidadania também sofreu usos diversos, seguindo as mais variadas
determinações. Tornou-se o que se chama de conceito “mala ou bonde”:
podendo ser levado a qualquer lugar, podem carregar as mais diversas
significações. Hoje é, muitas vezes, usado como rótulo para velhas idéias,
de forma que a referência a ele deve ser feita de maneira crítica e
cuidadosa. Cada momento definiu a condição cidadã de um jeito diferente.
A idéia nasce na Grécia antiga, mas o termo só surge para vesti-la no
século XVIII. Como sugere Gomes (2002), é importante perceber que desde
sua origem há, na idéia de cidadania, uma matriz territorial:
etimologicamente vem de civitas, aquele que habita a cidade. O cidadão é o
indivíduo em um lugar, lhe é inerente esse componente territorial e, na
Grécia, a construção dessa idéia significou uma reconfiguração espacial. É
no território como está configurado hoje que se dá a cidadania: ambos
incompletos. É importante também se apontar que, mesmo sendo o berço
da democracia, quando o princípio de cidadania surge já se elaborava sobre
uma paradoxal desigualdade.
Define-se a idéia fundamental de cidadania, de forma superficial, como o
direito elementar de acesso às várias esferas do campo social que todos os
indivíduos nele inseridos devem possuir. Um corpo de direitos concretos,
individuais, inseparáveis. Ora, não existe cidadania plena: existe cidadania
ou ausência de cidadania. (NOGUEIRA, 2004, p. 75).
Finalizando, então essa discussão, fica a sensação de que o uso da cultura, na
perspectiva das comunidades de baixa renda, em geral, dos artistas moradores de
favela e da juventude, em particular, nada mais é que a adoção de estratégias em
busca de um objetivo comum: a aceitação da diferença, a participação na
distribuição das benesses da cidade, o reconhecimento do valor e a reinvenção das
representações.
Uma vez que a cultura é o que “cria o espaço onde as pessoas ‘se sentem
seguras’ e ‘em casa’, onde elas se sentem como pertinentes e partícipes de
um grupo”, de acordo com essa perspectiva, ela é condição necessária para
a formação da cidadania. (YÚDICE, 2004, p. 43 (citando FLORES).
E ainda:
[...] a cultura é, assim, mais do que um ajuntamento de idéias e valores. Ela
é, segundo Flores e Benmayor, fundamentada na diferença, que funciona
como um recurso. O conteúdo da cultura diminui em importância à medida
que a utilidade da reivindicação da diferença como garantia ganha
legitimidade. O resultado é que a política vence o conteúdo da cultura.
(YÚDICE, 2004, p. 43).
129
7 CONCLUSÕES
A partir do estudo da peça “Bendita a Voz entre as Mulheres”, do Grupo do Beco, e
da literatura existente sobre as produções artísticas dos setores populares e o uso
da cultura como recurso, foi possível perceber uma série de aspectos que devem ser
retomados nessa breve conclusão.
Em primeiro lugar, verificou-se, por meio do Guia Cultural de Vilas e Favelas, que a
produção cultural nas chamadas periferias de Belo Horizonte é vasta, plural e
diversificada. Ela é composta por um grande número de artistas, das mais diferentes
áreas culturais, estilos, técnicas e graus de organização.
Constatou-se, ainda, que, além de ser plural, diversa e ampla, essa produção, que
vem dos setores populares urbanos, tem entrado nas agendas da sociedade nos
últimos anos, passando a receber apoio público, governamental ou não, para sua
ampliação, replicação e fortalecimento.
Ademais, vem conquistando espaços na mídia, ainda que com limitações, como se
viu, relativas à permanência de um olhar que ainda considera essas manifestações
como exóticas, situações de exceção. De qualquer forma, é fato que essa
visibilidade pela veia do artístico tem contribuído para uma mudança, lenta, mas
promissora, da imagem e dos estereótipos negativos das vilas e favelas na
sociedade.
Ainda que não existam estudos avançados sobre a eficácia da instrumentalização da
cultura nos projetos socioculturais e nas comunidades beneficiadas, visto não terem
ainda sido definidos indicadores que possam mensurar os reais impactos dessas
práticas, existe uma idéia disseminada de que a arte e a cultura transformam os
indivíduos que com elas entram em contato.
Verifica-se, no caso do Grupo do Beco, que a cultura serviu e serve como recurso
para uma série de conquistas, que vão, dentre outras, desde o reconhecimento do
Grupo dentro e fora de sua comunidade; a conquista de espaços e visibilidades
130
antes inacessíveis; e a participação em um círculo social até então distante; até o
acesso à informação e aos bens culturais de maneira ampliada.
No lado oposto da moeda, mostrou-se também que ainda há uma série de
dificuldades nas comunidades para efetivação de suas práticas culturais,
relacionadas, principalmente, a questões como a falta de apoio e recursos; ao
preconceito que diferencia e desvaloriza a arte popular da chamada arte erudita;
bem como à falta de informação e background dos artistas para conhecer e acessar
as oportunidades no mercado da cultura.
Na área dos recursos, a falta de espaços para o desenvolvimento das atividades
(tanto na produção quanto na comercialização e circulação da produção) é um
problema relevante identificado, que tem sido enfrentado pelo Poder Público
municipal,
em
Belo
Horizonte
com
a
construção
de
centros
culturais
descentralizados. Em paralelo, as próprias organizações sociais e grupos culturais,
como o próprio Grupo do Beco, têm buscado criar e manter espaços nas
comunidades como suporte das atividades socioculturais.
Evidencia-se que a própria falta de recursos financeiros em si é uma questão
complexa e que ainda não tem tido soluções concretas. Como se tem visto nas
comunidades, poucos são os artistas e grupos que têm algum acesso às leis de
incentivo, bem como aos mecanismos de patrocínio e apoio, público ou privado. O
Grupo do Beco, nesse sentido, constitui-se uma exceção, pelo fato de ter tido a
oportunidade de ter apoiadores na área do planejamento estratégico, ter participado
de cursos de gestão cultural e ter conseguido aprovar seus projetos e captar
recursos via leis de incentivo à cultura. Mesmo assim, fica claro que os recursos
ainda são insuficientes para garantir a sobrevivência dos membros do Grupo, que
têm, então, buscado empregos tradicionais para manter-se e às suas famílias.
Apesar das dificuldades e considerando as oportunidades que foram identificadas,
há, no mínimo, que se afirmar que um novo panorama tem se desenhado para
esses artistas e suas comunidades, que tem significado transformações, micro ou
macro, nas realidades com as quais convivem.
131
Ao olhar para o Grupo do Beco, em particular, pôde-se perceber o quanto, de fato,
foi transformador para o Grupo a prática artística, tanto em nível individual quanto
coletivo, e o quanto isso significou uma nova participação dos atores em sua
comunidade e fora dela. Os seus relatos são emblemáticos dessa mudança,
reforçados pela própria trajetória do Grupo e seu reconhecimento para além dos
limites da Barragem Santa Lúcia.
Sob esse prisma, pode-se concluir que a peça “Bendita a Voz entre as Mulheres”
reforça esse paradigma, ao narrar a história de uma personagem que só se liberta a
partir da auto-estima, da coragem, do empoderamento que a arte lhe proporcionou.
Vê-se que é da arte que vem a força de Bendita e que lhe permite superar as
dificuldades e barreiras do contexto que a cerca. Carência, dano, superação. A
estrutura narrativa da peça baseia-se totalmente na arte como fator de
transformação individual e social.
Entretanto, apesar de sua positividade em termos de realizações e visibilidade, o
exemplo do Grupo do Beco aponta também para outras questões. A primeira delas é
que as condições alcançadas pelo Grupo, premissas de suas conquistas, ainda são
pouco disseminadas nas comunidades e não se encontram disponíveis para uma
ampla parcela dos moradores de vilas e favelas. Nesse sentido, assevera-se que o
Grupo do Beco ainda é um exemplo a ser seguido para que, de fato, as
transformações supostas nesse trabalho tenham abrangência e extensão.
A segunda é um questionamento em que se compreende que as mudanças
apontadas na situação do Grupo são posicionais e não necessariamente
pressupõem uma durabilidade no tempo. Dessa forma, é possível se perguntar se,
caso o Grupo acabasse, seus integrantes manteriam as distinções que obtiveram
por ser um grupo de teatro na comunidade, se suas conquistas (para si e seu
círculo) e se as mudanças apontadas teriam ou não permanência. Essa questão
vem no sentido de avaliar se existe realmente uma mudança apropriada e
incorporada pelo indivíduo findo o fato que a gerou, ou se existe apenas uma
situação transitória e posicional, que deixará de existir quando não existir mais o
móvel inicial.
132
Por fim, uma terceira questão que se coloca diz respeito à multiplicação dos
benefícios conquistados pelo Grupo do Beco e outros artistas das favelas. Se, de
fato, a arte e a cultura fazem diferença para quem delas participa, se transformam
do ponto de vista pessoal, político e social, resta saber se, para além das fronteiras
do Grupo e dos indivíduos que o compõem, existe realmente alguma apropriação de
benefícios, alguma transformação concreta e mensurável.
Os produtos gerados pelas classes populares costumam ser mais
representativos da história local e mais adequados às necessidades
presentes do grupo que os fabrica. Constituem, nesse sentido, seu
patrimônio próprio. Também podem alcançar alto valor estético e
criatividade, conforme se comprova no artesanato, na literatura e na música
de muitas regiões populares. Mas têm menor possibilidade de realizar
várias operações indispensáveis para converter esses produtos em
patrimônio generalizado e amplamente reconhecido: acumulá-los
historicamente [...], torná-los base de um saber objetivado [...], expandi-los
mediante uma educação institucional e aperfeiçoá-los através da
investigação e experimentação sistemática. (CANCLINI, 2000, p. 196).
Nesse sentido, a pergunta a se fazer é: em que medida a arte transmuda para a
comunidade que não está envolvida no processo? Em que o Grupo do Beco e outros
movimentos socioculturais nas favelas trazem de diferença para sua comunidade (e
para o restante da sociedade, fora dela) e não apenas para si mesmos e seu círculo
restrito?
Apesar de se ter defendido e tentado mostrar, neste trabalho, por hipótese, de que
existe, sim, apropriação, multiplicação, extensão e talvez mesmo durabilidade dos
mencionados processos e seus benefícios, sua comprovação, empírica, depende de
um estudo de avaliação de impactos, em médio prazo. Entende-se que esse é um
novo trabalho a ser feito: conhecer, na comunidade, os reais impactos dos projetos
socioculturais, sejam do Grupo do Beco ou outros, para visualizar a abrangência
dessas ações já tão disseminadas nas favelas nos dias atuais.
Aqui, interessou-se, principalmente, em tomar o Grupo do Beco, um caso em
particular, não apenas por si só, com sua fascinante trajetória e conquistas, mas
como exemplo concreto do que tem ocorrido nas favelas de Belo Horizonte e outras
partes do País. Como ele, constata-se que há vários, cada qual escrevendo, a seu
modo e com os recursos de que dispõe, uma história de mobilização comunitária e
de construção de novos caminhos.
