Práticas de
Dinamização da
Leitura
Colectânea de Textos
Organização de João Teixeira Lopes
Edição financiada pela Medida 4.2. Desenvolvimento e Modernização das Estruturas e Serviços
de Apoio ao Emprego e Formação; Tipologia 4.2.2. Desenvolvimento de Estudos e Recursos
Didácticos
ÍNDICE
005
Introdução
Leitura para quê?
João Teixeira Lopes
CAPÍTULO I
A Competência Leitora
009
016
1. Leitura e Leitores
Maria José Vitorino
2. Filtros na Internet e conteúdos disponíveis nas bibliotecas públicas – entre a
abertura e a censura
Paula Sequeiros
CAPÍTULO II
A Competência de Mediação: Contextos e Agentes
029
039
048
1. A Rede de Bibliotecas Públicas
Henrique Barreto Nunes
2. Biblioteca e Leitores em Santa Maria da Feira
3. Leitura, literacias e inclusão social: novos e velhos desafios para as bibliotecas
públicas
CAPÍTULO III
Planos para a Dinamização de Leitura
061
1. Promoção da poesia em contexto escolar
Cristina Maria da Cruz Forte
068
Listagem das chamadas da obra
INTRODUÇÃO
João Teixeira Lopes
005
LEITURA PARA QUÊ?
A pergunta em epígrafe tem subjacente uma dúvida metódica. Na verdade, sabemos como as
competências leiturais abrem caminhos na educação cidadã, na motivação para a participação
na esfera pública, na criação de “mundos interiores” que se projectam, tantas vezes, mercê
de disposições incorporadas, em práticas emancipatórias. Sabemos, também, que os leitores
não são tábuas rasas ou receptáculos vazios, mas sim agentes capazes de experimentar em
“estratégias textuais” que em muito subvertem as intenções do autor (quando estas explicitamente
se declaram). Contudo, não negligenciamos o que vários estudos nos têm demonstrado,
nomeadamente no predomínio estudantil dos usos instrumentais da leitura (ler com um fim
determinado, normalmente associado aos curricula e ao processo de avaliação), numa espécie
de reabilitação das leituras obrigatórias e na própria escolarização da frequência das bibliotecas.
Logo, poderíamos também perguntar: bibliotecas para quê, em particular na economia e
sociedade do conhecimento, formas algo eufemísticas de nomear as novas configurações do
capitalismo avançado.
A presente colectânea avança com algumas respostas heurísticas e provisórias às questões
lançadas. Manuela Barreto Nunes propõe, sem hesitações, uma concepção de biblioteca como
equipamento público destinado a facilitar o livre acesso ao conhecimento, sendo que este,
enquanto trabalho autónomo de selecção, crítica e produção, não se limita, antes ultrapassa,
o consumo de informação, perante o qual estaremos, certamente, muito próximos da overdose.
A biblioteca pública é, pois, uma espécie de “portal” através do qual poderemos adquirir
competências de incorporação de literacias, combatendo as multifacetadas modalidades de
exclusão social. Para tanto, urge aperfeiçoar o modelo vigente na rede de bibliotecas públicas,
em particular no que se refere às instâncias de mediação entre o equipamento/instituição e
os seus utilizadores.
Henrique Barreto Nunes, por sua vez, oferece-nos uma breve e lúcida história da implantação
do novo modelo de biblioteca pública, longe, bem longe, do velho «armazém de livros» em
regime de acesso restrito, evidenciando como a concepção da rede de bibliotecas públicas é
em muito devedora de concepções internacionais plasmadas, por exemplo, nos documentos
e programas da UNESCO que tão tardiamente chegaram ao nosso país.
Da estante fechada à estante aberta, eis o mote de Paula Sequeiros, questionando à regulação
do acesso à «estante virtual», bem como a formas insinuantes e difusas de censura, através
006
dos «filtros» que abrem/fecham o acesso à informação e à expressão, categorizando e
classificando usos e leitores, numa função manifesta e/ou latente de controle social. Um novo
panóptico estará à espera de vez para se instalar?
João Teixeira Lopes e Bárbara Aibéo fornecem, por seu turno, os resultados de uma investigação
empírica sobre a biblioteca pública de Santa Maria da Feira, dando a conhecer esquemas de
percepção e de representação do seu funcionamento, bem como usos leiturais e perfis
sociológicos de utilizadores.
Importa, aliás, falar da complexidade das práticas accionadas pelos leitores, como salienta
Maria José Vitorino. Na verdade, leitura deverá escrever-se sempre no plural, tal é a diversidade
de usos e contextos. E, ao contrário dos mitos do frenesim produtivo, elogiam-se o silêncio e
as palavras, ideias e emoções que dele brotam.
Palavras que, feitas poesia, transformam, como ilustra Cristina da Cruz Forte, as comunidades
escolares em comunidades interpretativas, onde a leitura se enraiza no quotidiano e no território.
Dirigindo-se aos leitores, esta introdução levanta questões e não apresenta respostas. Que
delas nasça a inquietação, que a inquietação agite os dedos; que estes abram as páginas que
se seguem.
João Teixeira Lopes é sociólogo. Professor Associado com Agregação do curso de Sociologia da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto e coordenador do Instituto de Sociologia, unidade de I&D da Fundação de Ciência e Tecnologia.
Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universida de Lisboa e Doutorado em Sociologia da
Cultura e da Educação com a Dissertação – A Cidade e a Cultura - Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto,
Edições Afrontamento, 2000).
Membro efectivo do Observatório das Actividades Culturais entre 1996 e 1998 e seu actual colaborador. Foi programador
de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, assessor do Presidente da Câmara de Matosinhos para os assuntos socioculturais
(2000-01), fez parte de equipas de estudo e avaliador de projectos.
Escreveu, entre 1996 e 2007, dez livros, quatro dos quais em co-autoria, e co-organizou outros dois.
007
CAPÍTULO I
A COMPETÊNCIA
LEITORA
009
1. LEITURA E LEITORES01
Maria José Vitorino
Resumo
Reflexão sobre a complexidade das práticas de leitura na sua intrínseca pluralidade. Modos
de relação com a leitura por parte dos leitores/receptores. Estratégias de promoção da leitura.
O papel do silêncio.
Palavras-chave
Leituras, iletrismo, silêncio.
Leopoldo tomou fôlego e então, de uma só vez, disse:
- Mas porque é que é preciso ler?
Àquela pergunta seguiu-se um instante de silêncio. (…)
010
- Porque quem lê conhece as coisas – respondeu o pai, bufando – quem lê conhece as coisas.
E quem as conhece, domina-as.
- Porque ler é importante – prosseguiu a mãe.
Leopoldo tocou com o garfo num pastel.
- O Papa também é importante e nem toda a gente é Papa. (…)
- Ler torna-nos diferentes – acrescentou o pai (…) – , sem livros não se pode ser feliz.
Susana Tammaro02
Filho de pai e mãe leitores devotados, crescendo numa casa recheada de livros, Leopoldo não
gostava de ler. Aos oito anos, o diagnóstico de um especialista (psicólogo) não vacilara: televisão,
vídeo, jogos por demais causavam este “mal dos tempos modernos”. A terapêutica foi radical
– leitura obrigatória, corte nas “distracções” inimigas da leitura.
Nem a terapêutica nem a hermenêutica contida neste diálogo à mesa resultaram, porém,
como esperado pelos adultos que tinham crescido numa época com menos media e de
indagações porventura menos exigentes. Duvidando da relação entre leitura e felicidade,
Leopoldo fugiu de casa. Perdeu-se no mesmo parágrafo, claro, e encontrou um amigo novo,
que por acaso era um velho, um antigo marinheiro que tinha cegado antes de poder acabar
um livro fascinante. Ele próprio fora um fugitivo. Contou logo a sua história, recheada de
aventuras e perigos. Já eram cúmplices. O novo amigo encantou depois Leopoldo com a
primeira parte do livro que encetara antes de cegar e partiram a procurá-lo, para a partilhar
até ao FIM, que é a palavra mais saborosa das histórias de aventuras.
Foram para um cantinho longe dos olhares indiscretos e procuraram a página em que a
história tinha sido interrompida.
- Está aqui! – exclamou Leopoldo, passando os gordos títulos dos capítulos e, depois de ter
aberto bem o livro, tossiu para clarificar a voz.
Seguiu um instante de silêncio. (…) Por mais que, daquela vez, tivesse vontade de ler, estava-lhe a acontecer uma coisa que lhe acontecia cada vez que abria um livro: todas as letras
negras se estavam a transformar num aglomerado de formigas bêbedas que, sem nenhuma
regra ou ordem, saltavam de um lado para o outro da folha. (..)03
O menino bem protestava que sabia ler, até já andava na terceira classe, mas o movimento de
aproximar e afastar o livro foi elucidativo: Leopoldo precisava de óculos! Regresso a casa,
reencontro emocionado e solução do problema. Leopoldo contou, enfim, o desfecho da história
ao seu amigo, do alto das suas novas lentes, “tão espessas como fundos de garrafa.” (p. 37).
Lendo e lendo, foi descobrindo que as aventuras do velho marinheiro eram muito parecidas
com a de muitos livros, literatura marítima e arriscada. Até que, rindo, aquele assumiu que
mentira, e que apenas conhecera o mar pelos livros, que lhe recheavam a memória de cheiros
e cores “como se na verdade(…) tivesse dado (…) dezoito vezes a volta ao mundo.” (p. 38)
Esta pequena história apresenta de forma sucinta alguns indícios sobre o conceito de leitura
e de leitor que gostaria de destacar.
Como escreve um autor literário de um remoto país europeu, a Lituânia:
Os escritores que afirmam que escrevem sem pensar no leitor e que se consideram os
melhores destinatários dos seus próprios livros são muito espertos, para não dizer que são
mentirosos. Os leitores existem.04
Tal como Olson05 nos demonstra, ler e escrever não são processos puramente mecânicos, não
se encerrando em técnicas e destrezas de descodificação das palavras. Mais do que literais
instrumentos ópticos, os óculos da narrativa são uma metáfora que abre o sentido da história
encerrada aos olhos de Leopoldo, e que nenhuma leitura “obrigatória” imposta terapeuticamente
pelos pais fizera descobrir, nem sequer detectar a falta.
É evidente o carácter visual da escrita que, no entanto, só se torna totalmente (?) visível por
obra do leitor. Não é menos claro que os óculos correspondem a uma alteração nas capacidades
cognitivas do leitor, que se move a ler por si mesmo, pela consciência de um interesse ou de
uma necessidade, ou se preferirmos, de um gosto, no velho sentido de motivação que promove
a aplicação do sujeito a uma actividade ou tarefa de forma persistente e repetida. Sair de casa
para voltar a casa, crescer, recusar para rever e transformar o seu mundo, o caminho de
Leopoldo é de tantas histórias, escritas ou não, e por isso a ele aderimos tão facilmente.
Recorde-se Manguel:
Ler não é, pois, um processo automático de captar um texto, semelhante à forma como o
papel fotossensitivo capta a luz, mas um processo de reconstrução confuso, labiríntico,
comum e no entanto pessoal.06
011
Ler – que não será independente de escutar – reveste-se de complexidade similar à do
pensamento e dos processos de construção do conhecimento07, tal como o intuía o pai do herói
Leopoldo.
012
A ficção de Tammaro inverte o percurso da transcrição tradicionalmente esperada08 – o texto
escrito, em vez de ser encarado como transcrição de um discurso oral, é suporte de um
enunciado dito depois da leitura, quer pelo velho, quer pelo menino, com uma intenção precisa
e um destinatário bem identificado, sendo pois o leitor quem lhe atribui parte do sentido.
Longe vão os tempos em que considerava o escrito como reprodução do dito, e a leitura a
decifração dos sinais escritos. Falamos hoje cada vez mais de leituras, no plural, actos de
leitura irredutíveis entre si. José Afonso Furtado refere, antes de citar Frédéric Barbier, Roger
Chartier, Guglielmo Cavallo, Roland Barthes e Antoine Compagnon:
E se em alguma coisa parece existir um mínimo de consenso é precisamente nesse carácter
plural da leitura. (..) mais do que procurar um método, os autores relembram que, quer do
ponto de vista histórico quer social, “ler estava e continua a estar envolvido num conjunto
de práticas codificadas.” Práticas que, apesar de não esgotarem o fenómeno, têm de ser
analisadas.09
Ler corresponde, assim, para este autor, a seis realidades distintas: (1) uma técnica de
descodificação, que pressupõe uma aprendizagem de destrezas na sua utilização, que vem
variando ao longo dos tempos; (2) uma prática social, interveniente na discriminação social, “
instrumento privilegiado do poder”10, assim surgindo indissociável o seu largamento de
movimentos de resistência política e social; (3) uma forma de gestualidade, perceptível no
corpo do leitor; (4) uma forma de sabedoria, uma via para o conhecimento; (5) um método, um
modelo de organização mental e de desenvolvimento da inteligência crítica; (6) uma actividade
voluntária, dependendo de cada sujeito leitor e da sua vontade.
Em relatos autobiográficos de leitores, alarga-se a tipologia desta diversidade de práticas de
leitura. No caso dos testemunhos analisados no presente trabalho, as coincidências e diferenças
foram organizadas em subcategorias da categoria Leitura.
Um ponto comum existe que será útil destacar: a ligação repetidamente enunciada entre
leitura (realizada efectivamente, ou apenas desejada, mesmo que com dificuldade no exercício
da sua prática) e silêncio11. Voltemos a Tammaro – a autora, europeia, italiana, ainda muito
jovem, na era da Internet, conhece bem as práticas codificadas que encerra o acto de ler, por
dentro - como leitora - e por fora - como observadora de quem lê. Ela regista essa ocorrência
inevitável do silêncio, que anuncia a leitura como anuncia (no primeiro excerto) a pausa para
reflectir perante um problema. Ou seja, que é prenúncio de exercício de pensamento,
necessariamente solitário e voluntário.
Não se dissocia o conceito de leitura do de palavra, e de palavra escrita, e não é possível a
prática da leitura sem a gestão do silêncio.
Carecemos de silêncio para a interpretação do código escrito e para a de outros códigos
inscritos em suporte papel – como a música escrita – ou não papel, como os actuais suportes
digitais.
Nos textos electrónicos, a tecnologia do suporte utilizado facilita a simultaneidade da produção
de escrita pelo leitor, literalmente em cima do texto lido, ou em camadas visualmente
diferenciáveis – frames, hipertexto, outras intervenções gráficas ou multimedia.
Desde há muito considerada como porta para o conhecimento, aquela que se abre sobre cada
leitor, com a sua própria voz, a leitura é também uma porta que o leitor fecha sobre si, sobre
a sua intimidade, ambiente de cultivo da reflexão, do pensamento sobre e a partir das palavras,
sobre o mundo, sobre si, sobre os próprios processo cognitivos.
Tal como muitos autores no séc. XX apontam, cada leitor lê-se, e cria, também ele, o texto,
pois selecciona e pretere significados que podem aproximar-se mais ou menos das intenções
do autor12. Por isso, comparar leituras entre leitores e, ou, com autores é um exercício que
nunca terá conclusão.
Promover a leitura, no sentido pleno do tema, passa por propiciar o domínio de técnicas de
identificação de literariedade, mas implica a aprendizagem da criação e da gestão do silêncio
adequado à leitura, e, ainda mais, a alimentação de mecanismos estimuladores de criatividade
e de crítica.
Combater o iletrismo, alargando o universo dos leitores em quantidade e qualidade, é indissociável
da estima pelas diferenças, inerentes ao exercício criativo.
