RICARDO AUGUSTO PEREIRA COTTA
Todo dia é o mesmo dia:
análise discursiva das chamadas da programação da TV Globo
Mestrado em Gestão de Negócios
Universidade Católica de Santos
Santos
2006
RICARDO AUGUSTO PEREIRA COTTA
Todo dia é o mesmo dia:
análise discursiva das chamadas da programação da TV Globo
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação stricto
sensu em
Gestão de Negócios da
Universidade Católica de Santos, como
requisito parcial para obtenção do grau
de Mestre em Gestão de Negócios, sob a
orientação do Prof. Dr. Antonio Carlos
de Moura Freddo.
Universidade Católica de Santos
Santos
2006
Dados Internacionais de Catalogação
Sistema de Bibliotecas da Universidade Católica de Santos
SIBIU
Cotta, Ricardo Augusto Pereira
Todo dia é o mesmo dia: análise discursiva das chamadas da programação da TV
Globo./ Ricardo Augusto Pereira Cotta, Santos: [s.n.] 2006.
207 f.; 30 cm (Dissertação de Mestrado - Universidade Católica de Santos,
Programa de Mestrado em Gestão de Negócios)
I. Cotta, Ricardo Augusto Pereira. II. Título
CDU 65.01(043.3)
________________________________________________________________
COMISSÃO JULGADORA
______________________________________________
______________________________________________
______________________________________________
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou
parcial desta dissertação por processos fotocopiadores ou eletrônicos.
Local e data: _______________________________________
Assinatura: ________________________________________
DEDICATÓRIA
Pela educação e estímulos calcados mais na argumentação e senso crítico, do que pela
coerção física, dedico este trabalho em memória de meu pai.
“Mas não penses que te censuro. Se queres transformar-te num homem de
letras, e, quem sabe um dia, escrever Histórias, deves também mentir, e
inventar histórias, pois senão a tua História ficaria monótona. Mas terás de
fazê-lo com moderação. O mundo condena os mentirosos que só sabem
mentir, até mesmo sobre coisas mínimas, e premia os poetas que mentem
apenas sobre coisas grandiosas”1.
Obrigado pai.
1
Dizer do Bispo Oto a Baudolino. In: ECO, Umberto. Baudolino. 2.ed. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 44.
AGRADECIMENTOS
A minha mãe, minha irmã Patrícia e meus irmãos Luis e Cláudio que, sempre com
paciência, escutam minhas intermináveis análises e críticas sobre empresas televisivas.
A minha querida filha Letícia e meu sobrinho Luís Fernando por constantemente
resgatar em mim a esperança e a fé de que vale a pena buscar o bem.
A minha querida Daniela que ajuda a direcionar minha energia para o lado saudável e
belo da vida.
Ao meu orientador por fazer entender que liberdade não é abandono e desafio não
significa dependência, mas responsabilidade acadêmica.
E, a todos aqueles que, de uma forma ou outra, contribuíram com este trabalho.
O meu muito obrigado a todos.
RESUMO
Este estudo de caso único tem como objeto as chamadas da programação da TV Globo, já que
é a partir do âmbito interno que a empresa utiliza-as no próprio suporte midiático que
administra, ao agregar nelas o capital simbólico da gestão de negócios que empreende. Pelas
chamadas, a TV Globo vai além do simples cálculo utilitarista; e emprega-as para inúmeras
atividades num complexo emaranhado de variáveis, que servem de parâmetro e utensílios para
a solução das implicações que incidem sobre o campo de atuação da empresa, ao convergirem
e solucionarem as ambigüidades existentes no setor de rádio-difusão. As chamadas criam a
compatibilidade da construção do tema central da programação (entretenimento e
informação), conciliando-os aos interesses da publicidade num todo conexo de sentido, entre
a ordem social (repressão e gratificação), unidade nacional (cultura e coesão) e mercado
(satisfação dos clientes), ao facilitar expor a programação e potencializar a audiência quando
reflete os interesses da diversificação da oferta pela especialização da demanda. Com elas a
empresa fundamenta a disseminação de sua cultura corporativa, com vistas à dominação, em
virtude da crença na validade do estatuto legal e da competência funcional para guiar os
próprios filiados (funcionários e clientes). Fruto de uma manipulação lingüística, as chamadas
favorecem a TV Globo na reconstrução da realidade que dissemina, ao encurtar o espaço entre
a própria administração e as práticas rotineiras da organização com base no domínio das
relações impessoais numa manobra que contorna a questão comercial. As chamadas são
utilizadas no sistema de televisão por se valerem da convergência ideológica que garante
solucionar as implicações derivadas da multiprogramação, a qual tem reflexos diretos sobre os
índices de audiência, conciliando-os, novamente, à demanda publicitária.
Palavras-chave: TV Globo, Rede, Chamadas, Sistema Analógico, Sistema Digital.
ABSTRACT
The main objective of this case study is the focus on the Brazilian leading TV network Globo
TV strategy of advertising its own program schedule throughout its daily broadcasting. The
company supports on this in-company tool in order to add further value and “simbolic capital”
to its business administration. Throughout this own advertisement strategy Globo TV goes
beyond the simply ad strategy utilitarian use once this tool comprises uncountable activities
based on a very complex variable web that serves as parameters and utensils to solve
problems regarding the company’s market focus since this strategy converges and finds
solutions to the usual existing broadcasting market ambiguities. This strategy makes up the
compatibility of building up its programming core (entertainment and news), along with the
conciliation of marketing and publicity needs and interests under a whole meaning nexus,
among social order (repression and gratification), nationalwide uniy (culture and cohesion)
and market (customer satisfaction) and enables Globo TV to easily introduce its programming
and maximize its audience rates at the same time that reflects supply diversification interests
through demand specialization. Hence, Globo TV spreads its culture to dominate based on the
belief in company’s own laws and operating eficiency to guide its main partners: employees
and customers. This strategy gives further support to Globo TV on the reconstruction process
of the daily reality since it diminishes the gap between its own business administration and
company’s routines based on the whole controlling of non-personal relations through a way
that considers commercial issues. The own ad tool strategy perfectly works under the Digital
TV system too once it also takes advantage of the idelologic convergence that guarantees the
solution for the issues derived from the multiprogramming since the latter directly reflects on
the audience rates and reconciles them to the publicity demand.
Keywords: Globo TV, Network, Attract to a, Analogical TV, Digital TV system.
SUMÁRIO
Introdução.
10
Capítulo 1
As Chamadas como sentido da Rede (TV) Globo.
28
Capítulo 2
As chamadas como conversores do padrão de qualidade, da cultura e ritmo
da programação: os expoentes da televisão geralista.
53
Capítulo 3
As chamadas como conjunto de elementos simbólicos culturais no processo
de reprodução da empresa como poder hegemônico.
93
Capítulo 4
As chamadas como elo entre a administração e a prática organizacional:
o domínio nas relações impessoais.
117
Capítulo 5
Do sistema analógico para o digital: a convergência ideológica.
177
Considerações finais.
201
Referências bibliográficas.
203
INTRODUÇÃO
A televisão brasileira de sinal aberto passa por uma fase de renovação. Este período é
caracterizado pela transição do sistema analógico para o digital. Nesta fase, que está prevista
para durar uma década, as grandes redes de televisão do país (Rede Globo, Sistema Brasileiro
de Televisão – SBT, Record e Bandeirantes), além dos investimentos necessários para
adequar a produção aos novos paradigmas tecnológicos, se empenham, sobretudo, na
possibilidade de manter, ao menos nos atuais patamares, os índices de audiência que garante a
elas a rentabilidade da gestão de negócios que empreendem.
As emissoras de sinal aberto, para manter a audiência em níveis competitivos e que
proporcionem o retorno financeiro para cobrir custos e obter lucro, disponibilizam uma grade
de programação, com conteúdo e serviços, que satisfaçam os telespectadores, agências de
publicidade e anunciantes, pois são estes clientes, de fato, que tornam lógico a atuação das
emissoras televisivas de sinal aberto. Sem um destes fregueses, tem-se menos dos outros. A
preocupação com a audiência é fator de vida ou morte para as empresas do setor.
Este é o fator principal, pelo menos nesta fase de transição, do analógico para o digital,
que obriga sustentar, simultaneamente, em operação os dois sistemas. Além da adaptação a
um novo conceito de programação e serviços ofertados, esta fase é marcada pela batalha de
não se perder a audiência já consolidada ao longo dos anos de atuação no mercado, já que é a
audiência que acaba por delimitar o próprio posicionamento e o sucesso que cada empresa se
coloca e alcança.