133
Eu vejo que a arte e a cultura é uma grande porta de auto-realização [...] de
realização da pessoa, né? Se eu fizer, se eu achar vários pontos... Onde cê
investiria? Eu faria um grande investimento na área cultural, porque a
favela, ela é muito rica culturalmente, né? De manifestação cultural. [...] e as
pessoas que se envolveram, que em algum momento da própria vida foram
pegas por alguma atividade cultural, artística, né? Aí cê vai encontrar vários
artistas dentro do morro. Eu acho essas pessoas muito realizadas. Muito
felizes e com uma interferência muito positiva e que não, e que quase
sempre elas, nessa questão de poder, elas também são mais solucionadas.
São pessoas que têm essa visão do poder como um serviço pra
comunidade também. Então aí, eu, concluindo assim, eu acho que também
a arte é uma grande porta pra cidadania, né? (PADRE MAURO citado por
NOGUEIRA, 2004, p. 131).
Por fim, é válido apontar que a cultura como recurso introduz também novas
perspectivas, que passam – mais que pela resolução de problemas sociais – pela
instrumentalização dos sujeitos para participação na modernidade. Se não pelo tipo
do conteúdo, pelo menos pelo processo, concebe-se que é através da arte, das
manifestações culturais e do uso das tecnologias de comunicação e informação que
as culturas populares transcendem seus limites geográficos, históricos, estéticos e
sociais, rumo aos futuros possíveis e desejáveis.
134
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138
ANEXOS
ANEXO A – TEXTO DA PEÇA
Apresenta:
BENDITA, A VOZ ENTRE AS MULHERES
Belo Horizonte, 8 de março de 2003.
Estréia: Espaço Andante
Direção: Ana Domitila e Júlio Maciel
Direção Musical: Ricardo Garcia
Dramaturgia: Letícia Andrade, em processo colaborativo com o Grupo do Beco e Direção
Atores
Personagens
Célia Rodrigues
Dona Consolação
Cris Corrêa
Maria José Ferreira da Silva
Ivanete Guedes
Bequete 1/ Passageira do Ônibus / Anunciação
Janete Maia
Bequete 2 / Passageira do Ônibus / Celina / Vitória
Maicon Sipriano
Locutor / Passageiro / Samuel
Nil César
José Maria Ferreira da Silva / João – Jonny Cat
Suzana Cruz
Bendita
Ator convidado
Couves / Caxeta
Cena 1: A Rádio do Beco
(Entra Maria José e liga o rádio. Senta-se na cadeira e o locutor começa a falar na
rádio)
Maria - (suspira) Ainda bem que eu tô sozinha, vô poder escutar minha rádio
sossegada.
Locutor 1 – Você está na melhor:
Locutoras – Rádio do beco
Locutor 1 – 199.5,
Locutoras – A FM que te escuta...
Locutor 2 – Ligue pra gente...
Locutor 3 – E conte a sua história
Locutor 1 – O nosso telefone é...
Locutor 2 – 3297
Locutor 3 – 4794
Locutor 1 – E agora vamos mandar um abraço todo especial pra...
Locutor 2 – Dona Emerenciana
Locutor 3 – Piquita
Locutor 2 – Almira
139
Locutor 3 – Zilda
Locutor 2 – Nadir
Locutor 3 – Ordália
Locutor 1 – Da Rua São Tomás de Aquino
Locutor 2 – E pra D. Nair
Locutor 3 – E Durica
Locutor 1 – Da Rua Principal
Todos – e pra todos os ouvintes.
Locutor 1 – E se você acabou o servicinho e está com aquele cheirinho, nada melhor
que usar os: Sabonetes Lavador (começa a cantar a vinheta do sabonete lavador)
Lave sua alma / Lave o que sujou / Lave o seu amor / Com sabonetes lavador
(Locutor solta a música Pinga ni mim, de Sérgio Reis, e começa a falar)
Locutor 1 – E agora vamos mandar essa música pro pessoal lá do (opcional)
Armazém do Hélio que ligou, pediu e levou!
(Maria começa a cantar a música junto com rádio, entra José, ela o desliga)
Cena 2: José Maria Ferreira da Silva e Maria José Ferreira da Silva
Maria – (assustada, apagando o cigarro e desligando o rádio) Zé?!
José – (afirmando) O pai! José Maria Ferreira da Silva.
Maria – Profissão:
José – Pedreiro.
Maria – Trabalhava o dia inteirinho, carregando tijolo, chapiscando parede e fazendo
massa... (Enquanto isso, com o corpo, Zé ilustra as ações que Maria narra)
José – Tudo isso, debaixo de um sol de rachar.
Maria – Quando chegava de tardinha e o sol já tava fraquinho, ele já ficava ansioso
pra voltar pra casa.
José – E quando chegava em casa, dava uma bitoca na esposa. (Se beijam)
Maria - E a Bendita lá, chamando.
José – José... José.... (Bendita, da coxia, também chama) Mas a voz do boteco era
sempre mais alta.
Vozes do bar – José!... José! Meu velho, cê vem ou não?
(Zé quase sai para o bar, quando Maria puxa-o)
José – A mãe.
Maria – Maria José Ferreira da Silva.
José – Profissão:
Maria – Do lar.
José – Ficava o dia inteiro lavando, cozinhando e costurando. E quando dava o
finzinho da tarde... (Enquanto isso, com o corpo, Maria ilustra as ações que Zé
narra)
Maria – Aquele cansaço.
José – E a Bendita lá chamando:
Maria – Maria!... Maria! (Bendita, da coxia, também chama).
José – E ela cedia, tomava seu banho à espera do marido que viria: – cheguei!
“Uma bitoquinha na esposa...” (Se beijam)
140
Maria – (Marido sai para a coxia) E ia pro boteco, tomava uma, duas, três... bebia
até cair, (Entra Zé, completamente bêbado) porque banho que era bão, nem pensar.
(vira para o marido) “Ó Zé, vão tomar banho”!
José – Ah, mulher, tomar banho desgasta a pele...
Maria – Desgasta a pele... é uma vergonha cê vim do serviço cansado, suado,
fedorento e ir pro buteco. Ô, meu bem, cê tem que tomar banho bem cheiroso, já
tem um tempo que eu tô querendo uma filhinha... (Conduzindo Zé até a cadeira e
simulando um banho no marido)
José – Lá vem você com essa história de filhinha de novo!... Eu tô é com fome e tô
com sono!
Maria – Pode ir lá pro quarto que eu já vou levar sua comidinha... (Zé deita-se no
fundo do palco, Maria fala para o público) Quando eu dava banho nele eu tinha as
minhas intenções, porque dar banho em bêbado num é coisa que eu sonhei pra
minha vida, não! (ela liga o rádio – música de sedução) Pssssiu! (faz uma pose
sensual numa cadeira, esperando Zé repará-la, Zé não ouve, Maria chama de novo)
Pssssiu! (faz a pose novamente e deixa um olho aberto para ver a reação de Zé, ele
se mexe, mas não a repara; Maria decepciona-se, desmancha a pose; olha para o
público desanimada, vai para perto dele, dançando com um xale, passando-o nos
pés e no rosto do marido, que por sua vez estapeia seu próprio rosto achando que o
xale era mosquito; ela ri da reação dele e senta-se ao seu lado) (cochichando)
Maria – Baixinho! Baixinho!
José – (Ignorante) Que que foi, mulher!
Maria – Vão?
José – Vão pra onde, uma hora dessa?
Maria – Cê acha que eu dei banho nocê, pra quê?
José – Hum!... Safadinha...
(com seu xale, Maria laça Zé pelo pescoço que engatinha como cachorro)
Maria – vem, meu cachorrinho, vem pra mim, vem. Vem pra casinha. Vem meu
totozinho, Faz au-au faz. Au au! Vem, meu bem, Ó, Zé! vem logo (Zé levanta-se,
espreguiça-se, olha para o público e olha para o seu órgão sexual)
Cena 3: A Gravidez de Maria
(Fazem amor. Zé uiva. Entra debaixo do vestido e assopra um balão que está
debaixo, simulando uma barriga)
Maria – (Para o público) Foi aí que a Bendita veio!...
Cena 4: O Nascimento de Bendita
(Vai abaixando a música, entra o tema do nascimento de Bendita. A mãe sai em
direção à cadeira para o parto – Zé continua dormindo)
Maria – Ai, meu Deus, já tá na hora, ô, Zé!... Alguém me ajuda!!... Meu neném tá
querendo nascer... ô, meu Deus!
(Aumenta a música na hora do nascimento - Bendita passa embaixo da cadeira da
mãe, vai abaixando o volume pra o diálogo)
José – (empolgado e para o público) E a bezerrinha nasceu com 5k e 900g.
Bendita - (cantando) Mãaaaae...
José – E já nasceu cantando!
141
Maria - Minha filha que eu tanto sonhei...
(Bendita encanta-se com o rádio, pega-o e sacode-o; depois vê o pai que chama-a
com a mão)
Bendita – Papai!
José – É o paizão. Vem pro papai, vem. Minha primeira filha, vai ser o orgulho da
família. Olha, olha, Maria, ela ri que nem minha vó. (decidido) Então, vai chamar
Bendita!
Maria – Bendita!!! (decepcionada) É uma boa homenagem pra sua vó...
José – Num é! Isso merece uma comemoração daquelas, (Maria e Bendita se
empolgam) vô pro boteco...
Cena 5: A Escola
Maria – (para o público) E assim a Bendita foi crescendo, e um sonho também foi
crescendo dentro dela. Mas tinha uma coisa que ela não gostava. (para Bendita)
Menina, vai pra escola! Anda!
(Tempo de mudança; Bendita vai crescendo; aprendendo a andar e vai em direção
ao rádio)
Bendita – Ah, não, deixa eu ficar ouvindo música, uai...
Maria – Bendita, eu não vou falar de novo! (Enfática)Vai!
Bendita – Também, quando eu crescer, eu nunca mais vou pra escola.
Maria – Oh, minha filha, seu grande sonho num é ser cantora? Artista também tem
que estudar. Vai, minha filha, vai!
(Bendita vai pra escola. A caminho, os meninos começam a humilhá-la):
Todos – Macaca, Macaca, preta fedorenta! (5X)
(Vai um a um falando, na medida em que Bendita passa. Ela senta-se. Os colegas
continuam a cantar. Num determinado tempo ela não agüenta e sai correndo de
volta para casa)
Maria – Bendita, eu já mandei cê ir pra escola. O que que cê tá fazendo aqui?
Bendita - Os meninos tudo me xingô de novo, daquilo que ocê sabe muito bem...
Maria – Ô, minha filha, eu já num falei se ocê fosse macaca cê ia tá no zoológico?
Lembra?
Bendita – Eu sei. A senhora já me falou isso... agora vai lá e fala isso pra eles.
Maria – Bendita, cê sabe que o seu pai não gosta que eu caço confusão com os
outros.
Bendita – Cê num caça confusão com os outros e outros caça comigo e eu não faço
nada. É só porque eu sô preta.
