EXMO(A). SR(A). DR(A). JUIZ(A) FEDERAL DA VARA DA SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE BENTO GONÇALVES, RS: O MINISTÉRIO PÚBLICO F E D E R A L , por seu Órgão signatário, no exercício de suas atribuições constitucionais (artigos 127, caput; e 129, inciso III, da Constituição Federal) e legais (artigos 5º, inciso III, ‘b’; 6º, inciso VII, alínea ‘b’, da Lei Complementar nº 75/93; e artigos 1º, III; e 4º, da Lei nº 7.347/85), com base nos documentos anexos, vem, perante V. Exa., ajuizar a presente A Ç Ã O C A U T E L A R I N O M I N A D A em desfavor de: AMÉRICA LATINA LOGÍSTICA S/A – ALL, pessoa jurídica de direito privado, concessionária de serviço público federal, a ser citada na Rua Emilio Bertolini, nº 100, Bairro Cajuru, Curitiba/PR; pelos fundamentos de fato e de direito a seguir expostos: FATOS 1. O Ministério Público Federal, por intermédio da Procuradoria da República no Município de Bento Gonçalves/RS, tomou conhecimento, nessa data, que o patrimônio público federal adstrito à estrada férrea que circundam o Município de Santa Tereza está sendo objeto de degradação e dilapidação indevida por parte da requerida. Com efeito, inicialmente, aportou ao Parquet missiva oficial firmada pelo Prefeito Municipal de Santa Tereza (Of. Nº 131/2005), narrando a retirada indevida de parte dos trilhos da estrada de ferro (ainda pertencente à Rede Ferroviária Federal S/A, em liquidação extrajudicial) por ato comissivo da ré. Na mesma toada, o Prefeito Municipal de Santa Tereza manteve contato telefônico com o signatário, relatando os fatos, confirmados, inclusive, pelo Comandante do Pelotão da Brigada Militar no Município, Sargento Braga. Tal militar destacou guarnição para averiguar os fatos e constatou a presença de transportadora contratada pela ré para fins de carregamento e retirada de trilhos da estrada de ferro, com o subseqüente transporte dos mesmos à sede da requerida. O responsável pela execução da empreitada é o Sr. Expedito Batista de Lima, RG nº 126.276.58-SSP/PR, motorista do caminhão a ser utilizado para a consumação do dano ao patrimônio público e histórico nacional. Noutro passo, a 12ª Superintendência Regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, por sua Superintendente Regional, Arquiteta ANA LÚCIA MEIRA, além de manter contato telefônico, encaminhou mensagem eletrônica (e-mail) ao signatário, nessa data, às 18h36min, cujos termos são, ademais, elucidativos das circunstâncias que envolvem os fatos cuja consumação busca evitar-se por meio da presente tutela de cautelaridade: “Senhor Procurador: O IPHAN, desde 2002, vem realizando a instrução do processo de tombamento, em nível nacional, da Paisagem Cultural de Santa Tereza. A proposta de tombamento abrangerá um perímetro considerável em torno do núcleo urbano, incluindo a área da antiga estação ferroviária. Na proposta de desenvolvimento econômico prevista para o município, em função do tombamento, o tema do turismo comparece com especial importância. No que se refere à antiga estação, ela seria revitalizada com a implantação de uma linha turística, cuja viabilidade será avaliada pelo Ministério dos Transportes, em breve. Quanto aos trilhos, eles explicam a existência da estação férrea e representam um dado histórico que se pretende preservar. Sua eliminação ou substituição por novos trilhos fará com que se perca uma parte importante da história do lugar. Assim, solicitamos sua interveniência para que seja sustada a retirada dos trilhos pretendida pela ALL. Segundo a RFFSA do RS (engenheiro Roberto - fone 3371 2089), não foi expedida nenhuma autorização para que a empresa retirasse os trilhos. No entanto, um caminhão se encontra no local para removê-los. Certa de seu apoio a nossa solicitação, despedimo-nos, Atenciosamente Ana Lúcia Meira Superintendente da 12ªSR / IPHAN Ao Dr. Alexandre Schneider Procurador do MPF Bento Gonçalves – RS” Por fim, os mesmos fatos foram confirmados ao signatário, por telefone, pelo cidadão santaterezinense, Sr. Jorge Luis Acco. 2. Nesse estado de coisas, percebe-se a postura nitidamente ilegal e afrontosa ao patrimônio público, histórico e cultura da