0 UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE - UNESC CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA: HISTÓRIA, ENSINO E LINGUAGENS MARIANE AMBONI MARCELINO A DITADURA MILITAR: E OS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA CRICIÚMA, FEVEREIRO DE 2009 1 MARIANE AMBONI MARCELINO A DITADURA MILITAR: E OS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA Monografia apresentada à Diretoria de Pósgraduação da Universidade do Extremo Sul Catarinense- UNESC, para a obtenção do título de especialista em História: História Ensino e Linguagens. Orientador: Profª. MSc. Marli de Oliveira Costa CRICIÚMA, FEVEREIRO DE 2009 2 As pessoas que no decorrer da minha especialização colaboraram pela continuidade da mesma. Especialmente a Deus, pelas muitas vezes que me angustiei e senti sua presença junto a mim. Aos meus pais Vilson e Márcia, minha irmã Marina e ao meu esposo Alexandre que esteve sempre ao meu lado sendo compreensivo e amoroso. Em especial a minha orientadora Marli de Oliveira Costa. 3 “... Vem, vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer... Nas escolas, nas ruas campos construções, somos todos soldados armados ou não. Caminhando e cantando e seguindo a canção, somos todos iguais braços dados ou não...” (Geraldo Vandré) 4 RESUMO Essa monografia de especialização faz uma análise dos livros didáticos de história enquanto dispositivos pedagógicos, que objetivavam repassar a ideologia do governo ditatorial brasileiro alcançando alunos e professores. Para tanto, foram realizadas revisões bibliográficas sobre a história da educação, história do livro e ditadura militar no Brasil. Num primeiro momento aborda-se a ditadura militar brasileira e suas implicações na educação e, num segundo momento se faz a análise dos livros didáticos de história disponibilizados aos alunos naquele período. Palavras-chave: Livro didático; Educação; Ensino de História. 5 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 01: Certidão de aprovação de livros didáticos sob o ponto de vista da moral e civismo. ................................................................................................................ 21 Figura 02: Mensagem ao professor...................................................................... 22 Figura 03: Escoteiros e o sentimento patriótico. .................................................. 25 Figura 04: Deveres da pessoa humana no período militar ................................... 27 Figura 05: As diversas formas de deveres ........................................................... 28 Figura 06: Noção de democracia ......................................................................... 31 Figura 07: Noção de democracia brasileira .......................................................... 32 Figura 08: Os presidentes da república de 1945 a 1971 ...................................... 35 Figura 09: Presidentes (1945 a 1971) .................................................................. 36 6 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 07 2 A DITADURA MILITAR BRASILEIRA E SUAS IMPLICAÇÕES NA EDUCAÇÃO: 1964 a 1675 .............................................................................................................. 10 2.1 A ditadura militar ............................................................................................... 10 2.2 A ditadura e a educação ................................................................................... 13 3 O LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA DURANTE A DITADURA MILITAR ............. 18 4 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 39 REFERÊNCIAS......................................................................................................... 41 7 1 INTRODUÇÃO Em meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), de história em 2005 busquei dar visibilidade à prática docente de professores de História durante o período da Ditadura Militar em Criciúma. Para isso, realizei entrevistas com quatro professores de história desse período, com a intenção de identificar as dificuldades enfrentadas por eles no processo ensino-aprendizagem. Uma das lacunas de meu TCC foi o fato de, embora ter encontrado, não haver realizado análise dos livros didáticos do período estudado. Para dar continuidade a minha pesquisa, nessa Monografia de especialização, tenho por objetivo fazer uma análise desses livros enquanto dispositivos pedagógicos que objetivavam repassar a ideologia do governo ditatorial alcançando alunos e professores. Para realizar esse objetivo é preciso compreender um pouco sobre a história da educação no Brasil, percebendo que muitas vezes ela foi usada como um mecanismo de controle do Estado. Pois, enquanto um Estado autoritário buscava construir uma sociedade voltada para ações dissociadas da teoria, ou seja, de reflexões. Conduzir uma educação crítica era sinônimo de subversão, que prejudica as ideologias dos Estados políticos autoritários que utilizam certas estratégias de ensino. Esse processo de educação vem de longa data no Brasil: Com a chegada dos portugueses no Brasil, a atividade missionária facilitava sobremaneira a dominação metropolitana e, nessas circunstâncias, a educação assume papel de agente colonizador. Predominantemente nas mãos dos jesuítas as escolas ministravam um ensino conservador. O Brasil do século XVII por se tratar de uma sociedade agrária e escravista, não há interesse pela educação elementar, daí a grande massa de iletrados. O Brasil na era pombalina persiste o panorama do analfabetismo e do ensino precário, agravado com a expulsão dos jesuítas e pela democracia da reforma pombalina. É a partir do século XIX, que se concretizam, com a intervenção cada vez maior do Estado para estabelecer a escola elementar universal, leiga, gratuita e obrigatória. Enfatiza-se a relação entre educação e bem-estar social, estabilidade, progresso e capacidade de transformação. Daí, o interesse pelo ensino técnico ou pela expansão das disciplinas científicas (ARANHA, 1996, p. 103). 8 A expansão das disciplinas consideradas científica foi reafirmada no período da Ditadura Militar. Para compreender o contexto de produção dos conteúdos dos livros didáticos, utilizei em um primeiro momento a revisão de bibliografia sobre a Ditadura Militar Brasileira, a educação nesse período e a história dos livros e dos livros didáticos de história. Num segundo momento, fiz um levantamento de livros que eram usados entre 1964 e 1985 para analisar os conteúdos que eram lecionados naquela época. Assim, perceberemos os meios usados pelo governo militar para controlar a educação e repassar seus ideais de sociedade. Para compreender o período da Ditadura Militar utilizei os seguintes autores: Ronaldo Costa Couto, D. Paulo Evaristo Arns, Nadine Habert, Júlio José Chiavenato e Eduardo Bueno. Ainda sobre a educação e sua história minhas referências foram Pedro Demo, Maria Lúcia de Arruda Aranha, Paulo Ghiraldelli Junior, Maria Luisa Santos Ribeiro, Claúdia Regina Kawka Martins, Lea Maria Vedana. Como trabalhei com a história do livro didático, necessitei buscar autores que discutem sobre