Maria – Ô, meu bem, num liga pra isso não, brinca com seu irmãozinho Samuel,
brinca....
Bendita - Não! Eu num quero brincar com ele, não! (pausa; Maria canta boi-da-carapreta para Samuel; Bendita olha para o irmão) Por que o Samuel é branco e eu não?
(Maria pára de cantar)
Maria – Ô, minha filha, foi Deus que quis assim...
Bendita – Tamém eu num queria é ser preta... não queria mesmo.
142
Cena 6: Os 15 anos
(Bendita liga o rádio, canta e dança – música “Dores da vida”, do NUC)
Maria - Bendita, minha filha, olha o bordado lindo que eu fiz. Já que eu não posso te
dar uma festa, vou, pelo menos, fazer uma saia de presente, é pro seus 15 anos. Cê
gostou?
Bendita – Nossa, mãe, adorei...
(Começam as duas a fazer as medidas e a falar baixo. Entra a rádio)
Locutor 1 – Você está na melhor
Locutoras – Rádio do Beco
Locutor 1 – 199.5
Locutoras – A FM que te escuta!
Locutor 1 – E vem aí, o 1 o. Concurso de cantores...
Bendita e Maria - Concurso?!?!
Locutoras – É, “coração rima com paixão”!
Locutor 1 – Participe com a gente! O nosso telefone é...
Locutora 2 – 3297
Locutora 3 – 4794
Locutor 1 – Repetindo...
Bendita e Maria – 3297 4794.
Locutor 1 – Venha e solte sua voz.
Bendita – Ah, mãe!... Deixa eu participar, deixa...
Maria – Se seu pai deixar, pode...
Bendita – Paiêê...
Cena 7: O Ônibus
(João desloca a cadeira e fuma enquanto as locutoras vão falando)
Locutor 1 – E agora, vamos mandar um abraço pro Aglomerado Santa Lúcia e pra
Zenólia da lojinha que ligou e mandou essa música para:
Locutora 2 – Mariza Reis.
Locutora 3 – D. Taís.
Locutora 2 – Graça da Fazendinha.
Todos os locutores – E pra Janetão do Caminhão.
(Locutores pegam um bastão e simulam estar segurando o ferro do ônibus – de
costas)
Passageiro 3 – Ô, moço, apaga esse cigarro, aí! (João assopra fumaça na pessoa
que reclama)
Bendita – Licença, gente, licença.
Passageiro 2 – Ah, não, num tem espaço aqui não, o meu pé, hein?
Passageiro 1 – Hum... que cheiro de cecê....
Bendita – Ai, desculpa, desculpa, gente. (vê João que continua fumando) Nossa,
moço, apaga esse cigarro, por favor...
João – (ignorando) Vai ter jeito não.
Bendita – É que eu tenho alergia
João – (virando para Bendita, olham-se e apaixonam-se) Aqui ó, paguei. Ce qué
sentá no meu lugar?
Bendita – Ah, não. Brigada.
Passageiro 3 – Vai, moça.
143
Passageiro 2 – Deixa de sê boba!
Passageiro 1 – Senta logo.
João – Não, eu faço questão! (levanta para Bendita assentar) Desculpa pelo cigarro,
viu!
Bendita – Deixa eu levar o seu casaco?
João – Faz favor (entrega-lhe o casaco). Como é que você se chama?
Bendita – (vergonha) Bendita.
João – Cê é lindinha, hein, Bendita!
Bendita – Nossa, nunca ninguém me falou isso
João – É porque todo mundo é cego.
Passageiro 3 – Cantadinha barata...
João – Cê faz o que, hein, Bendita?
Bendita – De vez em quando eu trabalho em casa de família né, mas eu canto...
João – Cê canta?
Bendita – Não, quer dizer, eu canto...
João – Cê canta ou não canta?
Bendita – Não é que eu caaaanto (exagera), eu canto... (simplória)
João – Ah, bom... Então, canta pra mim?
Passageiro 2 – Ah, não. Só faltava essa!
Bendita – Ah, não, eu tenho vergonha...
João – Faz de conta que a gente tá sozinho, canta, vai!
Passageiro 2 – Não tá sozinho, não!
Bendita – (canta) “Meu coração,
Passageiro 1 – Desafinada.
Bendita – não sei por que....
Passageiro 2 – Música horrorosa! (João começa a cantar também).
João e Bendita – Bate feliz...
Passageiro 1 – Agora é os dois.
João e Bendita – quando te vê...” (Bendita pára de cantar quando ele a encara)
João – Parou de cantá por que, Bendita?
Bendita – Ah, o pessoal não tava gostando muito, não.
Passageiro 2 e 3 – Tamo gostando mesmo, não!
João – Quem me dera ... eu, um reles pedreiro, mas...
Bendita – Nossa, meu pai também é pedreiro.
João – Seu pai é pedreiro?
Bendita – É, sim.
João – Mas eu tô indo agora olhar um outro trabalho que tem tudo a ver com cê.
Bendita – Ah é , de quê?
João – (lembra do ponto) Ó, motô, meu ponto. Pára aê, motorista (vai saindo)
Bendita, quando você fizer sucesso, lembra de mim, tá? João, (gritando) João...
Passageiro 2 – Ih, moço, até eu sei que ocê é João.
(João desce do ponto, Bendita lembra que o casaco de João está em seus braços)
Bendita – Gente, o moço esqueceu o casaco. Motorista, pára o ônibus, o João
esqueceu o casaco dele (vai saindo do ônibus), dá licença...
144
Cena 8: Bendita e Caxeta
(Caxeta entra com um olhar malicioso para Bendita e toca pandeiro enquanto ela
canta)
Bendita – (chamando e procurando) João, João. (colocando o casaco e como se
lembrasse de João) ...mas mesmo assim, foges de mim” (Caxeta interrompe Bendita
com uma forte palmada no pandeiro. Ela, por sua vez, assusta-se) Ah Caxeta...
Caxeta – Bendita! Cê tá boa? Desceu no ponto errado, é, princesa?
Bendita – (desorientada) É, não, quer dizer, tô bem, sim, e você?
Caxeta – Adivinha, eu tenho uma novidade pra você.
Bendita – O que que é? Ih... lá vem você com suas histórias?
Caxeta – Que história, gatinha? História é o seu pai que vive dependurando conta lá
no meu boteco.
Bendita – Eu sabia que você vinha de novo só pra falar do meu pai.
Caxeta – Não, Bendita deixa isto pra lá. Do que que você mais gosta? (sempre
rodeando)
Bendita – Ah... de cantar, ué!
Caxeta – Então, chuta um palpite. (rodeia Bendita tocando o pandeiro)
Bendita – Ah, Caxeta... Um rádio?
Caxeta – Não. Pensa um pouco.
Bendita – Um gravador. (toda feliz)
Caxeta – Dita, mais alto, Caxeta. (se gaba)
Bendita – Caxeta, alto, gravador, num sei, fala logo, Caxeta!
Caxeta – (Pára o pandeiro. Vai até o seu ouvido) Comprei um microfone.
Bendita – (eufórica) O quê? Cê comprou um microfone, Caxeta?
Caxeta – É pra alugar lá pro pessoal que vai cantar no Concurso da rádio!
Bendita – Eu vou participar!
Caxeta – Ah, é? Então vamos lá em casa, porque para você é de graça.
Bendita – Ah, não. Agora não. Tá tarde e se o meu pai descobre, ele me mata!(a
euforia diminui)
Caxeta – Poxa, Dita. É que junto com o microfone eu comprei um tanto de disco.
Bendita – (não acreditando) Disco? (olha se tem alguém vendo)
Caxeta – E aí, vamos?
Bendita – Mas você jura que não conta para ninguém?
Caxeta – Boca de siri, princesa, eu juro.
(entra a fofoqueira Anunciação em cena com sua janela em mãos)
Anunciação – Cês parece que tão com um tanto de segredinho aí, hein!
Caxeta – Oi, Dona Anunciação!
Anunciação – Bendita, e o que você tá fazendo na rua uma hora dessas? Cê viu o
que aconteceu ontem: teve um tiroteio tão bravo que até acertaram um menino! A
noite não tá brincadeira, não viu? Inda mais para você que é moça direita...
Bendita – Mas oh, dona Anunciação, eu já tava indo embora agora mesmo.
Anunciação – Mas pelo que eu saiba sua casa é pra cá (alertando) Oh, Bendita, cê
fica de butuca com esse aí, viu!
Caxeta – (para Bendita, baixo) Deixa essa intrometida para lá. Vão! (malicioso) vão.
Bendita – Tchau, dona Anunciação.
Anunciação – Credo, então , tchau, né! (saem) (Anunciação vê os dois saindo de
mãos dadas e sai de cena) (Consolação entra e coloca sua cadeira de frente para o
público, assenta-se e começa a costurar na sala)
Caxeta – Vem!
145
Consolação – Meu filho, cê?
Caxeta – Sou eu, mãe! (para Bendita) Olha, pode pegar (mostrando o som e o
microfone-cadeira).
Bendita – Nossa! Que legal! (Não acreditando no que está vendo.)
Caxeta – (Vai até a cadeira e pega o microfone) Vai, testa.
Bendita – Alô, alô, Bendita (Bendita testa) Tá desligado.
Caxeta – (Liga) Deixa que eu ligo.
Bendita – “Saudade, palavra triste (Bendita confirma que está ligado; ela começa a
cantar)
quando se perde um grande amor,
na estrada longa da vida eu vou chorando a minha dor...”
(Caxeta fica rodeando-a como forma de sedução e a toca por trás, Bendita pára de
cantar)
Caxeta – Ô, Bendita, desculpa. Pode cantar. Eu não vou mais atrapalhar, não!
(Caxeta tira a camisa e coloca clorofórmio na camisa e coloca no nariz de Bendita
que desmaia. Depois de Bendita no chão, Caxeta levanta-lhe o vestido e estupra-a
no chão. Enquanto isso, o pai passa por trás da cena e a fofoqueira Anunciação
chama-o para conversar)
Cena 9: Anunciação e José Maria
Anunciação – Ei, seu Zé, tudo bem? (Dispara a falar) E o Samuel, ainda tá de
caxumba?
Zé – (só põe a mão no chapéu, como que cumprimentando, levanta o braço) Tá, tá,
tá, Anunciação! (passa direto por ela)
Anunciação – Ô, seu Zé, a Bendita tá namorando o Caxeta?
Zé – (volta) Comé que é? Que história é esta?
Anunciação – Ó, eu não sou de me intrometer, mas é que eu vi a Bendita e o Caxeta
passando aqui agorinha. Tavam de mãos dadas e tudo. Até que eles fazem um
casal até bonitim, né, seu Zé? Quando vai ser o casório? Porque eu pensei...
Zé – E ocê pensa, Anunciação? Que mané casório o quê? Pra ondé quês foi?
Anunciação – Credo, num precisa ofender... parece que o Caxeta levou ela lá pra
casa dele.
