Fantasmas da noite Uma peça de Hayaldo Copque Peça encenada dentro de um automóvel na Praça Roosevelt, em São Paulo-SP, nos dias 11 e 12 de novembro de 2011, no projeto AutoPeças, das Satyrianas. Direção: André Garolli. Elenco: André Garolli e Maria Casadevall. 1 Personagens: ANA CESAR LOCUTOR (voz em off) 2 Carro com o porta-malas aberto. Dentro do carro, Ana está sentada atrás do motorista, nervosa. Os espectadores devem ocupar os dois lugares que sobram no fundo e o banco do carona. Cesar põe algo no porta-malas, fecha-o, entra no carro e senta no banco do motorista. ANA: Pra onde a gente vai? Silêncio. ANA: Cesar. Pra onde é que a gente vai? CESAR: Eu tô pensando. Calma. Silêncio. ANA: Tem que ter um outro jeito. CESAR: Não tem. Silêncio. ANA: E se a gente deixar ele onde tava? A gente liga pra ambulância e depois vai embora. É melhor fazer isso. Silêncio. ANA: Cesar, eu tô falando com você. CESAR: Agora já era, Ana. Será que você não entende? (pausa) A gente já tocou nele. A merda já tá feita. A gente já tá fodido, Ana. Fodido. ANA: Ele ainda pode tá vivo. A gente não é médico, a gente não sabe. Silêncio. ANA: Sei lá. Tem essas coisas de dar choque, ressuscitar. Vamo ligar pra ambulância pelo menos. CESAR: Não dá. Eles vão perguntar. Vão querer saber de tudo o que aconteceu. Por que a gente pôs o cara num saco, por que a gente não ligou antes, por que isso, por que aquilo. Vão querer fazer até exame de urina na gente se duvidar. Não dá. Você não entendeu, Ana? É isso ou ser preso. 3 Silêncio. ANA: O que a gente tá fazendo não é certo. CESAR: A gente não fez nada certo essa noite. Silêncio. CESAR: Desculpa. ANA: Tá tudo bem. Silêncio. ANA: Pra onde a gente vai? CESAR: Ainda não sei. Silêncio. ANA: Eles vão saber que a gente tava junto, não é? CESAR: Deve ter algum lugar pela Zona Leste. ANA: É. Deve. Silêncio. CESAR: Você sabe muito bem que eu não posso ficar aparecendo com você em tudo quanto é canto. A gente não pode se descuidar desse jeito, Ana. Hoje você me expôs demais. ANA: Eu? CESAR: É. ANA: Eu não posso ir com você a lugar nenhum, Cesar. Só em motel e mesmo assim abaixada, escondida no banco de trás. Eu faço de tudo pra não te expor e você vem dizer que eu? (pausa) Que merda. Não tinha nenhum conhecido seu lá. Era a festa dos meus amigos, caramba. CESAR: E se algum deles conhece a minha esposa? Você pensou nisso? Silêncio. 4 CESAR: Já sei. ANA: Qual é o problema com eles? CESAR: Quem? ANA: Meus amigos. Você não gosta deles. CESAR: Eu? Eles sequer me cumprimentam mais. Nem um “oi”. Um “boa noite”. Nem isso. ANA: Claro. Você nunca fez a menor questão de ser simpático com eles. CESAR: Eles me detestam. ANA: Eles são meus amigos. Eles sentem por mim. Sentem o que eu não consigo sentir por você. CESAR: Tá bom. ANA: Eles fazem com você o que eu não consigo fazer. Te ignorar. É isso. É isso que você merecia de mim, sabia? Que eu te ignorasse, Cesar. Como você faz comigo. (pausa) Quantas vezes? Você sabe quantas vezes eles já me viram chorando por sua causa? Sabe? Enquanto você tava... CESAR: Cala a boca. Silêncio. ANA: É por mim que você não quer chamar a ambulância, não é? CESAR: Tem um homem morto no meu porta-malas e você acha que agora eu vou me preocupar com isso? (pausa) Faz assim, pensa que é tudo uma alucinação, tá bom? Pensa assim que é melhor e deixa a parte prática comigo. Cesar dá a partida no carro, mas logo desliga como que arrependido. CESAR: (após um longo silêncio, sem olhar para Ana) Me desculpa. Eu tô nervoso, caramba. (pausa; indicando o assento do carona) Vem pra cá. Silêncio. CESAR: Eu tô te pedindo. 