Alberto Manguel13 destaca que a nossa sociedade actual é inimiga da leitura, porque privilegia
013
o valor monetário e impõe formas preferidas pela maioria. Para ele, as nossas sociedades,
dominadas pela imagem, banal, fortuita e intensiva nos media que tudo englobam e vão
globalizando, limitam cada vez mais o espaço de desenvolvimento da criatividade e as práticas
014
eminentemente reflexivas, de produção de significados por cada indivíduo, leitor e autor.
Pessimista, prevê um campo estreito para a leitura e para o pensamento, que, indissociável
daquela, requer precisamente a crítica, a reflexão e o espaço para as minorias, as diferenças.
Manguel é, como o pai do menino da história, leitor assumido, defensor do livre gosto de ler,
neste futuro pós-Babel, pós-Gutenberg, à velocidade do trânsito da informação que explode na
web. Para Manguel, não são possíveis a felicidade sem diferenças, a criatividade sem reflexão,
o conhecimento sem palavras, a inteligência sem linguagem, a liberdade sem escrita e leitura.
Todavia, é importante estudar as práticas de leitura, sempre históricas, sempre passadas, e
as suas representações em fontes escritas, orais, verbais e não verbais?
Em contraponto ao cepticismo de Manguel, parece adequado referir o alerta do etnólogo
Joaquim Pais de Brito, a partir da ideia de património:
“E hoje os diálogos que se procuram são novas expressões da dificuldade – e do fascínio –
da construção do presente. E da maneira como nós, incluídos dentro da coisa que é o património
e a identidade, podemos inventar novas vertentes de aproximação onde também o outro
enfrenta pelo lado lúdico e criativo as dificuldades desse seu presente que afinal é o de todos
nós no mundo global em que nos situamos. Essa hegemonia da identidade prende-se também
com a indiferenciação que é devolvida ao passado. Fala-se deste como se fosse um continuum
uniforme. As sociedades inventaram processos de fazer com que o seu presente seja a
manifestação desse continuum. Nós fazemo-lo, por exemplo, quando enterramos os nossos
mortos: eles tornam-se melhores pessoas, esquecemos todos os atritos, porque queremos
devolver-nos a serenidade e o equilíbrio, e assim fazer com que tudo o que possa ter sido
um presente de tensão e dor seja transmutado num passado de harmonia e paz. Os museus
também o fazem. Enfim, podemos referir ainda a hegemonia de uma ideia de património,
como lugar estável capaz de suscitar unanimismos e de referência simultânea para
perspectivas que, quanto a muitos outros aspectos da sociedade, se confrontam.14
Reflectindo sobre a Educação e a Leitura, partilhando pensamento e experiências, estaremos
a construir conhecimento sobre o nosso tempo comum, memória e antecipação de outras
comunidades leitoras.
Maria José Vitorino nasceu em Vila Franca de Xira, 1955. Professora (Escola Pública, 2º Ciclo E. Básico) desde 1976.
Bibliotecária (profissão liberal) desde 1990. Trabalha em Bibliotecas Escolares desde 1980, dedicada a tempo inteiro à
Rede de Bibliotecas Escolares desde 1998, com excepção do ano de 2005-2006. Integra a equipa de Coordenação do
THEKA, Projecto Gulbenkian de Formação de Professores e Desenvolvimento de Bibliotecas Escolares.
Licenciada em História (Lisboa, 1977). Especialização em Ciências Documentais – BAD – Bibliotecas e Documentação
(Coimbra, 1990). Aguarda defesa de dissertação de Mestrado em Ciências da Educação – Educação e Leitura (Lisboa,
2007).
Actividade voluntária actual: BAD Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas (desde 1990),
IASL International Association of School Librarianship, desde 1998, ENSIL European Network for School Libraries and
Information Literacy desde 2003, Associação Promotora do Museu do Neorealismo, desde 2001.
[email protected]
http://lerdoler.blogspot.com
015
2. FILTROS NA INTERNET E CONTEÚDOS DISPONÍVEIS NAS BIBLIOTECAS
PÚBLICAS – ENTRE A ABERTURA E A CENSURA
Paula Sequeiros
016
Resumo
A instalação de filtros em bibliotecas públicas portuguesas levanta questões éticas e sociais
no conflito com a liberdade de acesso à expressão e na forma como a população atingida pode
ser privada não só da exposição a conteúdos de sua escolha como da oportunidade de decisão
nesse processo; faz-se uma revisão do tema tal como abordado noutros países e propõe-se
a abertura de debate sobre o mesmo assim como algumas medidas para lidar com a situação
presente nas bibliotecas.
Palavras-chave
Filtros para a Internet; bibliotecas públicas; Portugal; ética; literacia informacional
1. Leitura pública
A leitura pública mediada pela Internet começa a ser filtrada por aplicações informáticas
instaladas com a pretensão de controlar acessos a determinados conteúdos. Numa rede pública
de bibliotecas ainda em expansão e afirmação, como encarar o constrangimento no acesso a
um meio aparentemente incontrolado e incontrolável e que goza da aura da expressão livre?
Conflitos entre liberdade de acesso à expressão, do ponto de vista da ética profissional e dos
direitos dos leitores, por um lado, e preceitos de ordem moral, por outro, estão a ser criados.
O debate sobre a temática, em curso noutros países, deve iniciar-se em Portugal para
fundamentar decisões e práticas. Para tanto se propõe este contributo.
da estante distante…
Vale a pena recordar começar por recordar o que eram as bibliotecas públicas em Portugal há
alguns anos atrás: em «edifícios velhos, acanhados e desconfortáveis», nas palavras do Manifesto
A leitura pública em Portugal, de 198315 a estantaria simbólica e materialmente interpunha o
vidro ou a rede de arame entre o leitor/a e o livro. Nesse documento lançado por um grupo de
bibliotecários, àquela descrição somava-se a desactualização das colecções, a ausência de
investimento sério no seu desenvolvimento e o confinamento da animação e actividades «sempre
demasiado elitistas ou eruditas, distantes dos reais interesses da população» .
… à estante aberta…
Segundo Calixto, produz-se um grande salto qualitativo com o Programa Nacional de Bibliotecas
Públicas lançado em 1987, sendo inauguradas no Continente, entre 1988 e 1999, 80 bibliotecas.
O número de utilizadores quintuplica, entre 1991 e 1998, passando a mais de 3 milhões. Os
empréstimos triplicam, entre 1991 a 1997, no nome de 207 em cada mil habitantes. Na sua
análise, o envolvimento do Estado nesse programa de modernização dá lugar ao «acentuar
dos […] papéis [das bibliotecas públicas] relacionados com a educação, com a cultura e com
a informação. E a biblioteca assume-se também como um importante instrumento na luta
pela inclusão social. O desenvolvimento destes papéis significa uma oportunidade única para
a biblioteca pública afirmar a sua importância e aumentar a sua visibilidade e influência a
nível social e político, fundamentais para enfrentar os desafios que se prefiguram no horizonte
próximo». Uma reportagem jornalística, editada no mesmo ano do trabalho de Calixto e que
ele cita, dá então uma outra visão, entusiasmada: «São bibliotecas de portas abertas, estas
da nova geração.[…] Hoje o self-service das obras é ponto assente. Aliás tudo ali é para ser
mexido e usufruído. Tudo ali está organizadamente desarrumado. Tudo ali está vivo16.
Quem são estes leitores e leitoras? Investigação recente fornece interessantes instrumentos
de leitura dos actuais leitoras e leitores das bibliotecas públicas através de estudos de caso
representativos desta realidade : sabemos que nas bibliotecas públicas predominam as crianças,
adolescentes e jovens adultos, com o grupo dos adolescentes a evidenciar um frequente e
expressivo peso, grupo este constituído maioritariamente por estudantes; que está mais
representado o género feminino; que as práticas de leitura são diferenciadas socialmente
também por género, tanto no que toca a temas e géneros literários, como a tipos de publicação
(livros, revistas, jornais) o que se explicará pelos diferenciadores mecanismos de socialização
de género; que a origem sociocultural é diversa, predominando as diversas pequenas burguesias
nas origens familiares de classe (p. 134); com realce para o facto de que «apesar duma
associação positiva entre o gosto pela leitura, a intensidade da prática e o capital escolar»
da família (p. 51) a esmagadora maioria dos leitores ultrapassou o 3º ciclo do ensino básico
tendo pais cuja escolaridade própria se quedou, maioritariamente, por aí (p. 19).
Contudo, classe social de pertença ou origem, de par com o diverso capital escolar dos pais,
não chegam para explicar as disposições e motivações ou representações que os próprios
fazem da leitura, todas elas muito diversificadas mostrando realidades locais heterogéneas.
Investigação sobre os hábitos de leitura de Freitas, Casanova & Alves , mostrou que, entre
portugueses não analfabetos e de 15 ou mais anos, predominavam as representações da leitura
associadas ao agrado (52%) e à aprendizagem (50%), seguindo-se as associadas à utilidade
017
(39%), comunicação (34%), e necessidade (28%). Já a leitura nas bibliotecas, segundo leitores
inquiridos em diversas cidades, construía-se mais em representações associadas à
instrumentalidade, à leitura para estudo, por necessidade, por obrigação. Sinalizado foi o serem
018
as bibliotecas públicas «uma retaguarda da instituição escolar», proporcionando ambiente e
recursos documentais para o estudo, porém «sem que existam nítidos efeitos de arrastamento
para o investimento na intensificação e diversificação das práticas de leitura» (Lopes &
Antunes, 2000, p.51).
E acontece que estes eram espaços que estavam entretanto a ser transformados, por uma
outra mudança dos anos mais recentes: a ligação à Internet, de acesso gratuito, começava a
generalizar-se.
…à estante (também) virtual
Analisam-se então dois casos particulares abordando particularmente a relação com as novas
tecnologias: as bibliotecas de Leiria e Oeiras. No caso de Oeiras, e tendo em conta que 80%
das respostas reportam a leitores de 25 anos ou menos, as representações da leitura fazem-se sobretudo na associação a prazer e distracção (86.5%), instrumentalidade (68,7%) e obrigação
(12,7%). Quanto aos motivos dessa leitura distribuem-se por: aumento da cultura geral (63,6%),
gosto (62,4%), provas escolares/profissionais (55,2%), aumentar conhecimentos específicos
(40%), diversão/distracção (23,6%) e evasão (10%).
Em investigação conduzida em Santa Maria da Feira concluiu-se que a utilização da Internet
nessa biblioteca, por parte de adolescentes, se orientava sobretudo para fins escolares, tendo
no entanto as finalidades da comunicação por correio electrónico e chat, com amigos e família
fundamentalmente, e acesso às notícias, os lugares seguintes nas preferências. As motivações
para o uso na Biblioteca foram explicadas e ordenadas pelos próprios, em primeiro lugar, pelo
bom ambiente e tranquilidade, disponibilidade de vários computadores e proximidade de casa
ou da escola; em segundo, pela coexistência de outros recursos, pela gratuitidade, pelo apoio
do pessoal e por estarem com amigos, acompanhados, em alternativa a estarem sozinhos em
casa; em terceiro, porque, ali «se estava bem», a conviver com amigos e outras pessoas e por
haver computadores disponíveis. Uma nota particular para o facto de que a grande maioria
navegava habitualmente acompanhado por amigos e de que a maioria também fazia um uso
delegado da Net, procurando informação para terceiros.
Este retrato vai de encontro a outras investigações análogas que evidenciaram que a leitura,
e já agora a escrita, na Internet não podem ser lidas simplesmente como actividades solitárias,
mas terem pelo contrário uma dimensão de sociabilidade potenciada pelo meio e que necessita
de ser apreciada através de outras lentes de observação . Para além do efeito de extensão do
referido uso delegado, quase todos os que usavam a Net eram leitores cumulativos, ou seja,
usavam outros recursos documentais. O que também se verificou em investigações noutros
países e que nos leva a afastar a visão da Internet associada a usos alienantes, fúteis ou sem
interesse para o bem-estar, desenvolvimento pessoal e social e a vida em sociedade. Uma nota
final para sublinhar que o acesso à Internet para um grande número desses leitores se fazer
de forma intensiva ou até exclusiva nesse local ou ter aí um ponto preferido de acesso pela
convivialidade e pela coexistência dos recursos tradicionais.
Tudo isto na tentativa de fazer um esboço de quem serão os utilizadores da Internet nas
bibliotecas públicas. Leitores que agora têm a possibilidade de franquear os seus muros e sair
para outras leituras, mediadas pela nova tecnologia. Para passar à questão de perceber em
que condições está esse acesso a ser permitido. Ou seja, poder-se-á dizer da estante virtual
que tudo ali é para ser mexido e usufruído?
2. Bibliotecas como locais de acesso público e universal e liberdade de acesso à expressão
De acordo com o Manifesto da IFLA (International Federation of Library Associations) qualquer
leitor deve poder esperar duma biblioteca pública que ela seja uma instituição de acesso
público, universal, vocacionada para a fruição cultural, o lazer, a aprendizagem, a convivialidade.
Nesse documento de orientação ética já se deixava claro que «as colecções e os serviços
devem ser isentos de qualquer forma de censura ideológica, política ou religiosa e de pressões
comerciais». Em posterior documento de idêntico carácter, o mesmo organismo internacional
postulava que, citando o artº 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos «todos têm
direito à liberdade de opinião e de expressão; este direito inclui a liberdade de ter opiniões
sem interferência e de procurar, receber e transmitir informação e ideias através de qualquer
meio de comunicação e independentemente das fronteiras». Pelo que defende que «as
bibliotecas e os serviços de informação devem apoiar o direito dos utilizadores a procurar
informação de sua escolha». Defende também que «as bibliotecas e os serviços de informação
têm a responsabilidade de facilitar e promover o acesso público a informação e comunicação
de qualidade. Os utilizadores devem ser assistidos com a perícia necessária e o ambiente
adequado ao uso das fontes de informação e dos serviços escolhidos com liberdade e confiança.
Para além dos muitos recursos valiosos disponíveis na Internet, alguns são incorrectos,
enganadores e podem ser ofensivos. Os bibliotecários devem providenciar informação e
019
recursos para que os utilizadores aprendam a usar a Internet e a informação electrónica
eficaz e eficientemente. Devem promover proactivamente e facilitar o acesso responsável
a informação de qualidade em rede a todos os utilizadores, incluindo crianças e jovens [realce
020
meu]».
Efectivamente a defesa da liberdade de acesso à informação, da necessidade de informar e
formar para o uso responsável, da defesa da confidencialidade dos usos, como objectivos éticos
profissionais, tem-se revelado de trabalhosa e de complexa concretização neste momento
histórico particular em que essas liberdades fundamentais são postas em causa em tantas
outras instâncias. Também aqui a velha bagagem é transportada através da nova fronteira
electrónica17.
É legítimo, eticamente admissível colocar filtros no acesso à Internet em bibliotecas públicas?
Essa é a questão…
Nas bibliotecas sempre se assistiu a alguma forma de filtragem, de controle e até, digamos
claramente, de censura nos conteúdos oferecidos à leitura. Começando pelas questões de
gosto de quem propõe e adquire, gosto socialmente conformado, como sabemos desde
Bourdieu(1979).
O controle que está embebido sobretudo em processos de aquisição, não exposto publicamente,
ocorre com mais frequência; a censura será menos frequente actualmente no nosso país, mas
quando ocorre é naturalmente silenciada.