a temática, história do livro. O historiador francês Roger Chartier, coloca que o objeto impresso é o veículo essencial da transmissão dos conhecimentos, saberes, prazeres, que cada indivíduo pode ter com o passado, com o presente, ou com a sociedade em que vive. Décio Gatti Júnior, historiador da educação brasileira, diz que os livros de caráter científico, receberam estatuto de verdade no século XVII, e que ainda hoje se dissemina em grande parte dos bancos escolares e da vida cotidiana das pessoas. Sendo assim, é através da revisão bibliográfica de livros relacionados ao assunto aqui estudados, podemos compreender o que se passou durante o período da Ditadura Militar Brasileira. Quando os militares assumiram o governo, começou a longa agonia do poder civil. Executado pelas Forças Armadas, com o apoio de lideranças políticas civis importantes e também de amplos setores das classes médias e ricas, o Golpe não surgiu como resposta ao clamor popular. “O povo não teve participação relevante. Não foi ouvido e nem se manifestou espontaneamente. Mais uma vez, é antes objeto que sujeito da história, conforme a tradição do país”. (Couto, 1999, p. 389). 9 Após o Golpe Militar os/as professores/as de História da época tiveram algumas limitações ao lecionar sua disciplina, pois ela está diretamente relacionada aos acontecimentos ligados à política do país. Os/as professores/as de História foram um dos alvos de vigilância da proposta educacional que se instalou após a implantação do Regime Militar, tiveram suas disciplinas reduzidas e incorporadas a outras disciplinas, como Educação Moral e Cívica e Estudos Sociais. Além disso, introduzir as disciplinas sobre civismo significava impor a ideologia da ditadura reforçada pela extinção da Filosofia e diminuição da carga horária de História e Geografia, o que exerce a mesma função de diminuir o senso crítico e a consciência política da situação (Demo, 1997, p.94). No primeiro capítulo desse trabalho, falo sobre o momento político em que os militares assumiram o poder, dando as principais características de cada um dos cinco presidentes militares. Depois a interferência da Ditadura Militar na educação, principalmente para a disciplina de História, com a criação da lei 5692/71. No segundo capítulo enfoco os livros utilizados durante a ditadura militar, fazendo uma análise nos conteúdos lecionados, percebendo o objetivo do governo em formar cidadãos adaptados à ordem social e a política vigente. Compreendendo, no entanto, como reflete Chartier (1995), que os livros foram apropriados de formas diferentes pelos leitores, o que significa não poder afirmar que as intenções da ditadura foram totalmente atingidas. 10 2 A DITADURA MILITAR BRASILEIRA E SUAS IMPLICAÇÕES NA EDUCAÇÃO: 1964 À 1985 Ao analisar os livros didáticos de história, abordo como estes eram usados como um dispositivo pedagógico disciplinar. Michel Foucault, 2005, traz uma análise sobre as prisões como forma de controle. É preciso controlar a partir de alguns pressupostos de disciplina, modo de agir, educação. É preciso vigiar para conter as insurreições, é preciso vigiar para punir. O autor ao tratar do sistema Panóptico, forma prisional de vigilância apurada, discute o sistema de controle e sua função, traçando um paralelo com a educação e os objetivos do poder. Para Foucault: O Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens; um aumento de saber vem se implantando em todas as frentes de poder, descobrindo que devem ser conhecido em todas as superfícies onde se exerça (FOUCAULT, 2001 p. 169). Inspirada nas discussões do panóptico busco perceber na Ditadura Militar estratégias de vigilância e de controle da educação brasileira no período em que vigorou. Para tanto, em um primeiro momento, por meio das análises de alguns historiadores, sociólogos e teólogos, mostro um pouco do processo da Ditadura Militar para, a seguir, apresentar a educação e o ensino de história nessa trama. 2.1 A Ditadura militar Em abril de 1964, os militares derrubaram o presidente João Goulart e ocuparam o poder, erguendo no país um poderoso sistema de repressão e controle. No mesmo momento da deposição de Goulart, procurou-se apresentar a sucessão não como o que ela foi de fato, a derrubada de um mandatário eleito pelo povo e sua substituição por um general indicado pelas Forças Armadas, e sim como uma “eleição indireta”, levada a cabo pelo Legislativo. (COUTO, 1997, p. 89). 11 No dia 11 de abril, o Congresso elege o presidente da República, para completar o mandato do presidente deposto, João Goulart, o marechal Humberto de Alencar Castello Branco, chefe do Estado-Maior do Exército, conspirador e coordenador do movimento. (Ibid. p. 96). Conforme D. Paulo Evaristo Arns (2001, p. 250), em seu pronunciamento, Castello Branco declarou defender a democracia, porém ao começar seu governo assumiu uma posição autoritária. Estabeleceu eleições indiretas para presidente, além de dissolver os partidos políticos. Vários parlamentares federais e estaduais tiveram seus mandatos cassados, cidadãos tiveram seus direitos políticos e constitucionais cancelados e os sindicatos receberam intervenção do governo militar. Em seu governo, foi instituído o bipartidarismo. Só estavam autorizados o funcionamento de dois partidos: Movimento Democrático Brasileiro-MDB e a Aliança Renovadora Nacional- ARENA. Enquanto o primeiro era de oposição, de certa forma controlada, o segundo representava os militares. O governo militar impôs, em janeiro de 1967, uma nova Constituição para o país. Aprovada neste mesmo ano, a Constituição de 1967 confirma e institucionaliza o regime militar e suas formas de atuação. Em 1967, assumiu a presidência o general Arthur da Costa e Silva, após ser eleito indiretamente pelo Congresso Nacional. De acordo com Nadine Habert (1992, p.78), Costa e Silva fez um governo tenso e difícil. A radicalização política foi crescente, com enfrentamento direto entre as forças de segurança, a maioria comandada pelos militares da linha dura1 e estudantes em grandes manifestações reivindicatórias e de contestação ao regime. Em 1968, eclodiram greves operárias que aliaram exigências salariais e discurso contestatório. Em dezembro de 1968, o governo, em nome da segurança nacional, chega ao extremo de decretar o Ato Institucional nº. 5, ponto culminante da legislação autoritária e do autoritarismo, porque suspende os direitos civis comuns, delega ao presidente a competência para cassar mandatos e direitos políticos e, de fato, para fazer os atos de governo que quiser e como quiser. De acordo com Eduardo Bueno (2003), é o Golpe dentro do golpe, o aprofundamento do militarismo, é a ditadura dura (p. 128). O resultado de todo esse arsenal de Atos, decretos, cassações e proibições foi à paralisação quase completa do Movimento Popular de denúncia, 1 A linha dura do Regime Militar era formada pelos militares mais tradicionalistas, para eles o mais importante era defender a nação, a qualquer custo. 