A médio e longo prazo, a mudança para o sistema digital vai incidir diretamente sobre
tais índices de audiência, uma vez que, no sistema digital, além da interatividade com os
telespectadores, o que pode levá-los a desviar a atenção, há ainda, o fator da
multiprogramação que existe no sistema digital. No médio prazo, a entrada de novos players
no setor de rádio-difusão deve acentuar a disputada pela audiência.
11
Porém, é neste período de transição, que as empresas do setor devem se adaptar, e
ajustar a forma de manter a atenção dos telespectadores à grade de programação e serviços
ofertados, já que cada emissora (rede) passa a contar com múltiplos canais no mesmo espectro
de freqüência do mesmo sinal.
Isso quer dizer que as redes de televisão passam a implementar recursos que conciliem
oferta e demanda, para manter, na soma final, um índice de audiência satisfatório para
obtenção da verba publicitária. A tarefa não é fácil, uma vez que canais de programação
flexível, como os do sistema digital, apresentam características diferenciadas no arranjo da
programação e serviços voltados aos clientes conectados a ela.
Nesta corrida, a TV Globo e a rede que administra, é a que se sente mais ameaçada, já
que detém mais da metade da audiência entre todos os canais e quase 4/5 de toda a verba
publicitária destinada à televisão aberta. Entretanto, a empresa carioca, nos últimos anos, vem
se preparando para atuar no sistema digital, principalmente, por ter voltado seu foco quase
que exclusivamente para a produção de conteúdo e, assim, centrada nesta atividade, deve
preencher a programação dos novos canais com mais facilidade que os concorrentes. Por isso,
neste período de transição, salvo algum engano da administração, ela vai manter-se como
líder de mercado.
Desde que se consolidou nesta posição do setor, a TV Globo e a rede que administra,
vem superando desafios e mantendo um fluxo de audiência, num processo de retroalimentação. O principal fator para isso, é disponibilizar conteúdo e serviços considerados por
seus clientes como superior aos concorrentes, o que é entendido como sendo o que atrai o
público que ela serve. Entretanto, é preciso levar até este mesmo público as atrações e
serviços que estão sendo ofertados e comprometidos nos limites de critérios de qualidade que
o mercado entende como satisfatórios.
12
Isso se deve, não só por ela disponibilizar produtos e serviços considerados de nível
superior aos rivais, atendendo ao gosto da clientela, mas também, por se empenhar num
processo de retro-alimentação da própria audiência aproveitando-se, ela mesma, da
conectividade existente à sua rede.
Para isso, torna-se mais fácil e prático utilizar o próprio canal da emissora como
expoente da programação e instrumento potencializador do índice de audiência, num processo
contínuo desta retro-alimentação, já que se têm os próprios clientes conectados a freqüência
da emissora. A empresa, ao operar no mercado, indiferente de campanhas de marketing em
outros veículos de mídia, quando desenvolve campanhas publicitárias na busca de nichos
específicos de público-alvo, utiliza-se do próprio canal e rede, como veículo de comunicação,
para sua própria mídia. Assim, expõe a programação e serviços ao mesmo tempo que estimula
o despertar da atenção dos consumidores, colocando-os a par tanto da programação a ser
exibida, como estende os serviços à clientela, disponibilizados por ela.
É aí que reside a hipótese desta análise. Será que é possível, para a TV Globo, adaptar
as chamadas da programação, em rede nacional, do sistema analógico (qualificada pela
transmissão de uma grade de programação caracterizada por horários estanques, rígidos,
inflexíveis), para o do sistema digital, composto por múltiplos canais de programação
flexível?
No mercado brasileiro, a TV Globo é a emissora que mais tempo vem utilizando
chamadas da programação para a retro-alimentação das conexões dos telespectadores à ela e
sua rede e dos serviços ofertados. Porém, as chamadas da programação vão além de um
simples cálculo utilitarista para a empresa. Elas, as chamadas derivam de uma estratégia que
visa mais do que despertar o potencial de filiação. Elas são utilizadas, também, para várias
outras funções e objetivos.
13
As chamadas são, na realidade, funcionais para o emprego de inúmeras outras
atividades num complexo emaranhado de variáveis, que servem de parâmetro e utensílios para
a solução das implicações que incidem sobre o campo de atuação da empresa ao convergirem
e solucionarem as ambigüidades existentes no setor de rádio-difusão, e que, minimizando tais
questões, acabam por favorecê-la numa performance superior aos demais concorrentes.
É daí que fica evidente que se busca um enfoque de uma análise que não resvale e
permaneça apenas sobre a questão ideológica político-cultural. Mas, como o setor de rádiodifusão é complexo demais para ser abordado apenas por este prisma, é preciso,
obrigatoriamente, ir além, alargar este prima, e incluir neste rol os fatores econômicos,
técnicos, operacionais e administrativos que fazem parte deste contexto.
Um exemplo disso, pelo enfoque econômico, é de que, embora empresas deste tipo
operem numa conexão direta com os consumidores, estas devem atuar de forma que
perpetuem tanto o fluxo de conectividade, como evitar fatores de transtorno para os demais
concorrentes, e, é por isso, que há uma regulamentação do setor, pois assim evita-se que
fiquem sujeitas a fatores como: geração de ineficiência por parte de um dos competidores,
externalidade, falhas de mercado e a duplicação ineficiente de infra-estrutura1.
Em parte, a regulamentação existente na rádio-difusão explica a necessidade de se
manter sob controle à quantidade de empresas que atuam no ramo, mas, por outro, se não se
exclui o fator ideológico, já que a própria regulamentação acaba por ser usada como fonte
política de poder, ao limitar e provocar a concentração de um número reduzido de players no
setor, permanecer apenas sob o enfoque ideológico barra e impede o avanço duma análise que
abarque os inúmeros interesses e empecilhos que uma empresa do ramo precisa contornar
para atuar de forma que maximize as vantagens e minimize as dificuldades.
1
SIMÕES, Cassiano F.; MATTOS, Fernando. Elementos histórico-regulatórios da televisão brasileira. In:
BRITTOS, Valério C.; BOLAÑO, César R. (Orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia. São Paulo:
Paulus, 2005, p. 43-44.
14
Então, como a empresa atua num campo em que inúmeros fatores precisam ser
analisados,
isso exige identificar e delimitar um objeto que facilite acessar todas as
dimensões existentes no setor de rádio-difusão brasileiro.
Por isso, reconhece-se como o objeto de análise as chamadas da programação da TV
Globo que estão localizadas, exclusivamente, nos blocos comerciais, pois, além de facilitar a
transitividade sobre as várias situações que recaem sobre a rádio-difusão, em especial sobre a
TV Globo e sua rede, é por este mesmo objeto que se pretende dar conta de explicações, no
mínimo, satisfatórias, ao pontuar as questões políticas, econômicas, culturais e sociais
intrínsecas ao setor (radiodifusão) e à empresa.
Logo, entende-se como chamada da programação, a “mensagem publicitária geralmente
curta em que se anuncia um evento a ser promovido pelo próprio veículo” de comunicação ou
empresa de mídia2.
O tema central desta dissertação, portanto, são as chamadas da programação
disponibilizadas e transmitidas pela TV Globo e, retransmitidas pelos nós da Rede que a
empresa controla. Todavia, esse discurso de chamamento pode ser encontrado de forma
diferenciada nos diversos programas que a empresa disponibiliza na programação, bem como,
também, nos próprios blocos comerciais. Nesse caso, diferenciam-se das chamadas em pauta,
por serem entendidos como uma outra forma de marketing, e que são concebidos aqui, como
sendo um “merchandising” e, portanto, não fazendo parte do objeto desta análise.
Marketing “nada mais é do que a estratégia que a empresa utiliza para a comercialização
de seus produtos, de forma a gerar o melhor lucro possível, a longo prazo”3. Já o termo
merchandising é entendido como a “ação de ampliar o rendimento de uma campanha de
2
3
SILVA, Zander C. da. Dicionário de Marketing e Propaganda. 2. ed. Goiânia: Referência, 2000, p. 132.
Ibid, p. 291-292.
15
propaganda. Qualquer implementação feita à propaganda preparada para o produto, a fim de
ampliar o rendimento dessa propaganda”4, é merchandising.
Estas mensagens consideradas como merchandising podem ser identificadas em
telejornais, em determinados programas de auditório, na ficha de apresentação dos créditos
exibidos no final de cada programa, incluindo aí, também, as vinhetas que sinalizam o
término ou início do bloco da programação que está sendo exibido e, em especial, ainda, em
pacotes de patrocinadores voltados para agências de publicidade e anunciantes.
No caso de telejornais, tais mensagens aparecem constituídas em forma de conteúdo
jornalístico. Transformadas em informação, ao serem anunciadas, ganham status de notícia.
Neste caso, esse merchandising é tipificado aqui como marketing jornalístico5. Em shows e
espetáculos de auditório, nos programas transmitidos pela empresa, os apresentadores
constantemente anunciam a programação da casa.