Como aquele caso duma Biblioteca que teve largos anos um Gabinete de Leitura Feminina,
ainda durante a ditadura, assegurando que, pela criação dum espaço exclusivo, se obviava ao
acesso a leituras impróprias para senhoras. Ou duma outra em que, edição de jornal que
publique críticas ao presidente da autarquia, é edição sumida, antes mesmo de ser posta à
disposição, por quem a escrutinou antes de chegar à sala de leitura.
E tantos outros casos que as e os bibliotecários e leitores frequentes bem conheceram e
conhecem.
da tecnologia à propiciação da escolha...
A questão nova que se coloca é o direito à liberdade dos leitores em aceder a conteúdos que
efectivamente possam ser «de sua escolha», tal como advogam IFLA & FAIFE, liberdade essa
que a tecnologia de navegação na Internet parece propiciar. As expectativas dos utilizadores
são de livre acesso, a noção de Internet está, ainda que duma forma que se possa considerar
simplista, associada à propiciação duma liberdade de navegação sem barreiras.
Mas o que são então os filtros? São programas informáticos que inspeccionam conteúdos para
impedir o acesso a páginas Web, Sítios completos e mensagens de correio electrónico; actuam
com base em listas de palavras e frases consideradas inapropriadas pelos seus produtores
ou por quem os instala; podem bloquear hosts, Sítios completos ou partes de Sítios, assim
com protocolos (FTP, Usenet). Por vezes filtram também imagens com base na comparação
de padrões: por exemplo, podem impedir o acesso a imagens com probabilidade de representar
nudez. A sua instalação ao nível dum servidor pode filtrar de igual forma todos os computadores,
e com eles todas as leituras, a ele ligados . Como a detecção dessas palavras e imagens não
tem em conta o contexto, significado ou valor podem bloquear, e fazem-no comprovadamente,
o acesso a informação sobre saúde (cancro da mama; educação sobre, tratamento contra a
droga), sexualidade em geral e orientação sexual em particular (gay ou lésbica estão
normalmente nessas listas negras), artes plásticas (nudez, mas podendo confundir dunas de
areia com grandes extensões de pele branca), anti-racismo e anti-xenofobia, política (Declaração
da Independência dos EUA), etc., até ao erro grosseiro com nomes próprios por conterem
certos caracteres (Middlesex, Mobby Dick) ou por razões incertas (as peças completas de
Shakespeare). O exaustivo e detalhado relatório produzido por um centro académico de defesa
da liberdade de expressão é altamente elucidativo a este propósito, compilando argumentos
e testes aos principais programas à venda nos EUA. A ineficácia e desadequação dos filtros,
enfatizada correntemente, desqualifica-os na minha opinião como solução.
… à ética embebida no código técnico
Uma segunda consideração para o facto de os filtros ocultarem aspectos polémicos: o da
incorporação de padrões éticos na parametrização por defeito ou local do software, com uma
opacidade naturalizada ou legitimada tecnologicamente, padrões que deveriam ser expostos
à crítica da ética profissional de quem os adquire e os administra, por um lado; por outro o de
estarem os filtros não só a decidir pelos leitores, violando direitos, como a obstar, nessa
mediação, a que se confrontem com a fundamentação das regras que coarctam as suas
práticas, regras essas que deveriam ser assumidas e divulgadas por quem as concretiza. Ou
seja a ética embebida no código técnico, no processo da instrumentalização primária, o da
parametrização com critérios sobre que é inapropriado, não é tão pouco exposta a quem se
serve da tecnologia em processos de instrumentalização secundária, os da sua concretização
nos usos como leitor na biblioteca.
021
A realidade é que neste momento, após a disponibilização da Internet nos espaços abertos de
acesso público das bibliotecas portuguesas, é voz corrente entre os profissionais que grande
parte das bibliotecas os instalou já. Em algumas optou-se por controle por software do acesso
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a conteúdos virtuais; noutras contratualiza-se esse acesso com os leitores, pontual e
casuisticamente, caso acedam a conteúdos que bibliotecários e técnicos entendam ser
impróprios, geralmente com a perspectiva de inibição de acesso por reincidência; noutras
ainda optou-se por regulamentar o que se entende ser os usos não permitidos com as respectivas
sanções.
definindo uso ofensivo, impróprio…
Durante a revisão de literatura sobre o tema, uma outra consideração que entendi ser necessário
fazer prendeu-se com a descodificação de uso impróprio, ofensivo, indevido, ocorrendo
argumentar que essa seria precisamente a primeira coisa a fazer. Em muita dessa literatura
os termos quase sempre e apenas significavam acesso a pornografia, o que quer que se entenda
pelo termo, como realçam precisamente Louise Cooke e Marjorie Heins, Christina Cho & Ariel
Feldman. Raramente se enfocam outros usos como os conotados com sexismo, racismo e
xenofobia, violência e abuso sobre pessoas, embora possam ser referidos no rol de preocupações
subjacentes aos textos, nos usos a restringir as atenções são muito focadas em temas associados
ao sexo, parecendo que aqui está a grande polémica, perdendo-se de vista outros tópicos.
Muitos desses trabalhos referem a forma como os meios de comunicação têm vindo a empolar
o problema, mas não a desmontam, parecendo pelo contrário dar acolhimento a noções de
sentido comum ao deixá-las inquestionadas. O de Willson & Oulton refere o receio das
autoridades locais do Reino Unido de que houvesse acesso de crianças à pornografia, sem
contudo desmontar os fundamentos de tal receio, tal como Eaton et. al. para o caso de Rhode
Island, EUA (2001).
… e categorizando usos
Mais curioso é ainda notar que, num dos poucos estudos empíricos a que consegui aceder, a
entrada em Sítios sobre sexo, hard e soft, era mínimo, com 2,8% do total de acessos. Note-se que este estudo canadiano não categoriza esse uso como pornografia, tendo tido a
preocupação de o quantificar. Pors refere como a questão tem sido abordada na Dinamarca
e que o uso de directrizes para o uso da Internet foi a resposta a situações de conflito entre
pessoal e leitores, para também referir que há poucos problemas de «mau uso»18 nessas
bibliotecas. Mais uma vez recorro a uma realidade empírica conhecida para referir que em
Santa Maria da Feira a quase totalidade dos adolescentes fez questão de afirmar não usar a
Net para aceder a pornografia, mesmo antes de serem questionados especificamente sobre
esse uso, denotando a incorporação do discurso negativo de senso comum sobre a Internet.
O pessoal da biblioteca declarou que esse uso não era habitual nesse grupo etário e que, tendo
sido feita a opção de não instalar filtros, acompanhavam e controlavam pessoalmente a
navegação, o que por si o desencorajava.
A questão a que é preciso responder aqui é quem são as pessoas que vão/estão a categorizar
o que é ofensivo e impróprio numa perspectiva, não de uso privado, mas no contexto dum
serviço público cultural, formativo e informativo?
enquadramento legal e ausência de consenso ético
Nos EUA está em vigor legislação que condiciona o financiamento das bibliotecas públicas ao
cumprimento do tão contestado Children’s Internet Protection Act (CIPA). Casos de conflito
reportados na imprensa, comuns a crer na abundância de notícias, são-no como reacção a
objecções de grupos de pressão ou de tutelas locais, que por vezes pretendem ir ainda mais
longe do que a lei na sua actividade censória. A título quase anedótico veja-se a disputa em
torno de livros banidos em algumas bibliotecas, como os do Harry Potter, por mencionarem
a feitiçaria; ou a muito recente dum conto infantil e premiado best-seller banido por conter a
palavra «escroto»19.
A American Library Association, a American Civil Liberties Union e a Electronic Frontier
Foundation têm, entre outros, vindo a tomar posição na defesa da liberdade de acesso à
expressão, contra o actual quadro legal e contra esta vaga censória e de moralismo duvidoso,
num processo longo de avanços e recuos que está longe de estar concluído. A ALA propõe
aliás a colocação de filtros de privacidade20 nos monitores para assegurar em simultâneo a
privacidade de quem consulta e a não exposição de terceiros a conteúdos não escolhidos por
si, conciliando assim possíveis diferenças de ética pessoal. Posição análoga têm defendido
organizações profissionais canadianas que Cavanagh refere e a que dá o seu acordo. Esta
autora enfatiza, narrando um caso de conflito por que passou e que subiu aos tribunais, a
necessidade de clarificar a questão entre os profissionais, sob pena de serem apanhados
desprevenidos e impreparados para responder a dilemas éticos.
Em vários casos refere-se a dificuldade sentida pelos bibliotecários que defendem a prioridade
da liberdade de acesso à expressão, têm na sua concretização por várias razões: por falta de
unanimidade entre profissionais, pelos referidos conflitos com alguns membros das comunidades,
pela decisão ser tomada pelos responsáveis pelos serviços informáticos para todos os serviços
na sua dependência, não pela biblioteca; pelo possível conflito entre códigos de ética e a moral
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pessoal de alguns bibliotecários. Por isso, enveredam frequentemente, no quadro legal dos
EUA, por situações de compromisso que resultam na aplicação o menos restritiva possível da
legislação: filtragem por defeito a poder ser desinibida facilmente por iniciativa do leitor;
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bloqueamento em salas para crianças possível de desinibir a pedido dos responsáveis educativos;
disponibilização de alguns computadores sem filtros em locais de menos circulação. Situações
que tão pouco podem obviar a que grupos de defesa da liberdade de expressão avancem com
queixas judiciais, já que estes insistem no carácter fundamental dos direitos de liberdade
intelectual e de expressão como princípios éticos gerais superiores aos da não exposição a
conteúdos sentidos como ofensivos. Heins vai mais longe e questiona o uso das crianças como
pretexto e as intenções e consequências desse tipo de superprotecção, traçando a história do
que é considerado «prejudicial para as crianças».
Em Portugal não existe enquadramento legal específico para esta questão. Existem por outro
lado orientações Comunitárias que Louise Cooke resume sublinhando as tendências
contraditórias que detectou e que reflectem os interesses das várias partes em jogo, combinando
aquilo que designa por «manipulação das normas sociais» com a regulação através da
arquitectura dos sistemas, ou seja, das «soluções técnicas»; enfatiza a actual tendência para
confiar menos nessas soluções técnicas passando a favorecer acções com reflexo nas normas
sociais como a educação, a consciencialização e as práticas auto-reguladoras (códigos de
prática e acordos sectoriais dos agentes económicos, em particular). O que se deverá em sua
opinião, parcialmente, à dificuldade em «legislar a nível transnacional sobre uma questão
que depende de valores culturais e normas sociais variáveis entre diferentes comunidades»,
à incapacidade das «soluções técnicas terem uma abordagem com sensibilidade ao contexto
dos conteúdos que seja aceitável de forma generalizada pelos clientes». Já a aparente
tendência das instâncias comunitárias para uma regulação da produção de conteúdos através
da co-regulação arrisca-se, na sua opinião, a «criar um défice democrático»; uma vez que
pela co-regulação a Comunidade confia «o alcançar dos objectivos definidos» pelo legislador
a determinadas partes no terreno, como parceiros sociais, organizações não-governamentais
ou associações, ou seja, «o cumprimento da lei» tende a ser progressivamente entregue a
«entidades privadas» (p. 18).
formar ou censurar
Na sequência duma apurada revisão bibliográfica, Cooke considera que, para além da liberdade
de expressão e da recepção dessa expressão, a liberdade intelectual passa também pela
abertura a visões outras que não a nossa, no que as bibliotecas têm um importante papel
formativo. Daí que questione se quereremos «um mundo perfeitamente filtrado». Para Svava H.
Friogeirsdottirn, conhecer os conteúdos procurados por adolescentes e evitar informação
eventualmente lesiva é reconfortante para pais, directores de escolas e bibliotecários. Contudo
os filtros não ajudam os adolescentes a assumir responsabilidade em ordem à adultez nem
a «fazer juízos críticos independentes, a dizer ‘não’ a avanços sexuais não desejados, a viver
vicariamente através de histórias em vez de viver perigosamente através da experiência
própria». Irina Trushina alerta para o facto dos bibliotecários poderem, sem se dar conta,
estar a converter-se em censores.
Cooke argumenta ainda que as bibliotecas devem, alternativamente, encaminhar os recursos
alocáveis a filtros para a formação de leitores, tal como Heins, Cho & Feldman (2006). Propõe
ainda a redacção de directrizes de uso, na esteira das sugestões e casos concretos referidos
por Sturges (2002).
Às promoções de instalação de computadores e redes deveria associar-se (senão tomar a
primazia num momento em que já vão existindo aqueles) a política de promoção da literacia
informacional – também designada digital (Bawden, 2001) – que crie competências e
sensibilidades desde a leitura/escrita até ao pensamento crítico de análise, questionamento
e interpretação da informação contida em documentos, passando pela identificação e validação
das fontes, para a elaboração de juízos informados sobre a mesma e para a capacidade de a
aplicar à vida quotidiana.
3. A biblioteca entre o que é e o que pode ser
A decadência das culturas não tem a ver com o fechamento mas com abertura ao exterior, ao
diverso, ao novo. A modernidade no mundo ocidental assentou nessa mesma abertura, em
novos hibridismos culturais ricos e fecundos. Neste panorama enquadram-se mal tanto as
superioridades morais, como a ignorância das realidades. A claustromania provinciana
dificilmente consegue lidar com a abertura ao globo.
Passar a olhar para os leitores, de qualquer idade, como potenciais prevaricadores não é
edificante.
Por isso defendo um livre-acesso à Internet como vertente fundamental da abertura, inclusive
para as suas dimensões de informação para a cidadania, de actividades de lazer «até porque,
na prática social, em particular nos estilos e vida juvenis, [as dimensões instrumental e
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informativa, lúdica e de convívio] parecem poder desenvolver-se em complementaridade e
em potenciação recíproca» (Ferreira, Mendes & Pereira, 2001, p. 102), potenciando a
diversificação e alargamento do leque e opções da leitura. No que «é um longo caminho a
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percorrer no contexto da mudança de mentalidades, já que subsistem as velhas representações
da biblioteca ainda com espaço algo distante e fechado, dirigido apenas aos estudantes»
(Moura, 2001, p. 104).
O contraste entre a oferta do acesso real e as expectativas associadas à estante virtual reforça
a necessidade da consciência e da intervenção orientadas por princípios da ética da liberdade
de acesso à expressão. O que antes era mais ocultado poderá agora estar mais desvelado e,
por isso mesmo, exposto à apreciação crítica dos leitores e da sociedade em geral, tanto no
que toca a consultas como no que toca às políticas bibliotecárias. E recoloca na ordem do dia
a questão da censura, do paternalismo e outras práticas de controle que podem estar já a ser
aplicadas para os suportes tradicionais, oferecendo uma oportunidade de debate sobre um
tema geralmente ausente das preocupações profissionais e técnicas.
Seria da maior conveniência, em nome da transparência das condições de prestação desse
serviço, que esta questão fosse debatida de forma alargada entre as e os profissionais
portugueses com a intervenção das suas associações.
Paula Sequeiros nasceu no Porto. É professora e formadora na área das Ciências Documentais. Editora para Portugal
do Repositório Aberto disciplinar E-LIS na área da Documentação. É investigadora do Instituto de Sociologia da U.P. Tem
como interesses principais as dimensões sociais do uso da Internet em bibliotecas públicas e os leitores adolescentes,
a formação de utilizadores e o Acesso Aberto a publicações científicas.
027
CAPÍTULO II
A COMPETÊNCIA
COMPETÊNCIADE
MEDIAÇÃO:
DE MEDIAÇÃO:
CONTEXTOS
CONTEXTOSE
AGENTES
E AGENTES
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1. REDE DE BIBLIOTECAS PÚBLICAS
Henrique Barreto Nunes - Director da Biblioteca Pública de Braga - Universidade do Minho.
