Luís Fernando Veríssimo o criador de
“O Analista de Bagé”
Dominique Stoenesco
Um gaúcho que
chimarrão
não gosta de
o início dos anos 90, um
amigo que me hospedava
em Porto Alegre, capital do
Estado do Rio Grande do Sul, preparava-se a levar-me a casa de Luís
Fernando Veríssimo. A caminho
deste tão importante encontro, meu
amigo ia esboçando antecipadamente um retrato do talentoso ficcionista brasileiro : “…um sujeito
meio gordo, de meia idade, óculos
grossos, meio calvo e meio grisalho,
totalmente mudo, a sublimação da
timidez”.
Com efeito, a visita não desmentiu as palavras do meu amigo.
Luís Fernando Veríssimo, filho do
grande romancista gaúcho Érico
Veríssimo, é um homem reservado,
que mostra um certo contraste
entre o que é e o que escreve. É um
tanto casmurro, mas a sua obra está
repleta de frases admiráveis, de
histórias contadas com muito
humor e inteligência. L.F. Veríssimo,
modesto, afirma ser preguiçoso,
mas na realidade tem uma capacidade enorme de trabalho. Escreveu
já algumas dezenas de livros, criou
programas para a televisão e também é “cartoonista”.
Cidadão de uma região com
profundas tradições rurais, L.F.
Veríssimo confessa apesar de tudo
ser “um gaúcho que não gosta de
chimarrão” (chá-mate sem açúcar,
bebida típica do Rio Grande do
Sul), acrescentando, sempre com o
seu humor espontâneo, “…nem de
me lembrar da última vez que subi
num cavalo. Aliás, acho que o cavalo também não gosta”.
Viveu
alguns anos nos Estados Unidos
com os pais, daí vem a sua paixão
pela literatura e pela música americana. Também gosta de viajar, da
sensação da descoberta, e já passou
alguns meses em Roma e em Paris.
N
n° 2 - février 98
Quando jovem, tocou saxofone e
trabalhou como tradutor*. Um dia
foi tentar a sorte no Rio de Janeiro,
mas acabou regressando a Porto
Alegre. Finalmente, em fins dos
anos 6o, graças ao apoio do pai,
L.F. Veríssimo conseguiu entrar
como redator no Zero Hora, o mais
importante diário rio-grandense. É
neste jornal que L.F. Veríssimo
inicia a sua fecunda carreira de cronista.
Como nasce um cronista
Porém, o que iria dar uma
dimensão nacional ao trabalho de
Luís Fernando Veríssimo foi a sua
entrada, em 1975, num dos mais
prestigiosos jornais da imprensa
brasileira, o Jornal do Brasil. É
nesta época que a crônica se
desenvolve consideravelmente na
imprensa, abordando os temas mais
diversos da sociedade brasileira: a
política, a televisão, o futebol, a
religião,etc. A colaboração de L.F.
Veríssimo, como cronista, estendese também a outros periódicos
importantes, tais como Veja, O
Estado de São Paulo, ou ainda
Playboy. Os seus livros atingiram
sucessos editoriais que ultapassaram os dos mais célébres romancistas brasileiros. O primeiro livro
de crônica de L. F. Veríssimo, O
Popular, foi publicado em 1973.
Depois vieram outros, com tiragens
sempre impressionantes, A Velhinha
de Taubaté, Solo de Clarineta, O
Analista de Bagé (76 edições !),
Outras do Analista de Bagé, A
Mulher do Silva» Crônicas da vida
privada, sem esquecermos a criação do detetive particular Ed Mort
(é de morte), um detetive bem sentimental, e ainda a publicação de
um número incalculável de pequenas histórias divertidas.
A crônica de L.F.Veríssimo
Luís Fernando Veríssimo inscreve-se na tradição da prosa regionalista, aqui a crônica, com narrativas
curtas, em que os personagens são
essencialmente oriundos da classe
média. É o quotidiano da sociedade
que o autor tenta caricaturar e ridicularizar. Mesmo evocando e
comentando os graves problemas
do Brasil e do nosso planeta, L.F.
Veríssimo nos faz rir; a força do seu
texto está no humor que surge a
partir da coisa mais simples, como
da coisa mais complexa. Um humor
que foi comparado com o do
cineasta Woody Allen, na medida
em que L.F. Veríssimo também é
um moralista e um pensador, mas
que não tem o mesmo conteúdo
sarcástico e destruidor. No entanto,
o autor de O Analista de Bagé mostra ser um acérrimo defensor do
anticonformismo, inclusive utilizan-
23
do a irreverência, e deixa entender
através da sua obra que para ele
nada deve ser sacralizado. A crônica de Luís Fernando Veríssimo
aproxima-se também, por vezes,
da crônica de Carlos Drummond de
Andrade (outro tímido !), pela sua
ironia fina e culta.