No caso da ficha técnica, conhecida no mercado como créditos, e que são exibidos após
o término de cada programa, têm a característica de sempre serem feitos por um narrador, um
locutor que não aparece (off), o qual informa a próxima atração. Ressalta-se que nas vinhetas
que sinalizam o início do bloco da programação ou, término do programa, na transmissão de
filmes, quando são seguidas pelo conhecido “plim-plim”,6 por exemplo, estas são tidas como
uma forma de merchandising, não se caracterizando como sendo as chamadas.
Há, também, que se destacar, a existência de patrocinadores exclusivos. Muitas vezes, o
pacote de propaganda comercializado com a agência de publicidade ou anunciante, inclui um
pronunciamento da atração que pode estar sendo oferecida por algum patrocinador. Neste
caso, reconhece-se este tido de publicidade como sendo chancela ou spot.
Spot pode ser caracterizado como um
4
SILVA, Zander C. da. Dicionário de Marketing e Propaganda, p. 296.
HARDT Michael; NEGRI, Antonio. Império. 2. ed. Record: Rio de Janeiro, 2001, p. 170–172.
6
Aspas minhas.
5
16
anúncio gravado, com voz e efeitos sonoros, mas sem música e canto como
no jingle. Além dessa acepção, que é divulgada no Brasil, ‘spot’ é para os
americanos, o mesmo que texto avulso de rádio, isto é, o anúncio feito entre
dois programas ou entre dois números musicais e independentemente destes.
Neste último sentido é o oposto de ‘comercial’, que é parte comercial de um
programa7.
Já Chancela “é o crédito do patrocinador na abertura e/ou encerramento de um
programa ou evento, em geral uma menção curta de cinco a dez segundos, composta por uma
breve imagem, slogan e marca”8.
Outra questão a ressaltar, é que não se considera como sendo as chamadas, as
propagandas dos diversos produtos do Grupo Globo que são anunciados nos blocos
comerciais ou na programação da emissora. As propagandas destinadas ao terceiro setor,
voltadas, sobretudo, para campanhas de prevenção ou orientação da população, quando
recebem o apoio da empresa, também são descartadas. Em todos esses casos, estas
convocações, não se constituem no objeto delimitado e entendido como as chamadas da
programação da TV Globo localizadas, exclusivamente, nos blocos comerciais da
programação.
Optou-se por um estudo de caso único, a TV Globo e suas chamadas da programação,
pois, é por meio destas que se torna possível condensar em um único estudo a plausibilidade
de suas implicações no conjunto de diferentes dados e como se ajustam uns aos outros. Esse
estudo de caso único recai sobre a TV Globo, também, pelo fato da empresa, além de ser a
que mais tempo e com mais freqüência recorre a este expediente (as chamadas) no país,
considera-se que a emissora está no centro das grandes polêmicas que envolvem a rádiodifusão, como faz parte da cena e do processo histórico do Brasil nos últimos 50 anos. E,
também, por constituir-se líder de mercado, que ao longo destes anos de atuação, é a empresa
que vem demonstrando um profissionalismo da gestão empresarial superior aos demais
concorrentes do setor, com inovações administrativas, tecnológicas e operacionais.
7
8
SILVA, Zander C. da. Dicionário de Marketing e Propaganda, p. 384, aspas do autor.
TV GLOBO. Comercial. Disponível em: <http://comercial.redeglobo.com.br>. Acesso em: 23 mai. 2005.
17
Outro motivo que levou à preferência ao estudo de caso único, é meu conhecimento dos
meandros da Rede Globo. Como profissional de mídia, já tive a oportunidade de atuar como
repórter e apresentador junto a Rede Globo, em duas de suas afiliadas, EPTV Sul de Minas
(MG) e TV Tocantins (GO). Essa experiência, no cotidiano da rede, permite-me concatenar a
fundamentação teórica e distanciar-me de uma visão, exclusivamente, ideológica sobre a
empresa.
Assim sendo, a fundamentação teórica permite explicar mais que o fator ideológico,
mas, também, as implicações, provenientes das mais diversas áreas e campos, que recaem
sobre a radiodifusão e a própria TV Globo, levando a empresa a atuar de maneira peculiar
para obter a supremacia no mercado.
O referencial teórico utilizado baseia-se em Michael Porter, que possibilita corelacionar as chamadas como ferramentas que se compatibilizam às atividades da empresa,
bem como, delimita-se a questão da estratégica, ao tornar possível entender que a empresa, ao
considerar os blocos comerciais como parte do todo de sua programação, colocou-se numa
posição que lhe deu a vantagem competitiva frente a seus concorrentes.
Esta dissertação se apóia nos aportes teóricos que descrevo a seguir.
Com Habermas, Perelman e Olbrechts-Tyteca, acessa-se o caráter de ação comunicativa
das chamadas que na realidade, resultam de uma ação estratégica, ao utilizá-las de modo
instrumental, levando a empresa a recorrer a um processo de manipulação lingüístico para ver
concretizado seus objetivos. A ordenar ações instrumentais a seus filiados, resulta não só nos
índices de audiência, mas alcançadas na submissão dos sujeitos ao poder da empresa.
Em Sennett, pode-se demonstrar as conseqüências pessoais do trabalho no novo
capitalismo, e como a flexibilização do trabalho afeta a população, pois a mudança de
paradigma, da produção rígida para a flexível, ao atingir os indivíduos dispersos no campo
social, leva-os a comportamentos flexíveis e relações interpessoais de curto prazo. As
18
condições que permitiram a produção flexível no capitalismo, na pós-modernidade, provém
de Harvey. As apreciações sobre rede, Era da informação, matrizes tecnológicas, cultura de
massa e sociedade, decorrem de Castells, Adorno e Horkheimer.
Gareth Morgan fornece, com seu Imagens da Organização, o meio que permite entender
como as chamadas tornam-se uma simbologia da organização holográfica, em que o todo está
nas partes, facilitando a disseminação e a absorção da cultura corporativa por todos aqueles
que se ligam à TV Globo.
Com Oliven e Da Matta, elucida-se o processo de dominação e subordinação que se dá
e ocorre na sociedade brasileira, fornecendo subsídios que permitem relacionar as várias
questões sociais, políticas, econômicas, do trabalho, da violência e como as empresas da
rádio-difusão se colocam neste processo.
A questão dos critérios de produção, de qualidade, da publicidade e a relação entre estes
fatores e a TV Globo, vem de Ortiz Ramos. Com Benjamin pode-se identificar, como se deu,
desde a primeira metade do século XX, a forma e o modo que evidenciaria a questão da
velocidade das imagens e o processo de ruptura e retomada destas, influindo diretamente nos
discursos iconográficos da televisão, desde então, e até hoje, como meios de representar uma
ação.
As críticas construtivas do entusiasta e admirador da televisão brasileira, o francês
Dominique Wolton suportam o entendimento entre televisão e público como algo que vai
além da dominação. Basicamente são estes autores que contribuem teórica e conceitualmente
para esta análise.
Quanto à análise em si, destaque para Norman Faircloug, com sua Análise de Discurso
Teoricamente Orientada (ADTO), pois permitiu conciliar as chamadas a “um modo de ação,
uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros,
19
como também um modo de representação”9. O autor fornece subsídios que imputam à questão
ideológica, valor transitivo e não estanque. Essa foi o vértice de apoio encontrado para
analisar-se as chamadas, visto que o autor, ao abordar o discurso e a análise de discurso, reúne
uma variedade de abordagens teóricas e métodos que proporcionam “estudar as dimensões da
mudança social e cultural” e, ao expor os debates correntes “concernentes ao discurso”, tanto
ao poder e à ideologia, serve também como um guia prático para a análise de textos”10,
permitindo a utilização de outros autores, para a análise que aqui se propõe.
Isso, sem esquecer de Brittos e Siqueira Bolaño, que esclarecem a questão da empresa
hegemônica de poder, a partir das idéias de Gramsci, ou do que seja a definição de
consumidor de empresas televisivas, como por exemplo, qual o índice mais adequado para se
medir a audiência, além de explicar a regulamentação do setor de rádio-difusão e sua
complexidade.
Já Freddo facilita o acesso e torna compreensível a leitura de Habermas e sua teoria da
ação comunicativa, bem como oferece interpretações aos conceitos ligados a área da
administração. Rocco, por outro lado, elucida a Nova Retórica, de Perelman e OlbrechtsTyteca, e facilita a análise de como as chamadas são arquitetadas no discurso.