12 resistência e reivindicação, restando praticamente uma única forma de oposição: a clandestina (ARNS, 2001, p.84). No dia 31 de agosto de 1969, Costa e Silva se afastou da presidência por motivo de doença. Durante o seu impedimento, os militares não permitiram a posse do vice-presidente Pedro Aleixo, político mineiro liberal, democrata que já havia se mostrado incompatível com o AI-5. Quem assumiu temporariamente o poder foi uma junta militar (COUTO, 1999, p.158). Em 1969, a Junta Militar escolheu o novo presidente: o general Emílio Garrastazu Médici. Arns considera seu governo o mais duro e repressivo do período, conhecido como “anos de chumbo". A repressão à luta armada cresceu e uma severa política de censura foi colocada em execução. Jornais, revistas, livros, peças de teatro, filmes, músicas e outras formas de expressão artística foram censuradas. Muitos professores, políticos, músicos, artistas e escritores foram investigados, presos, torturados ou exilados do país. O DOI-Codi (Destacamento de Operações e Informações e ao Centro de Operações de Defesa Interna) atuou como centro de investigação e repressão do governo militar (BUENO, 2003, p.145). Nesse governo foi criada a lei 5692/71, destaco nesse trabalho, no que tange as modificações feitas nas disciplinas de História e Geografia. Em 1974, assumiu a presidência o general Ernesto Geisel que começou um lento processo de transição rumo à democracia. Ronaldo Costa Couto (1999), afirma que o governo de Geisel coincide com o fim do milagre econômico e com a insatisfação popular em altas taxas. (p. 323). A crise do petróleo e a recessão mundial interferiram na economia brasileira, no momento em que os créditos e empréstimos internacionais diminuíram. Geisel anunciou a “Abertura Política” lenta, gradual e segura. A oposição política começou a ganhar espaço. Em 1978, Geisel acabou com o AI-5, restaurou o habeas-corpus e abriu caminho para a volta da democracia no Brasil (COUTO, 1999, p. 389). A vitória do MDB nas eleições em 1978 começou a acelerar o processo de redemocratização. O general João Baptista Figueiredo decretou a Lei da Anistia, concedendo o direito de retorno ao Brasil para os políticos, artistas e demais brasileiros exilados e condenados por crimes políticos. Os militares de Linha Dura continuaram com a repressão clandestina. Em 1979, o governo aprovou a lei que restabeleceu o pluripartidarismo no país. Os partidos voltaram a funcionar dentro da normalidade. A ARENA muda o nome e passa a ser PDS, enquanto o MDB passa a 13 ser PMDB. Outros partidos são criados, como: Partido dos Trabalhadores – PT e o Partido Democrático Trabalhista - PDT (HABERT, 1992, p.42). Para Júlio José Chiavenato, (1995) entre 1964 e 1984, a ditadura destruiu a economia, institucionalizou a corrupção e fez da tortura uma prática política. Desonrou a nação e abalou o caráter brasileiro. Alienou as novas gerações, tornando-as incapazes de entender a sociedade em que viviam (CHIAVENATO, 1995, p. 58). Nesse emaranhado de torturas, prisões e perseguições como a educação era vivenciada? Vamos perceber como o regime militar instaurado no Brasil em 1964, proporcionou mudanças significativas na educação, inclusive na elaboração dos conteúdos dos livros didáticos. 2.2 A ditadura e a educação A Ditadura Militar Brasileira, ocorrida entre os anos de 1964 e 1985, trouxe conseqüências diretas para a educação que passou a ser constituída na preparação do indivíduo para a “modernização” do Estado, inserida no ideal de desenvolvimento da nação e do apelo cívico. Portanto, o texto a seguir, aborda algumas mudanças no ensino, principalmente com a disciplina de História. Otaísa Romanelli (1991) relata que durante a Ditadura pensava-se em erradicar definitivamente o analfabetismo através de um programa nacional, levando-se em conta as diferenças sociais, econômicas e culturais de cada região. Para isso, foi criado o Movimento Brasileiro de Alfabetização - MOBRAL, que não conseguiu atingir seu objetivo e por isso foi extinto. No entanto, outra Lei foi criada para vangloriar a ditadura: Segundo Romanelli: É no período mais cruel da ditadura militar, onde qualquer expressão popular contrária aos interesses do governo era abafada, muitas vezes pela violência física, que é instituída a Lei 4.024, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1971. A característica mais marcante desta Lei era tentar dar a formação educacional um cunho profissionalizante. Dentro do espírito dos "slogans" propostos pelo governo, como "Brasil grande", "ame-o ou deixe-o", "milagre econômico", etc., planejava-se fazer com que a educação contribuísse, de forma decisiva, para o aumento da produção brasileira (1991, p.64). 14 O governo e o mercado exigiam uma profissionalização, logo a escola tinha que se moldar também. A sociedade precisava acompanhar o desenvolvimento econômico, estrutural e industrial. Era preciso dali para frente construir homens e mulheres patriotas, capacitadas e enquadradas com o mercado, com a evolução e com o turbilhão chamado modernização. Institui-se então, um século dos diplomados. O crescimento industrial, a mudanças na economia exigem nesse momento um termo de extrema importância para a formação de uma sociedade enquadrada com as novas mudanças: a especialização. No contexto das idéias desenvolvimentistas a educação apresentava-se como um lugar de investimento, no entanto como afirma Maria Lúcia Arruda Aranha às discussões nesse sentido não foram coesas: É sempre controvertida a discussão sobre o uso das modernas técnicas na educação. De um lado, uma postura conservadora resiste a qualquer inovação técnica como se fosse incompatível com a natureza espiritual do processo educativo, e por outro, o risco do tecnicismo, da exaltação desmedida da técnica (1996, p. 165). É importante ressaltar, o que vem sendo esboçado ao decorrer deste trabalho: os textos usados nos livros didáticos de história durante a ditadura com o propósito de moldar os cidadãos aos padrões vigentes. Os detentores do poder estimavam em formar pessoas convenientes com suas reais intenções. Através de métodos que levavam a um condicionamento de não resposta, de não subversão, o governo podia atuar de modo que suas intenções não fossem retrucadas. Claro, que durante os 20 anos de ditadura houve oposição e resistência, mesmo que clandestina, contra todas as barbáries ocorridas no período, tanto, que a forma de governo foi modificada. Com o golpe militar, a educação passou a ser o meio transmissor para repassar a concepção autoritária da sociedade. Para isso, uma disciplina em especial, História, foi diretamente utilizada através dos textos inseridos nos livros didáticos. Esses abordavam uma história tradicional que venerava os heróis nacionais, o patriotismo e o civismo. Percebe-se que essas modificações ocorreram de forma hierárquica no sentido que vinham de cima para baixo, ou seja, os militares 15 mudavam e a sociedade tinha que aceitar senão poderia sofrer consequências traumáticas. Vemos um exemplo do ensino de história nesse período segundo Thais Nívia de Lima Fonseca: Após 1964 o ensino de História aprofundou essa concepção, combinada com medidas de restrição á formação e á atuação dos professores e com uma redefinição dos objetivos da educação, sob a ótica da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento, no