Resumo
Evolução histórica do conceito de biblioteca pública em Portugal no século XX. Do espírito de
conservação à verdadeira prática de leitura pública. O «Manifesto da Leitura Pública em
Portugal» de 1983 e a emergência da Rede de Bibliotecas Públicas enquanto portas locais de
acesso ao conhecimento e à cidadania.
Palavras-chave
Biblioteca pública; Leitura; Cidadania.
Os índices de analfabetismo mostram o atraso de um país e os seus efeitos alargam-se a todos
os sectores da sociedade durante longos períodos.
030
No início do século XX, 74% da população portuguesa era analfabeta, deficit que a República
procurou erradicar, sem grande êxito. O próprio regime salazarista reconheceu os malefícios
de tal situação, que tentou igualmente combater, já que em 1950 três milhões de portugueses
do continente (40% da população) continuavam sem saber ler nem escrever.
Só a partir de 1960, quando a taxa de analfabetismo rondava os 34%, se pode afirmar que a
escolaridade básica começou a ser quase integralmente cumprida, o que só se irá efectivamente
concretizar após a Revolução de 25 de Abril de 1974, quando ainda havia 25% de analfabetos
em Portugal.
Actualmente ainda existirão cerca de 900 mil portugueses maiores de 15 anos que não sabem
ler nem escrever (menos de 10% da população), embora se reconheça que, devido à sua idade,
tal ainda é uma sequela do anterior regime.
Decorrente dos dados estatísticos apresentados, a situação das bibliotecas públicas no período
anterior à Revolução dos Cravos revelava igualmente uma fraca implantação, não sendo
conhecidos elementos fiáveis sobre a sua utilização ou mesmo sobre os hábitos de leitura dos
portugueses, que certamente revelariam números preocupantes.
O regime fascista não prestou qualquer atenção às bibliotecas desse tipo, que não existiam
na esmagadora maioria dos municípios, silenciando-se o papel que lhes competia cumprir na
sociedade, já que o “Manifesto da Unesco” (versões de 1949 e 1972), que definia as suas missões
e objectivos, era ignorado.
O sistema das bibliotecas portuguesas, objecto de abundante mas desencontrada legislação,
caracterizou-se até ao início da década de oitenta por uma ausência total de planeamento,
pela inexistência de uma estrutura de coordenação global e por uma extrema inadequação dos
recursos financeiros e humanos aos objectivos frustemente delineados.
Nas bibliotecas públicas, o espírito de conservação prevaleceu sempre sobre a noção de serviço
aberto a toda a comunidade, os leitores eram considerados quase corpos estranhos, as
colecções deficientes e raramente actualizadas.
Neste contexto não se deve também esquecer que a polícia política perseguia implacavelmente
escritores, intelectuais e jornalistas e que uma censura feroz impediu a edição e/ou a
comercialização de mais de um milhar de obras.
031
Vivia-se num país controlado, que não respeitava as liberdades fundamentais dos cidadãos e,
acima de tudo, temia a livre circulação das ideias, da informação e do conhecimento.
Apesar desta realidade evidente, não se pode dizer que a questão das bibliotecas tenha sido
uma preocupação prioritária da revolução de Abril.
Conquistada a liberdade e consolidada a democracia, constata-se, porém, que nos primeiros
anos do novo regime a problemática da leitura pública esteve praticamente ausente do
discurso político e dos programas eleitorais dos diferentes partidos, não obstante se terem
criado cerca de 20 novas bibliotecas municipais, embora quase todas seguindo modelos
ultrapassados.
Só em 1983, depois de algumas tímidas tentativas ensaiadas por alguns bibliotecários, surge
a primeira tomada de posição pública de um conjunto de profissionais de diversas proveniências,
traduzida na apresentação de um «Manifesto da Leitura Pública em Portugal», que fez a
radiografia da situação existente.
Considerando urgente “sensibilizar a opinião pública e alertar os responsáveis – Governo e
Autarquias – para a inexistência de uma verdadeira prática de leitura pública em Portugal”, o
documento lançava pistas de trabalho importantes para a definição de uma política nacional
de leitura pública.
O Manifesto declarava que a leitura pública devia deixar de ser encarada como um luxo para
se considerar como um dos sectores, a par da escola, em que tinha que ser feito um grande
esforço de investimento.
Na verdade, um inquérito concluído em 1985 revelava que nos 275 municípios portugueses do
Continente só existiam bibliotecas da sua total responsabilidade e iniciativa em 30% e que,
dessas, apenas metade (45) cumpria parte das funções que o conceito de biblioteca pública
implica e que a UNESCO consagrara internacionalmente (Manifesto de 1972).
Por essa razão, em 1986, a Secretaria de Estado da Cultura, culminando os esforços da BAD
(Associação Portuguesa de Bibliotecários) e de alguns municípios e sob a égide do Instituto
Português do Livro traçou as bases necessárias para a definição de uma política nacional de
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leitura pública e para o lançamento de uma rede de bibliotecas públicas que cumprissem
aqueles objectivos.
A Rede Nacional de Bibliotecas Públicas resultou assim de programa iniciado em 1987, que
tinha como objectivo a criação e desenvolvimento de modernas Bibliotecas Municipais em cada
um dos concelhos do país, com o apoio técnico e financeiro do Ministério da Cultura, através
do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas (IPLB).
Os projectos das Autarquias eram seleccionados através de um processo de apresentação de
candidaturas que se realiza periodicamente, sendo de 50%, em princípio, a comparticipação
financeira da Administração Central nos custos do investimento inicial, o que engloba a
construção/adaptação do edifício e respectivo projecto, a aquisição de mobiliário e equipamento
específico, a constituição de fundos documentais e a informatização dos serviços.
As bibliotecas que integram a rede são dimensionadas em função do número de habitantes
de cada concelho, de acordo com programas-tipo que apontam para os números que se
seguem: bibliotecas municipais de tipo 1(BM1), para concelhos com menos de 20.000 habitantes,
com 752 m2 de área útil; de tipo 2(BM2), de 20.000 a 50.000 habitantes, com 1.345 m2 e de tipo
3(BM3), para mais de 50.000 habitantes, com 1.900 m2. de área.
Assim, estas bibliotecas bem localizadas e com forte impacto no contexto urbano, quer sejam
construídas de raiz, quer instaladas em edifícios com valor patrimonial reconhecido –
disponibilizam gratuitamente a todos, adultos, jovens e crianças serviços muito diversificados,
em espaços de sociabilidade, funcionais, confortáveis e atractivos.
O modelo de biblioteca pública adoptado materializa-se no terreno de acordo com um Programa
de Apoio, que é um documento elaborado pelo organismo a que cabe executar a política definida
para as bibliotecas municipais (a partir de 2 de Abril de 2007 passou a denominar-se Direcção
Geral do Livro e das Bibliotecas).
São requisitos indispensáveis das novas bibliotecas a existência de espaços funcionais adequados
e devidamente equipados; a constituição de colecções documentais coerentes, pluralistas,
isentas de qualquer forma de censura, regularmente actualizadas e renovadas, que cubram
todas as áreas do conhecimento, organizadas em livre acesso e que permitam o empréstimo;
o recurso a todo o tipo de suportes e tecnologias modernas; o acesso à biblioteca e à informação
que produz através da rede de telecomunicações; a criação de quadros de pessoal com formação
específica; a realização regular de actividades de animação e extensão cultural, cooperando
com as outras bibliotecas da rede e em especial apoiando e colaborando com a Rede de
Bibliotecas Escolares.
Para a plena concretização destes objectivos a biblioteca necessita dispor, nomeadamente
para o serviço público, de áreas funcionais com características bem definidas, de acordo com
o programa do IPLB:
• Átrio – o grande espaço distribuidor do edifício, uma espécie de praça interior, onde se realiza
o acolhimento, a informação e a orientação do utilizador para a fruição dos diversos serviços
que a biblioteca oferece.
• Secção de adultos – secção ocupada em grande parte por estantes de livre acesso, contendo
a documentação destinada a empréstimo; deve incluir zonas específicas, para a consulta de
documentos áudio, vídeo e multimédia e ainda para os serviços de referência/informação à
comunidade, autoformação e aprendizagem à distância. É indispensável a existência de
computadores para a consulta do catálogo, acesso a fontes de informação na Internet, consulta
de DVD/CDRoms, etc.
• Secção infantil – pela distribuição do mobiliário e suas características deve dispor de duas
zonas distintas de utilização, em função da idade e da documentação a disponibilizar para
diferentes grupos etários. Deve igualmente permitir o empréstimo e a consulta de documentos
em diversos suportes e incluir uma área de animação destinada à hora do conto e outras
actividades de grupo e ainda um atelier de expressão plástica.
• Área polivalente – zona destinada a um conjunto heterogéneo de actividades de animação
ou acção cultural que deverão ter um denominador comum: a promoção da biblioteca, visando
a divulgação dos seus serviços e do seu fundo documental e contribuindo para a sua inserção
na comunidade, não esquecendo a realização de acções de formação, para combater, p.ex.,
a iliteracia digital. Nas bibliotecas de maior dimensão é habitual a existência de um auditório
e de uma sala de exposições, bem como de um bar para utilização dos que frequentam
regularmente a biblioteca.
033
O programa do IPLB estabelece ainda um fundo mínimo inicial dos documentos em diversos
suportes para cada tipo de biblioteca (BM 1 – 15700 doc.; BM 2 – 37000 doc.; BM 3 – 51500 doc.)
sendo igualmente definidos os números essenciais para a sua actualização e renovação anual.
034
O referido programa preconiza também um quadro mínimo de pessoal com formação adequada
para cada tipo de biblioteca.
Vinte anos passados sobre o lançamento do Programa da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas,
que foi posteriormente alargado aos Açores e Madeira, constata-se que, dos 308 concelhos
existentes em Portugal, 262 integram já a RNBP, tendo sido inauguradas até ao momento 156
bibliotecas, encontrando-se as restantes 106 em diversas fases de instalação.
Tal significa que 85% dos municípios já promoveu a construção de bibliotecas, existindo já num
número apreciável deles uma rede concelhia, com pólos de leitura e/ou bibliotecas itinerantes.
É evidente, para quem está no terreno, que na maioria das localidades onde existem bibliotecas
públicas a funcionar em pleno, a sua efectiva implantação na comunidade é indesmentível,
tendo-se tornado rapidamente no mais importante centro cultural e informativo local, o que
é complementado pelo apoio imprescindível que dão à Rede de Bibliotecas Escolares e mesmo
a outros estabelecimentos de ensino ou à formação ao longo da vida.
Este papel é confirmado pelo número de leitores inscritos, pelo volume dos empréstimos (que
necessariamente tenderá a aumentar), pela constante utilização dos seus diversos serviços
e pela significativa frequência que as actividades de animação e de acção cultural suscitam.
A existência de fundos documentais em diversos suportes, enciclopédicas e pluralistas,
cobrindo todos os domínios do conhecimento, assegura quotidianamente uma função essencial
na promoção do livro e da leitura junto de toda a população, privilegiando contudo os mais
jovens.
As colecções de uma biblioteca pública procuram reflectir e responder aos interesses de toda
a comunidade, pois sabe-se que a opinião que cada leitor tem da sua biblioteca, a utilização
que dela faz, a regularidade com que a frequenta – tudo isto depende essencialmente da
composição e constante actualização/renovação dessas colecções, bem como dos serviços
que proporciona.
Mas não é só a presença física permanente dos livros (e de todo o tipo de impressos e de
documentos noutros suportes) nas bibliotecas públicas que tal permite e incentiva. É também
a disponibilidade constante dos que nelas trabalham para aconselhar, orientar ou mesmo
sugerir leituras aos que as procuram. São também os catálogos informatizados e o acesso a
outros recursos informativos (nomeadamente à Internet), os serviços de referência, as exposições,
as apresentações de novos títulos, todas as iniciativas culturais à volta dos livros e outros
documentos que as bibliotecas promovem que as tornam num lugar de eleição.
Com efeito, em quase todas as bibliotecas públicas do país realizam-se regularmente sessões
de apresentação de novos livros, com a presença dos autores, ou encontros com escritores
convidados para falarem da sua vida e da sua obra, aproximando o público dos criadores e da
literatura que se faz no país.
Debates e conferências sobre os mais diversos temas são realizações habituais nestas
bibliotecas, sempre complementadas, como nos encontros atrás referidos, com pequenas
exposições bibliográficas, cadernos de documentação, bibliografias e venda dos livros que
estão na base de tais iniciativas.
Cumprindo uma velha tradição, estas bibliotecas organizam com frequência exposições
bibliográficas e documentais, quer para revelar o seu património e as suas colecções, quer
para suscitar a atenção do público sobre temas específicos, muitas vezes relacionados com
a vida da comunidade e a sua história.
As crianças e os leitores mais jovens são contemplados quase diariamente com actividades
de animação de leitura (hora do conto), encontros com escritores e ilustradores, conversas
sobre livros e também com exposições e iniciativas complementares para eles especialmente
concebidas.
Nos últimos anos as bibliotecas têm promovido recitais de poesia ou espectáculos teatrais que
contam com uma crescente adesão do público, conquistando muitos jovens para a fruição das
artes do espectáculo.
Também é vulgar serem as bibliotecas municipais as responsáveis pela organização de feiras
do livro, com programas paralelos extremamente apelativos.
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Por iniciativa do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, no dia 23 de Abril comemora-se o Dia Mundial do Livro, realizando-se as Maratonas das Bibliotecas com programas de
acção cultural de grande originalidade e invenção, que procuram envolver toda a população,
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chamando a atenção para a importância do livro, o prazer da leitura e mesmo incentivando à
criação literária.
Também por iniciativa do IPLB e do APPLIJ, celebra-se anualmente o Dia Internacional do
Livro Infantil e Juvenil que conta com a adesão significativa de todas as bibliotecas.
O IPLB produziu também, em 1997, um Programa Nacional de Promoção da Leitura, que tem
por objectivo criar e consolidar os hábitos de leitura dos portugueses, dedicando especial
atenção ao público mais jovem. Tal concretiza-se através de um programa de Itinerâncias
Culturais que contemplam todas as bibliotecas do país e que permite a apresentação de
exposições, realização de acções de formação, ateliers, cursos breves de literatura, espectáculos
e organização de comunidades de leitores.
A RNBP é ainda um parceiro imprescindível do Plano Nacional de Leitura.
Para desenvolver e tornar ainda mais efectivo o conceito de rede, o IPLB lançou em 2005 uma
iniciativa de âmbito nacional denominada Rede de Conhecimento das Bibliotecas Públicas que
tem como objectivos promover o acesso público gratuito em banda larga nas bibliotecas
municipais da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas; Criar serviços e novos canais de
comunicação para estimular a leitura, atrair novos públicos e melhorar a qualidade dos serviços
prestados aos utilizadores actuais; disponibilizar ferramentas de gestão para as bibliotecas
municipais e para a própria RCBP.
Esta iniciativa pretende marcar o início do funcionamento em rede, a partir de uma plataforma
tecnológica comum, das bibliotecas públicas, estimulando a troca de ideias, experiências e
informações entre os decisores políticos, os bibliotecários e, sobretudo, entre os utilizadores
reais e potenciais destes serviços.
Embora números revelem uma nítida melhoria nos nossos hábitos de leitura na última
década (“Público”, 23 de Abril. 2007, p.4), só 37% dos portugueses se revelam como leitores
regulares.