Quanto a questão da TV Digital, buscou-se em Gerard O’ Driscoll, com seu The
Essential Guide to Digital Set-Top Boxes and Interactive TV, uma forma de pontuar as
principais características do sistema de TV Digital adotado no Brasil. O que precisa ficar claro
é que, não há a intenção de avaliar o Sistema de TV Digital Brasileiro Terrestre (STVDB-T),
embora, a partir de suas nuances, compreender porque a preferência, a um tipo específico de
sistema digital, foi adotado no Brasil e, como as chamadas são trabalhadas na programação
flexível.
9
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: ed. Universidade de Brasília, 2001, p. 91.
Ibid, p. 130-131.
10
20
No entanto, embora a fundamentação teórica tenha permitido levar adiante o processo
de análise das chamadas da programação da TV Globo, bem como minha experiência na Rede
tenha ajudado na orientação do caminho traçado, a proposta que se faz é a de analisar as
chamadas da programação da TV Globo quando são exibidas, ou seja, aquilo que se pode ver
nelas, durante a exibição da programação, portanto, o objetivo desse estudo é demonstrar, pela
Análise Discursiva que, as chamadas da programação da TV Globo são utilizadas para
múltiplas funções e, não apenas, um meio de expor produtos e serviços ou, simplesmente
agendar o cotidiano de seus filiados. Na realidade, as chamadas são elos entre a administração
e as práticas da empresa.
Contudo, além da fundamentação teórica, recorre-se a outras fontes de dados, como
periódicos, anuários, revistas, tabelas, assim como à World Wide Web e outros bancos de
dados eletrônicos, inclusive, o home page da TV Globo e suas afiliadas. A intenção é refletir
sobre aquilo que é visto e mostrado durante a transmissão da programação da emissora, sem
que houvesse a necessidade de recorrer, propriamente dito, à própria TV Globo ou, à alguma
assessoria e departamento específico dela. Tem-se, pois, a intenção de analisar as chamadas a
partir daquilo que é de domínio público.
Os fatores envolvidos na pesquisa forçaram a adoção do procedimento metodológico do
estudo de caso único, por se tratar de um método que “amplia a dimensão da lógica de
planejamento, das técnicas de coleta de dados e das abordagens específicas para a análise dos
mesmos e”, além de abrir espaço, também, “para observações subjetivas”11.
A pesquisa tenta dar conta dos fenômenos identificados na investigação, que derivam
das várias fontes de evidências a partir da triangulação entre proposições teóricas, dados
coletados e analisados. Logo, este estudo de caso único possibilita explicar “os supostos
11
YIN, Robert K. Estudo de Caso: planejamento e métodos. 3. ed., Porto Alegre: Bookman, 2005, p. 34-35.
21
vínculos causais em intervenções da vida real ao facilitar a investigação de um determinado
tópico por um conjunto de procedimentos pré-especificados”12.
Para isto, ao desenvolver este trabalho, fez-se necessário coletar os dados de múltiplas
formas. Sendo este repertório de dados recolhidos das informações históricas nos mais
diversos formatos, observações diretas da realidade dos acontecimentos em tempo real,
contextuais, e mais a utilização de fitas VHS, onde se encontram as provas materiais
iconográficas, recolhidas para observação e analisadas e que servem como amostra do
conteúdo transmitido pela Rede Globo de Televisão, diariamente. Desta forma, tornou-se
viável desenvolver a performance analítica pertinente aos aspectos operacionais e de gestão
que levam a empresa a entregar os produtos e serviços por ela gerados, fazendo dela a
empresa que mais se destaca no mercado, no setor de radiodifusão, frente aos demais
competidores, e na sociedade.
Assim, como a pesquisa se baseia, em parte, na programação da emissora, no mesmo
mês em que a TV Globo comemora 40 anos de atividades ininterruptas, compreendendo
ainda, os dois meses subseqüentes a este e, inclusive em função disso, da comemoração das
quatro décadas de atuação da empresa no mercado brasileiro de televisão de sinal aberto que,
considera-se tal data, um dos fatores que estimulou essa análise.
Outro motivo que gerou essa pesquisa, e aí, pode-se dizer que bastou controlar a
ansiedade e o temor, já que, como havia, tanto o interesse econômico e político dos grupos
que controlam ou participam diretamente na manutenção do setor de rádio-difusão no Brasil,
entende-se, a partir do momento em que se definiu a opção pelo modelo de televisão digital,
de matriz japonesa, consolidou-se como acertada a escolha das chamadas como objeto de
análise.
12
YIN, Robert K. Estudo de Caso: planejamento e métodos, p. 34-35.
22
Para ficar nítido do que se trata aqui, é preciso deixar claro que, mesmo sendo o início
da coleta dos primeiros dados dessa pesquisa, as chamadas, estar situada no período em que o
país definia a adoção de um modelo de TV Digital, o que de fato se confirmou após pouco
mais de um ano e, que teve como opção a matriz tecnológica japonesa para o Sistema de TV
Digital Brasileiro, isso, ao invés de atrapalhar, acabou por corroborar na validação e acerto da
escolha do objeto, ou seja, as chamadas da programação, uma vez que é por elas que se faz
possível compreender todas as variáveis que incidem sobre a TV Globo e, por tabela, das
empresas televisivas de sinal aberto que atuam no setor de rádio-difusão, bem como, do fator
político que envolve a manutenção do setor, portanto, são pelas chamadas que se entende o
porque da escolha específica de um modelo digital para o Brasil. Por isso mesmo que, mesmo
que as chamadas da programação em análise sejam originárias do ano em que a empresa
comemora 40 anos, isso, por si só, em nada prejudica o entendimento e a compreensão desse
trabalho.
Daí que, no mês de abril de 2005, é que se inicia a coleta de dados que servem de base
para esse estudo. É neste mês, a cada ano, em que a emissora carioca estréia a nova
programação da rede, que permanecerá, basicamente, a mesma, pelos 12 meses subseqüentes.
Baseado, portanto, em 546 horas de gravação de parte da programação da emissora,
perfazendo um total de 91 dias, durante os meses de abril, maio e junho do ano de 2005, no
período do dia em que a empresa passa a registrar a maior audiência, frente às demais
emissoras de outras redes, (das seis da tarde à meia noite), é que se recolhe o material
utilizado, para pontuar e avaliar o objeto desta pesquisa.
Concomitantemente a isso, metodologicamente, há o embasamento teórico que transita
pelas áreas da sociologia, da própria administração, da antropologia e da economia-política,
mais as teorias que se ligam à análise de discurso (lingüística), tornando viável as necessárias
e devidas transposições teóricas e, assim, demonstrar como as chamadas são fundamentais
23
para a TV Globo no sistema digital de televisão, onde ela passa a desfrutar de múltiplos
canais. Porém, ressalta-se que, como o sistema digital não está implantado e em operação, as
análises partem, sobretudo, das chamadas da programação da TV Globo no sistema analógico.
Vale ressaltar que a questão da observação das chamadas resulta, também, em dados
quantitativos. Desta maneira, há a alternativa por uma coleta das imagens da transmissão da
programação da emissora, por amostragem proporcional, que se orienta em referenciais de
parâmetros estatísticos13. Assim, o material gravado da programação representa ¼ do
conteúdo transmitido pela emissora durante 24 horas do dia. Isso também é proporcional a
25% de todo o conteúdo transmitido pela emissora durante os três meses da coleta, e,
matematicamente, se tornam 25% do conteúdo transmitido ao logo dos 365 dias do ano. Tal
proporcionalidade leva a uma média quantitativa das chamadas da programação em cada
bloco comercial, tanto do dia como do ano.
Quanto ao custo disso para a empresa, como está se avaliando as chamadas apenas por
aquilo que se vê durante as transmissões da TV Globo e sua rede, e, embora não seja o
objetivo desta pesquisa, esta análise se baseia em alguns dados equivalentes e suscetíveis de
aumento e diminuição. Daí, tem-se como referencial, os valores considerados pela média
aritmética daqueles que constam na própria tabela comercial da emissora, voltada para o
mercado nacional. Como empresas televisivas, baseiam seus cálculos numa relação
matemática entre espaço publicitário a ser alocado, quantidade de segundos, tipo de programa
versus público-alvo, horários e percentual de expectativa de alcance de público, para estipular
os valores monetários diferenciados a cada hora, adotou-se uma média de preço referente a
cada período do dia. Para a parte da manhã, tem-se um preço médio, para o vespertino outro e,
assim sucessivamente.
13
SOMATEMATICA. Proporcionalidade. Disponível em: <http://www.somatematica.com.br>. Acesso em: 29.
out. 2005.
24
Como a empresa atua em três níveis do mercado ao mesmo tempo: o nacional, o
regional e o local, o dados referentes às informações provenientes das imagens da
programação foram gravadas da transmissão e retransmissão da afiliada da Rede Globo para a
Baixada Santista e Vale do Ribeira, a TV Tribuna, localizada na cidade do litoral paulista de
São Vicente14.