sentido de exercer o controle ideológico e eliminar qualquer possibilidade de resistência ao regime autoritário. Vista dessa forma, a História tradicional adequava-se aos interesses do Estado autoritário, medida em que apresentava o quadro de uma sociedade hierarquizada, cuja vida seria conduzida de cima para baixo e em que a ordem seria uma máxima a ser seguida pelos seus membros. Sem espaço para a interpretação e a análise crítica, não haveria como instrumentalizar o indivíduo para o questionamento da ordem. A reorganização do ensino de História teve, pois, conotações políticas, passando a ser de competência de órgãos públicos, tecnicamente aparelhados para os fins que se adequassem àquela Doutrina (2003, p. 56). Dessa forma as pessoas que passaram pelos bancos escolares e tiveram contato com a história tradicional tiveram seus estudos passíveis à ideologia do golpe militar, sujeitas à forma de controle por meio da repressão e mecanismos pedagógicos. Era preciso preservar a segurança, os sentimentos de pátria, as finalidades do governo, do dever e obediência às leis. Durante a década de 1970, podemos observar as conseqüências e desdobramentos da Reforma Universitária de 1968, em perfeita harmonia com a legislação seguinte, a LDB 5692/71. Após essa lei os professores de História tiveram algumas limitações ao lecionar sua disciplina, pois ela estava diretamente relacionada com os acontecimentos ligados à política do país, que mais tarde faria parte dos conteúdos didáticos. Os educadores de história foram alvos de vigilância da proposta educacional que se instalou após a implantação do Regime Militar, tendo sua disciplina reduzida e incorporada a outras disciplinas, como Educação Moral e Cívica e Estudos Sociais (ARANHA, 1996, p. 33). O regime ditatorial preocupava-se muito com o ensino de História, pois esta disciplina tem por característica a análise crítica dos conteúdos e a formação de pessoas com visão crítica não interessava aos militares. Um indício dessa preocupação está no fato de que a disciplina de História foi substituída nas séries iniciais pela disciplina de Estudos Sociais, que englobava conhecimentos de História 16 e Geografia. Já nas séries do Ensino Fundamental e Secundário pela Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil - OSPB (GHIRALDELLI, 1991, p.128). Introduzir as disciplinas sobre civismo significa impor a ideologia da ditadura, reforçada pela extinção da Filosofia e diminuição da carga horária de História e Geografia, que exerce a mesma função de diminuir o senso crítico e consciência política da situação (VEDANA, 1997, p.54). Para Helfer e Lenskij (2000), estava evidente que a proposta da disciplina Estudos Sociais, visava ajustar o indivíduo à ordem, desenvolvendo nos alunos uma postura de submissão, de acomodação, de resignação, tornando-os simples contempladores da realidade, através da identificação e observação. Não era permitida a intervenção do aluno na realidade como sujeito da construção do processo histórico e de conhecimento. Prevalecia à individualidade do aluno, com o afastamento da possibilidade de luta coletiva para a transformação da realidade. (p. 102) Antes da implantação dessas “novas” disciplinas no currículo escolar, houve a criação do curso de Licenciatura Curta em Estudos Sociais no ano de 1969. Neste curso, o aluno saía habilitado para ministrar aulas de Estudos Sociais e Educação Moral e Cívica no Ensino Primário e aulas de Organização Social e Política do Brasil (OSPB) e História ou Geografia no Ensino Fundamental e Secundário, contanto, que fizesse mais um ano de estudos adicionais. A principal característica dessa nova modalidade de curso é que o professor estaria habilitado nessas duas disciplinas (História e Geografia) em um período de três anos, o que acabou implicando uma desqualificação do professorado, já que esses cursos em licenciatura curta, criados pelo governo, não tinham qualquer interesse em formar professores com visão crítica, e sim, com uma formação totalmente superficial e factual. (RIBEIRO, 1987, p.157) A criação desses cursos de licenciatura curta foi justificada pelo governo como uma forma de suprir a carência de professores no país naquele momento. O país sofria mudanças em vários setores: como a expansão da economia e um acentuado crescimento no setor industrial, implicando na expansão da demanda da população à educação. Ainda a respeito dos cursos de licenciatura curta Selva Fonseca (1993) comenta o seguinte: 17 [...] começa a ser formada a nova geração de professores polivalentes, e neles o principal objetivo é a descaracterização das Ciências Humanas como campo de saberes autônomos, pois são transfiguradas e transmitidas como um mosaico de conhecimentos gerais e superficiais da realidade social (FONSECA, 1993, p.25). Podemos então perceber que a lei 5692/71 teve como um dos principais objetivos da Reforma Educacional, formar cidadãos aos moldes do governo vigente e trabalhadores qualificados (menos os educadores), já que o ensino secundário passou a ser totalmente voltado para o tecnicismo. (ARANHA, 1996, p.125) Todas estas discussões chegaram até nós após o momento da Abertura Política, alguns teóricos da educação, sociólogos e outros intelectuais realizaram uma leitura crítica das implicações na sociedade como um todo e no caso do interesse dessa Monografia, da educação na vida dos brasileiros e brasileiras. No próximo capítulo busco narrar à história do livro didático e as implicações dos conteúdos voltados a formar cidadãos “civilizados” perante a Ditadura Militar Brasileira. 18 3 O LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA DURANTE A DITADURA MILITAR Depois de Gutenberg, a cultura das sociedades do Ocidente pode ser considerada uma cultura do objeto impresso. Esse novo meio de comunicação modificou as práticas de devoção, de lazer, de informação e de conhecimento. Da Idade Média até meados do século XIX, foram numerosos os livros, primeiro manuscritos e depois impressos, que alimentaram as imaginações de muitos leitores, propondo-lhes verdades maravilhosas, ficções verídicas ou histórias de diversão. Para Chartier (1998): Uma primeira intenção presidiu à leitura: encontrar por trás da aparente objetividade das narrativas que se baseiam num repertório consagrado de intrigas e de temas – os conflitos agudos, as vontades polêmicas, os desígnios políticos, que fazem com que sejam escritos e publicados (p. 115). Ao ler o artigo “As utilizações do objeto impresso”, organizado por Roger Chartier, percebemos a forte influência da Igreja Católica na publicação impressa. Os Franciscanos por serem extraordinariamente centralizadores, tornaram-se agentes da aculturação cristã e da alienação das devoções populares. No livro, A ordem dos livros, de Chartier (1995), percebe-se que o objeto impresso buscou sempre instaurar uma ordem; fosse à ordem de sua decifração, a ordem no interior da qual ele deve ser entendido ou, mais, a ordem almejada pelo olhar da autoridade que o encomenda ou permite a sua publicação e circulação (p. 11-20). Ao acompanhar a história do livro no Brasil, Circe Bittencourt (1993) observou que a insistência, por parte de legisladores, sobre a necessidade de uniformização do ensino para toda a nação, foi uma constante em todo o período imperial. Desta maneira, os livros escolares foram sempre vistos como possibilidade de garantir este projeto de unificação da cultura escolar em todo o território brasileiro. Esta defesa voraz da uniformização do ensino foi realizada com grande força pelos liberais do final do Império e do alvorecer da República, tanto em relação ao ensino primário quanto ao secundário (p. 47). 