L.F. Veríssimo, como C.D.
Andrade aliás, utiliza com muita
sutileza todos os recursos da crônica para realçar as sensações, as
emoções e as contradições que a
sociedade contemporânea produz.
Assim, O Analista de Bagé constitui
antes de tudo um retrato dessas
contradições.
Bagé é uma destas cidades do
interior do Rio Grande do Sul,
situada a uns 400 km. de Porto
Alegre, perto da fronteira com o
Uruguai. Aí se cruzam o autêntico
gaúcho do pampa com o homem
da cidade, acarretando todas as
consequências sociais e culturais. O
analista de Bagé é um homem um
tanto rude, com o seu linguajar próprio, que recebe os pacientes com
suas bombachas (calças muito largas, típicas do vestuário regional
gaúcho), de chicote na mo. E o seu
consultório é constitúdo principalmente por um divã forrado por um
pelego (pele de ovelha utilizada
pelos gaúchos para montar a cavalo). Em O Analista de Bagé (ed. L &
PM, Porto Alegre, 1983, 132 p.), L.F.
Veríssimo ridiculariza tanto o analista quanto o cliente, os dois representando uma mistura de rusticidade e de sensibilidade, como
podemos ver nesta primeira crônica que tem precisamente o
mesmo título que o livro, e que
reproduzimos aqui abaixo.
O Analisté de Bagé
Certas cidades não conseguem
se livrar da reputação injusta que,
por alguma razão, possuem.
Algumas das pessoas mais sensíveis
e menos grossas que eu conheço
vêm de Bagé, assim como algumas
das menos afetadas são de Pelotas.
Mas não adianta. Estas histórias do
psicanalista de Bagé são provavelmente apócrifas (como diria o próprio analista de Bagé, história apó24
crifa é mentira bem educada) mas,
pensando bem, ele não poderia vir
de outro lugar.
Pues, diz que o divã no
consultório do analista de Bagé é
forrado com um pelego. Ele recebe
os pacientes de bombacha e pé no
chão.
— Buenas.Vá entrando e se
abanque, índio velho.
— O senhor quer que eu deite
logo no divã ?
— Bom, se o amigo quiser dançar uma marca, antes, esteja a
gosto. Mas eu prefirover o vivente
estendido e charlando que nem
china da fronteira, pra não perder
tempo nem dinheiro.
— Certo, certo. Eu…
— Aceita um mate ?
— Um quê ? Ah, não. Obrigado.
— Pos desembucha.
— Antes, eu queria saber. O senhor é freudiano ?
— Sou e sustento. Mais ortodoxo
que reclame de xarope.
— Certo. Bem. Acho que o meu
problema é com a minha mãe.
— Outro…
— Outro ?
— Complexo de Édipo. Dá mais
que pereba em moleque.
— E o senhor acha…
— Eu acho uma pôca vergonha.
— Mas…
— Vai te metê na zona e deixa a
velha em paz, tchê !
gato em dia de faxina.
—Ela tem um problema de
carência afetiva…
— Eu não sou de muita frescura. Lá de onde eu venho, carência
afetiva é falta de homem.
— Nós estamos justamente atravessando uma crise de relacinamento porque ela tem procurado
experiências extraconjugais e…
— Epa. Opa. Quer dizer que a
negra velha é que nem luva de
maquinista ? Tão folgada que qualquer um bota a mão ?
— Nós somos pessoas modernas.
Ela está tentando encontrar o verdadeiro eu, entende ?
Ela está procurando o verdadeiro tu nos outros ?
— O verdadeiro eu, não. O verdadeiro eu dela.
— Mas isto tá ficando mais
enrolado que lingüiça de venda..
Te deita no pelego.
— Eu ?
— Ela. Tu espera na salinha.
l
Contam que outra vez um casal
pediu para consultar, juntos, o
analista de Bagé. Ele, a princípio,
não achou muito ortodoxo.
— Quem gosta de aglomeranmento é mosca em bicheira…
Mas acabou concordando.
— Se abanquem, se abanquem
no más. Mas que parelha buenacha, tchê. Qual é o causo?
— Bem — disse o home — é que
nós tivemos um desentendimento…
— Mas tu também é um bagual.
Tu não sabe que em mulher e cavalo novo não se mete a espora ?
— Eu não meti a espora. Não é,
meu bem ?
— Não fala comigo !
Mas essa aí tá mais nervosa que
* Respeitamos a norma ortográfica brasileira para os textos que tratam ou
que são de autores brasileiros.
n° 2 - février 98
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O Analista de Bagé - Association des Revues Plurielles