Tal significa que é necessário continuar a apostar decididamente na Rede de Bibliotecas
Escolares e na Rede Nacional de Bibliotecas Públicas.
O desenvolvimento da RNBP, que se espera que cubra brevemente todo o país, deve incidir na
construção de novos edifícios; na modernização dos já existentes; na criação de redes concelhias
(os pequenos nós da rede, que levam o livro e a informação aos cidadãos, onde quer que eles
habitem); na generalização da utilização das TIC; no desenvolvimento de serviços e conteúdos
partilhados entre bibliotecas; na formação contínua do pessoal; na constante actualização e
renovação das colecções, na articulação com outros programas nacionais e integração em
programas internacionais; na promoção contínua das bibliotecas, colecções e serviços.
De qualquer modo revela-se absolutamente imprescindível a promulgação de legislação sobre
as bibliotecas portuguesas.
Como se vê é já de primordial importância, aliás como lhe compete, o papel das bibliotecas
públicas na divulgação do livro, no desenvolvimento da leitura, no livre acesso à informação.
Privilegiando estes aspectos, a biblioteca pública, porta de acesso local ao conhecimento, não
só ajuda a combater a iliteracia,e algumas novas formas de exclusão social e cultural, como
também contribui efectivamente para o reforço da cidadania.
037
Referências bibliográficas
038
FIGUEIREDO, Fernanda Eunice – Um olhar sobre o
programa Rede Nacional de Bibliotecas Públicas. Páginas
a & b, 2004, 13, p. 105-127.
INSTITUTO PORTUGUÊS DO LIVRO E DAS BIBLIOTECAS –
Programa de apoio às Bibliotecas Municipais [em linha].
Lisboa: IPLB, 2004. Disponível na Internet: www.iplb.pt
INSTITUTO PORTUGUÊS DO LIVRO E DAS BIBLIOTECAS;
OBSERVATÓRIO DAS ACTIVIDADES CULTURAIS – Sobre a
leitura. Lisboa: IPLB, OAC, 1999-2001, 13 v.
MANIFESTO da UNESCO sobre Bibliotecas. Bibliomédia
revista. Guimarães, 1998,1, p. 44-45. Também disponível
na Internet: www.iplb.pt
MOURA, Maria José (coord.) – Leitura pública: rede de
bibliotecas municipais. Lisboa: Secretaria de Estado da
Cultura, 1986.
MOURA, Maria José (coord.) – Relatório sobre as bibliotecas
públicas em Portugal. Lisboa: Ministério da Cultura, 1996
NUNES, Henrique Barreto – Da biblioteca ao leitor: estudos
sobre a leitura pública em Portugal. 2ª ed. Braga: Autores
de Braga, 1998. ISBN 972-82026-23-4
VENTURA, João J-B. – Bibliotecas e esfera pública. Oeiras:
Celta, 2002. ISBN 972-774-138-X
2. BIBLIOTECA E LEITORES EM SANTA MARIA DA FEIRA
João Teixeira Lopes e Barbara Aibéo
039
Resumo
Os resultados que aqui se apresentam e analisam dizem respeito a um estudo realizado pelo
Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto para a Câmara Municipal
de Santa Maria da Feira, com o propósito de conhecer os públicos da cultura deste concelho,
bem como as suas atitudes, opiniões e representações sobre a oferta cultural autárquica. Nas
linhas seguintes, apresentaremos, em primeiro lugar, uma caracterização da biblioteca pública
de Santa Maria da Feira, no conjunto dos equipamentos públicos existentes, para, em seguida,
nos determos sobre o perfil dos seus frequentadores e leitores.
Palavras-chave
Cultura; Bibliotecas públicas; públicos.
1. A Biblioteca
Observando o Quadro I, respeitante ao grau de conhecimento e de frequência dos principais
equipamentos culturais do concelho, assinala-se, desde logo, uma grande descoincidência na
distribuição dos valores. Com efeito, o Museu do Papel e o Auditório Cirac são desconhecidos
pela maior parte dos inquiridos, enquanto que o Europarque, a Biblioteca, o Cineteatro e o
Visionarium (em especial o primeiro) registam altos índices de conhecimento e frequência.
O Museu Municipal é mais conhecido do que frequentado e uma percentagem significativa,
ainda que minoritária, afirma mesmo desconhecê-lo.
Quadro I
Biblioteca
Municipal
%
Museu do Papel
%
Cineteatro
António Lamoso
%
Auditório Cirac
%
Europarque
%
Visionarium
%
Museu Municipal
%
Grau de Conhecimento e Frequência dos Equipamentos Culturais (%)
Frequentou
41,1
17,6
39,3
11,4
60,8
42,0
22,3
Conhece mas não frequentou
17,2
24,9
16,0
19,3
15,6
30,6
25,0
Não conhece
27,3
41,6
30,0
52,9
11,1
13,6
15,9
Não sabe / Não responde
14,4
16,0
14,7
16,4
12,5
13,8
15,9
Total
100
100
100
100
100
100
100
040
Equipamentos Culturais
Quadro II
Frequência e Conhecimento da Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira por Lugar de
Classe do Inquirido (%)
Lugar de classe %
BEP
BP
PBIC
PBTEI
PBIP
PBA
PBPA
PBAP
Equipamentos Culturais
Biblioteca Municipal
de Santa Maria da Feira
Frequentou
51,3
82,4
45,7
73,4
69,1
57,1
81,3
42,9
Conhece mas não frequentou
17,5
02,9
14,1
04,7
13,6
42,9
14,6
30,4
Não conhece
31,3
14,7
40,2
21,9
17,3
00,0
04,2
26,8
Total
100
100
100
100
100
100
100
100
Lugar de classe %
PBE
PBEP
OI
OA
OP
Outros
Total
Equipamentos Culturais
Biblioteca Municipal
de Santa Maria da Feira
Frequentou
52,7
45,3
57,6
35,2
37,5
50,7
52,1
Conhece mas não frequentou
17,8
25,6
15,3
46,7
06,3
23,9
19,6
Não conhece
29,5
29,1
27,1
18,0
56,3
25,4
28,3
Total
100
100
100
100
100
100
100
Importa analisar o caso da biblioteca, já que apresenta uma distribuição por lugares de classe
que suscita alguma atenção particular (Quadro II). De facto, os lugares de classe burgueses,
no seu conjunto, revelam uma forte frequência do equipamento, em especial a burguesia
profissional (BP), ligada às profissões liberais. Neste caso, parece legítimo convocar a teoria
de Pierre Bourdieu sobre a transmissão, via herança (isto é, o processo de familiarização,
incorporação e naturalização através da socialização familiar, de uma série de signos e códigos
que habilitam, a quem os possui, de aceder a um vasto conjunto de bens simbólicos). Já alguns
lugares de classe relacionados com a condição rural revelam índices elevados de não frequência.
De qualquer modo, a penetração da biblioteca nos vários meios sociais é notável: 57,6% do
operariado industrial (OI) e 52,7% da pequena burguesia de execução (PBE) frequentam o
equipamento. Uma vez mais, emerge com clareza o campo de acção das políticas públicas nos
processos de ressocialização que impedem, contra a teimosa força dos que vêm na origem
social um destino inamovível e de antemão traçado, a perpetuação da ordem social. Equipamentos
polivalentes, abertos, flexíveis, espacial e arquitectonicamente atraentes contribuem, de forma
decisiva, para contrariar fatalidades e determinismos. Se verificarmos o gráfico nº 1, constatamos
que a frequência da biblioteca se associa fortemente aos jovens e jovens adultos, o que indicia
uma intensa ligação à escola. Esta associação acarreta, necessariamente, uma intensificação
dos usos instrumentais da biblioteca – lê-se para estudar, para preparar testes.
Gráfico nº 1
Frequência da Biblioteca por Idade
041
Mas significa, igualmente, que as bibliotecas públicas funcionam como plataformas de
estacionamento juvenil: um lugar de encontro, de sossego, portal de acesso, em múltiplos
suportes, à informação, possibilidade de circulação entre vários sub-espaços (multimédia, sala
042
de exposições, auditório...) facilitado pelo regulamento liberal.
2. O universo do impresso
Atentemos no gráfico nº 2. Uma vez mais, confirmando anteriores estudos, as inquiridas lêem
mais do que os inquiridos. A socialização de género não é indiferente a esta clivagem, tão-pouco o significado do livro na construção da identidade feminina. Em anterior ocasião,
questionamos: «O que significa, por exemplo, ser uma jovem leitora num contexto territorial
caracterizado, ainda, por resistências mais ou menos organizadas ao avassalador efeito urbano,
onde predominam, porfiando, lógicas familiaristas, assentes em solidariedades mecânicas
(em que o eu individual se confunde e se dilui no «nós» colectivo), de forte «consciência
colectiva» (...) capazes de reprimirem impulsos singulares, veleidades de individualismo
sentimental e processos de construção identitária? De que forma a adesão ao livro assenta
numa afirmação de género, difusamente combativa das instâncias patriarcais e da tradicional
divisão de tarefas? Poderá, nestes contextos, o mundo do impresso assimilar uma rejeição dos
enclaves do espaço privado doméstico e um bater de asas em direcção a espaços públicos e
semipúblicos? Serão os stocks de conhecimentos acumulados pela jovem leitora nos longos
processos leiturais uma motivação adicional para um à-vontade emancipador na hora que
sempre chega de tomar a palavra, nomear, classificar, construir e assumir uma visão do
mundo?»21.
Gráfico nº 2
Hábitos de Leitura por Sexo
043
O «silêncio do colonizado» (mulher, pobre, negro, imigrante...) enquanto silêncio em opressão,
pode constituir-se como potencial forma de resistência, à espera da ocasião em que se
condensam um feixe de novas oportunidades ou novos possíveis social e culturalmente
conquistados. A propriedade do discurso pode adquirir-se, paulatinamente, pela familiaridade
com o mundo do livro e da palavra escrita, enquanto estratégia de acumulação e incorporação
crítica de competências e gramáticas, até ao momento da reinvenção da linguagem, o momento
onde se pode cumprir o desígnio de Virginia Woolf: “Tudo o que temos deve ser exprimido –
mente e corpo”22.
Questões que encontram continuidade ao observarmos o gráfico nº 3. De facto, são novamente
as mulheres – corolário da constatação anterior – quem mais frequentemente se desloca a
livrarias.
Gráfico nº 3
Deslocações a Livrarias por Sexo
044
E, finalmente, são também elas quem mais assiduamente habita a biblioteca pública (Gráfico
nº 4). Em suma, não só o mundo do livro surge feminizado, como também, embora de forma
menos nítida, os equipamentos que lhes estão associados, o que traduz uma procura activa
dos recursos que aí se encontram e que se jogam, também, no espaço social.
Gráfico nº 4
Frequência da Biblioteca por Sexo
045
Se atentarmos na variação da prática de leitura de livros por nível de escolaridade constatamos
que, até ao 2º ciclo do ensino básico, o valor modal situa-se em “raramente” ou “nunca”,
passando, em seguida, para o oposto: “diariamente/quase diariamente”. Pensamos que tal se
deve ao facto de existir, como de resto já assinalámos, uma forte concentração dos grupos
etários mais idosos e muito menos escolarizados nos primeiros patamares dos recursos
escolares. Daí em diante, a variável capital escolar deixa de exercer clivagens significativas,
o que poderá indiciar a importância quer da escola, quer das próprias políticas públicas no
incentivo à leitura, consubstanciadas, em particular, na rede de bibliotecas públicas. A própria
ida a livrarias sofre variações de acordo com os recursos escolares: de novo, até ao 2º ciclo
do ensino básico, o valor modal situa-se na categoria «nunca». No 3º ciclo aumenta para
«menos de uma vez por mês» e, por fim, para os inquiridos com um diploma de licenciatura
ou mestrado, sobe para a frequência semanal. Ir a uma livraria requer por vezes, para além
do capital escolar e cultural que se supõe associado à leitura, algum volume de capital simbólico,
na medida em que representa ainda, para os mais distanciados do universo do impresso, um
local conotado com um certo prestígio e «honra social», face ao qual se constroem expectativas
socialmente dominantes sobre comportamentos adequados (como entrar, como falar, o que
perguntar, o que dizer, como procurar um livro...).
Já no que se refere à leitura de jornais e revistas, ventiladas pelo nível de escolaridade dos
inquiridos, notamos uma menor pressão do capital escolar, na medida em que tal prática se
dissemina a partir do 1º ciclo do ensino básico. Seria aqui importante, para estabelecer
distinções mais finas, conhecer os géneros apreciados, visto que constituem um indicador de
poderosas diferenciações.
Quadro III
Leitura de Livros por Lugar de Classe do Inquirido (%)
Lugar de classe %
BEP
BP
PBIC
PBTEI
PBIP
PBA
PBPA
PBAP
Equipamentos Culturais
Biblioteca Municipal
de Santa Maria da Feira
Frequentou
51,3
82,4
45,7
73,4
69,1
57,1
81,3
42,9
Conhece mas não frequentou
17,5
02,9
14,1
04,7
13,6
42,9
14,6
30,4
Não conhece
31,3
14,7
40,2
21,9
17,3
00,0
04,2
26,8
Total
100
100
100
100
100
100
100
100
Lugar de classe %
PBEP
OI
OA
OP
Outros
Total
Equipamentos Culturais
Biblioteca Municipal
de Santa Maria da Feira
PBE
046
Frequentou
52,7
45,3
57,6
35,2
37,5
50,7
52,1
Conhece mas não frequentou
17,8
25,6
15,3
46,7
06,3
23,9
19,6
Não conhece
29,5
29,1
27,1
18,0
56,3
25,4
28,3
Total
100
100
100
100
100
100
100
Finalmente, atentando no Quadro III, resultado do cruzamento da leitura de livros com o lugar
de classe do inquirido, uma vez mais reforçamos a ideia de um mundo semi-rural desmunido
de recursos e afastado das dinâmicas qualificantes de uma certa modernização. De facto, é
de novo na pequena burguesia agrícola pluriactiva e no «operariado agrícola» que encontramos
um maior afastamento face ao mundo do livro e da leitura. Este elemento não pode deixar de
enfatizar a existência de processos excludentes e assimétricos no referido processo de
modernização.
Elementos, enfim, para um diagnóstico, capaz de orientar as políticas culturais, tantas vezes
«cegas» nos seus desígnios.
João Teixeira Lopes
É Professor Associado com Agregação do curso de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e
coordenador do respectivo instituto de investigação. Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa com a Dissertação Tristes Escolas - Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço
Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997). Doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação com a Dissertação
- A Cidade e a Cultura - Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto, Edições Afrontamento, 2000)
Barbara Aibéo
É Socióloga. Formadora, animadora e técnica de reconhecimento, validação e certificação de competências.
047
3. LEITURA, LITERACIAS E INCLUSÃO SOCIAL: NOVOS E VELHOS DESAFIOS
PARA AS BIBLIOTECAS PÚBLICAS
Manuela Barreto Nunes
048
Resumo
A partir da definição de biblioteca pública consagrada pelo Manifesto da UNESCO Sobre
Bibliotecas Públicas e documentos conexos, são apresentadas e discutidas questões relacionadas
com o papel destas instituições na sociedade actual, nomeadamente na promoção da leitura
e das literacias, consideradas como factores de inclusão social. A história recente das bibliotecas
públicas em Portugal é brevemente abordada, apontando-se qualidades e disfuncionalidades
patentes na Rede Nacional de Bibliotecas Públicas, que acaba de cumprir 30 anos.