19 O método mais preciso dentro do interesse desse regime era o controle, através desse, poder-se-ia construir uma nação de acordo com os propósitos de quem estava no poder, no caso desse estudo os militares. O controle é uma forma de manter a ordem para evitar insurreições. Era preciso controlar, e uma das formas desse processo era através dos livros didáticos que uniformizavam o ensino dentro das intencionalidades do governo. Foucault (2005) nos ajuda entender esse procedimento quando escreve que ao apresentar um mecanismo de vigilância: E para se exercer, esse poder deve adquirir o instrumento para uma vigilância permanente, exaustiva, onipresente, capaz de tornar tudo visível, mas com a condição de se tornar ela mesma invisível. Deve ser como um olhar sem rosto que transforme todo o corpo social em um campo de percepção: milhares de olhos postados em toda parte, atenções móveis e sempre alerta, uma longa rede hierarquizada [...] (p. 176). Enquanto a ordem das carteiras, a arquitetura do prédio escolar é utilizada como meio de vigilância, os livros são usados como controle. Essa forma de controle permitia que os fins justificassem os meios, pois uma educação massificada poderia tornar os propósitos do governo coniventes. E como executar esse procedimento? Maria Lúcia de Arruda Aranha (1996) nos ajuda a entender como: A repercussão imediata na educação se faz sentir na reestruturação da representação estudantil. Em 1967 a ditadura coloca fora da lei as organizações consideradas subversivas, como a UNE (União Nacional dos Estudantes ) . a intenção é evitar a representação em âmbito nacional, permitindo a atuação do DA ( Diretório Acadêmico ), restrito a cada curso, e do DCE ( Diretório Central dos Estudantes ) , para cada universidade. É proibida qualquer tentativa de ação política: “estudante é para estudar; trabalhador para trabalhar”. As escolas do grau médio sofrem controle. Seus grêmios são transformados em centros cívicos, sob a orientação do professor de Educação Moral e Cívica ( também esta disciplina era uma excrescência da ditadura). O cargo deveria ser ocupado pôr pessoa de confiança da direção, o que, em outras palavras, significava não ter passagem pelo DEOPS ( Departamento Estadual de Ordem Política e Social). Este organismo controlava a participação das pessoas em movimentos de protestos, fichando como comunistas as consideradas subversivas (p. 211). Esse esforço em controlar os estudantes para obter seus interesses particulares e dentro do esquema de poder militar, estabelece as reais intenções de 20 um ensino que acentua a moral, civismo, e a maneira que as pessoas devem agir dentro da sociedade. Era preciso que os profissionais na área da educação também estivessem participando dessa estratégia por meio dos métodos de ensino, para que houvesse uma sintonia da transmissão do conhecimento, com os objetivos da educação nesse período. A figura imagem abaixo mostra que os livros didáticos durante a Ditadura Militar vinham com a autorização do governo para poderem circular. Dessa forma, os professores eram obrigados a escolher os livros moldados pelos objetivos ditatoriais. Essa era uma das maneiras encontradas por quem estava no poder de tentar controlar a massa estudantil, pois os conteúdos dificilmente despertavam o conhecimento críticos dos assuntos abordados. 21 Figura 01: Certidão de aprovação de livros didáticos sob o ponto de vista da moral e civismo FONTE: FILHO, Clóvis Pacheco; MICHALANY, Douglas; NETO, José de Nicola; RAMOS, Ciro de Moura. Curso de Estudos Sociais. São Paulo: Editora Michalany S/A, 1977, 139 p. 22 A disciplina Educação Moral e Cívica tinha por grande finalidade buscar cidadãos de acordo com o que o país estava precisando naquele período. Os formuladores dos métodos disciplinares entendiam que era preciso o professor inserir no aluno a magnificência da pátria e seu amor e despojamento a esta. Entende-se os objetivos traçados pelos “senhores” da educação nesta mensagem ao professor no livro didático intitulado: Educação moral, cívica e política de 1971: Figura 02: Mensagem ao professor FONTE: RAMOS, Ciro de Moura, MICHALANY, Douglas. Educação moral, cívica e política. 2ª ed. São Paulo: Gráfica Michalany, 1971. p. 245 23 A página mostra ao lado direito à bandeira do Brasil, em seu texto um discurso que tenta convencer de que o patriotismo estava esquecido e que era necessário reativar esse espírito, assim imagem-bandeira e texto direcionam a “vontade de verdade”, que o livro utilizado entre os anos 1971 tenta passar. Segundo Chartier (1989): [...] os livros escolares produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por ele menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas (p. 17). Os livros tendem a colocar a idéia do autor, o que significa que não podemos afirmar que alcançaram todos com seu intento. Os livros didáticos são preparados com essa intenção, sua forma de escrita e imagens ajudam a construir um ser humano no contexto em que vive. Durante o Regime Militar o caráter ideológico estava sendo posto de forma evidente, mas podemos afirmar que por falta de conhecimento em política, filosofia e história a maioria das pessoas que tiveram contato com os livros não percebiam as mensagens colocadas no conteúdo do material escrito. Assim, o papel da educação era formar homens preparados para exercer suas funções cívicas. Como previa o decreto 68.065 de 1971: • • • • a preservação, o fortalecimento e a projeção dos valores espirituais e éticos da nacionalidade; o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade humana; o culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições e aos grandes vultos de sua história; o preparo do cidadão para o exercício das atividades cívicas com fundamento na moral, no patriotismo a na ação construtiva visando o bem comum; o culto da obediência à lei, da fidelidade ao trabalho e da integração na comunidade (FONSECA, 1993, p. 37). A lei acima coloca que é de extrema importância, além do exercício cívico e moral do cidadão, enquadrar-se nesse sistema de obediência a lei, pois uma aversão aos meios legais estipulados pelo poder ocorreria sem dúvida revoltas e insurreições. 24 Era preciso também a fidelidade ao trabalho, fonte econômica de qualquer país capitalista para manter a renda, na ditadura, porém a concentração de renda era colocada junto com um discurso de crescimento econômico. Percebe-se que o público alvo (os componentes da nação) tinha seus deveres a cumprir, e como deviam cumprir mediantes as leis? A Educação Moral e Cívica transbordava os interesses de uma classe militar dominante. Isso fica ainda mais claro quando se tenta, a partir dos conteúdos a atividades predeterminados, impor uma visão harmônica da sociedade, em que a espontânea colaboração” de todos os grupos sociais aparece como a ordem natural das coisas (FONSECA, 2003 p. 57). Vejamos um exemplo do que foi comentado nesse parágrafo, no livro didático de Educação Moral e Cívica de Lurdes de Bortoli de 1978: 25 Figura 03: Escoteiros e o sentimento patriótico FONTE: BORTOLI, Lurdes. Educação moral e Cívica. 2. ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1978, 132 p. 26 A criação de grupos de escoteiros foi mais uma estratégia utilizada para construir sentimentos patrióticos e fortalecer o civismo. Nota-se na página, que as crianças respondiam as questões, o “X” colocado nas respostas apresenta dúvidas, percebi isso a partir do texto original onde encontrei marcas de outras respostas, mas como estamos diante de um ensino tecnicista, entendemos que tudo era encaminhado de forma mecânica de modo que não precisassem pensar no significado das respostas. Esta página coloca com grande ênfase os deveres e obrigações dos cidadãos, e todos os argumentos são para moldar a população com a situação política brasileira daquele momento, onde os militares mandavam e o povo obedecia. Numa tentativa de legitimar seus discursos promulgados nas leis o autor se afirma em Deus através da expressão “Todos nós temos deveres a cumprir para com Deus, para com a Pátria e para com nossos semelhantes.” (BORTOLI, 1978, p.138). Nesse sentido, Marilena Chauí (2000) nos ajuda e entender a importância das narrativas sagradas: Embora a narrativa sagrada seja uma explicação para a ordem natural e humana, ela não se dirige ao intelecto dos crentes (não é Filosofia nem ciência), mas se endereça ao coração deles. Desperta emoções e sentimentos – admiração, espanto, medo, esperança, amor, ódio (p. 273). A imagem dos escoteiros segurando a Bandeira Nacional Brasileira tenta impor à ideologia do amor a pátria, da importância de respeitar e obedecer à ordem vigente em vigor. Os dizeres da bandeira “Ordem e Progresso” resumem perfeitamente os objetivos dos militares que estavam no poder: se houver ordem, respeito com certeza o progresso chegará. Seguem algumas das gravuras do livro Curso de Estudos Sociais publicado em 1977. 27 Figura 04: Deveres da pessoa humana no período militar FONTE: PACHECO FILHO, Clóvis; MICHALANY, Douglas; NETO, José de Nicola; RAMOS, Ciro de Moura. Curso de Estudos Sociais. São Paulo: Editora Michalany S/A, 1977, 139 p. 28 Figura 05: As diversas formas de deveres FONTE: PACHECO FILHO, Clóvis ; MICHALANY, Douglas; NETO, José de Nicola; RAMOS, Ciro de Moura. Curso de Estudos Sociais. São Paulo: Editora Michalany S/A, 1977, 139 p. Nestas imagens, podemos perceber a preocupação dos militares em mostrar para os estudantes, e conseqüentemente seus amigos e familiares, quais eram seus deveres enquanto cidadãos brasileiros. Para isso: 29 [...] O regime preocupou-se especialmente com o ensino da educação cívica, redefinindo os papéis de duas disciplinas já existente – “Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira” ( ao nível de ensino fundamental e médio) – , tornando –as obrigatórias em todos os graus de ensino, com a introdução de “Estudos dos Problemas Brasileiros” no ensino universitário [...]Considerando que aquela doutrina tratava a educação e as pessoas nela envolvidas com um de seus “públicos-alvos” – passíveis de controle ideológico pelos riscos que representavam a segurança do país – , entende-se a razão das reformulações dos conteúdos e seus respectivos objetivos de ensino. As noções de preservação da segurança, de manutenção dos sentimentos patrióticos, do dever e da obediência às leis denotam com clareza as finalidades político-ideológicas dadas ao ensino de história e disciplinas afins (FONSECA, 2003, p. 56-57). Para a moral, a conduta humana deveria estar de acordo com as intenções do regime. Essa idéia de moral foi criada e disseminada como uma forma de regular condutas. Por meio dos livros didáticos, das formas metodológicas e da postura dos professores em sala de aula, conduzia a essa forma de conduta geral. Era preciso que tudo estivesse na mais perfeita ordem e que os feitos políticos fossem ressaltados em contraponto aos governos anteriores, A tendência religiosa era também altamente empregada nas vias do ensino. Era através da concepção de homem e espírito que os princípios religiosos se apresentavam. Era preciso conhecer o homem em sua racionalidade, e suas ações sobre essa razão, mas era preciso também conhecer a parte transcendental do ser humano. No livro didático, a religião era apresentada juntamente com os deveres cívicos e familiares. Era necessário saber sobre seus deveres para com Deus, para consigo mesmo, para com a família, para com os semelhantes, para com a pátria, enfim os deveres cívicos para com o mundo. Nesse contexto, Chauí (2002) afirma que cumprindo a vontade e as leis de Deus as ações humanas tornam-se morais: Por meio da revelação aos profetas (Antigo Testamento) e de Jesus Cristo (Novo Testamento), Deus tornou sua vontade e sua lei manifesta aos seres humanos, definindo eternamente o bem e o mal, a virtude e o vício, a felicidade e a infelicidade, a salvação e o castigo. Aos humanos, cabe reconhecer a vontade e a lei de Deus, cumprindo-as obrigatoriamente, isto é, por atos de dever. Estes tornam morais um sentimento, uma intenção, uma conduta ou uma ação (p. 296). 30 Por isso, incorporar conteúdos relacionados à moral nos livros didáticos foi uma das maneiras encontradas pelos militares em manter a ordem no país e assim se manterem no poder. Para eles a moral de uma pessoa estava relacionada com as suas ações, portanto, era importante enfatizar a relação com Deus, porque se enquadrando numa religião evitava-se o mal. Saber quais eram seus deveres perante a sociedade, manter-se dentro da moralidade, buscando Deus, evitava, segundo as pessoas que estavam no poder, manifestações críticas da população com relação ao governo/conduta dos militares, pois a moral diz respeito a seguir normas, enquanto a ética é o próprio questionamento moral. Outra preocupação dos militares estava relacionada à democracia que segundo eles não poderia estar em prática por causa das ameaças comunistas de tomar o poder. Vejamos um trecho do livro Educação Moral e Cívica de 1971 de Douglas Michalany e Ciro de Moura Ramos: 31 Figura 06: As diversas formas de deveres FONTE: RAMOS, Ciro de Moura, MICHALANY, Douglas. Educação moral, cívica e política. 2ª ed. São Paulo: Gráfica Michalany, 1971. p. 245 32 Figura 07: As diversas formas de deveres FONTE: RAMOS, Ciro de Moura, MICHALANY, Douglas. Educação moral, cívica e política. 