Zé – (sai em direção à casa de caxeta) Filho da puta. (Anunciação sai de cena)
Cena 10: A Deserdada
(Nesse momento, Zé entra na casa de Caxeta, vê ele deitado por cima de Bendita
beijando-a. Caxeta vê seu Zé e levanta-se rápido)
Zé – Desgraçado (tirando Caxeta de cima da filha)
Caxeta – Seu Zé! (assustado)
Zé – (chutando Bendita) Levanta, levanta. Que pouca vergonha...
(nesse momento, Bendita acorda sem entender o acontecido, se vê nua e vai em
direção ao pai com vergonha. Eles se olham).
Bendita – (pedindo socorro) Pai, é... Pai, não é nada disso que o senhor está
pensando...
Zé – (interrompendo a filha) Eu não tô pensando, eu tô vendo (ameaçando)
Bendita – (dispara a falar, a falar) Pois é, eu tava no ponto de ônibus, né, aí,
146
Caxeta....
Zé – Cala a boca (Bendita dispara a explicar) Cala a boca. Cala! (Zé puxa o cabelo
da filha e joga-a no chão. Bendita se cala)
Bendita – Mas eu num tive culpa.
Zé – Cala sua boca, se não eu arrebento sua cara! (volta-se para Caxeta, com fúria)
Caxeta – Seu Zé, ela veio cantar, ó (mostrando o microfone a Zé) (Zé encara-os
com raiva e catatônico. Ao ser encarado, Caxeta abaixa a cabeça de vergonha e
medo e guarda o microfone)
Zé – A partir de hoje, Bendita, cê vai poder cantar à vontade. Num é isso que cê
sempre quis? A mulher é sua, agora!
Bendita – (vai em direção ao pai, desesperada) Não, pai, pelo amor de Deus, não
me deixa aqui, não.
Zé – Cê fica aqui, com a roupa do corpo. Num precisa nem chegar perto de minha
casa. Lá, ocê num passa mais nem na porta.
Caxeta – Mas, seu Zé, eu num posso ficar com a Bendita aqui não! A casa é da
minha mãe.
Zé – Dobra a língua para falar comigo, rapaz. Honra a memória do seu pai. Ele era
homem, ocê é um rato, um merda. Cê num quis arrumar confusão, agora se vira e
cuida da mulher!
Bendita – (lamentando-se mais uma vez) Pai...
Zé – Pai? Esquece que cê já teve pai e mãe algum dia! (sai resmungando)
Desonrada, vagabunda... (Caxeta e Bendita ficam em silêncio, se olhando)
Consolação – Que bagunça é essa aí, meu filho?
(Caxeta e Bendita trocam olhares de ódio)
Caxeta – Nada não, mãe.
Consolação – É sua namorada?
Caxeta – Não, É uma mulher que me arrumaram.
Bendita – (para Caxeta – enfrentando) Arrumaram nada! Você que desgraçou minha
vida!
Caxeta – Eu acho melhor você ficar de bico calado, senão eu te mato e te jogo na
rua, tá entendendo? (jogando Bendita no chão)
Bendita – Me solta, me larga!
Caxeta – Agora que o seu pai te virou as costas, a coisa é só entre nós dois. E quem
manda aqui sou eu! Eu vô sair, quando eu voltar, a gente conversa (pega a camisa
no chão e sai): Tchau, mãe!
Consolação – Tchau, meu filho. Vai com Deus!
Caxeta – (voltando para Bendita, que está no chão) E tem mais uma coisa: quando
eu te quiser, cê vai dormir aqui. E se eu não quiser, lá. (sai)
Cena 11: A briga de Zé com Maria
Zé – (entra gritando a mulher) Mulher... (pausa) Maria!
Maria – (assustada) Que que foi, Zé?
Zé – Junta as coisa de Bendita tudo.
Maria – Pra quê?
Zé – Vamo quemá.
Maria – Que que aconteceu, homem, cadê a minha fia?
Zé – Sua filha agora é mulher de Caxeta.
Maria – Do Caxeta, como assim?
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Zé – Ela não é mais moça...
Maria – Ô, Zé, cê tá falano da nossa fia.
Zé – (Samuel entra brincando com carrinho no meio da discussão dos pais) Pára
com isso, Samuel, pára! (Zé bate-lhe na cabeça, Samuel assusta-se e pára de
brincar; fica entre os pais) Bem antes dela nascer, ela sempre foi mais sua do que
minha. Eu fui bobo de acreditar que ela ia ser o nosso orgulho, porque com essa
história de cantar, o que ela fez foi manchar o nome de minha vó!
Maria – Eu não vou juntá, nem queimar nada. (enfrentando) Ela é minha filha!
Zé – (ignorante, pega Maria e aperta-lhe o braço) Cê não vai juntá? Eu junto!
Maria – Mas ela é minha única filha! (estapeia-lhe o rosto)
Zé – Cê não vai queimá? Eu quêmo! E se ocê defendê ela, cê sai daqui também!
(sai)
Maria – Oh, minha Nossa Senhora, guarda minha filha, ela sempre foi tão boa pra
mim, nunca fez mal a ninguém. (desespera)
Samuel – A Bendita não vai mais morar aqui, não, mãe?
Maria – Samuel, leva esse rádio que ela tanto gostava, lá na casa do Caxeta, não
deixa seu pai vê não. Corre menino, que eu vou rezar, eu vô pedir...
Samuel – Tá, mãe! (menino sai correndo com o rádio escondido)
Cena 12: Samuel entrega o rádio à sua irmã
(Bendita chora muito)
Consolação – (percebe o choro de Bendita) Menina... (pausa, escuta) Ô, menina,
vem cá vê o bordado que eu tô fazendo. (Bendita, chorando, vai ao encontro de
Consolação) Senta aqui. Ô, minha filha, cê é fia da Maria, num é? Num liga para
esse meu fio, não, que ocê se acostuma. No meu tempo de moça, briga de
namorado era normal. E eu quando tinha sua idade, assim, eu era namoradeeeeira,
tive sete namorado....
Samuel – Bendita!! (pausa) Ô, Bendita!
Bendita – (Bendita, deitada, escuta o irmão chamando, levanta rapidamente) Meu
irmão! (sussurrando) (abraça-o forte)
Samuel – Bendita!... A mãe mandou pro cê. Pega. (entrega-lhe o rádio) O pai tá
bravo; ele bateu na mãe, queimou suas coisas tudo e num quer ocê lá mais não.
(Consolação começa a ouvir a conversa dos dois, Bendita o empurra um pouquinho
pra mais longe)
Bendita – Então vai embora, senão o pai briga com a mãe e bate n’ocê, respeita a
mãe, (pausa) respeita o pai também.
Samuel – Tá, tchau!
Bendita – Tchau! (o menino sai correndo e vai embora. Bendita passa em frente a D.
Consolação)
Consolação – Que rádio bonito!
Bendita – (liga o rádio) Foi minha mãe que mandou pra mim.
Consolação – Sua mãe é boazinha dimais? Minha mãe também era assim. Tenho
saudade dos meus pais. Eles já faleceram. No meu tempo de moça saía muito pros
baile, dançar forró, ouvia muito Roberto Carlos... (entra música de Adoniram
Barbosa, faixa 5)
João – Você está na rádio do beco, 199.5, a FM que te escuta. E você, que se sente
solitária, o programa FALA COMIGO vem para desafogar todas as suas mágoas,
pois aqui, só toca o que te toca. E hoje o seu novo apresentador é Jonny Cat. Se
148
você gostou da minha voz, ligue e peça que eu fique. Amantíssimas ouvintes,
especialmente para vocês, uma música que, desde cedo, não me sai do
pensamento. Ouça esta canção, com seu coração. (para Couves) E aí Couves,
como é que foi?
Couves – Boa, cara! Volta amanhã às 9h! (Pixinguinha, Carinhoso – Bendita sai de
cena)
Cena 13: Anunciação e Dona Maria
(Um ano depois. Na hora em que o locutor acaba de falar e colocar a música
Carinhoso, D. Maria vem andando e coloca a lata no chão – Anunciação entra
correndo)
Anunciação – Maria!
Maria – Oi, Anunciação.
Anunciação – Cumé que ocê tá, hein? E a Dita, aquela lá não sai mais de casa,
não?
Maria – Ela deve tá trabalhando demais.
Anunciação – É, o marido dela deve tá prendendo ela dentro de casa, de chicote e
tudo.
Maria – Oh, Anunciação, bate na boca três vezes. Nossa Senhora protege minha
filha.
Anunciação – Ô, Maria, já tem um ano que a Dita tá com o Caxeta, não tem?
Maria – Tem.
Anunciação – Tá na hora da senhora ser vovó.
Maria – Que, Anunciação?
Anunciação – Já tá passando da hora da Dita ter um filhinho. Eu, pelo menos, acho.
Maria – Eu tô é com saudade da minha fia.
Anunciação – Ah, é? A senhora não tá indo lá vê ela, não?
Maria – Cê sabe que o Zé não deixa e também ia me cortá o coração ver ela
daquele jeito.
Anunciação – Se precisar de mim, eu tô aí: levo e trago notícias. Pra mim não é
nenhum problema. Eu não tenho marido para mim prender, né?
(entra o Caxeta tocando pandeiro e com Celina, sua amante, dançando)
Anunciação – Maria, Maria!
Celina – (sem graça) Ei, dona Maria.
Maria – E sua mãe, já melhorou? (faz sinal de afirmativo em silêncio e sai com
Caxeta)
Anunciação – Coitada da Dita!
Maria – Tchau, Anunciação.
Anunciação – (Ri, sem graça ) É, então tchau, né? (para o público) É por isso que eu
não arrumo marido. Ficô é loco.
Cena 14: Caxeta leva a amante para casa
(Caxeta e Celina falam fora de cena)
Caxeta – Vamos, Celina!
Celina – Não, Caxeta, você sempre fala a mesma coisa. É chato pra mim, né, a Dita
tá lá!
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Caxeta – Oh, Celina, cê tem que entender...
Celina – Entender o que, Caxeta? Eu conheço a Dita desde de quando a gente era
criança.
Caxeta – E você quer o que, Celina, que eu pego ela e jogo ela na rua...
Celina – Não, Caxeta, não é isso.
Caxeta – Se é isso que cê quer, eu mando ela embora agora mesmo, mas tem uma
coisa: a culpa vai ser toda sua...
Celina – Assim também não, coitada. Eu só quero resolver a nossa situação de uma
vez.
Caxeta – Oh, Celina, se você entrar hoje, eu prometo que eu converso com ela
amanhã mesmo. Sem falta.
Celina – Cê promete?
Caxeta – Palavra de Caxeta. (começa a tocar o pandeiro conquistando Celina) Oh,
Celina, samba para mim, samba... Isso, dá um sorriso, vai...
Celina – (vai cedendo ao Caxeta) Aí, Caxeta, cê não vale nada mesmo...
(enquanto isso, Dita faz comida de frente para o público, e dona Consolação costura
sentada de frente. Caxeta, então, entra em cena com Celina sambando)
Caxeta – Oi , mãe!
Consolação – Oi, meu filho!