Palavras-chave
Biblioteca Pública; Literacia; Inclusão Social
O principal objectivo das bibliotecas de qualquer tipo é a prestação de serviços de acesso, não
apenas à informação mas, mais exactamente, ao conhecimento. No caso das bibliotecas
públicas, este objectivo geral insere-se no contexto de alguns princípios básicos que determinam
uma forma específica de actuar e se relacionam com as suas características de serviço público:
para além de permitir o acesso a informação organizada, elas devem promover actividades
que, por um lado, contribuam para o desenvolvimento de competências de literacia,
nomeadamente literacia informacional, necessárias à pesquisa, selecção, interpretação e
processamento da informação disponibilizada e, por outro lado, proporcionem o acesso à
literatura e aos produtos culturais e artísticos em geral, bem como aos testemunhos da
memória e da identidade local.
De facto, logo no segundo parágrafo do Manifesto da UNESCO Sobre Bibliotecas Públicas
(1994), documento elaborado para a UNESCO pela Secção de Bibliotecas Públicas da IFLA –
Federação Internacional das Associações de Bibliotecas –, pode ler-se que "A biblioteca pública,
porta local de acesso ao conhecimento, constitui um requisito básico para a aprendizagem
ao longo da vida, para a tomada independente de decisões e para o progresso cultural do
indivíduo e dos grupos sociais.”
Na sequência desta definição de carácter funcional, centrada na acção e na dimensão elementar
de um conjunto de serviços orientados para o desenvolvimento de competências individuais
e sociais, uma descrição algo mais complexa é apresentada nas Linhas de Orientação da
IFLA/UNESCO Para o Desenvolvimento de Serviços de Bibliotecas Públicas (2001), que
procuram transformar os princípios expressos no Manifesto numa ferramenta de apoio ao
trabalho efectivo em bibliotecas públicas: “Uma biblioteca pública é uma organização
estabelecida, apoiada e financiada pela comunidade, quer por meio das autoridades locais,
regionais ou nacionais, quer mediante qualquer outra forma de organização colectiva.
Proporciona o acesso ao conhecimento, à informação e às obras da imaginação graças a toda
uma série de recursos e serviços e está à disposição de todos os membros da comunidade
por igual, independentemente da raça, nacionalidade, idade, sexo, religião, idioma, deficiência
física, condição económica e laboral e nível de instrução.”23
Nesta definição, o carácter público da biblioteca é claramente enunciado na afirmação de que
se trata de uma instituição estabelecida, apoiada e financiada pela comunidade, em qualquer
das suas formas organizativas. A descrição dos seus objectivos não acrescenta muito à do
Manifesto acima citado, embora acrescente que estes serão assegurados pela prestação de
um conjunto de serviços e através de um leque de recursos; no entanto, o mais importante é
a explicação de que esses serviços se destinam a toda a comunidade, independentemente de
características que não se restringem às condições de raça, nacionalidade ou idade, nem às
opções religiosas, mas que implicam tanto as deficiências físicas, como as condições económicas
e níveis de educação dos potenciais utilizadores, o que tem consequências muito concretas
nas actividades ou serviços que a biblioteca terá que desenvolver em função desta definição.
De facto, se os objectivos das bibliotecas em geral são o fornecimento de serviços de informação
e acesso ao conhecimento, e se as bibliotecas públicas assumem como destinatário da prestação
deste serviço o conjunto de indivíduos que constituem uma comunidade local, independentemente
de características pessoais, incluindo debilidades físicas, permanentes ou temporárias, e
condições económicas, sociais ou educativas, elas terão que desenvolver, em paralelo com os
serviços de informação, serviços de cultura e acesso à educação informal nos níveis necessários
para que seja assegurada a plena igualdade de acesso. Para além disso, ao ver acrescentados
o acesso ao conhecimento e aos produtos da imaginação às funções puramente informativas,
a biblioteca pública obriga-se à prestação de serviços de educação e cultura que satisfaçam
as necessidades dos diversos grupos de utilizadores, definidos por uma ampla heterogeneidade,
que é por sua vez o reflexo da heterogeneidade do tecido social.
049
Torna-se assim evidente que é função da biblioteca pública promover a criação de hábitos de
leitura desde a primeira infância (de acordo com uma das missões expressas no Manifesto da
UNESCO) e, simultaneamente, apoiar a aquisição de competências de literacia que facilitem
050
aos cidadãos um acesso à informação equitativo e adequado às necessidades de cada um. Na
realidade, mais do que nunca, aprender a pensar activa e criticamente sobre a informação em
vez de receber passivamente dados ou materiais pré-preparados é necessário para sobreviver
no ambiente informacional que caracteriza a sociedade do novo milénio. É esta, aliás, a definição
de literacia informacional: o conjunto de habilidades e competências que permitem o
desenvolvimento de um pensamento sofisticado e o uso efectivo da informação ao longo da
vida (cf. Dewald et. al., 2000, p. 33).
Para as bibliotecas públicas, trata-se de uma questão essencial: facilitar a informação não é
suficiente, pois é necessário conseguir que ela se torne útil, isto é, passível de ser transformada
em conhecimento, por parte de quem a procura.
O facto é que uma promoção democrática do acesso à informação no sentido da alfabetização
informacional implica, não só uma atitude activa por parte da biblioteca, mas também dos
utilizadores, com os quais há que estabelecer essa relação interactiva facilitada pelas tecnologias
da informação e comunicação, traduzindo-a numa aproximação participada, comprometida e
flexível ao processo informativo.
Na realidade, a detecção das necessidades dos utilizadores, antes da tomada de decisões e
da projecção de actividades de formação informacional, é uma consequência da própria definição
do conceito, já que a alfabetização informacional é principalmente uma questão de aprendizagem
contínua (cf. Marcum, 2002), condicionada por características, capacidades e competências
individuais. A alfabetização, ou literacia, informacional implica o domínio do uso das tecnologias
da informação, o conhecimento das fontes e sistemas de organização da informação, dos
procedimentos de recuperação ligados aos critérios de selecção da informação adequada, e
do seu controlo e uso com o fim de produzir novo conhecimento.
Ao considerarmos que, no cumprimento das missões que lhe são propostas pelo Manifesto
da UNESCO, a biblioteca pública deve promover a inclusão; que a inclusão na sociedade actual
significa um grau, bastante mais elevado do que há poucos anos atrás, de domínio de
competências de literacia; e que o seu objectivo máximo é a promoção do acesso ao conhecimento
(não à informação, não aos dados) – o que se revela é que uma das prioridades máximas dos
sistemas actuais de bibliotecas públicas é claramente a realização de actividades e a prestação
de serviços que de alguma forma tenham a alfabetização informacional como motor. Neste
sentido, não é exagerado dizer que, na sociedade informacional, a biblioteca pública deve
desenhar-se como um ambiente pensado, criado, organizado e difundido para as literacias.
As condições criadas pela comunicação mediada por computador, caracterizada pela
interactividade e pela ligação de muitos com muitos em tempo real, exigem algo mais dos
cidadãos do que o domínio de destrezas de alfabetização monolíticas (da leitura e da escrita,
doutras linguagens, como a matemática, ou idiomas estrangeiros, da informática…): o que se
exige hoje são múltiplas alfabetizações, ou o que Tyner (1998) chama de “tool literacies”
(computadores, redes, tecnologias) e “representation literacies” (da informação, dos media,
visual…), cada uma com as suas características e objectivos sociais específicos e cujo cume
se alcança com o domínio das “technologies of the intellect”, que asseguram o acesso criativo
e a utilização crítica de informação, técnicas de comunicação e diálogo e metalinguagens.
Apesar de não ser já suficiente para assegurar a qualidade de vida e a inclusão social, a base
de todas as literacias continua a ser a alfabetização no sentido tradicional, isto é, a alfabetização
da leitura e da escrita. Assim se compreende que as literacias são mais do que ferramentas,
são valores culturais ancorados em contextos e épocas específicas e de cuja soma não resulta
um número redondo, mas antes um valor acrescentado e definitivo na definição do papel de
cada indivíduo na sociedade a que pertence. Actualmente, a literacia informacional é uma
condição da inclusão social. O seu fundamento são o conteúdo e a transferência de informação,
não em si mesmos, mas inseridos em procedimentos activos e participados pelos destinatários
da informação, já que ela equivale a um processo contínuo e compreensivo de aprendizagem
em contexto.
As bibliotecas públicas não podem pois limitar-se a facilitar o acesso à informação: é essencial
que essa informação se torne útil, isto é, que seja transmitida em condições de poder transformar-se em conhecimento. No ambiente fluído, marcado pela interconexão e pela interactividade
e, sobretudo, pela autonomia na aprendizagem facilitada pelas TIC, é essencial que os serviços
bibliotecários se adaptem aos desejos e necessidades, em permanente mudança, dos utilizadores,
relativamente à aquisição de conhecimentos e aos usos da informação (cf. Rader, 2000).
A australiana Christine Bruce (1997) desenvolveu um modelo relacional, que conceptualiza a
literacia informacional em sete aspectos (a que chama “faces”) encadeados e interdependentes24.
O curioso deste modelo é o facto da investigadora o fazer culminar num estádio que designa
de concepção de felicidade (“wisdom conception”) o que, no âmbito do tema desta discussão,
pode considerar-se como o pleno do conceito de inclusão do indivíduo na sociedade, detentor
051
de competências críticas e conhecimentos culturais que lhe asseguram o domínio da sua vida
e uma integração participada e equilibrada na comunidade. Uma interpretação possível do
modelo relacional leva-nos à consideração da alfabetização informacional como um processo
052
que redimensiona o papel da biblioteca pública, num contexto algo mais complexo e menos
redutor de que o que nos é apresentado por outros modelos semelhantes. Na realidade, a
preocupação com a promoção das literacias não pode ficar-se pela transmissão de competências
de informação, esquecendo a memória cultural e a abertura de horizontes proporcionadas
pelo contacto com a história, o património, as artes e a literatura. A biblioteca pública tem
hoje, mais do que nunca, a responsabilidade de acrescentar valor ao ambiente informacional,
adicionando-lhe a face humana da criatividade, da imaginação e da possibilidade da felicidade.
A essa possibilidade única de combinação de todas as dimensões da vida, que implica a
biblioteca pública enquanto organização até agora sem rival na prestação de serviços a partir
de colecções documentais de carácter universal e enciclopédico, talvez possamos então chamar
de “alfabetização global” – um conceito que ultrapassa a tendência para a “infantilização” dos
utilizadores a que, em muitos casos, está a levar a aplicação dos princípios da alfabetização
informacional, considerando a cultura e o estímulo intelectual como competências tão
importantes como as perspectivas utilitárias que estão na base da ideia do “uso” da informação.
É nossa convicção que esta é a única interpretação que as bibliotecas públicas podem fazer
do conceito de alfabetização informacional e das noções de inclusão e cidadania activa no
desenvolvimento dos seus serviços: a plena participação do indivíduo na sociedade e o
cumprimento de uma vida plena não se esgotam no domínio de destrezas de informação de
dimensão utilitária que, isoladas de outros saberes, podem configurar uma nova forma de
exploração dos cidadãos trabalhadores; pelo contrário, elas enriquecem-se e ampliam-se com
a promoção de hábitos de leitura literária desde a primeira infância, e previamente à aquisição
de habilidades de leitura utilitária, e com o conhecimento e a fruição dos produtos da cultura
contemporânea e da memória cultural.
A um nível que tem que ver simultaneamente com a satisfação de necessidades do dia-a-dia,
com a actualização de conhecimentos profissionais, com a inclusão na comunidade, com as
relações com a administração local e nacional, com a participação no meio social, com o
contacto com a diversidade dos produtos da imaginação e do pensamento humano, ou com a
simples ocupação dos tempos livres, as bibliotecas públicas adquirem hoje em dia especiais
responsabilidades na promoção de destrezas de informação, no sentido complexo que
propúnhamos no parágrafo anterior.
O grande obstáculo que se coloca às bibliotecas públicas portuguesas na concretização dos
objectivos que lhes são propostos pelo Manifesto da UNESCO, à luz da sociedade contemporânea,
é ainda, 30 anos passados sobre o 25 de Abril, e 20 sobre a criação da Rede Nacional de
Bibliotecas Públicas, a sua falta de efectivo impacto social. Instituições de cultura, cujas funções
nas áreas da educação ao longo da vida e da auto-aprendizagem, do acesso à informação e
ao conhecimento, da promoção da leitura e das literacias estarão sempre imbuídas dessa
dimensão cultural primordial, instituições que hoje fazem parte da paisagem arquitectónica
de quase todos os Concelhos do país, elas não conseguem sair do ciclo vicioso da falta de
financiamento e dos recursos considerados essenciais para uma intervenção eficaz no seio
das comunidades locais.
De facto, o problema nunca passou pela falta de prestígio cultural, que lhes é outorgado pelo
facto de serem tradicionalmente consideradas como guardiãs do património bibliográfico, da
memória e da tradição cultural. No entanto, quando, em meados dos anos 70, a revolução
trouxe a democracia a Portugal, a situação da maior parte das bibliotecas públicas era deplorável,
e a sua ineficácia clamorosa (cf. Nunes, 1996b). É sabido que as ditaduras não se entendem
bem com o conhecimento, e as missões de educação popular e acesso universal à cultura e
à informação das bibliotecas foram muitas vezes ao longo da História olhadas e tratadas como
subversivas, e controladas pelos poderes do Estado através de diversas formas, das quais a
mais evidente é a censura, mas às quais se podem acrescentar a falta de investimento, de
formação profissional e de recursos.
Até mesmo a democracia demorou tempo a dar importância às bibliotecas públicas, pois só
em 1986 foi lançado o Programa da Rede Nacional de Biblioteca Públicas e em 2007, apesar
da evidente necessidade de regulamentação, Portugal é quase o único país europeu sem uma
Lei de bibliotecas.
No entanto reconheça-se que, mesmo sem legislação específica que funcionasse como base
de apoio, foi possível desenvolver uma rede de bibliotecas públicas municipais, concebida em
função dos princípios expressos no Manifesto da UNESCO e considerada exemplar a nível
internacional, estando já em pleno funcionamento 154 bibliotecas, num total de 262 Autarquias
que assinaram um protocolo para a construção destes equipamentos a partir do programa
proposto pelo Ministério da Cultura25 . Tal como na vizinha Espanha, as transformações sociais
dos últimos 20 anos tornaram possível um desenvolvimento sem precedentes na nossa História
dos serviços de bibliotecas públicas.
053
O conceito de rede, porém, se funciona ao nível da edificação das infraestruturas e da reunião
das condições básicas de funcionamento, assegurando tanto uma forte equidade como um
nível mínimo de qualidade no que diz respeito aos edifícios, mobiliário, equipamentos, colecções
054
e recursos humanos, deixa de ser aplicado a partir do momento em que as bibliotecas estão
concluídas e passam a depender exclusivamente dos municípios: é aqui que a rede se transforma
em isolamento e começam a verificar-se maiores desigualdades ao nível do desenvolvimento
dos serviços, demasiado dependentes dos recursos financeiros de cada autarquia, tanto como
da vontade política dos autarcas e da actuação muito incerta e variável dos sucessivos governos
nacionais. Aspectos como a actualização das colecções, o desenvolvimento de actividades de
promoção da leitura e extensão cultural e até a própria automatização das bibliotecas são os
mais afectados pela inexistência de uma efectiva política de rede a partir do momento em que
as bibliotecas são inauguradas. A confusão, ainda existente em muitos lados, entre os papéis
da biblioteca pública e da biblioteca escolar – e apesar da criação de numerosas bibliotecas
escolares ao longo dos últimos 10 anos, no âmbito da dinâmica desenvolvida pela Rede de
Bibliotecas Escolares – são um outro factor de desequilíbrio, que condiciona a actuação de
muitas bibliotecas municipais e funciona como um entrave à prestação de serviços de acesso
ao conhecimento desenhados em função das necessidades das comunidades locais.