Embora haja a dificuldade logística da coleta de material da transmissão da
programação em cada ponta do sistema, o que não apenas é dificultoso, mas, como cada nó da
Rede pode modificar, sob determinadas situações, à quantidade de chamadas nos blocos
comercias da programação retransmitida, tanto em âmbito regional, quanto local, deliberou-se
pela opção de coletar as provas da transmissão de uma única afiliada.
O fato da TV Globo não tornar público os dados referentes a custos e quantidade de
vezes que as chamadas são inseridas nos blocos comerciais ao longo do ano, por todo o
sistema que envolve a Rede Globo de Televisão, serviu como estímulo para o
desenvolvimento desta análise revelando, assim, o grau estratégico e a importância que elas
adquirem para o Sistema Globo de Televisão.
E é aí que esta análise se torna instigante, pois as chamadas, ao serem constituídas em
forma de textos (imagem, verbal, escrita etc.) são na realidade a meio simbólico pelo qual a
empresa expressa a manipulação que recai sobre seus filiados, bem como, cria um elo entre a
gestão e a prática operacional dos produtos e serviços que oferta.
Isto significa dizer que não se está invertendo a ordem dos fatos. É preciso deixar claro
que não se objetiva valorizar as chamadas da TV Globo, em detrimento da programação dela.
Primeiro vem a programação, depois as chamadas da programação. Portanto, ressalta-se que o
objeto é corolário à programação e aos serviços proporcionados pela emissora.
14
TV TRIBUNA. Comercial. Disponível em: <http://tvtribuna.globo.com/datafiles/capa/comercial/atlas_de_cobertura/atlas_de_cober-tura.htm>. Acesso em: 21 jul. 2005.
25
Contudo, é por este objeto, pelas chamadas, que se torna possível entender os processos
que explicam a performance da empresa, já que na realidade, as chamadas se constituem em
textos, em arestas, que se colocam entre os dois lados da empresa, o âmbito interno e o
externo a ela. Por isso, as chamadas da programação da TV Globo tornam-se relevantes, já
que é por elas que esta dualidade ganha contorno e evidencia a gestão que a empresa
empreende, ao demonstrar o sentido que o discurso adquire, além do contexto, dos fatores
sócio-históricos, dos mecanismos daquilo que a emissora organiza, fabrica e oferece na forma
de produtos e serviços, mas que também ocultam e instrumentalizam uma forma de
dominação sobre todos que se filiam à ela.
A primeira concepção de texto, entendido como objeto de significação, faz
que seu estudo se confunda com o exame dos procedimentos e mecanismos
que o estruturam, que o tecem como um ‘todo de sentido’. A esse tipo de
descrição tem-se atribuído o nome de análise interna ou estrutural do texto.
Diferentes teorias voltam-se para essa análise do texto, a partir de princípios
e com métodos e técnicas diferentes. A semiótica é uma delas. A segunda
caracterização de texto não mais o toma como objeto de significação, mas
como objeto de comunicação entre dois sujeitos . Assim concebido, o texto
encontra seu lugar entre os objetos culturais, inseridos numa sociedade (de
classes) e determinado por formações ideológicas específicas. Nesse caso, o
texto precisa ser examinado em relação ao contexto sócio-histórico que o
envolve e que, em última instância, lhe atribui sentido. Teorias diversas têm
também procurado examinar o texto desse ponto de vista, cumprindo o que
se costuma denominar análise externa do texto. [...] No entanto, o texto só
existe quando concebido na dualidade que o define - objeto de significação
e objeto de comunicação - e, dessa forma o estudo do texto com vistas á
construção de seu ou de seus sentidos só pode ser entrevisto como o exame
tanto dos mecanismos internos quando dos fatores contextuais ou sóciohistóricos de fabricação do sentido15.
Ora, as chamadas da programação da TV Globo são plausíveis para análise, justamente
por facilitarem a transitividade pelas inúmeras questões que recaem sobre uma empresa
televisiva do setor de radiodifusão.
Entretanto, como a análise das chamadas remete aos processos que ultrapassam as
fronteiras do enfoque social e técnico da própria organização, não se pode ficar restrito apenas
ao micro-espaço social, como, por exemplo, o ambiente interno da empresa, uma vez que há
15
BARROS, Diana Luz P. de. Teoria Semiótica do Texto. 4. ed. São Paulo: Ática, 2002, p. 7-8, aspas e grifos
da autora.
26
um processo de comunicação, interpessoal ou de divulgação em grande escala (comunicação
de massa), obrigando, a uma definição, tanto do que seja ideologia, como, identificar onde
está, e qual a ideologia, que perpassa e é carregada pelas chamadas da programação da TV
Globo. Este foi um problema de monta, já que ideologia abarca também “níveis do
imaginário, do simbólico, do discurso não-imediato, das aspirações, dos padrões de status, das
concepções éticas e estéticas, envolve um universo muito mais amplo e complexo”16.
O problema se torna maior, na medida que são inúmeras as acepções que buscam
delimitar a demanda ideológica num determinado discurso, já que a questão é passível de
reflexão tanto com relação às “propriedades de estruturas”, quanto, o evento discursivo
propriamente dito (as chamadas), como, a ideologia versus o discurso.
Contudo, para isso, o Capítulo 1, As Chamadas como sentido da Rede (TV) Globo,
mostra como a empresa implementa um processo específico de identidade, explicitada pelas
chamadas, as quais dão sentido de empresa integrada a todos os nós da rede que administra.
Ao instigar os indivíduos heterogêneos dispersos no campo social e no mercado, a empresa
utiliza as chamadas para despertar a atenção destes para que mantenham uma relação social e
a reconheçam.
No Capítulo 2, As chamadas como conversores do padrão de qualidade, da cultura e
ritmo da programação: os expoentes da televisão geralista, trabalha-se com a noção e a idéia
de como as chamadas criam a compatibilidade da construção do tema central da programação
(entretenimento e informação), conciliando-os aos interesses da publicidade, pois elas
conectam todos os diferentes blocos (programação e comercial) e os transformam em um todo
conexo e com sentido, criando uma coerência entre ordem social (repressão e gratificação),
unidade nacional (cultura e coesão) e mercado (satisfação dos clientes), ao facilitar expor a
16
FILHO, Ciro M. O enterro de Althusser. FiloCom. São Paulo. out. 2005. Disponível em:
<http://www.eca.usp.br/nucleos/filocom/althusser2.html>. Acesso em: 24 out. 2005.
27
programação e potencializar a audiência ao refletir os interesses da diversificação da oferta
pela diversificação da demanda como política da programação.
No capítulo 3, As chamadas como conjunto de elementos simbólicos culturais no
processo de reprodução da empresa como poder hegemônico, mostra-se como a empresa, de
forma racional, fundamenta a disseminação de sua cultura corporativa com vistas a
dominação, em virtude da crença na validade do estatuto legal e da competência funcional de
que se vale em âmbito social e na qual ela mesma se baseia para poder guiar os próprios
filiados (funcionários e clientes) utilizando-se de elementos simbólicos para isso.
O Capítulo 4, As chamadas como elo entre a administração e a prática organizacional:
o domínio nas relações impessoais, busca entender como se dá a manipulação lingüística que
vai favorecer a empresa na reconstrução da realidade que dissemina, em que será beneficiada
operacionalmente, facilitando o encurtamento do espaço entre a própria administração e as
práticas rotineiras da empresa, com base no domínio das relações impessoais, numa manobra
que contorna a questão comercial.
As características do Sistema Digital de Televisão brasileiro, as implicações que recaem
sobre a multiprogramação e a questão das chamadas, só são possíveis pela convergência
ideológica. Daí que no Capítulo 5, entende-se que as chamadas, mesmo que sofram alguma
modificação e adaptação, passam a ser usadas, no sistema digital, sem que, contudo, causem
interferência no entendimento da questão ideológica político-cultural abordada aqui.
No que diz respeito à televisão, basta uma pressão na tecla de ligar ou desligar, para
entender que, no espaço dela, todo dia é o mesmo dia.
CAPITULO 1
As Chamadas como sentido da Rede (TV) Globo
A História deve ser reescrita a cada geração nova,
porque, se o passado não muda, é o presente que se
transforma; cada geração faz perguntas diferentes
para o passado e, revivendo lados diferentes das
experiências de seus antecessores, descobre ter
com ele novos pontos em comum1.
O ano de 2005 marca duas fases na vida da maior empresa televisiva do país. Em 26 de
abril deste ano, a TV Globo comemorou 40 anos de atuação no mercado brasileiro de mídia.
Pouco mais de um mês depois, ela deixou de existir como empresa autônoma. A estrutura
corporativa à qual passou a pertencer, reúne, em uma única companhia, as unidades do Grupo
Globo, sob a administração direta da holding Globopar (Globo Comunicações e
Participações).