Celina – (sempre sambando) Cê toca bem, Caxeta.
Caxeta – (sempre tocando pandeiro) E você dança demais, princesa. (pausa) Cê tá
com fome?
Celina – Tô, sim.
Caxeta – Dita, traz a comida!
Consolação – Bendita, minha filha, liga não, meu marido era desse jeito.
Caxeta – (Dita não responde – Ignorante) Dita a comida!
Bendita – Já vai! (Bendita traz a comida e deixa perto do casal, eles param de
dançar)
Bendita – Oi Celina, sua mãe tá boa? (Celina responde que sim apenas com a
cabeça) (sussurrando para ela) Cuidado, Celina, muito cuidado! (depois, Dita sai
para o quarto e Caxeta vai atrás dela e pega-a pelo braço)
Caxeta – Cuidado você, com essa sua língua. Hoje cê vai dormir aqui! (mostra para
o quarto da mãe)
Consolação – Não tá na hora do programa daquele locutor? Aquela voz bonita que
você tanto gosta? (Dita liga o rádio, feliz)
Jonny Cat – (na rádio) E a rádio do beco, 199.5, a FM que te escuta e o programa
FALA COMIGO que só toca o que te toca, têm hoje um motivo muito especial para
comemorar: um ano de Jonny Cat no ar. E para vocês: ouvintes amorosas, meu
muito obrigado, sem suas histórias este programa não seria possível. Continue
ouvindo a estação que fala com o coração.
Cena 15: O pressentimento de Maria
(saem Bendita e Consolação, entram Samuel e Maria em cena)
Samuel – Uai, mãe, cê não vai na missa hoje, não? Num vai mesmo não. Tá caindo
o maior chuvão lá fora e o pai também tá sem chave, né? Onde que o pai foi, mãe?
(Pausa) Mãe, mããããe...
Mãe – Que foi, meu filho?
Samuel – Cê tá doente, mãe?
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Maria – Oh, meu filho, depois que a Dita foi embora dessa casa, minha vida virou um
inferno: seu pai só fica no boteco, cada dia bebendo mais e mais. Já faz um ano do
acontecido e ele ainda nesse rancor. E o pior: essa fofocaiada no meio da rua, eu
não tô agüentando isso mais, não! Sabe o quê que ês tão falando agora? Que a Dita
tá grávida.
Samuel – Uai, mãe, mas ela não é casada?
Maria – Oh, meu filho tem alguma coisa me dizendo que essa história num vai
acabar bem.
Samuel – Num fica assim não, mãe (deita no colo da mãe; ajuda a mãe a se
levantar)
(trilha Egberto Gismonti)
Cena 16: Caxeta bate em Bendita grávida
Caxeta – Mãe! Cadê aquela vagabunda?
Consolação – A Bendita tá no quintal (toda ingênua)
Caxeta – Dita, Dita! Vem cá, sua vadia. (ela fica com medo e não vai.) Vem cá.
(Caxeta a busca pelo cabelo, e lança-a no chão, sobe sobre ela para enforcá-la)
Caxeta – Tá todo mundo falando que você tá grávida? É verdade?
Bendita – É verdade!
Caxeta – E de quem é esse menino?
Bendita – É seu, Caxeta.
Caxeta – Eu vou te matar e arrancar esse menino da sua barriga. Você acabou com
a minha vida, sua vagabunda. (ao ver o filho batendo em Bendita, Consolação
levanta-se depressa, para ajudar Dita)
Consolação – Sai daí, meu filho, cê num vai desgraçá mais a vida dessa minina.
(Caxeta empurra a mãe, Consolação, que cai no chão, e Dita busca uma faca)
Bendita – (de posse da faca) Fica longe, Caxeta. Você não vai me tocar nunca mais.
Seu nojento! Meu filho é a única coisa que me restou, cê num vai fazê nada com ele.
Vai embora!
Caxeta – Se é isso que cê quer. Cê vai ter!
Cena 17: A morte de seu Zé
(No buteco.)
Zé – (para o balconista imaginário) Mais uma. (pausa – recebendo o copo) Que
mané anotá o que, rapaz? Esse é o buteco do meu genro. Encha esse copo aí. Eu
não tenho nada pra falar com aquele filho da puta. Eu como e bebo aqui à vontade,
ele não faz isso com a minha filha?!
Caxeta – Vamos resolver esse problema então, seu Zé?!.
Zé – Ah, é ocê? Eu num tenho nada pra falá
com ocê, não.
Caxeta – Sua filha me aprontou mais uma! Ela tá grávida, o senhor sabe o que eu
vou fazer?
Zé – (debochando) Se ocê que é o marido num sabe, eu que vou saber?!
Caxeta – Seu Zé, a culpa é toda sua!(coloca-lhe o dedo no nariz. Zé reage)
Zé – (empurrando a mão de Caxeta) Tira a mão da minha cara, rapaz! (pega Caxeta
pela camisa) Cê não aponta dedo pra homem, não! (Dá um tapa na cara de Caxeta
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que cai no chão. Enquanto isso, Zé vai até o balcão) Eu faço questão de pagar cada
anotação. Eu vou ficá deveno pra Caxeta? (irônico)
Caxeta – (vai até o “balcão” e pega a arma, aponta para Zé) Eu não aponto dedo pra
homem, não, eu aponto isso! (aponta a arma.)
Zé – (ri) IIh, cê nunca foi de nada, meu caro, não vai ser hoje... (duvidando e saindo,
ignorando a arma e o próprio Caxeta)
Caxeta – Se não for pra sua filha, é pr’ocê, seu velho desgraçado! (atira em Zé pelas
costas que se vira para Caxeta, cambaleando, levando então mais um tiro no peito –
cai no chão e Caxeta dá mais dois tiros em Zé deitado) (sai correndo). (trilha Egberto
Gismonti)
Voz em off da rádio: E ATENÇÃO: ESTÁ FORAGIDO O ASSASSINO DE JOSÉ
MARIA FERREIRA DA SILVA. O SUSPEITO DO CRIME É O CONHECIDO
CAXETA. MAIS NOTÍCIAS, A RÁDIO DO BECO VOLTA A QUALQUER
MOMENTO...
(surge em cada coxia um personagem do espetáculo para ver a cena)
Cena 18: Anunciação avisa a morte de seu Zé
(Anunciação aparece na janela):
Anunciação – Maria! Ô, Maria! Vai lá no buteco. Seu marido tá caído no chão. Teve
a maior brigaiada.
Cena 19: Samuel se despede do pai morto
(Entra Samuel e vê o pai caído)
Samuel – Pai! (Samuel aproxima-se do cadáver) Pai! Ô, pai, levanta daí. O senhor
falou que ia consertar o meu rolimã. Levanta!
(Dita surge correndo, ajoelha-se em frente ao cadáver)
Bendita – Pai, (pausa) Ô, pai, não era para ser assim... (entra Maria)
Maria – Zé?... (gritando) Meu marido! Quem fez uma maldade dessa? (pausa, para
Bendita – chorando) Filha, o que que a gente vai fazer agora? (coloca o pano sobre
o marido – Bendita tira a mãe de cena, deixando Samuel sozinho com o corpo do
pai. Samuel usa o barbante do carrinho que fica o tempo inteiro com ele.)
Samuel – Sabe, pai, a mãe me contou que quando morria alguém lá na roça, as
pessoas amarrava um barbante na mão do morto e esticava bem esticadinho, bem
lá no alto que é pra alma do defunto ir direto pro céu. (desenrola o barbante e fica
olhando para o céu) Pronto! Pode subir, pai. Sobe, pai! (a alma de Zé sobe no
barbante, mas Samuel não percebe, olha para “o corpo” caído do pai e um tempo
depois) Num vai subi, não?! (entra Dita).
Bendita – Samuel, vão embora pra casa, vão? (Samuel agacha no “corpo do pai”,
pega o chapéu, coloca-o na cabeça e fala para Dita)
Samuel – Ô Dita, será que o pai não foi pro céu? (pausa, vai saindo e dizendo para
si mesmo) Será que eu não amarrei direito? (saem os dois)
Cena 20: Bendita ganha o concurso da carta
Radialista Couves – Rádio do Beco 199.5, a FM que te informa todas as notícias do
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Aglomerado. Caros ouvintes, aqui quem fala é o Couves, o seu radialista do dia-adia. E atenção que vamos mandar a dica do dia: se a chuva não tá brincadeira e o
seu telhado anda te pregando uma peça, gotejando para valer na sua cabeça, não
se preocupe: pegue o sabão de cachorro e passe no local que tá rachado. Depois,
deixe secar e adeus para aquele pinga-pinga infernal. E agora, uma notícia com o
todo nosso respeito: hoje foi a missa de um ano da morte do nosso amigo José
Maria Ferreira da Silva. O assassino, o Caxeta, está foragido até hoje. Sabendo de
seu paradeiro, ligue para nós. Porque aqui, no programa Notícias do Beco, você
sempre fica bem informado. E continue com a nossa programação.
Maria – A missa foi bonita (melancólica, pausa)
Consolação – Meu filho mandou mais uma carta. (pausa) Não tinha endereço. Só
veio com o meu nome.
Maria – E ele, tá bem?
Consolação – Bem nada, tá fugido da polícia.
Maria – Ô, Consolação, esconde essa carta. Não deixa o Samuel vê não.
Consolação – Pode deixar, Maria, tá guardada bem guardadinha.
Maria – Mas a nossa netinha Vitória tá tão bonita.
Consolação – Linda, mesmo, e quando ela crescer, vai ser namoradeira igual a vovó
aqui. No meu tempo de moça, eu era namoradeira. Tive sete namorado numa
semana só.
Maria – Numa semana só?
Consolação – É, Maria. Um dia chegou dois lá em casa – e eu sem saber o que
fazer. Minha irmã ficou com um, enquanto eu saía com o outro.
Maria – Mas cê era danada mesmo, hein, Consolação!
Consolação – Namorava mermo. Ô, tempo que era bom!!! Eu vou aumentar o
volume dessa música. Que são minhas conhecidas lá do grupo de idosas. Essa
música é bonita!
(Maria se assusta com o volume, pois ela está com a filha de Bendita – Vitória – no
colo)
Maria – Nossa, Consolação! Abaixa um pouquinho.
Consolação – Não, minha filha, a música é bonita!
Maria – (gritando) Bendita, Bendita!
Bendita – (entra, assustada com o barulho) Nossa, dona Consolação, a senhora qué
deixar minha filha surda (pega a filha do colo de Maria e sai)
Jonny Cat (na rádio) E o programa “Fala Comigo” tem o prazer de anunciar a grande
vencedora do concurso “Histórias do Coração”: você que escreveu sua carta, contou
sua história, está concorrendo a um par de alianças e a uma panela de pressão.
(pausa, toca a música) Amantíssimas ouvintes, li com atenção e carinho todas as
suas cartas, mas aquela que mais me comoveu e ganhou foi a da ouvinte (pausa,
suspense) Bendita Ferreira da Silva!!!