2ª ed. São Paulo: Gráfica Michalany, 1971. p. 245 As páginas do livro de Michalany e Ramos (1971) mostram a preocupação dos militares contra os comunistas. Eles culpam os comunistas de tentarem tomar o poder, e causar desordem na vida política do país, usam esse argumento para explicar a falta de democracia existente no Brasil durante o Regime Militar. O livro explica o que é democracia, diz que ela está garantida na Constituição brasileira, mas ao mesmo tempo responsabiliza os comunistas pela falta de direitos do povo brasileiro: 33 O termo democracia designa um governo do povo. (...) A Constituição do Brasil define o regime democrático como sendo a baseado na pluralidade de partidos e na garantia dos direitos fundamentais do homem (...) O comunismo, com seus tentáculos, tenta destruir nosso sistema de vida e a própria independência da Pátria. (...) Portanto, para conservá-la, e preciso corrigi-la. Essa correção se faz com visíveis vantagens sobre o regime comunista: pela justa aplicação das leis e pelo respeito à autoridade. Esta e a força maior da democracia, pois o seu fundamento continua sendo a moralidade geral (p. 166 - 167). O texto traz o conceito de democracia para criticar o comunismo. Para Chauí (2000), a democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz, baseado na idéia de cidadania organizada em partidos políticos e manifestando-se no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas (e não políticas) para os problemas sociais. A democracia defendida na Constituição Brasileira, que garantia os direitos fundamentais do homem, não estava sendo praticada no governo militar por causa da ameaça comunista de assumir a administração do país. Portanto era necessário explicar a falta de democracia no Brasil, para isso, foram utilizados os conteúdos dos livros didáticos. Desta forma, toda educação tem seu objetivo; e organizada por um estado, tem de estar de acordo com os desejos deste estado. No caso deste estudo, a discussão é o estado militar, organizado de forma autoritária, a fim de manter a ordem através do convencimento que os cidadãos têm que ter sentimentos patrióticos, de acordo com a moral. No campo da educação as idéias socialistas também tomam forma e dinamismo, Maria Lucia de Arruda Aranha (1996), nos ajuda a entender melhor essa concepção: As idéias socialistas provocaram grandes alterações nas concepções pedagógicas. Do ponto de vista epistemológico, rejeitam os pressupostos idealistas e ao materialismo tradicional contrapõe à dialética. Do ponto de vista político, denunciam a exploração de uma classe por outra e defendem a educação universal e politécnica. Segundo o materialismo dialético, é ilusório pensar que a educação seja capaz por si só de transformar o mundo, porém existem tarefas para educadores enquanto não se realiza a ação revolucionaria. Por exemplo, a luta pela democratização do ensino (universal) e pela escola única (não dualista), isto é, sem distinção entre formar e profissionalizar; a valorização do pensar e do fazer, em que o saber esteja voltado para a transformação do mundo; a desmistificação da alienação e da ideologia, ou seja, a conscientização da classe oprimida (p.142). 34 O comunismo foi um movimento que se espalhou pelo mundo a partir do século XIX e teve no século XX algumas experiências concretizadas, sendo que isso aterrorizava o regime militar, que não economizou ações autoritárias para inibi-lo. As classes menos favorecidas sentiam-se motivadas por esse turbilhão de esperanças espalhadas pela Europa. As idéias socialistas chegaram ao Brasil, e estimularam vários conflitos, alguns de caráter significativo. A proposta de uma sociedade igualitária trazia idéia de libertação da opressão em que viviam. A educação nos anos de 1950 estava caminhando para uma fase de democratização e foi autoritariamente impedida de continuar esse processo no tempo da ditadura. A mensagem oculta do livro a cerca do comunismo procurava controlar as pessoas menos favorecidas, buscando impedir sua luta pela libertação. Ao longo da história os comunistas sempre foram vistos com maus olhos pela população, principalmente pela elite que detinha o poder. Eram vistos como revolucionários irresponsáveis, por isso os militares sempre usaram discursos depreciativos do comunismo numa tentativa de permanecer no poder, afirmando que com eles “esses baderneiros” jamais assumiram o controle político do país. Os livros didáticos que circulavam no governo militar, tentavam impor suas ideologias através dos conteúdos. Mas essas foram questionadas pelos leitores, tanto, que depois de 21 anos os civis voltaram ao poder no Brasil. Isso significa que nem sempre tudo que é lido nos livros é absorvido pelos leitores como verdade absoluta. Segundo Chartier (1998): [...] entre o texto e o sujeito que lê, coloca-se uma teoria da leitura capaz de compreender a apropriação dos discursos, a maneira como estes afetam o leitor e o conduzem a uma nova forma de compreensão de si próprio e do mundo. O autor esclarece que os agenciamentos discursivos e as categorias que os fundam – como os sistemas de classificação, os critérios de recorte, os modos de representações – não se reduzem absolutamente às idéias que enunciam ou aos temas que contêm, mas possuem sua lógica própria – e uma lógica que pode muito bem ser contraditória, em seus efeitos, como letra da mensagem (p.87). Outros discursos presentes nos livros eram as referências aos presidentes da República como heróis. Pelo Caderno Didático de Therezinha 35 Maestrelli e Dione de Godoy Araújo, percebe-se que a disciplina de Estudos Sociais abordava positivamente as contribuições feitas pelos presidentes desde 1945 até 1971: Figura 08: Os presidentes da república de 1945 a 1971 FONTE: ARAÚJO, Dione de Godoy; MAESTRELLI, Therezinha. Estudos sociais. 8ª ed. São Paulo: FTD, 1978. 248 p. 36 Figura 09: Presidentes (1945 a 1971) FONTE: ARAÚJO, Dione de Godoy; MAESTRELLI, Therezinha. Estudos sociais. 8ª ed. São Paulo: FTD, 1978. 248 p. Esse tipo de ensino alcança as reflexões de Fonseca (2003) A estrutura de programa [...] impunha um ensino diretivo, não crítico, no qual a história aparecia como uma sucessão linear de fatos considerados significativos, predominantemente de caráter político-institucional, e no qual sobressaíam os espíritos positivos que conduziriam à história. Nessa 37 concepção, a ordem social, livre de conflitos, seria fator de progresso e as desigualdades seriam legitimadas como fatos universais e naturais. (p.58) Assim os feitos dos presidentes tinham a intenção de mostrar um país em ordem, diferente dos governos anteriores, um país em desenvolvimento com um governo que merecia a credibilidade do povo o livro e os professores deveriam repassar esses feitos aos alunos. Assim, o controle sobre a massa vinha de uma proposta conjunta, ligada e sintonizada na mesma intencionalidade, qual seja legitimar o governo. Penso que por traz das linhas dos livros didáticos havia o Michel Foucault (2001) chama de forma invisível de controle e vigilância. E para se exercer, esse poder deve adquirir o instrumento para uma vigilância permanente, exaustiva, onipresente, capaz de tornar tudo visível, mas com a condição de se tornar ela mesma invisível. Deve ser como um olhar sem rosto que transforme todo corpo social em um campo de percepção: milhares de olhos por toda parte, atenções móveis e sempre alerta, uma longa rede hierarquizada [...] (p.176). Essa estratégia atenta manter o interesse do Regime político. É preciso controlar para manter a ordem. Os propósitos dos militares eram disfarçados, sobre uma ótica de civismo numa concepção