Estas são as principais dificuldades que as bibliotecas públicas portuguesas enfrentam na
tentativa de se transformarem em organismos com real impacto na sociedade informacional.
Os novos papéis e, sobretudo, as novas orientações que determinam a sua actividade exigem
um reconhecimento social prévio, e um empenhamento da administração pública, a todos os
níveis, no seu desenvolvimento enquanto organizações ao serviço da inclusão social, da formação
contínua e da cultura, isto é, a sua participação nos planos nacionais, regionais e locais de
integração na sociedade da informação.
O grande desafio da actualidade implica que, mesmo introduzindo serviços e equipamentos
adequados ao uso das novas tecnologias da informação, incluindo pontos de acesso rápidos,
simples e em número suficiente à Internet, mesmo desenvolvendo programas de qualidade
no campo da promoção da leitura e das literacias, nomeadamente junto das crianças, as
bibliotecas públicas portuguesas sejam capazes de ultrapassar o estigma da imagem social
de espaços “de estudo, de silêncio e pouca sociabilidade” (Moura, 2001, p 104), frequentados
sobretudo por “jovens do ensino secundário ou superior, que [delas] fazem um uso marcadamente
instrumental e funcional” (idem, p. 103).
Como transformar então a velha biblioteca pública, agora envolta em roupagens frescas e
plenas de potencialidades, num espaço de convivência de novo tipo, que corresponda aos
princípios consagrados no decreto de lançamento da Rede de Leitura Pública, em 1997 (“Uma
política nacional participada de leitura pública, assente numa rede de bibliotecas municipais
que cubra todo o País, surge, portanto, como um objectivo prioritário em termos de
desenvolvimento cultural”)? E que tipo de impacto podem as bibliotecas públicas alcançar na
promoção da inclusão social e, concretamente, através da promoção de competências de
leitura e literacias?
É possível considerar a biblioteca pública, por definição ligada à comunidade local (veja-se o
já citado Manifesto da UNESCO de 1994), como um espaço que contribui para a promoção da
coesão social, já que toda a sua actividade se orienta para a aceitação do indivíduo no seio da
comunidade, reconhecendo e aceitando a diversidade (cf. Kerslake e Kinnell 1998, p.5). O seu
impacto social pode ser avaliado a partir de dois pontos de vista diferentes, os quais, segundo
as épocas, os locais e as condições de funcionamento, definem a sua importância para o
desenvolvimento local.
Em primeiro lugar, a biblioteca pública é um ponto de encontro cultural. Este é um dos aspectos
que melhor definem a tradição deste tipo de bibliotecas nos países do sul da Europa, já que a
formação das primeiras bibliotecas públicas no século XIX está intimamente ligada às
incorporações dos bens das ordens religiosas (cf. Nunes, 1996b) e, em consequência, à
conservação e difusão do património histórico e cultural. Nesse sentido, elas são, não apenas
lugares privilegiados de contacto com as manifestações do génio criador humano e de
conhecimento do mundo, mas também de promoção e conhecimento da memória e da identidade
locais (cf. Nunes, 1996a, e Martínez González, 2003), o que pode configurar-se como uma marca
indelével de promoção da coesão social das comunidades locais no seio da sociedade global.
Não obstante, o seu papel cultural nas sociedades modernas é algo mais complexo: se, por
um lado, elas tendem a ser um centro de difusão das ideologias culturais e sociais dominantes,
promovendo os produtos culturais dessas tradições, por outro são muitas vezes o único lugar
de uma comunidade onde é possível encontrar a produção das culturas marginais; elas próprias
se afirmam e actuam como difusoras de produtos culturais destinados a todos os sectores da
população (por ex., os imigrantes, as minorias étnicas, etc.). Quer isto dizer que, ao mesmo
tempo que os conteúdos principais das bibliotecas reflectem inevitavelmente o mercado editorial
e os conteúdos ideológicos dominantes na sociedade, o chamado “mainstream” (capitalista,
sexista, consumista, heterossexual, embora procurando observar princípios politicamente
055
correctos), o próprio conceito de biblioteca pública implica a rejeição de qualquer tipo de
censura e aponta para a criação de espaços específicos para os produtos e as manifestações
culturais das culturas minoritárias (políticas, étnicas, de estilos de vida, de interesses individuais…)
056
e, sobretudo, das crianças e dos deficientes.
Em todo o caso, as bibliotecas públicas não são mais do que organizações que funcionam em
contextos políticos e culturais nacionais e transnacionais que as ultrapassam, e os princípios
humanistas e solidários que as orientam confrontam-se com uma organização social na qual,
segundo Pierre Bourdieu (2001, p. 77-78), “à mitologia da diversificação extraordinária dos
produtos, podemos opor a uniformização da oferta”, sendo muito difícil escapar aos efeitos
das tendências de concentração dos grupos económicos dominantes nas redes de informação
e comunicação, bem como ao predomínio da difusão sobre a produção, que impõe uma
verdadeira censura económica.
Assim chegamos ao segundo ponto de vista, segundo o qual a Biblioteca Pública é um espaço
de interacção social e tem um impacto económico na comunidade local. Mesmo no contexto
dos condicionalismos sociais que acabámos de apontar, ela é um espaço livre e seguro onde
podem encontrar-se os excluídos e as minorias de todo o tipo: mulheres, reformados,
desempregados, imigrantes… e todo o género de pessoas isoladas e com dificuldades financeiras
que são automaticamente excluídas de outros pontos de encontro colectivo, públicos ou privados,
cuja frequência ou uso dos serviços são sempre pagos, como nos bares ou cafés, nos teatros,
museus, lojas, etc. De facto, um dos aspectos mais importantes dos serviços de bibliotecas
públicas, não demasiado claramente afirmado no Manifesto da UNESCO26, é a gratuitidade,
que se traduz na única maneira possível de servir eficazmente os sectores da comunidade que
não têm capacidade económica para aceder aos recursos de informação.
De uma forma ideal, e se as opções políticas dos governos nacionais, regionais e locais o
permitissem, o impacto da Biblioteca Pública na comunidade poderia traduzir-se tanto no apoio
à identidade das comunidades locais, como no apoio aos mais desfavorecidos – por exemplo
ajudando os desempregados a regressar ao mercado de trabalho –, a pessoas com ocupações
ligadas aos novos tipos de trabalho – os teletrabalhadores – ou àqueles cujas actividades não
se enquadram no mercado de trabalho – os considerados inactivos – ou, inclusive, funcionando
como a fonte de informação privilegiada em épocas de crise e facilitando o uso democrático
dos novos meios de informação.
Num relatório publicado em pela ASLIB em 1995 sobre os serviços das bibliotecas públicas
em Inglaterra e no País de Gales afirma-se que estas “not only provide for cultural and leisure
activities, but have an important role to play in economic regeneration through support for rural
business, and provision of employment and training information” (p. 62). De acordo com este
relatório, as bibliotecas públicas conquistam importância económica no desenvolvimento das
comunidades locais através da prestação de serviços de informação às pequenas e médias
empresas e de formação e apoio à integração no mercado de trabalho, contribuindo assim
para a diminuição da pobreza ao nível individual e regional, e assegurando a sobrevivência de
um leque de produtores culturais locais.
Inclusiva, formadora, a missão da biblioteca pública implica o reconhecimento da importância
que todos os tipos de literacia têm para a qualidade de vida nos nossos dias. Como vimos, as
bibliotecas públicas procuram corresponder às necessidades educativas de crianças, jovens
e adultos em aspectos relacionados com a alfabetização, as literacias e a formação contínua,
prevenindo o analfabetismo futuro nos adultos através da promoção de uma cultura de leitura
nas crianças e apoiando os adultos nos seus esforços de aquisição de competências de literacia
e formação ao longo da vida (cf. Zapata, 1993, p 124). Constamos que, actualmente, a questão
da eficácia do trabalho das bibliotecas no combate pela inclusão social já não se limita à
promoção de hábitos e competências de leitura e escrita. Elena Zapata citava José Rivero há
pouco mais de dez anos, num dos seminários preparatórios da mais recente versão do Manifesto
da UNESCO Sobre Bibliotecas Públicas: “ellos são excluidos por no saber leer e no saben leer
porque são excluidos” (op. cit., p.71). Hoje, poderíamos falar de formas mais sofisticadas de
exclusão: excluídos por não saber usar as tecnologias da informação e comunicação, excluídos
por não possuir os equipamentos necessários para aceder à informação, excluídos por não
saber pesquisar, seleccionar, avaliar, processar informação. Inclusive sem falar das competências
necessárias para realizar a maior parte dos trabalhos no mercado de emprego actual, a verdade
é que, praticamente sem excepção, todos os serviços, públicos e privados, utilizam nos nossos
dias formas variadas de relacionamento digital com os cidadãos – os bancos, o comércio, a
administração pública, os museus, as telecomunicações… –, o que transforma os vários novos
tipos de literacia, nomeadamente a informática e a informacional, em capacidades essenciais
para a vida quotidiana dos cidadãos.
É assim que a simples existência de computadores e acesso à Internet nas bibliotecas públicas
faz delas um factor de inclusão social: contra todas as expectativas, a tendência de evolução
destes equipamentos na sociedade informacional não implica o abandono da sua utilização
057
física por parte de um grupo dominante de estudantes e utilizadores de classe média que a
substituem pelos seus serviços virtuais ou por outros recursos de Internet; ao contrário, reforça
a sua utilização como redes de apoio social onde podem encontrar-se todo o tipo de pessoas,
058
incluindo aquelas que são marginalizadas por outras organizações e que encontram aqui um
serviço capaz de combater as deficiências sociais em aquisição de informação e na fruição de
produtos culturais ou de lazer diversos (cf. Skot-Hansen, 2002).
Em todo o caso, sem o esforço coordenado entre a vontade objectiva dos centros políticos de
decisão e a vontade de cooperação horizontal dos actores locais, não apenas os técnicos, mas
a própria comunidade, a biblioteca dos livros impressos e do estudo silencioso nunca chegará
a ser a biblioteca dos cidadãos, o espaço de inclusão e conhecimento exigidos pela democracia
e socialmente construído a partir de um ambiente assumidamente híbrido e globalmente
alfabetizador. Aí os livros, a leitura, poderão finalmente, também eles, ganhar estatuto de
cidadania.
MANUELA BARRETO NUNES
Professora auxiliar e directora da Biblioteca da Universidade Portucalense. Licenciada em História pela Faculdade de
Letras da Universidade do Porto (1985), pós-graduada em Ciências Documentais pela mesma Faculdade (1991) e doutorada
em Documentação pela Universidade de Granada, Espanha (2003). Entre 1990 e 1999 exerceu a actividade de bibliotecária
nas Bibliotecas Municipais de V. N. Famalicão e Vila Verde, tendo sido responsável pela organização e planificação dos
serviços destas bibliotecas no âmbito da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas.
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70-81. Também disponível em Libri, vol. 44, nº 2 (1993),
p. 123-129.
059
CAPÍTULO III
PLANOS PARA
A DINAMIZAÇÃO
DE LEITURA
061
1. PROMOÇÃO DA POESIA EM CONTEXTO ESCOLAR
Cristina Maria da Cruz Forte
Resumo
A partir da implantação da biblioteca escolar desenvolvem-se práticas de estímulo à leitura
através de um chamamento centrado em temas dos quotidianos juvenis. O objectivo fundamental
é que a escola funcione como comunidade simultaneamente educativa e interpretativa.
Palavras-chave
Escola, Biblioteca Escolar, Poesia.
A educação como um processo de aprendizagem e de mudança, não só através do ensino
mas também através de outras experiências.
Projecto Educativo de Escola (2007)
062
A Escola Secundária do Forte da Casa, criada em nos anos 80, assegura o 3º Ciclo do Ensino
Básico e o Ensino Secundário a cerca de 1000 alunos, integrando jovens de diferentes culturas
e origens familiares, incluindo numerosos africanos, timorenses e emigrantes do Leste europeu.
Embora tenha deixado de oferecer Ensino Nocturno em 2005, no ano lectivo de 2006-2007
oferece ainda dois Cursos de Educação Formação (Acção Educativa e Informática) e cinco
Cursos de Tipo Profissional (CET nível 3: Turismo, Banca e Seguros, Ordenamento de Território,
Acção Social e Informática)
Estrutura integrante da Escola, a Biblioteca Escolar Centro de Recursos Educativos, designada
Cresforte e integrada na Rede de Bibliotecas Escolares em 1997, assume a promoção da leitura
como uma das dimensões essenciais do seu papel educativo. Apresentamos em seguida
algumas actividades que vêm sendo dinamizadas, de forma regular, pelo Cresforte, com boa
adesão dos alunos e apreciação positiva de professores, pais e demais elementos da Comunidade
Educativa.
Participar para melhor aprender
A filosofia da nossa escola insere-se num processo que pretende auxiliar os alunos na tomada,
ou reformulação, de decisões que possam influir na promoção e consolidação do seu próprio
processo educativo e na sua preparação para o ingresso na vida activa ou para o prosseguimento
de estudos e na melhoria da qualidade do ensino.
• Objectivos: Apoio, acompanhamento e orientação dos trabalhos de pesquisa e desenvolvimento
curricular dos alunos.
• Local: Biblioteca Escolar / Cresforte. Escola Secundária do Forte da Casa (2007)
• Actividades: Acolhimento, atendimento, apoio pedagógico, serviços de impressão, scanner
e fotocópias, empréstimo domiciliário (livros, vídeos e CD’s), leitura em livre acesso... Debates,
exposições, pesquisas na Internet e em suporte audiovisuais.
Projecto escola solidária
• Coordenação: Profs. Cristina Cruz Forte e Isabel Braz • Local: Cresforte
• Objectivos: Actividades de intercâmbio de informação, livros e outros materiais com instituições
educacionais dos PALOP.
PES - Programa educação para a saúde
• Coordenação: Prof. Cristina Cruz Forte
• Psicóloga: Isabel Carvalho
• Parceria com o Centro de Saúde de Forte da Casa
• Local: BE-Cresforte – Gabinete dos SPO
• Actividades: Consulta de Educação Sexual – Centro de Saúde
• Objectivos: Dinâmicas de grupo para trabalhos de Projecto
• Actividades: Acções de sensibilização sobre Educação Sexual e Prevenção de comportamentos
de Risco.
Promoção da poesia
Na Escola Secundária de Forte da Casa é usual articular este tipo de actividades com a Semana
do Amor, que coincide com a comemoração do Dia dos Namorados, 14 de Fevereiro, com o
Mês ou a Semana do Português. Assim, a promoção do Livro e da Leitura está programada
pelos três períodos lectivos. O poema a seguir apresentado foi um dos que foram trabalhados
como os alunos, na Semana do Amor, dando origem a mais leituras da mesma autora, bem
representada na colecção da Biblioteca, e à produção de textos originais.
EU CHAMEI-TE PARA SER
Eu chamei-te para ser a torre
Que viste um dia branca ao pé do mar.
Chamei-te para me perder nos teus caminhos.
Chamei-te para sonhar o que sonhaste.