(dona Consolação presta atenção na rádio)
Maria e Consolação – Bendita!?
Maria – Bendita, minha filha, vem cá. Escuta! (Bendita entra, assustada)
Jonny Cat – Bendita Ferreira da Silva, você que ganhou o nosso concurso, passe
hoje mesmo na nossa rádio para pegar o seu prêmio, estamos te esperando.
Bendita – Mas eu não mandei carta nenhuma!
Consolação – Fui eu que escrevi.
Maria – Vai lá, pega a panela de pressão e as aliança.
Consolação – É bom que ocê casa.
Bendita (saindo) Eu não vou casá nunca mais, Dona Consolação.
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Consolação – Se ocê num qué as alianças, pega a panela de pressão: é pra nós
cozinhá pezinho de galinha. (Consolação e Maria saem cochichando)
Jonny Cat – Enquanto a Bendita não vem, vamos tocar uma música para uma
Bendita que atravessou meu caminho. Afinal de contas, quem nunca teve uma
Bendita na vida.
(toca música Pixinguinha – Carinhoso)
Cena 21: Reencontro de Bendita e João
(Bendita chega na rádio, Jonny Cat está arrumando os objetos da rádio e
“escondido”)
Bendita – Com licença?
Jonny – Ô, senhorita, não pode ir entrando assim não.
Bendita – Moço, eu vim por causa da panela de pressão, é que eu ganhei o
concurso.
Jonny – (dentro da rádio, mostra apenas a mão mandando- a esperar) Ah, sim, só
um momento (entra em cena, enquanto Bendita continua se arrumando) Bendita,
seu nome, né?
Bendita – É sim, senhor (Bendita, nesse momento, está de costas para Jonny, este
vira-se para arrumar algo e fumando) Moço, apaga esse cigarro, por favor.
Jonny – (de costas pra ela) Vai tê jeito, não.
Bendita – É que eu tenho alergia.
Jonny – (virando-se para ela quando a reconhece, apaga o cigarro assim como a
cena do ônibus) Oh, é ocê? Aqui ó, apaguei.
Bendita – Jonny Cat, é você?
Jonny – Pra você, eu sou João, lembra, o João do Ônibus?
Bendita – Lembro, então quer dizer que o trabalho que ocê ia conseguir é este?
Jonny – É, sim, e então quer dizer que a Bendita da carta é também a minha Bendita
do Ônibus, (vira-se para Bendita, que está séria, sem graça) quer dizer, a Bendita
que eu conheci naquele ônibus? (pausa, suspiro) Poxa, quanto tempo...
Bendita – Pois é, muito tempo...
Jonny – Me perdoe os modos, é a confusão dessa rádio.
Bendita – Não tem de que, eu também só vim pegar meu prêmio.
Jonny – Ah, sim... (vão se aproximando), a panela de pressão tá lá dentro, mas as
alianças... (procurando, acha) tão aqui! (entrega a Bendita)
Bendita – (apenas balança a cabeça afirmando, vê as alianças) Ah, não, eu num
quero a aliança não, eu quero só a panela de pressão mesmo. (Jonny fica triste)
Jonny – Mas por que, lindinha?
Bendita – É que... (encanta-se com João) Pensando bem, eu quero a aliança, sim!
(Jonny fica feliz) mas só pra comprar fralda pra minha filha.
Jonny – (aproximando-se dela e pegando-a pela mão) Mas eu sei que agora você
está solteira.
Bendita – Sozinha.
Jonny – Poxa! Eu tinha tanta coisa para te dizer, mas parece que agora tudo, ó,
sumiu, assim...(estala os dedos)
Bendita – Eu também tinha muita coisa para dizer, mas também me fugiu, assim,
ó...(estala os dedos – Jonny se aproxima e faz que vai beijá-la)
Bendita – (desvia) Sua boca tá fedendo a cigarro.
Jonny – (falando para si) Mas eu já apaguei, (joga o cigarro por cima do cenário –
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fora) e eu parei de fumar, viu?
Bendita – Parô?????
Jonny – Por sua causa.
Bendita – (toda feliz) Por mim.
(vão se aproximando como se fossem se beijar, viram-se e rodam, ficam um de
frente para o outro, viram para o público e dão um passo à frente)
Cena 22: O Casamento
(Música de casamento, Couves veste terno em Jonny Cat. Entra a mãe de Bendita
com um véu para lhe colocar na cabeça)
Maria – (coloca o véu nela) Finalmente, Nossa Senhora atendeu minhas preces. Cê
vai ser muito feliz, minha filha. Deus te abençoe!
Consolação – (entrega para Bendita uma flor) Ô, Bendita, dos sete namorado, eu
ganhei sete flô, e todas as sete, eu te dou. Uma para cada dia da semana que vai te
trazer muito amor.
Celina – Ei, Bendita, sabe... Na minha vida já passaram muitos homens, uns bons,
outros não, ganhei muitas flores também. Fica com essas, quem sabe elas vão te
trazer mais sorte?...
Anunciação – Dita, você tá bonita, aqui, aceita a minha também. Ó, pode pegar, é de
coração. O negoço lá do Caxeta, você esquece, que não foi por mal. E boa sorte
nesse novo casamento.
(acontece o casamento. Seguem andando em direção ao público. Beijam-se. Chega
o irmão de Bendita, Samuel, e cumprimenta João. Vão para o fundo. As mulheres
gritam para Bendita jogar o bouquet)
Mulheres – O bouquet, o bouquet!
Cena 23: O bouquet
Bendita – Um, dois, três (todas as mulheres repetem; Bendita joga o bouquet que cai
na mão de Samuel)
Samuel – Peguei!
(João arrasta Bendita pelo braço, saindo de cena)
(todas as mulheres se juntam em Samuel para lhe tomar o bouquet)
Maria – Uai, meu filho, homem pegá bouquet não vale, não, dá pra mamãe, dá!
Samuel – Ah, mãe! Eu também quero casar!
Anunciação – Isso não é coisa prá homem, não. (Samuel faz gesto de não entregar)
Consolação – Deixa pras moça, meu filho!
Celina – Dá, Samuel, eu também quero casar!!
Samuel – Cês querem pegar bouquet? Então vão no meu casamento! (sai correndo
e todas atrás)
Cena 24: Piolhos de Vitória
(Aproximadamente dez anos depois. Duas cenas sobrepostas: assim que as
mulheres saem atrás de Samuel, na primeira cena, João entra no boteco, e na outra
cena, entra Vitória e Bendita em casa)
155
João – Me dá outra. (chega Anunciação com sua janela no buteco)
Anunciação – Ei, Seu João, tudo bem? E a Dita, tá boa? Já tá passando da hora de
vocês terem um filhinho, hein...
João – Mas a gente já tem a Vitória.
Anunciação – Mas a Vitória é filha do Caxeta! Mas ainda bem que você assumiu
essa menina. Porque a coisa mais triste é ser filha de bandido, né? Aquele lá é que
não valia nem uma agulha...
João – Pai é quem cria, Dona Anunciação!
Anunciação – Então, já que você tá criando a menina, seu João, vê se passa um
remedinho nela, que a coitada tá pingando piolho.
João – Oh, Dona Anunciação, a senhora não tem mais coisa pra fazer, não?
Anunciação – Tenho, mas isso aqui é mais importante. E a Dita? Ela tá animada
para cantar?
João – Não! Mulher minha não é artista, não!
Anunciação – Credo, seu João, mas é o sonho dela.
João – Qué sonhar, deita na cama e sonha!...
Anunciação – Então, quer dizer que ela não vai participar mesmo, né?!
João – Não (bafora na cara dela). Já falei que não! (para o público) Que mulher
chata!
(Anunciação vai até a casa de Bendita. Entra Vitória primeiro, depois, Bendita)
Bendita – Vitória, eu já não mandei cê ir para escola? Que que ce tá fazendo aqui,
menina?
Vitória – Eu não vou para escola nunca mais!
Bendita – Mas por que, minha filha?
Vitória – Os meninos tão tudo me chamando de piolhenta e de cabeça de farinha. Só
porque eu tenho lêndea!
Bendita – Deixa eu ver sua cabeça?! (Bendita olha a cabeça de Vitória) Vitória!!!
Cr”em Deus Pai! Os piolhos tão tudo pulando (mata os piolhos no ar) Ah, desse jeito,
vou ter que pedir o seu tio Samuel pra rapar sua cabeça!
Vitória – Ah não, senão os menino vão me chamar é de macho-fêmea!
Bendita – Essa menina deve ter o sangue doce. É piolho de defunto, só pode! Eu já
passei querosene, álcool, vinagre, até bombril no pente... (entra Anunciação)
Anunciação – Dita!
Vitória – (com vergonha) Dona Anunciação! (esconde o cabelo)
Anunciação – Tá que cata piolho, hein?
Vitória – Num é piolho, não.
Anunciação – Cala a boca, menina.
Bendita – Oh, Anunciação, cê num tem uma roupa pra lavar?
Anunciação – Já lavei.
Bendita – Então, vai lavar uma vasilha, vai!
Anunciação – Já fiz isso também. Ô Dita, você num vai participar do concurso, não?
Bendita – Que concurso?
Anunciação – O concurso de cantoras que vai ter lá na rádio?
Bendita – Vô não.
Anunciação – Num vai mesmo. Porque eu acabei de ver seu marido e ele falou que
ocê num vai de jeito maneira.
Bendita – Tá bom, Anunciação, muito obrigada. Tchau! (Anunciação sai)
Vitória – Ah, mãe, participa do concurso.
Bendita – Se seu pai deixar, eu participo. (entra o pai, Vitória corre para abraçá-lo)
Vitória – Pai!!!
156
João – (afasta-a) Ó, distância!!!! Distância!!!!
Vitória – Por que, pai?
João – Eu num quero pegar piolho.
Bendita – Oh, João, num faz isso com a menina não, cê sabe que ela gosta d’ocê
como um pai.
João – Eu também gosto dela, só não gosto dos piolhos que ela tem.
Bendita – Então me ajuda a cuidar que ela não fica assim!
João – O papel de mãe aqui é seu.
Vitória – Oh, pai, deixa a mãe participar do concurso.
João – Não.
Vitória – Ah, pai, ela tem a voz tão bonita.
João – Eu também acho, só que é mais bonita ainda no pé do meu ouvido, né,
amor? (Bendita fica séria). Cê entende, né ? É que o clima da rádio não é familiar e
.. (Bendita continua séria e sem graça. Jonny beija-a). Tchau, tô indo trabalhá.
(sai, deixando Bendita a catar piolho da filha)
Bendita – (para si mesma) Ele é que pensa que eu não vou participar!
Vitória – O que, mãe?
Bendita – Nada, não, minha fia. Vai lá na casa da vovó e pede para ela terminar de
cuidar do seu cabelo porque a mamãe tem que sair, mas volta logo.