Entende-se holding como sendo uma “sociedade cuja única atividade é controlar outras
empresas das quais ela detém a maioria das ações. A holding é a forma de constituição de
grupos financeiros possantes. A lógica da holding é puramente financeira (gestão de
participações)”2.
A Globopar é, por tanto, uma organização que se caracteriza por definir “os objetivos e
as mudanças de objetivos que modelam e remodelam de forma infinita a estrutura dos
meios”3.
A atual holding é resultado da fusão da Globopar – Globosat (TV a cabo), a Som Livre
(fonográfico), a Editora Globo, a Globo Filmes, a Globo Cochrane (gráfica), o Sistema Globo
de Rádio (Rádio Globo e CBN) e a Infoglobo (que publica os jornais O Globo, Extra e Diário
1
HILL, Christopher. In: BLISSETT, Luther. Guerrilha Psíquica. São Paulo: Corand do Brasil, 2001, p. 117.
SIZE, Pierre. Dicionário da Globalização: a economia de “A” A “Z”. Florianópolis: Obra Jurídica, 1997, p.
56.
3
CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura, v.1. 3 ed. São Paulo: Paz e Terra,
1999, p. 191.
2
29
de S. Paulo), e que passam a ser geridas de forma unificada, mas societariamente
independentes, com a TV Globo (que já englobava a Globo.com).
A Globopar, holding das Organizações Globo para o segmento de televisão por
assinatura, contraiu dívidas, ao longo da década de 1990, para investir no segmento de
Televisão paga, TV por satélite e Internet. Com a desvalorização cambial do real, em
fevereiro de 1999, a Globopar, que fatura em reais, mas deve em dólar, se viu obrigada a
declarar, algum tempo depois, default.
Foi esse descasamento, além do insucesso em investimentos em
telecomunicações (TV a cabo, TV por satélite, internet), que levou a
Globopar a pedir moratória em outubro de 2002. Grande parte das dívidas da
Globopar era garantida no exterior pela TV Globo. Na renegociação, a
holding absorve a empresa de televisão4.
Além da renegociação com a emissão de novos títulos para pagamento da dívida, a
família Marinho, dirigentes da holding, ofereceu o terreno e os prédios do Projac (estúdios da
TV Globo no Rio de Janeiro) em garantia de pagamento. Antes, “os empréstimos não estavam
calçados em garantias reais, mas apenas em avais da TV Globo”5.
No processo de ajuste [...], a estratégia foi preservar as empresas
especializadas na geração de conteúdo, vendendo o controle ou participações
relevantes em empresas de distribuição, como a Sky (de TV por assinatura
via satélite) para a News Corp, de Rupert Murdoch, e metade da Net
Serviços para a Telmex, do mexicano Carlos Slim. Os irmãos Marinho
venderam ainda participações em afiliadas da TV Globo e bens particulares.
[...], havia uma divisão informal no grupo, com o ramo de televisão sob o
comando de Roberto Irineu, os jornais com João Roberto e as rádios com
José Roberto. Agora, o grupo passa a ser um só, embora a Infoglobo
permaneça societariamente independente6.
A instância deliberativa mais alta da Globopar passou a ser o Conselho de
Administração, formado pelos três irmãos, filhos do fundador da TV Globo, Roberto
Marinho: Roberto Irineu Marinho (presidente executivo), João Roberto Marinho (vicepresidente editorial) e José Roberto Marinho (vice-presidente de responsabilidade social).
Para coordenar as diferentes áreas funcionais do grupo, promover um alinhamento
4
AD NEWS. Notícias. Disponivel em: <http://www.adnews.com.br>. Acesso em: 09 set. 2005.
Ibid.
6
Ibid.
5
30
corporativo e das unidades de negócio (finanças, controle, planejamento, contabilidade,
jurídico e recursos humanos), além de mídias segmentadas, foi criada uma diretoria de gestão
corporativa.
Até o final de 2004, as dívidas da Globopar somavam US$ 1,494 bilhão. Os dados do
balanço consolidado da Globopar, sob o ano de 2005, registra uma redução do endividamento
do Grupo Globo em US$ 330,1 milhões, caindo para US$ 1,164 bilhão, ante os valores do ano
anterior7. Essa redução da dívida é resultado direto da venda de parte do controle ou
participações relevantes em empresas de distribuição, como TV por assinatura via satélite e
cabo.
A partir de 2002, com a aprovação da emenda constitucional n. 22, pelo Congresso
Nacional, foi permitida a participação de empresas de gestão em emissoras de rádio, televisão,
jornais e revistas. Até então, os sócios só podiam ser pessoas físicas brasileiras. Além disso, a
modificação na legislação autoriza, também, que as empresas do ramo possam constituir-se
em sociedades anônimas, inclusive, com a participação de seu capital por empresas
estrangeiras no limite de 30%, como acontece, por exemplo, nos Estados Unidos.
O setor de mídia brasileiro fica marcado, portanto, na primeira metade da década de
2000, pela reestruturação das principais empresas do setor, já que elas, ao apostarem no
crescimento da economia e na estabilidade do câmbio, na segunda metade dos anos 90,
quando endividaram-se em dólar para diversificar os negócios e aumentar a capacidade de
produção, passam, então, a partir do início da década seguinte, cortando custos e abrindo o
capital.
O problema financeiro, enfrentado pelo Grupo Globo, espelha a realidade da mídia
brasileira, já que as dívidas da Globopar correspondem a mais de 1/3 do endividamento das
7
FOLHA ON LINE. Brasil. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2503200628.htm>.
Acesso em: 01 ago. 2006.
31
empresas que atuam no setor. Até 2004, de um modo geral, as empresas brasileiras de mídia
deviam cerca de R$ 10 bilhões.
Como subsidiária, a TV Globo, pertencente a esta nova estrutura corporativa, e desde
então, passou a praticar uma política específica de controle de custos ao adotar, pela primeira
vez na história da emissora carioca, gastos e custos atrelados à variação da inflação. O
objetivo é eliminar despesas e reforçar o caixa para saldar as pendências da holding. A dívida
da Globopar foi reestruturada até o ano de 2012, e a TV Globo é a garantia deste acordo com
os credores internacionais.
Esta política de contenção de despesas e custos tem impacto direto sobre contratações,
salários e produtividade. Os funcionários da TV Globo passam a ser exigidos e cobrados com
relação ao aumento da produtividade. A empresa não pode se dar ao luxo de perder terreno na
disputa do mercado de mídia eletrônica (cinema, rádio, televisão e Internet), já que a situação
se complicada à medida que, com a implantação do Sistema de Televisão Digital Brasileiro
Terrestre (STVDB-T), a TV Globo é obrigada a ajustar e adaptar a produção e operação á esta
nova realidade tecnológica, pois, mais que nunca, precisa manter a audiência conciliada à
demanda publicitária.
A médio e longo prazo, a mudança para o sistema digital vai incidir diretamente sobre
tais índices de audiência, uma vez que, no sistema digital, além da interatividade com os
telespectadores, o fator da multiprogramação que existe no sistema digital, bem como a
entrada de novos players no setor de rádio-difusão, deve acentuar a disputa pela audiência e a
relação do custo-benefício das tarifas voltadas à demanda publicitária.
Isso quer dizer que, não só a TV Globo, mas no geral, as redes de televisão brasileiras
passam a implementar uma gestão de negócios que concilie oferta e demanda, para manter, na
soma final, um índice de audiência satisfatório na obtenção desta verba publicitária. A tarefa
não é fácil, uma vez que, canais de programação flexível, como os do sistema digital,
32
apresentam características diferenciadas no arranjo da programação e serviços voltados aos
clientes conectados à ela. O sistema analógico é caracterizado por uma transmissão calcada
numa grade de programação com horários estanques, rígidos, inflexíveis.
Os canais voltados à multiprogramação força as empresas televisivas de sinal aberto a
atuarem com uma gestão voltada para uma demanda não conexa ao tema central da televisão
geralista, ou seja, a programação se constitui como fragmentada, o que prejudica a
conciliação, da verba publicitária de forma agregada.
Com o aumento da oferta de produtos e serviços (informação, entretenimento e locação
de espaços publicitários) cresce, também, a disputa pela captura da expectativa da atenção dos
clientes.
Por isso, torna-se fundamental, mais do que nunca nas atividades deste setor, para que
as empresas do ramo mantenham a margem de lucro, despertar e captar a atenção dos clientes.
O sistema digital de televisão torna a competição comercial no setor de rádio-difusão mais
acirrada.
A TV Globo, assim, necessitará manter a performance que a distingue dos demais
rivais, uma vez que seu sucesso está ligado, e é diretamente proporcional, aos custos da
administração que mantém, ao produzir, operar e disponibilizar para o mercado, serviços e
produtos que a diferenciam das outras empresas.