5 Silêncio. CESAR: (esmurrando o volante) Droga! Eu tô tentando. Você tá vendo que eu tô tentando. Cesar liga o carro e começa a dirigir. Longo silêncio. Após um tempo, Cesar liga o rádio. Toca o fim de alguma canção noturna. LOCUTOR: Essa foi (“nome da música”) pra você que está comigo nessa noite na cidade de São Paulo. Que esta seja uma boa noite pra todos nós. E agora, a próxima música (“nome da música”). ANA: “Você que está comigo”. (pausa) Esses locutores são engraçados. Eles falam como se fossem nossos amigos. Um amigo ao telefone, que a gente não vê, que só ouve a voz. CESAR: Que ideia. Silêncio. ANA: É. Que ideia. Ou uma paixão, talvez. É, talvez uma paixão seja mais exato. A gente escuta eles com uma certa intimidade, sabe? Uma intimidade de amante mesmo. A gente ouve quando nos falam “boa noite”, quando nos dedicam músicas... Como faria um amante novo. Quando nós ainda somos vivos. CESAR: Do que é que você tá falando? ANA: De nada. De como eu adoro essa música. Ana cantarola um pouco a música. ANA: Sabe? Antes de amigo e amante, ele é mesmo um homem. Ele é sempre um homem. Mesmo que seja a voz de uma mulher. É sempre um homem. Ele diz tudo, mas não nos ouve. Estamos juntos, mas só ele que fala. Só que ele que decide. Mesmo que ele ache que seja do nosso gosto, quem escolhe o que vai tocar é sempre ele. Um homem. Silêncio entre eles. ANA: Pra onde você tá indo? Cesar desliga o rádio. CESAR: O quê? 6 ANA: Você tá indo pra onde? O que é que você vai fazer? Jogar ele num rio? CESAR: É. Talvez. Longo silêncio. Após um tempo, Cesar abaixa o vidro e põe o braço pra fora, sentindo o vento. CESAR: Olha só essa cidade, olha. Sempre tem alguém vigiando, acordado. Qualquer que seja a hora. Sempre tem alguma coisa sendo feita aqui. Essa porra não para um segundo. Não descansa, não dorme. (gritando enquanto buzina) Vai dormir, porra! Cesar abaixa o vidro, rindo numa estranha alegria. CESAR: (repentinamente sério) Cidade coruja do caralho! ANA: (após um breve silêncio, olhando pela janela) Eu sempre achei essa cidade grande demais. Desde pequena eu sempre tentei me proteger dela. Me esconder. Eu nunca me senti bem de verdade aqui. CESAR: Você conhece outros lugares? ANA: Como assim? CESAR: Outras cidades? ANA: Sim. Algumas. CESAR: Mas já morou em outro lugar? ANA: Não. Morar só aqui. Ao mesmo tempo eu também acho que eu não conseguiria morar em outro lugar. CESAR: Vai entender. Então vai ver o problema não é a cidade. Vai ver é você que não se sente bem em lugar nenhum. Quem sabe morando no espaço dê jeito. (Pausa) Não gostar de São Paulo porque ela é grande. Onde já se viu? ANA: Tudo nessa cidade é muito. Os prédios, o trânsito, as pessoas na rua. Até o ar aqui é carregado. Às vezes eu sinto como se ela fosse um grande