moral. Mostravam um país perfeito, com notícias perfeitas, com a economia em ordem e o sistema político e social caminhando em perfeita sintonia. Era o regime ditatorial escondido e estampado em cada linha dos cadernos didáticos que conduziram a educação durante este período militar. Para os militares era importante fazer os estudantes acreditarem naquilo que estava escrito nos livros didáticos. Essas “vontades de verdades” fariam os alunos acreditarem na ditadura e se tornarem os civis que o regime militar pretendia. Sendo assim, Chauí (2000) diz que: [...] as concepções históricas e as transformações internas ao conhecimento mostram que as várias concepções da verdade não são arbitrárias nem casuais ou acidentais, mas possuem causas e motivos que as explicam, e 38 que a cada formação social e a cada mudança interna do conhecimento surge a exigência de reformular a concepção da verdade para que o saber possa realizar-se (p. 145). Analisando as páginas de alguns livros didáticos durante o Regime Militar no Brasil, notamos que o objetivo dos militares era passar para os alunos o modelo de Educação Cívica e Moral, impondo a ordem social e política, ou seja, só poderia ser transmitido para o aluno o conteúdo que estava de acordo com o que o Estado previa e aceitava, em sua maioria traziam a exaltação ao governo e ao regime. No entanto, a forma como cada aluno e, cada professor recebeu essas informações e apropriou esses conteúdos fez com certeza a diferença entre a “vontade de verdade” dos governantes e os “usos” dos estudantes. A Ditadura teve fim em 1984, muitos movimentos forçaram a queda do último ditador militar, entre eles o movimento estudantil conhecido como “a novembrada”, em Florianópolis, movimento liderado por estudantes que com certeza estudaram com esses livros. O que nos remete pensar que “a leitura não está inscrita no texto, ou seja, o sentido imposto (por quem quer que seja) e a interpretação de seus leitores podem ser bem diferentes. É o leitor que dá significado ao texto” (CHARTIER, 1995, p. 14) 39 4 CONCLUSÃO As propostas de educação dão-se dentro dos parâmetros da sociedade vigente. Os relatos dos estudos dos autores citados no decorrer do trabalho oferecem informações acerca dos desejos por parte das classes que por ventura está no domínio. A educação é um processo que por vias de ensino consegue atingir um público que se encontra em um período de aprendizagem. E, através desta com alguns métodos e ferramentas próprias, como a “utilização do objeto impresso”, ou seja, os livros que tomam uma dimensão do pensamento escrito e disseminado alcançam muitos leitores. Este estudo trouxe um debate a cerca do uso do livro didático no decorrer da história e o papel que estes se desenrolaram com ênfase no período ditatorial brasileiro de 1964 a 1984. A tentativa de convencimento que o país estava em ordem, em sua concepção política e econômica levava a uma concepção de um povo também em ordem na sua concepção social, educacional e cultural. Com um esforço tremendo entre os detentores do poder e os profissionais da educação, como toda sociedade em si (vale aqui ressaltar) precisariam ser vigiados e controlados a todo instante. Professores desempenhando seu papel expositivo de uma educação exposta intencionalmente; livros preparados e escritos para que essa intencionalidade fosse executada, e um governo consciente de seus objetivos, com a máscara disfarçada do “está tudo indo de acordo com os desejos do povo.” Assim a educação, como em todo percurso da história não é algo desprendido de uma ideologia do poder, mas é um meio de convencer e levar o povo a acreditar naquilo que lhe é passado, entendido e se torna uma forma de conduta firmada em alicerces ideológicos. E, a ditadura em seus propósitos não foi diferente. Procuro mostrar seu poder e estratégias para a educação. Manter a ordem era de grande importância para evitar o caos. Logo o civismo e a moral, com suas concepções de conduta, num plano armado, acalentavam os corações que não sabiam, ou não queriam saber o que se passava. E, os corações exaltados pelas mudanças eram calados, 40 exilados, torturados ou mortos. Portanto, para manter uma ideologia, era preciso ter estratégia, astúcia. Um desses recursos estratégicos foi o livro didático debatido nesse estudo. O governo militar sobreviveu por 20 anos, numa ditadura escancarada, com uma “democracia” estrategicamente disfarçada. 41 REFERÊNCIAS ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da educação. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Ed. Moderna, 1996, 255 p. ARAÚJO, Dione de Godoy; MAESTRELLI, Therezinha. Estudos sociais. 8ª ed. São Paulo: FTD, 1978. 248 p. ARNS, Paulo Evaristo. Brasil: nunca mais. 32. ed. Petrópolis: Vozes, 2001, 312 p. BITTENCOURT, Circe Maria F. Livro didático e conhecimento histórico: uma historia do saber escolar. Tese de doutorado em Historia Social. São Paulo, FFLCH – USP, 1993. BORTOLI, Lurdes. Educação moral e Cívica. 2. ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1978, 132 p. BUENO, Eduardo. Brasil uma história: a incrível saga de um país. São Paulo, 2003. CHARTIER, Roger. A enforcada que foi salva miraculosamente. Estudo de um livro de cordel. In: CHARTIER, Roger (coord). As utilizações do objeto impresso (séculos XV – XIX). Portugal: DIEFEL, 1998, p. 115 CHARTIER, Roger. A Historia cultural: entre praticas e representações. Lisboa. Difel: 1989, p.17 CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995, p.11 – 20. CHAUI. Marilena. Convite a Filosofia. 12 ed. São Paulo: Ed Atica, 2002. p. 440 CHIAVENATO, Júlio José. O golpe de 64 e a ditadura militar. 6. ed. São Paulo: Moderna, 1995, 136 p. COUTO, Ronaldo Costa. História indiscreta da ditadura e da abertura Brasil: 1964-1985. 2. ed. Jorge Zahar: Ed. Record, 1999, 517 p. DEMO, Pedro. A nova LDB: ranços e avanços. 3. ed. Campinas: Ed. Papirus, 1997, 111 p. FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da história ensinada. 6. ed. Campinas: Papirus, 1993, p. 25. FOUCAULT, MICHEL. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 24ª ed. Petrópolis: Vozes, 2001, p.262 42 GHIRALDELLI JÚNIOR, Paulo. História da educação. São Paulo: Ed. Cortez, 1991, 240 p. HABERT, Nadine. A década de 70: apogeu e crise da ditadura militar brasileira. São Paulo: Ed. Ática, 1992, 95 p. LENSKIJ. Tatiana; HELFER, Emma Nadir. A memória do ensino de história. A memória e o ensino de história. Santa Cruz do Sul: Edunisc; São Leopoldo: ANPUH/RS, 2000. PACHECO FILHO, Clóvis; MICHALANY, Douglas; NETO, José de Nicola; RAMOS, Ciro de Moura. Curso de Estudos Sociais. São Paulo: Editora Michalany S/A, 1977, 139 p. RAMOS, Ciro de Moura, MICHALANY, Douglas. Educação moral, cívica e política. 2ª ed. São Paulo: Gráfica Michalany, 1971. p. 245 RIBEIRO, Maria Luisa Santos. A formação política do professor de primeiro e segundo graus. 2. ed. São Paulo: Ed. Cortez, 1987, 280 p. ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da educação no Brasil: 1930 - 1973. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 1991. 267 p. VEDANA, Léa Maria. A educação em SC nos anos 60. Esboços. Florianópolis. v. 5, n 5, dez. 1997. p. 39-47