O fato é que, mesmo sendo a garantia da dívida do Grupo Globo, e levando-se em conta
as complicações que podem surgir, a curto prazo, a TV Globo tende a manter, nesta fase de
transição para o sistema digital, a liderança histórica do setor de mídia eletrônica, pois é, fato
reconhecido, a melhor e mais lucrativa empresa televisiva brasileira.
Neste processo, pela disputa na participação do mercado de mídia eletrônica, faz-se
obrigatório tomar decisões e optar por escolhas que permitam à empresa posicionar-se de
forma a maximizar as vantagens e minimizar as dificuldades que possam atrapalhar ou
33
prejudicar as atividades que se propõe.
Para isso, ela, obrigatoriamente, deve manter, pelo menos os índices de audiência que a
garantem na liderança de mercado, pois é fato que empresas televisivas de sinal aberto
buscam atrair telespectadores, tanto na quantidade, como de público alvo específico, para,
então, seduzir as agências de publicidade e anunciantes. Com isso, a empresa alcança o
sucesso, uma vez que o lucro da empresa implica diretamente no atendimento dos clientes,
entendidos aqui, como sendo os telespectadores, as agências de publicidade e anunciantes.
Embora passe a se preocupar com o endividamento do Grupo, a TV Globo se vê
obrigada a manter o fluxo de audiência, pois a empresa precisa convergir os seus
telespectadores para a programação, favorecendo-a, numa retro-alimentação de audiência e,
conseqüentemente, conciliando tais índices à demanda publicitária.
A emissora, ao operar no mercado, indiferentemente das campanhas de marketing
realizadas com o auxílio dos serviços de outras empresas, pertencentes ao grupo ou não,
quando desenvolve campanhas publicitárias na busca de nichos específicos de público-alvo,
quer seja, pelo próprio canal e rede que administra, utiliza-o como veículo de comunicação
para sua própria mídia, estimulando, assim, o despertar da atenção dos consumidores,
colocando-os a par da programação exibida e dos serviços disponibilizados por ela em sua
grade de programação. Portanto, torna-se mais fácil e mais prático utilizar o próprio canal da
emissora como expoente da programação e serviços, bem como, como potencializador do
índice de audiência, num processo contínuo de retro-alimentação, já que se têm seus próprios
consumidores conectados a sua freqüência.
O que interessa é que as chamadas são utilizadas e direcionadas, ao público
telespectador que a empresa busca atrair, despertando nestes, a expectativa de se manter
algum tipo de relação entre eles.
Como coloca Weber, isso pode ser entendido como a expectativa da captação da relação
34
de sentido da ação humana8, entre a empresa e os públicos aos quais se dirige, pois as
chamadas tornam-se um ponto de apoio específico da relação da companhia não só com o
mercado, mas, principalmente, com o campo social, uma vez que o conteúdo significativo de
uma relação social pode ser pactuado por declaração recíproca.
Weber entende por ação, “aquela cujo sentido pensado pelo sujeito ou sujeitos é referido
ao comportamento de outros, orientando-se por ele o seu comportamento”9.
Isto significa que os que nela participam fazem uma promessa quanto à sua
conduta futura (seja de um a outro ou de outra forma). Cada um dos
participantes – na medida em que procede racionalmente – conta
normalmente (com diferente grau de segurança), com que o outro orientará
sua ação em parte – de modo racional com relação a fins (com maior ou
menor lealdade ao sentido da promessa) – nessa expectativa e, em parte – de
modo racional com relação a valores – no dever de ater, por seu lado, à
promessa segundo o sentido que nela pôs10.
A empresa, para se manter numa relação de reciprocidade, vai buscar nas pesquisas a
forma de mensurar essa relação social. As pesquisas facilitam não só a identificação do
tamanho do mercado, a natureza das preferências dos clientes e os pontos de preço de cada
produto ou serviço, mas também priorizam as informações obtidas que possibilitam definir as
escolhas dos clientes, que implicam na busca de um serviço de qualidade.
Weber denominou de “ação econômica capitalista, aquela que se baseia na expectativa
de lucro através da utilização das possibilidades de troca, ou seja, das possibilidades
(formalmente) pacíficas de lucro”11.
Embora, numa análise superficial, acredite-se que a emissora disponibiliza a
programação gratuitamente, isso não acontece, já que há uma relação econômica, na forma do
que Weber definiu como troca baseada na expectativa do lucro, ou seja, a relação da empresa
com os clientes, além de gerar uma relação social, possibilita e fortalece a relação econômica.
8
WEBER, Max. Max Weber, textos selecionados. São Paulo: Nova Cultural, 1997, p. 7.
Ibid, p. 7.
10
FORACCHI, Marialice M.; MARTINS, José de S. Sociologia e Sociedade, leituras de introdução à
sociologia. São Paulo: Livros Técnicos e Científicos, 1977, p. 144.
11
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Lisboa: Presença: 1996, p. 14.
9
35
Por relação social deve-se entender uma conduta de vários – referida
reciprocamente conforme seu conteúdo significativo, orientando-se por essa
reciprocidade. A relação social consiste, pois, plena e exclusivamente, na
probabilidade de que se agirá socialmente numa forma indicável (com
sentido); sendo indiferente, [...], aquilo em que a probabilidade repousa12.
Portanto, as chamadas vão instigar ou, consolidar, esta reciprocidade de sentido
(programação e audiência), bem como, sinalizar a conduta desta troca, que é caracterizada por
uma relação social orientada, sempre, por uma promessa de onde se extrai “o conteúdo
simbólico da ação ou ações que o configuram”13. Isto resulta na própria experiência e pode ser
empaticamente apreendida na experiência dos outros14. Isso leva a entender que as chamadas
são usadas “para representar (significante) os objetos e os eventos (o significado)”15. Ou seja,
as chamadas, por agregarem num único espaço símbolos e signos, desempenham uma função
simbólica16 que vai orientar o telespectador na relação social com a empresa, e a partir da
manipulação da linguagem, a TV Globo busca contornar a evidência desta relação econômica,
em que a busca desta atenção se orienta, justamente, pelo fator comercial.
“Símbolos são coisas que guardam alguma semelhança com o que elas representam:
desenho, silhuetas e outras. Signos são coisas arbitrárias que não guardam semelhanças com o
que elas representam”, logo, pode-se dizer que, como as chamadas
são “sistemas de
signos”17, ou seja, de significação, representam a relação social e comercial de forma
simbólica entre aquilo que ela administra, opera e processa, e seus clientes.
Isso leva a entender que as chamadas dão o sentido, significado e significante, a essa
troca de mercadoria entendida como sendo o produto e serviço (entretenimento e informação),
ou seja, exibido e distribuído pela emissora aos telespectadores pela programação. Com isso,
a empresa cria um campo de significação que vai permitir potencializar, e instigar esta relação
12
FORACCHI, Marialice M.; MARTINS, José de S. Sociologia e Sociedade, leituras de introdução à
sociologia, p. 142.
13
WEBER, Max. Max Weber, textos selecionados, p. 7.
14
Ibid, p. 6.
15
WADSWORTH, Barry J. Inteligência e Afetividade da Criança na Teoria de Piaget: fundamentos do
construtivismo. São Paulo: Pioneira: 1997, p. 66.
16
Ibid, p. 66.
17
Ibid, p. 66.
36
social de forma que a favoreça numa retro-alimentação da própria audiência e demanda
publicitária.
No caso do telespectador, este, pelo simples ato de estar conectado, de ter sintonizado o
canal da empresa de sinal aberto, dá a entender que ambos já se encontram numa ação de
permuta, de troca. Esta conexão torna-se uma forma de recolhimento de uma taxa imaginária,
simbolizada pela troca, dos serviços e produtos (informação e entretenimento)
disponibilizados pela empresa aos telespectadores.
O complemento deste suporte material se dá pelo aporte financeiro das agências de
publicidade e anunciantes, em televisão, com a compra de espaços publicitários, durante e nos
intervalos da programação.
Numa economia de mercado são os fatores telespectadores, agências de publicidade e
anunciantes, que podem ser entendidos como o nexo de causalidade para o sucesso que uma
emissora de sinal aberto, como a TV Globo e a Rede que administra, alcançam. São os
telespectadores, por intermédio da audiência, as agências de publicidade e os anunciantes,
com verba publicitária, as fontes majoritárias de receita de uma emissora de sinal aberto.
Então, ao manter-se o nexo de causalidade, agregam-se os recursos e criam-se as
condições que permitem um fluxo crescente de re-investimento, tanto da expansão da própria
empresa, como dos produtos e serviços que a TV Globo administra, uma vez que isso a
favorece ao gerar uma conexão direta com tais consumidores.