União, por atitude francamente arbitrária e abusiva emanada da requerida, cuja subsunção ao ordenamento jurídico, in thesi, pode ser enquadrado na figura delitiva da apropriação indébita (artigo 168 do Código Penal), uma vez que a propriedade dos trilhos e estradas de ferro encontram-se arrolados no acervo patrimonial da União. DIREITO 3.1. É cediço que a ré encontra-se na condição de concessionária de parte da malha ferroviária brasileira, para o fim de exercer o transporte de cargas no modal férreo, por força do Programa Nacional de Desestatização – PND levado a cabo pela Administração Pública Federal, instituído pela Lei nº 8.031/90, ao qual restou incluída a RFFSA – Rede Ferroviária Federal S/A por força do Decreto nº 473/92. A propriedade das estradas de ferro pela União, na ótica da dominialidade pública, é situação jurídica que remonta à Constituição de 1891, porquanto atenta aos primórdios do transporte ferroviário no Brasil, instituído pelo Barão de Mauá (Patrono do Ministério dos Transportes) em concessão outorgada pelo Império nos idos de 1852. A Estrada de Ferro Mauá permitiu a integração das modalidade de transporte ferroviário, introduzindo a primeira operação intermodal do Brasil. Após a inauguração dessa Estrada de Ferro, surgiram diversas outras ferrovias históricas – vg, Recife-São Francisco, D. Pedro II, Bahia ao São Francisco, Santos a Jundiaí e Companhia Paulista. Nesse crescendo, inclui-se a Estrada de Ferro que perpassa o Município de Santa Tereza. Por se tratar de questão estratégica nacional, repita-se, sempre as estradas de ferro (ferrovias) estiveram classificadas como bens de propriedade da União, do que não divergiu a Constituição Federal de 1988: “Art. 20. São bens da União: ... II – as terras indispensáveis fronteiras, das construições federais à de devolutas defesa das fortificações militares, das comunicação e vias e à preservação ambiental, definidas em lei” No plano infraconstitucional, a matéria vem consolidada no Decreto-lei nº 9.760/46, recepcionado que foi pelo Ordenamento Maior: “Art. 1º Incluem-se entre os bens imóveis da União: ... e) a porção de terras devolutas que fôr indispensável para a defesa da fronteira,fortificações, instruções militares e estradas de ferro federais; ... g) as estradas de ferro, instalações portuárias, telégrafos, telefones, fábricas oficinas e fazendas nacionais; Vê-se, portanto, que as estradas de ferro são bens da União, cuja propriedade, é acaciano, não resta transferida ao concessionário do serviço público, segundo os postulados tradicionais do Direito Administrativo. MARIA SÍLVIA ZANELLA DI PIETRO, ao conceituar o instituto da concessão de uso, leciona: “É o contrato administrativo pelo qual a Administração Pública faculta a terceiros a utilização privativa de bem público, para que a exerça conforme a sua destinação”1 Logo, a conduta levada a efeito pela ré encontra óbice no ordenamento jurídico, já que está a açambarcar bens da União, cuja gravidade dos fatos é reforçada pelo fato de a RFFSA (em liquidação), pelo seu engenheiro responsável no Rio Grande do Sul, ter informado que não foi expedida qualquer autorização para que a empresa retirasse os trilhos. 3.2. Noutro prisma, resta evidenciada a existência de processo de tombamento, em nível nacional, da Paisagem Cultural do Município de Santa Tereza, a englobar parcela considerável do núcleo urbano, incluindo a antiga estação ferroviária e a estrada de ferro. A proteção ao patrimônio histórico, artístico e cultural encontra-se, inicialmente, delineado em sede constitucional. Nunca antes um texto constitucional brasileiro lhes dedicou tanto espaço, iniciando pela previsão do alcance da ação popular, com papel expresso na defesa do patrimônio cultural e do meio ambiente. Pela primeira vez surge a denominação patrimônio cultural e sua definição, verbis: 1 In Direito Administrativo. 