Cena 25: Baile do Concurso de Cantoras
(Jonny na rádio, todos entram com cadeiras esperando as cantoras)
Jonny Cat – Você está na rádio do Beco, 199.5, a FM que te escuta. Estamos aqui
hoje ao vivo do nosso salão de comemorações para a grande decisão do Concurso
“Cantoras Sabiá”. Você que cansou de cantar no banheiro e tá a fim de descolar um
dinheiro, fez sua inscrição. E hoje, aqui, teremos três lindas vozes. Enquanto elas
não vêm, curta a nossa canção.
(música de Dominguinhos, as pessoas dançam pelo salão, Anunciação dança com
Couves e Vitória com o seu tio, Samuel. Burburinhos)
Samuel – Oh, Dita, essa menina é muito sem educação.
Bendita – Vitória, fecha as perna, senta direito, minha filha.
Maria – Oh, Dona Consolação, senta aqui! (Dona Consolação assenta no lugar de
Samuel, Vitória aproveita do tio em pé e puxa-o para dançar, Couves e Anunciação
que estavam em clima de paquera também dançam)
Jonny – E atenção, caros convidados, favor liberar o salão.
Anunciação – Mas já? Num se pode nem dançá! (empurrando Samuel que
assentado estava no lugar de Anunciação) Sai pra lá, menino!
Jonny – Sem reclamação. E sem confusão, Anunciação. Pois já temos os três
nomes das finalistas que cantarão com suas belas vozes aqui, hoje. Lembramos que
a nossa comissão julgadora é transparente. E o nome das vencedoras são: Em
terceiro lugar, Irene Rodrigues da Silva. Em segundo lugar, a Dupla Dona Miltes e
Dona Marta. E em primeiríssimo lugar, ... (pára a música e grita, surpreso) Bendita!!!!
(vai até ela) Que história é essa d’ocê se inscrever pra esse concurso?
Bendita – Ô, João, eu num queria não, sabe? Mas dona Consolação me inscreveu e
agora que eu ganhei, eu vou cantar!
João – Não, cê num vai cantar...
Consolação – Oh, meu filho, o sonho dela é cantar. E ela é uma menina que batalha
muito, ela merece...
157
João – Ô, dona Consolação, eu sei que a senhora teve boa intenção, mas a gente já
conversou que esta história de cantá não vai levá a nada, num dá camisa a
ninguém...
(todos ficam a favor de Bendita)
Bendita – Conversou não, João, ocê que decidiu e eu não concordo uai, eu vô
cantar, sim!
(João pega Bendita pelo braço)
João – Bendita, vão embora, amor.
(Bendita sai em direção ao palco)
(João agarra o braço dela e começa a puxar-lhe para fora)
Bendita – Me solta, João, me larga!
(Entra Couves, pra tentar separar)
Couves – Que é isso, gente, num vão brigar não.
(no meio da confusão, com João empurrando Bendita, ela resistindo e Couves
tentando separar Bendita, esbarra em João que cai e levanta indignado)
João – Você bateu na minha cara?
Bendita – Eu num te bati não, João. Pelo amor de Deus, João, eu num te bati não.
Anunciação – Bateu, sim, seu João, que eu vi (Bendita vai agredir Anunciação, João
pega Bendita pelo braço)
João – Homem pior do que eu cê já teve , lembra?
(com essa fala, João desarma Bendita e aponta o dedo na cara dela)
Bendita – Que é isso, João?
João – Quer saber de uma coisa: VO / CÊ NÃO / VAI/ CAN / TAR!
Bendita – Ah, num vô, não?!
(levanta a mão e, em câmara lenta, enquanto toca um pandeiro, abaixa e gruda no
saco dele e solta a mão)
Bendita – Oh, minha mão cansou!
(repete a câmara lenta com a outra e continua a apertar o saco)
Bendita – Ô, Couves, liga minha música aí, agora. (Bendita solta-o e ele vai até a
frente, caindo)
(todos se aglomeram sobre ele em burburinhos. Bendita pega o microfone e começa
a cantar)
Bendita – “O nome de mulher é tão sagrado
Mulher é nome pra ser respeitado
A cobra não morde uma mulher gestante
Porque respeita seu estado interessante
Minha mãe também tem nome de mulher
Tenho que defender
Eu choro quando vejo ela sofrer
Deus, Nosso Senhor, devia castigar
O infeliz
Que faz uma mulher chorar.”
(durante o canto de Bendita, todos vão deixando João abandonado no chão e se
encantam com a voz dela. João também, ele se levanta e fala com o público)
João – Bendita, minha mulher. Agora ela tá cantando aqui e cantando ali, e eu, por
causa dos meus contatos virei o “tipo” empresário dela, homem de negócios,
compreende, né?
Bendita – Na verdade, o João não é meu empresário. Ele é meu segurança
mesmo...
(os dois brigam)
158
João – Deixa de gracinha, Bendita. Tá querendo me envergonhar na frente do
público?
Bendita – Mas é isso mesmo... Você é meu segurança!
João – (para o público) Tipo Empresário!
Bendita – (para o público) Tipo Segurança!
João – Empresário!
Bendita – Segurança, João, você não lembra o que você fez com aquele rapaz lá
fora?
João – Mas ele tava te cantano! (Bendita ignora-o e vai para o fundo do palco, João
vai atrás e ficam simulando a briga dos dois) (entram os personagens narrando suas
histórias finais)
(Vitória, filha de Bendita)
Vitória – Eu não conheci meu verdadeiro pai, o Caxeta. Mas encontrei um pastor que
me apresentou Jesus. Ele disse que para ser forte na igreja, tinha que arrumar três
mil almas, já consegui umas trinta, mas tenho fé que um dia eu chego lá. Amém!
Samuel – Eu fui atrás do Caxeta vingá a morte do meu pai.
Consolação – Eu continuei esperando meu filho se arrepender e voltar, enquanto
isso, tô aqui morando com a Maria, né, Maria?
Maria – É... Meu filho Samuel também sumiu no mundo. Mas, ao mesmo tempo, eu
tô feliz com a nossa netinha e tamo também vendendo uns paninho de prato, que
nós mesmo fizemo. Se vocês quiser comprar...
Anunciação – Gente, eu tenho novidade: casei. Arranjei marido. Sabe com quem?
Com o Couves. Eu acho que eu paguei foi língua, só pode...
Couves – Oh, muié, eu num já te falei que eu num gosto dessa história de você ficar
nessa janela.
(os atores formam uma fila na boca de cena e cumprimentam o público. João e
Bendita levantam-se com um beijo na boca, atrás dos atores, voltam pra frente e
cumprimentam o público, saem de cena e voltam cantando o trecho da música
“Nome Sagrado”)
159
ANEXO B - ROTEIRO PARA ENTREVISTA COM O GRUPO DO BECO
A princípio, serão realizadas duas ou três reuniões coletivas com os integrantes do
Grupo do Beco, de forma a perceber sua visão e posicionamento de grupo. Nesse
momento, pretende-se focar mais as questões relativas à história do Grupo,
trajetória e processo de criação da peça “Bendita a Voz entre as Mulheres”.
Objetiva-se realizar as entrevistas com suporte de um gravador, caso o Grupo não
se oponha.
Principais questões a serem tratadas:
1. Sobre o Grupo e seu histórico
Como o Grupo se formou?
Como começou?
Como se conheceram?
Há quanto tempo estão com a formação atual? Já houve outras?
Peças já realizadas pelo Grupo anteriormente – Pegar cada uma das peças
citadas e relatar:
1. Temática – Sobre o que falavam? Qual o conteúdo? Qual a
mensagem? Qual o objetivo deles com a peça?
2. Onde apresentaram?
3. Formato, descrição da cena
4. Formação do Grupo na época
5. Como foi a recepção?
As peças são:
6. Quis 500?
7. Consumidores à beira de um ataque de nervos
8. O casal
9. Casamento e bronca na roça
10. Coisa de criança
11. O afilhado da morte
O Grupo tem algum tipo de trabalho / envolvimento comunitário? Qual?
Descrever.
Projeto Mãos de Mulher – detalhar: em que consiste, como é, quando, etc.,
etc.
Projeto Adolescer ou Não? Idem anterior.
Como é ser um grupo de teatro em uma favela? Falar sobre a relação interna
(com a comunidade) e relação externa (com o restante da cidade).
Quais são as dificuldades de se produzir arte na favela (ou a partir da
favela)?
Por outro lado, o que ser um grupo de moradores de favela facilita/ajuda na
trajetória do Grupo?
160
2. Sobre a peça Bendita
Como surgiu a idéia? Como se deu a criação do argumento e roteiro?
Quem escreveu a peça? Houve colaboradores externos?
Qual era o objetivo? Qual a mensagem que o Grupo quer passar com a
peça?
Qual é, na opinião dos integrantes do Grupo, seu cerne, seu ponto
fundamental? Quais os valores em discussão na peça?
Na visão do Grupo, como vem sendo a recepção da peça pelo público?
O entendimento do público a respeito da peça condiz com a mensagem que
o Grupo quer passar?
Quais os retornos e comentários que o Grupo tem tido do público a respeito
da montagem?
Como foram os debates com o público após as apresentações? O que foi
dito, etc.?
Nas apresentações da Bendita na comunidade – Qual a reação do público?
Sentiram que aqui no Aglomerado vocês atuaram de maneira diferente?
Ocultaram, acrescentaram ou modificaram algo?
Como o Grupo vê a contribuição de terceiros na peça? Qual foi a importância
dessa contribuição e em que alterou substancialmente a idéia inicial do
Grupo?
Por que do título escolhido para a peça?
Qual a intenção da referência religiosa do título e também dos personagens
(José, Maria, Conceição, Anunciação, Samuel, Bendita)? Qual a relação dos
integrantes do Grupo com a(s) Igreja(s)?
Acham que Bendita é universal? Trata do cotidiano de toda mulher negra,
favelada? O que ela tem de universal e o que tem de particular, único?
3. Sobre o processo de coleta de informações para a peça (entrevistas com as
mulheres do morro)
Por que o Grupo decidiu partir para entrevistas com as mulheres da vila?
O que estavam buscando nesse momento inicial?
As entrevistas agregaram ao Grupo algum tipo de vivência ou informação
que ele já não tivesse anteriormente? O quê?
Quais foram as realidades que o Grupo apurou nas entrevistas com as
mulheres? Como vivem, o que pensam, como agem?
Como as entrevistadas receberam o tipo de trabalho do Grupo?
Como se sentiram ao ver a peça pronta? Houve reconhecimento de sua
situação nas personagens da peça? Houve rejeição/discordância?
No próximo trabalho, pretendem repetir esta forma de pesquisa para
composição da peça? Por quê?
4. Visão de Mundo
Relação com a mídia – Como a vêem? O que pensam dos meios de
comunicação? O que eles dizem da vila? O que dizem do Grupo do Beco?
Por que desconfiam tanto dos “outros”, dos que vêm de fora? Inconsciente
161
coletivo? Experiência negativa pessoal? Em que se baseia a desconfiança?
Em sua opinião, qual o nível de consciência cidadã proativa do Aglomerado
como um todo? – direito à cidadania, construção coletiva de uma identidade,
assumir o papel de sujeito – isso se dá de fato junto a esta população? É
disseminado? Ou ainda é minoria?