Chamei-te para não ser eu:
Pedi-te que apagasses
A torre que eu fui a minha vida os sonhos (que sonhei).
Sophia de Mello Breyner Andresen
in Coral
Os Encontros com os Autores são programados de acordo com a disponibilidade dos editores
ou dos próprios e a articulação ao nível escolar é feita pelas professoras coordenadoras do
CEL e pela coordenadora da BE/CRE.
063
A promoção da Poesia em contexto escolar é integrada no Plano da Actividades da Biblioteca
Escolar, em parceria com o Departamento de Português de Línguas e Literaturas Modernas
e com a Comunidade Escolar de Leitores, CEL.
064
Comunidade escolar de leitores
O único conselho que realmente se pode dar sobre leituras é o de não aceitar conselhos,
seguir o próprio instinto, usar o próprio discernimento e chegar às suas próprias conclusões.
Afinal, que regra pode estabelecer-se sobre os livros?
Virginia Woolf
How should one read a book (1926)
Sentir? Sinta quem lê!
Fernando Pessoa
Uma Comunidade de Leitores é um grupo de pessoas que, gostando de ler, se reúne regularmente
para, em conjunto e através da troca de pontos de vista, partilhar as suas experiências de leitura
de livros previamente seleccionados. Os encontros constituem-se, pois, como tertúlias de debate
e reflexão sobre temáticas diversas, tendo sempre como ponto de partida a obra literária.
Os alunos têm a possibilidade de se inscrever nas actividades da comunidade de leitores, que
também programa sessões abertas de leitura e análise de obras escolhidas pela coordenação
do projecto; no entanto, gostaria de acrescentar a título prático, que a motivação para a adesão
a este tipo de actividades/projectos está em muito relacionada com a motivação da coordenação
do mesmo projecto e pela qualidade de trabalho que estes professores realizam junto dos seus
alunos, especialmente das turmas que leccionam, pois esse grupo, que é mais motivado pelo
seu professor no decorrer das suas aulas, passa a ser um foco de interesse, a que se sucede o
efeito de “onda” aos restantes ainda não “convertidos” aos hábitos de leitura.
COMUNIDADE DE LEITORES
Sentir? Sinta quem lê!
Fernando Pessoa
FICHA DE INSCRIÇÃO
Nome:
065
Ano:
Turma:
Horário pretendido (assinalar com um X):
5ª Feira: 11:45
5ª Feira: 14:15
As Feiras do Livro são também uma referência importante nesta animação, podendo contemplar
o livro usado, de língua estrangeira, os livros disponibilizados por uma livraria da nossa
confiança.
Esta actividade é muito apreciada por todos os elementos da Comunidade Educativa, uma vez
que não existe na freguesia nenhuma livraria, e esta é a nível local uma das únicas possibilidades
de aquisição de livros. O contacto directo com as obras, a possibilidade de reler títulos, o
manuseamento dos livros, são atitudes que parecem não ter relevância, mas em muito
contribuem para o sentimento da possibilidade de se sentir o livro ou a obra cujo tema há muito
desejaríamos ler…
Claro que as rifas também funcionam bem para quem realmente tem uma grande vontade de
comprar livros investindo menos dinheiro, articulada com os próprios ou com as editoras que
os representam. Esta actividade é regular, desde da abertura da biblioteca escolar em 1995,
e coincide geralmente com as épocas de final do período lectivo, isto é com o Natal e com as
férias.
A Poesia é uma forma delicada de se lidar com os sentimentos e com as emoções e transporta-nos para o mundo do imaginário e do fantástico, nunca menosprezando a realidade mas
refazendo-a e renovando-a, iluminando as mentes do autor e dos seus leitores...
Estando os jovens na idade da pré-adolescência, no turbilhão dos sentidos e dos sentires, nada
de mais apropriado e autêntico para a libertação dos "Eus", que uns ais... interiores, que
retratam o profundo dos seus estados de ansiedade psicológica.
Outra das vantagens tem a ver com os dizeres, que, de fácil leitura, são absorvidos rapidamente
pelos jovens leitores, transportando-os directamente a SI próprios.
A metodologia é facilmente adequada a dinâmicas de animação BE/CRE, e integra-se
perfeitamente num processo que se pode fasear em 5 etapas:
• Implementação do Plano de Actividades
066
• Contactos com as personalidades
• Aquisição, ou não, de obras relacionadas com a temática e com o(s) autor(es) a convidar
• Estudo biográfico e do percurso literário dos autores, (impresso num pequeno panfleto)
• Leitura das obras dos autores a apresentar à comunidade escolar.
Todo este processo é concretizado pelos professores de Português, da equipa da BE/CRE, e
está relacionado com os conteúdos programáticos.
No dia programado é accionado o modelo de apresentação à Comunidade Educativa, dando corpo
à intervenção dos alunos e de professores: poemas originais, ditos em sessão aberta na Biblioteca
da Escola, que poderão ser depois de seleccionados por um júri concelhio de professores de
Português, vindo a fazer parte de uma colectânea anual, editada pela Câmara de Vila Franca de
Xira, com prémios atribuídos em concurso entre as Escolas Secundárias do Concelho.
Relativamente aos convites de autores à escola, o processo é idêntico, mas muito mais vivenciado
por todos os presentes, pois as emoções das declamações levam ao rubro todos os presentes...
que passaram a ler mais poesia, e a senti-la de uma forma mais efusiva. Muitos passaram a
escrevê-la.
A realização destas actividades emociona e marca os nossos jovens, promovem a leitura e
abrem horizontes aos nossos Leitores que se desejam Eternos…
Eis alguns exemplos de textos originais de leitores da nossa Escola, produzidos no decorrer
destas actividades
FORÇA DE AMOR…
Não há nada nesta vida de maior
Do que o amor, se Deus não tem medida,
O amor ainda é maior… Amor ainda é maior.
Maior que o mar, que o céu…
Mas entre outros amores o meu ainda é maior…
Amor mais carinhoso, mais feliz é o meu.
Ele é que sabe, que abriu o meu céu…
Amor mais sensível mais bondoso
É aquele que eu tenho… se eu o perder
Dou descanso à minha alma condenada.
Ó força do Amor, abri as minhas asas em flores.
Para poder subir ao céu.
Para ir buscar semente de amor
Como o meu, para dar a toda a gente,
Para todos conhecerem o céu…
Alessandra Ferreira
Aluna do E. Secundário
Escola Secundária de Forte da Casa
A TI, ANA27
Que partiste…
Que viveste intensamente o espírito da natureza
Que amaste o verde, a limpidez das águas,
O azul dos céus, a liberdade das aves
Nas tuas longínquas viagens pelo mundo
E percorreste os caminhos das fantasias nas tuas leituras.
Partiste para uma nova vida em busca do Infinito e do Eterno
Que o teu exemplo de vida seja um Tributo para todos nós.
Descansa agora dos teus labores e sofrimentos.
Que a sensibilidade do teu Ser permaneça entre nós…
Anónimo
Professora
Escola Secundária do Forte da Casa
CRISTINA MARIA DA SILVA CUNHA DA CRUZ FORTE
Professora do Ensino Secundário, do Quadro da Escola Secundária do Forte da Casa. Coordenadora de Bibliotecas Escolares
Centros de Recursos Educativos. Coordenadora dos Projectos da Escola Secundária de Forte da Casa. Coordenadora do
Projecto de Promoção da Educação para a Saúde. Membro da Coordenação do Projecto Escola Solidária. Membro do
Conselho Pedagógico desde 1995. Colabora como tutora do Projecto THEKA, da Fundação Calouste Gulbenkian, na formação
professores coordenadores/dinamizadores de Bibliotecas Escolares, desde 2004. Licenciatura em História. Profissionalização
em Ensino. Curso de Especialização (Pós-graduação) em Biblioteca Escolares Centros de Recursos Educativos.
067
LISTAGEM DAS CHAMADAS DA OBRA
068
01
Texto adaptado de um outro, com título diverso, inicialmente produzido no âmbito de Dissertação de Mestrado em
Educação e Leitura na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, sob orientação do
Professor Doutor Justino de Magalhães (2007).
02
Tammaro, S. (2004). O menino que não gostava de ler, trad. Maria Luísa Jacquinet, 6ª ed., Lisboa, Presença, p. 17.
03
Ibidem, p. 31
04
Ivasckevicius, Marcus, À procura do leitor europeu, in Cartas da Europa : o que é europeu na literatura europeia, Lisboa,
Fim de Século, 2005, p. 110.
05
Olson, David R. La constitución de la mente letrada, in El mundo sobre el papel : el impacto de la escritura y la lectura
en la estrutura del conocimiento, Barcelona, Gedisa, 1999, pp. 285-310.
06
Manguel, Alberto, “Uma história da leitura”, trad. Ana Saldanha, Lisboa, Presença, 1998, p. 50.
07
É vasta a literatura sobre a psicolinguística da leitura. São incontornáveis os trabalhos de Emília Ferreiro e, em Portugal,
os das equipas da Universidade do Minho – Fátima Sequeira e outros – e do ISPA – Margarida Alves Martins, Ana Cristina
Silva. Da tese de doutoramento desta última (2005) destaco, a título de exemplo da complexidade referida no texto, no
campo do estudo da aprendizagem da leitura e da escrita na infância:
“Os ensaios infantis de escritas fonetizadas contribuem para o desenvolvimento da consciência fonémica. Naqueles, a
mobilização de letras com valor fonético não aleatório é mais provável de acontecer em palavras que incluem sequências
fonéticas idênticas aos nomes de letras, e essa activação parece apenas acontecer a partir do momento em que as
crianças já começaram a coordenar o universo gráfico com o universo sonoro. As características fonológicas do nome
das próprias letras mobilizadas para representar os sons das palavras podem contribuir para facilitar ou dificultar a
análise das palavras nos seus componentes fonéticos.
Apesar deste conjunto de dados sugerir que a consciência das unidades segmentais se pode desenvolver em estreita
relação com os conhecimentos que as crianças vão construindo, mesmo antes do ensino formal, sobre a linguagem
escrita, são ainda bastantes as questões que continuam sem resposta no que concerne à interacção entre o desenvolvimento
da consciência fonológica e das conceptualizações infantis sobre a escrita. Por exemplo, quais os níveis de consciência
fonológica que se desenvolvem em função dos sucessivos níveis de conhecimentos que a criança vai construindo sobre
a escrita? Ou por exemplo, mais especificamente, quais as competências fonológicas que são desenvolvidas com o
processo de fonetização da escrita em níveis pré-alfabéticos? “
08
Olson, o. c., p. 287 “En oposición a autores que van desde Aristóteles a Sassure, he afirmado que la escritura no es
la transcripción del habla sino que proporciona un modelo para ella; hacemos una instrospección del lenguaje en
términos establecidos por nuestras escrituras.”
09
Furtado, José Afonso, Os livros e as leituras : novas ecologias da informação, Lisboa, Livros e leituras, 2000, p. 189.
10
Furtado, José Afonso, o. c., p. 190.
11
Manguel, Alberto, analisa a valorização da leitura silenciosa, ao longo dos tempos, in “Os leitores silenciosos”, capítulo
de Uma história da leitura, trad. Ana Saldanha, Lisboa, Presença, 1998, pp. 53-65.
12
Chartier, Roger, trad. Leonor Graça, A ordem dos livros, Lisboa, Veja, 1997, p. 12.
“Um projecto deste tipo [realizar uma história da leitura] baseia-se num duplo postulado: que a leitura ainda não está
inscrita no texto, sem desvio imaginável entre o sentido que lhe é atribuído (pelo seu autor, a prática, a crítica, etc.) e
a interpretação que pode ser feita pelos seus leitores; que, corolariamente, um texto existe apenas porque há um leitor
para lhe atribuir um significado.”
13
O Autor reforçou estas ideias in Intervenção no I Congreso Nacional de Lectura, Cáceres, 5-7 Maio 2006, org. Ministério
de Cultura (Espanha) e Junta de Extremadura.
14
Brito, Joaquim Pais de, “Patrimónios e identidades : a difícil construção do presente”, in Patrimónios e identidades :
ficções contemporâneas, org. Elsa Peralta, Marta Anico, Lisboa, Celta, 2006, p. 50.
15
A leitura pública em Portugal.1983. A leitura pública em Portugal: Manifesto. Cadernos BAD, nº 1, pp.11-14.
16
Carvalho, A. M. & Pena, P. 2000. “O Portugal que deu certo”. Visão, 6 Jan.
17
alusão ao título de HERRING, Susan. 2004. Gender differences in Computer Mediated Communication : bringing familiar
baggage to the new frontier [em-linha]. http://www.cpsr.org/prevsite/cpsr/gender/herring.txt
18
[…] the notion of misuse is very broad. […] librarians see misuse not only as phenomena like the downloading of
pornographic, racist and Nazist material, but also changing the configuration of the computers, installation of start up
pictures of a dubious kind and different types of noise problems. (p. 310).
19
BOSMAN, Julie. 2007. With one word, children’s book sets off uproar. The New York Times. Feb. 18, 2007.
http://www.nytimes.com/2007/02/18/books/18newb.html
20
dispositivos semelhantes aos filtros para protecção ocular, fazem com que as informações no ecrã sejam visíveis apenas
a quem está directamente em frente do monitor.
21
Vd. João Teixeira Lopes, Escola, Território e Políticas Culturais, Porto, Campo das Letras, 2003, p. 65.
22
Vd. Elaine Showalter, “A crítica feminista no deserto” in Ana Gabriela Macedo (org.), Género, Identidade e Desejo –
Antologia Crítica do Feminismo Contemporâneo, Lisboa, Cotovia, 2002, p. 55.
23
Tradução da autora a partir da edição espanhola citada na bibliografia.
24
Bruce, Christine (1997), The seven faces of information literacy: as sete faces do Modelo Relacional manifestam-se na
concepção de (1) tecnologias da informação, (2) fontes de informação, (3) processo de informação, (4) controlo de
informação, (5) construção do conhecimento, (6) extensão do conhecimento e, finalmente, (7) a concepção de felicidade.
25
Dados de Dez. 2006, segundo a página Bibliotecas Públicas, no sítio do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas,
disponível em www.iplb.pt
26
No Manifesto da UNESCO sobre Bibliotecas Públicas (1994) a formulação usada é a seguinte: “os serviços da biblioteca
pública são tendencialmente gratuitos.”
27
Em memória da professora Ana Maria Gonzalez Monteio. Esta experiência de homenagear uma professora falecida
recentemente com uma poesia foi vivida por toda a comunidade escolar e pela sua família de forma muito intensa e
emotiva, dando uma vez mais grande ênfase à prestação educativa dos sentimentos e das emoções através da arte poética.
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FICHA TÉCNICA
Editor
SETEPÉS
Título
Práticas de Dinamização da Leitura
Coordenação Editorial
J. Henrique Praça
Coordenação Científica
João Teixeira Lopes
Coordenação da publicação
João Teixeira Lopes
Autores
Bárbara Aibéo
Cristina Cruz Forte
Henrique Barreto Nunes
João Teixeira Lopes
Maria José Vitorino
Manuela Barreto Nunes
Paula Sequeiros
Revisão de textos
Ana Telma Botas
Assistente Editorial
Márcia Pinto
Design
Carlos Mendonça
Pré-Impressão, Impressão e Acabamentos
Empresa Diário do Porto, Lda.
1ª Edição, 2007. Porto
SETEPÉS
ISBN: 978-972-99312-8-4
T +351 22 208 19 69/ 97 85
F +351 22 208 97 84
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