7ª edição, Atlas. Artigo 5° - Todos são iguais Perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada máfé, isento de custas judiciais e do ônus da suculência; Artigo 23 - É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos; IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural; V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência; Artigo 24 - Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: VII - proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico; VIII responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; Artigo 30 - Compete aos Municípios: IX - promover a proteção do patrimônio históricocultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual. Artigo 216 - Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. § 1°. O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. § 2°. Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem. § 3°. A lei estabelecerá incentivos produção e o conhecimento de bens e culturais. para a valores § 4°. Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. § 5°. Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. O processo de tombamento dos bens que interessam ao patrimônio histórico, cultural e artístico vem plasmado no Decreto-lei n° 25, de 30 de novembro de 1937, revelando nítido matiz publicístico, o qual avulta, ademais, no caso concreto ante o fato de os bens em processo de tombamento (Estrada de Ferro e Estação Ferroviária) serem bens integrantes do domínio da União, a serem doados pela RFFSA ao IPHAN na conclusão do processo de inventariança em que se encontra a Rede Ferroviária Federal S/A. 4. Assim, percebe-se a gravidade que envolve os fatos, razão por que o Ministério Público Federal bate às portas do Estado-Juiz, com a pretensão de que seja conferida a prestação jurisdicional apta a atender os reclamos da sociedade enquanto titular do direito difuso representado na preservação do patrimônio público, histórico e cultural, a ser preservado com memória da história nacional, para as atuais e futuras gerações. 5. DO INTERESSE DE AGIR E DA ATRIBUIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, BEM COMO DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL A Constituição Federal incumbiu o Ministério Público da defesa da ordem jurídica (art. 127, caput) e estabeleceu como uma de suas funções institucionais a promoção da ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, dentre outros interesses difusos e coletivos (art. 129, III). A ordem jurídica, no caso, está sendo desrespeitada, vez que a empresa-ré está cometendo franca violação ao patrimônio público federal, em vias de ser declarado patrimônio histórico e artístico nacional pelo IPHAN (autarquia federal), através de conduta positiva de danificar e alterar a estrada de ferro que circunda o Município de Santa Tereza. Bem público esse que, repita-se, não lhe pertence e que se encontra em processo de tombamento, inserida em contexto histórico que a União pretende conservar. Como o risco resultante da inobservância dos preceitos legais atinge um número indeterminado de pessoas, está-se diante de evidente direito difuso que está sendo violado, o que autoriza a promoção da presente ação pelo Ministério Público Federal, nos exatos termos da LC nº 75/93: Art. 6º - Compete ao Ministério Público da União: VII - promover o inquérito civil e a ação civil pública para: b) a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, artístico, dos bens estético, e direitos histórico, de valor turístico e paisagístico; XIV - promover exercício de outras suas ações funções necessárias ao institucionais, em defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, especialmente quanto: g) ao meio ambiente; A competência da Justiça Federal firma-se na medida em que no pólo ativo da relação jurídico-processual é composto pela atuação do Ministério Público Federal: Art. 109 - Aos juízes federais compete processar e julgar: I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho; Como exaustivamente exposto, a atuação do Ministério Público Federal encontra-se direcionada à defesa do patrimônio público, cultural, histórico e artístico da União. Assim, restam vincados o interesse de agir do Ministério Público Federal e a competência da Justiça Federal. 