José cita a “ocultação da história local” pelo Poder Público. Como vêem o
Poder Público? Como atua no Aglomerado? Quais os problemas?
O Aglomerado “incomoda a cidade” – não há mais como ignorá-lo: como
incomoda? Por quê?
“Se almeja maior interação da favela com a cidade, sem sua
descaracterização simbólica e cultural”. Como?
Relação favela x cidade:
Como se dá, do ponto de vista cultural?
Como se dá, do ponto de vista simbólico/ideológico?
Vocês colocam que o Grupo visa à intervenção social por meio da arte. Que
tipo de intervenção seria esta? Que mudança vocês almejam? Como
pensam que podem contribuir?
O que pensam que já contribuíram de fato? O que mudou com a atuação de
vocês? O trabalho de vocês já “fez a diferença” na comunidade? Como/em
quê?
162
ANEXO C - ROTEIRO PARA ENTREVISTAS INDIVIDUAIS COM MEMBROS DO
GRUPO DO BECO
Depois desses primeiros encontros, vão ser realizadas entrevistas individuais com
os membros do Grupo, buscando conhecer suas motivações e envolvimento pessoal
com o projeto, além de sua visão de mundo particular. Supõe-se que, a princípio,
apenas uma entrevista com cada integrante do Grupo (entre produção e artistas)
seria suficiente, o que totalizaria em torno de 8 a 10 encontros. Caso necessário,
retornar-se-ia para complementar ou aprofundar com algum deles que tenha mais
envolvimento com a vila ou com a peça. Também nesse momento pretende-se usar
gravador.
Principais questões a serem tratadas:
Sexo, idade, local de nascimento, local de moradia
Família – idade, escolaridade e profissão dos pais e irmãos
Qual sua formação escolar?
Qual sua formação artística?
Quando começou a trabalhar com arte? Qual sua trajetória pessoal antes de
participar do Grupo do Beco?
Como/quando se deu sua entrada para o Grupo do Beco?
Já participou de outros espetáculos teatrais antes do “Bendita”? Quais,
quando, com quem?
Participou no processo de criação da peça? Como?
Teve algum envolvimento no processo de entrevista com as mulheres da
vila? Qual?
E na redação do texto da peça?
E nos cenários, figurinos, enfim, na montagem em geral?
Qual é, em sua opinião, a imagem que a peça “Bendita” passa da favela?
Essa imagem é recebida de maneira diferente por moradores da vila e outras
platéias? Como é em cada grupo?
Para você, como é ser artista e morar na vila? Quais são os pontos positivos
e as dificuldades dessa situação?
Como você vê a produção cultural do Aglomerado? E de outras favelas da
cidade?
Você tem algum outro trabalho paralelo ou vive do teatro? Como vê essa
questão?
Para você, qual a importância do teatro e do Grupo do Beco em sua vida?
Para você, o que é arte? Porque faz arte? O que te leva a querer continuar a
163
ser artista?
Para você, o que é cultura?
O que a arte e a cultura te trazem de bom?
Você tem expectativa de viver de teatro? Pretende um dia ganhar dinheiro
como ator? O que pensa sobre a relação arte e dinheiro?
Você gostaria de ser famoso? Tem pretensão de um dia fazer sucesso? O
que é a fama e o sucesso para você?
Para você, o que é a Cidade? O que ela tem de positivo? O que ela tem de
negativo? Como ela trata a vocês, Grupo do Beco? E como ela trata a vocês,
moradores de favela? O que você gostaria de dizer para a cidade? Com
amor? E com raiva?
E para você, o que é a Favela? O que ela tem de positivo? O que ela tem de
negativo? Como ela trata vocês, Grupo do Beco? E como ela trata vocês,
moradores da favela? O que você gostaria de dizer para a favela com amor?
E com raiva?
Trabalho – o que é para você? Qual o papel dele na sua vida?
164
ANEXO D - Release - Grupo do Beco monta espetáculo com histórias das
mulheres do morro
O Grupo do Beco estreou, no último dia 8 de março – Dia Internacional da Mulher, o
espetáculo “Bendita a Voz entre as Mulheres”, com direção de Júlio Maciel, ator do
Grupo Galpão, e Ana Domitila, atriz e professora de teatro do Galpão Cine Horto.
Esse trabalho é o resultado de quatro meses de pesquisas com mulheres do
Aglomerado Santa Lúcia, conjunto de favelas que reúne cerca de 40 mil habitantes
na região Centro-Sul de Belo Horizonte. O espetáculo é patrocinado pela Açoforja
Indústria de Forjados S/A e faz parte do projeto “Mãos de Mulher”, desenvolvido pelo
Grupo do Beco e aprovado pela Lei Estadual de Incentivo à Cultura.
Vinte mulheres, com idades entre 21 e, aproximadamente, 70 anos, contaram um
pouco de suas vidas na comunidade, marcadas pela violência e também pela luta
por melhores condições de vida. Elas revelaram vivências, experiências e sonhos
permeados pelo machismo, pela discriminação racial e social. Essas mulheres
retratam a diversidade de perfis existentes na comunidade. É o caso, por exemplo,
da única mulher pastora do Aglomerado, da dona de casa que fica por conta dos
filhos, da mulher que trabalha fazendo carretos, da líder comunitária e da mulher
mais velha, dentre outras.
O texto do espetáculo foi construído a partir dessas histórias, em processo
colaborativo que envolveu o próprio Grupo do Beco, os diretores e a dramaturga
Letícia Andrade.
“Bendita a Voz entre as Mulheres” tem sido apresentado em escolas (públicas e
particulares) de Belo Horizonte, bem como em espaços como o Galpão Cine Horto e
o Centro Cultural da UFMG, atingindo público diversificado, tanto no que concerne
às condições sociais quanto à idade (a classificação é para pessoas acima de 12
anos). No último dia 11 de setembro, o Grupo se apresentou no Teatro Marília, em
BH, por ocasião do Projeto “Novos Registros”, promovido pelo Arquivo Público da
Cidade de Belo Horizonte. A apresentação de “Bendita” foi seguida de debate sobre
o processo de produção do espetáculo, tendo em destaque a realização das
entrevistas e utilização delas como fonte de pesquisa artística. As vinte gravações
com os depoimentos das mulheres entrevistadas foram doadas pelo Grupo do Beco
ao Arquivo Público da cidade.
Construção de um Projeto – Paralelamente à preocupação com os temas sociais,
a busca pela qualidade artística também é uma marca do Grupo do Beco, bem como
o seu aprimoramento nos campos administrativo e de produção. Após a participação
em diversas atividades do projeto “Arena da Cultura”, da PBH, entre elas o curso
“Administração de Grupos Teatrais” em parceria com o Grupo Galpão, os
integrantes do Grupo do Beco buscaram a experiência e a integração de vários
artistas profissionais de Belo Horizonte ao Projeto “Mãos de Mulher”. Alguns deles:
Babaya, Dudude Herrmann, Valéria Braga, Anthonio, Amaury Borges e Lica
Gimarães. A partir daí, foram realizadas oficinas de expressão corporal,
165
interpretação, improvisação, técnica vocal e musicalização. Também o artista
plástico Leo Piló se integrou ao Grupo, assinando cenário e figurinos do espetáculo.
Já a direção musical está sob a responsabilidade de Ricardo Garcia.
Para Romulo Avelar, Assessor de Planejamento do Grupo Galpão, que há dois anos
presta assessoria também ao Grupo do Beco, essa experiência é ímpar pelo poder
de mobilização e pelo compromisso com a comunidade. “Esse trabalho é o primeiro
passo para a consolidação de um novo movimento cultural no Aglomerado Santa
Lúcia e tem como objetivo a abertura de oportunidades de crescimento para os
jovens da região. Nesse aspecto, foi fundamental o envolvimento de uma empresa
do porte da Açoforja, que abraçou o projeto com entusiasmo desde o início”, ressalta
Avelar.
Mãos de Mulher tem como desdobramentos importantes instrumentos de construção
da memória coletiva do Aglomerado Santa Lúcia: o pequeno acervo de depoimentos
das mulheres entrevistadas, além de incluir-se neste conjunto de instrumentos,
serviu como matéria-prima para a produção de um videodocumentário, já em fase de
edição e dirigido por Marcelo Braga (Emvídeo) – também produtor – e Rodolfo Vaz
(ator do Grupo Galpão); também foi utilizado como fonte do trabalho acadêmico
“AGLOMERADO SANTA LÚCIA – PARA ALÉM DO HORIZONTE PLANEJADO
Representações do trabalho feminino nas histórias de vida de mulheres da periferia”,
da moradora e estudante de história pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), Josemeire Alves, desenvolvido em 2002.
Oito anos de estrada – Criado em 1995, o Grupo do Beco é composto por atrizes e
atores da própria comunidade. Desde sua fundação, a reflexão social está presente
em seus trabalhos. Em 2000, o Grupo montou o espetáculo “Quis 500?”, uma crítica
sobre as comemorações dos 500 anos do Brasil. Em 1996 fora a vez de
“Consumidores à Beira de um Ataque de Nervos”; 1998, “O Casal”; e, em 1999,
“Casamento e Bronca na Roça”, “Coisa de Criança” e “O Afilhado da Morte”.
166
ANEXO E – FICHA TÉCNICA DA PEÇA
Elenco
Bruno Silva (Caxeta / Couves)
Célia Rodrigues (Dona Consolação)
Cris Corrêa (Maria)
Ivanete Guedes (Anunciação / Bequete 1)
Janete Maia (Celina / Bequete 2 / Vitória)
Maicon Sipriano (Samuel / Locutor)
Nil César (Seu Zé / João - Jonny Cat)
Suzana Cruz (Bendita)
Direção
Ana Domitila
Júlio Maciel
Dramaturgia
Letícia Andrade
(em processo colaborativo com os atores do Grupo do Beco e Direção)
Direção Musical
Ricardo Garcia
Cenário, Figurino e Adereços
Leo Piló
Preparadora Vocal
Valéria Braga
Oficinas Preparatórias
Amaury Borges e Lica Guimarães (Interpretação)
Dudude Herrmann (Corpo)
Anthônio (Técnica Vocal)
Valéria Braga (Técnica Vocal e Percepção Musical)
Babaya (Técnica Vocal e orientação de Suzana Cruz)
Criação Gráfica
Giovani Damásio
Assessoria de Imprensa
Márcia Maria
Assessoria de Comunicação
Júnia Alvarenga
Fotografia
Guto Muniz
167
Produção Executiva
Josemeire Alves
Assistentes de Produção
Graziane Gonçalves
Meire Brito
Assessoria de Planejamento e Produção
Rômulo Avelar
Produção
Grupo do Beco
Apoio
Grupo Galpão – Emvídeo – Paróquia Nossa Senhora do Morro – Paróquia Menino
Jesus/ Comunidade N. Sra. De Nazaré – Lei Estadual de Incentivo à Cultura –
Studio Audioartte
Realização
Grupo do Beco
Download

ARTE, CULTURA E TRANSFORMAÇÃO NAS