monstro, sabe? Que quisesse me engolir. CESAR: Não deixa de ser. 7 ANA: É. Silêncio. ANA: Sabe, Cesar. Eu não quero mais te ver. CESAR: O quê? ANA: (subitamente aliviada) É. Eu decidi. Eu não quero mais te ver. CESAR: Do que é que você tá falando? ANA: Passou. CESAR: Passou o quê? Tá maluca? ANA: Tudo. Tudo o que eu sentia por você passou. Aqui, agora. CESAR: Do nada? ANA: É. Cesar estaciona o carro. Silêncio. CESAR: Amanhã você vai se arrepender. Você vai pensar melhor e vai se arrepender e eu é que não vou mais querer te ver. É isso mesmo que você quer? Ana não responde. CESAR: Tá bom. ANA: Tá. Silêncio. CESAR: Você é idiota ou o quê? Silêncio. Cesar começa a rir. Ri por um tempo até que pega um celular que estava no carro e estende para Ana. CESAR: Liga. Silêncio. Ana não se move. 8 CESAR: Vai. Segura. Liga. Ana não se move e Cesar joga o celular em seu colo. CESAR: Pega ele e liga, vai. ANA: Pra quem? CESAR: Pra polícia, pra ambulância, pro escambau. Liga. ANA: Pra quê? CESAR: Você sabe. Vai, liga. ANA: Por que isso agora? CESAR: (cortando Ana) Liga! Silêncio. CESAR: Fala que eu tô aqui. A gente tá perto da casa dos seus amigos, não tá? Você liga pra polícia, fala que eu tô aqui e pronto, vai embora. ANA: Tá maluco? CESAR: Tô. Tô sim. Aliás. Tenho uma ideia melhor. Cesar pega o telefone do colo de Ana, procura um nome na agenda, disca e estende novamente o aparelho para ela. CESAR: Toma. ANA: Eu não vou te denunciar pra polícia. CESAR: Eu não liguei pra polícia. Pega, tá chamando, vai. (pausa) O nome dela é Sonia. Você sabe. Conta pra ela tudo sobre a gente. Pode contar. Eu deixo. ANA: Eu não vou fazer isso. CESAR: Pega. Hesitante, Ana pega o celular e o escuta até parar de chamar. CESAR: Deve ter caído. Tenta de novo. 9 Ana não se mexe e então Cesar tira o celular de sua mão, disca novamente e devolve a ela que espera até alguém atender. Ana fica em silêncio. ANA: Desligou. CESAR: Por que você não disse nada. Silêncio. CESAR: Droga! (pausa) Sai do carro. ANA: Cesar, você não tá bem. CESAR: Tô. Tô sim. Sai agora, vai. Vai pra casa dos seus amigos. Vai ser engolida pela cidade. Sai daqui. ANA: Eu não vou te deixar aqui sozinho do jeito que você tá. CESAR: Não? Não vai? Cesar sai do carro, abre a porta do lado de Ana e a segura. CESAR: Sai. ANA: Para, você tá me machucando, Cesar. CESAR: (tirando Ana à força do carro) Sai do carro. ANA: O que é que você tá fazendo? CESAR: (empurrando Ana e aos gritos) Sai. Vai embora. Corre. ANA: Você tá transtornado. Para. CESAR: Vai embora daqui. Vai! Ana, assustada, corre pra longe. Cesar entra no carro, nervoso, sem fechar as portas. Longo silêncio. Se acalma um pouco e então pega o telefone. CESAR: Alô? Tem um carro estacionado na (dá o endereço), é um (dá as especificações do carro: modelo e cor). A placa é (número da placa). Venham logo, por favor. Tem um sujeito morto no porta-malas. 10 Cesar desliga o telefone, respira fundo e então liga o rádio. LOCUTOR: Foi muito bom passar essa noite na sua companhia. Eu vou ficando por aqui. Uma boa noite pra todos nós e até amanhã. Você fica agora com “nome de uma música”. A música começa a tocar. Cesar encosta a cabeça no banco e espera. FIM 11