6. DA MEDIDA LIMINAR O objetivo da presente ação é buscar a tutela jurisdicional para que a empresa-ré seja obstada de retirar os trilhos da estrada de ferro que circunda o Município de Santa Tereza, bem como ordenando-se a manutenção da higidez e integridade do patrimônio da União, como medida preliminar a evitar a propagação dos danos ao patrimônio histórico e cultural da União, enquanto o Parquet apura a extensão dos danos causados e promova a responsabilização da requerida. Porém, para que o provimento jurisdicional possua utilidade e efetividade, presentes o fumus boni iuris e o periculum in mora, impositiva e necessária se afigura a concessão de ordem liminar proibitiva. Os fatos acima relatados, todos comprovados pela farta documentação acostada aos autos, demonstram que a higidez do patrimônio público, cultural e histórico consistente na Estrada de Ferro que circunda o Município de Santa Tereza, encontra-se periclitante, em razão da conduta comissiva executada pela ré, que está a retirar os trilhos da via férrea. Logo, o fumus boni iuris da presente ação encontra-se presente. A manutenção do “status quo” irá, certamente, causar danos irreparáveis. Diga-se, nesse par, consoante informação do IPHAN no email anexo, que a eliminação ou substituição dos antigos trilhos por novos trilhos fará com que se perca parte importante da história do lugar. É DE SALIENTAR, POR RELEVANTE, QUE SE ENCONTRA NO LOCAL UM CAMINHÃO POSTO PARA REMOVER OS TRILHOS DA ESTRADA DE FERRO. Dito veículo foi ali alocado pela ré e se encontra tripulado pelo motorista EXPEDITO BATISTA DE LIMA (RG nº 126.276.58/SSP-PR), contratado pela requerida, aguardando apenas a chegada de nota fiscal emitida pela ALL para proceder à retirada dos trilhos do local, situação que poderá ocorrer a qualquer momento – segundo informado pelo Prefeito Municipal e pelo Cmdte. Braga, da Brigada Militar. Dessa forma, presente o periculum in mora necessário para a concessão da medida liminar que se pleiteia. Nesse estado de coisas, presentes os requisitos necessários à concessão da medida liminar, requer o Ministério Público Federal, com espeque no art. 12 da Lei nº 7.347, de 24/07/1985, o seu deferimento, inaudita altera parte, para os fins de impedir/proibir que a empresa AMÉRICA LATINA LOGÍSTICA S/A – ALL proceda à retirada dos trilhos da estrada de ferro localizada no Município de Santa Tereza, bem como continue a provocar danos ao patrimônio público, cultural e histórico, expedindo-se a urgente tutela inibitória. Requer-se ainda, com supedâneo no artigo 12, § 2º, da Lei nº 7.347/85, para o caso de descumprimento da ordem judicial, a cominação de multa global a ser estipulada pelo juízo, mas não inferior a R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), para a hipótese de ser descumprida a obrigação de não-fazer fixada na decisão liminar concedida. Com o escopo de conferir coercibilidade à ordem judicial, pede-se que, no texto do mandado, conste a expressa possibilidade de prisão do motorista EXPEDITO BATISTA DE LIMA, na hipótese de resistência ao cumprimento da ordem judicial. Requer-se, por derradeiro, que o teor da decisão liminar seja transmitida por fac-simile ao Comandante Braga, da Brigada Militar de Santa Terezinha, para os seguintes números: (54) 456-1033 ou 456-1035. Isso, a fim de conferir agilidade no cumprimento do mandado, já que a guarnição da Brigada Militar se encontra de vigília e em prontidão para garantir que os trilhos não sejam retirados do local e transportados. PEDIDO 7. Ante o exposto, concedida a liminar pleiteada, no mérito, o Ministério Público Federal requer: a) a citação da ré, para, querendo, contestar a ação, sob pena de revelia; b) seja julgada procedente a presente ação, com a condenação da réu nos ônus da sucumbência. Protesta-se pela produção posterior de outras provas juridicamente admitidas. Informa-se, por oportuno, que será ajuizada, como ação principal, ação civil pública, pretendendo a condenação da ré em obrigação de fazer, consistente em restaurar/reparar o dano causado, bem como a pagar indenização compensatória pelo dano moral coletivo causao. Dá-se à causa o valor de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), para fins fiscais e de alçada. Bento Gonçalves/RS, 27 de junho de 2005. ALEXANDRE SCHNEIDER, Procurador da República.