A expansão da rede, que a emissora gerencia, teve início pouco tempo depois da entrada
em operação da TV Globo, no ano de 1965. É neste período que seus clientes
(telespectadores, agências de publicidade e anunciantes) começam a identificá-la como uma
empresa única e coesa.
Embora, a expansão em rede, desse tipo de empresa, seja restringida por uma
regulamentação setorial, impedindo que uma única emissora atue em todo o território
37
nacional, a TV Globo passa a delegar autonomia a cada nó que compõe a própria rede. Isso se
deve pelo fato de que as afiliadas cobrem áreas determinadas numa região geograficamente
definida. Um planejamento central dificultaria o crescimento do próprio sistema, pois,
sufocaria as necessidades locais que poderiam ser solucionadas naquele momento e naquele
espaço.
Daí a TV Globo ter estipulado especificações mínimas para que cada parte atue de
acordo com o todo. Desta maneira, a autonomia concedida em certa dose favorece a
“ocorrência de inovação pertinente”, que auxilia a preservar a capacidade de auto-organização
auto-planejadas ao invés de planejados no sentido tradicional18.
Afirma Morgan que, assim se evita o papel de “grandes planejadores”, o que favorece
uma maior concentração da “facilitação”, “orquestração” e “gerenciamento dos limites”,
proporcionando um ambiente onde se criam condições que permitam que este próprio
“sistema descubra sua própria forma”19, de operacionalizar sem que, contudo desvie-se do
padrão.
Um desafio é ajudar as unidades operacionais, sejam elas filhotes da
empresa original, equipes de trabalho, grupos de pesquisa ou indivíduos, a
operarem dentro de uma esfera de autonomia responsável. Outro desafio é
evitar a anarquia e o fluxo completamente livre que surge quando, por um
lado, não existe nenhum parâmetro ou diretriz e, por outro, existe excessiva
centralização20.
Entretanto, durante o processo de expansão desta rede, ainda na década de 1970, a TV
Globo desenvolveu uma identidade que pudesse transparecer a seus clientes a forma coesa de
operar e processar produtos e serviços de maneira que a rede passasse a refletir um todo
único, ao mesmo tempo que passou a estimular a própria conexão de seus telespectadores a
cada nó da rede, bem como, demonstrava, concomitantemente, já diferenciar-se dos
concorrentes.
18
MORGAN, Gareth. Imagens da Organização: edição executiva. . 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 130-131.
Ibid, p. 130.
20
Ibid, p. 130-131.
19
38
Contudo, este processo ocorria simultaneamente à implementação e expansão da própria
estrutura física da empresa. Logo, esse lado imobilizado, o ativo físico, concebido como
sendo as dezenas de extremidades da rede, é qualificado e tido como um fator imprescindível
para gerar a conexão direta com os clientes dela.
Uma empresa constituída em rede é “aquela forma específica de empresa cujo sistema
de meios é constituído pela intersecção de segmentos de sistemas autônomos de objetivos”.21
Assim, os componentes da rede tanto são autônomos quanto dependentes em
relação à rede e podem ser uma de outras redes e, portanto, de outros
sistemas de meios destinados a outros objetivos. Então, o desempenho de
uma determinada rede dependerá de dois de seus atributos fundamentais:
conectividade, ou seja, a capacidade estrutural de facilitar a comunicação
sem ruídos entre seus componentes; coerência, isto é, a medida em que há
interesses compartilhados entre os objetivos da rede e de seus
componentes22.
Conceber, implantar e expandir a malha que constitui a rede da empresa foi, e é, um dos
principais ingredientes do sucesso dela como empresa. Esse alicerce físico permite à TV
Globo não só operacionalizar, produzir, transmitir e comercializar seus produtos e serviços,
mas, efetivamente, acessar os públicos que busca atender. Esta estrutura em si, é um dos
aspectos que a diferencia dos demais concorrentes.
No Brasil, por ser considerada uma área estratégica para o Estado, por envolver, entre
outros fatores, a questão político-ideológico-cultural e a reserva de mercado, sobretudo pelas
implicações de princípios de organização espacial e territorial, há a necessidade de uma
regulamentação específica por parte da União para o setor de rádio-difusão.
Assim, para poder operar no setor de rádio-difusão, estipulou-se que as empresas do
setor devem, obrigatoriamente, seguir uma regulamentação específica, que, entre outras
observações, aponta: evitar a ação predatória por parte de um dos competidores do mercado;
geração de ineficiência entre os concorrentes; falhas de mercado, bem como estimular a
21
22
CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura, p. 191.
Ibid, p. 191.
39
competitividade entre as emissoras de sinal aberto. Portanto, estas observações são elementos
essenciais da regulamentação setorial23.
Porém, como observam Simões e Mattos, a legislação que deveria estimular a
competitividade entre os concorrentes acaba por ser empregada em benefício da TV Globo.
Isso, de acordo com os autores, acaba por gerar danos aos demais competidores que operam
em rede, uma vez que, segundo eles, a empresa concentra audiência, o que facilita o acesso à
verba publicitária24.
De acordo com Simões e Mattos, o que se observa no Brasil é que a regulamentação do
setor de comunicações é entendida como uma atividade pública, porém “encampada com base
em um modelo majoritariamente liberal”. Embora no Brasil se tenha uma tradição estatizante,
o que “trouxe como conseqüência um afastamento do Estado da função clássica de regulador
dos serviços públicos oferecidos pela iniciativa privada”, as questões que envolvem o setor de
rádio-difusão não tem a finalidade exclusiva de “marco regulatório entre as três pontas
clássicas da regulação econômica – sociedade, empresa exploradora de serviço público e
governo –, mas fonte de controle político”25.
Conforme os autores, embora a lei que regulamente essa área da economia tenha sofrido
algumas modificações, o fator político ainda determina as empresas que atuam no setor
televisivo.
[...], a Lei n°. 4.117, de 27 de agosto de 1962, que introduziu o Código
Brasileiro de Telecomunicações (CBT) e, ainda hoje em vigor, muito
embora ateste o modelo privado de exploração das emissoras de rádio e de
TV, tem visíveis traços estatizantes. Em seu artigo 7º, capítulo I, título IV, o
regulamento geral do CBT esclarece a primazia da União sobre não só a
regulação (fiscalização), mas, primeiramente, sobre a exploração direta,
quando diz que compete privativamente à União [...] explorar diretamente ou
23
SIMÕES, Cassiano F.; MATTOS, Fernando. Elementos histórico-regulatórios da televisão brasileira. In:
BRITTOS, Valério C.; BOLAÑO, César R. (Orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia. São Paulo:
Paulus, 2005, p.43.
24
Ibid, p. 43.
25
Ibid, p. 38-41.
40
mediante concessão [...] o serviço de radiodifusão sonora (regional ou
nacional) e o de televisão26.
Os autores chamam a atenção para o fato de que, embora o CBT regule todos os tipos de
comunicações eletrônicas, tanto as massivas quanto as ponto a ponto, como telefonia, “neste
caso encontra-se revogada pela Lei nº. 9.472, de 16 de junho de 1997, que institui a Lei Geral
de Telecomunicações e inaugura a separação entre as noções de telecomunicações e de
radiodifusão”, a regulamentação formatada pelo CBT na época, e apresentada pelo extinto
Conselho Nacional de Televisão (Contel), teve, na elaboração de seu conselho, um
componente eminentemente político ao se priorizar a nomeação de um dirigente indicado pela
Presidência da República em detrimento de um profissional técnico capaz de “coibir os
eventuais abusos e desvios administrativos na pluralidade concorrencial e na sociedade”27.
Na avaliação de Simões e Mattos, o modelo adotado no Brasil, ao invés de estimular a
competição, só foi “capaz de gerar concentração por parte de grandes grupos que deram
lugares uns aos outros”. Para eles, a comparação com o modelo de regulamentação norteamericano é válida, pois lá o modelo privado é “baseado no estímulo à competitividade, foi
capaz de erigir três grandes redes: CBS, NBC a ABC”.
Neste ambiente proliferaram os Diários Associados, de Assis Chateaubriand,
e a Rede Globo de Televisão, dois grandes grupos hegemônicos da recente
história da comunicação brasileira. No ano de 1962, os Diários Associados
eram o grande grupo dominante, como o foram até meados da década de
1970, quando, sufocados por má administração e pela incompatibilidade
desenvolvida entre seu comandante e os militares, decaíram até o ano de
1980, quando foram extintos. O então recente governo do general João
Batista Figueiredo decidiu distribuir as concessões do grupo divididas em
dois pacotes que deveriam constituir duas novas redes. Assim nasceram a
Rede Manchete (que posteriormente se transformou em Rede TV!), do grupo
empresarial Bloch Editores, e o Sistema Brasileiro de Televisão, do grupo
Sílvio Santos28.
Por isso, Simões e Mattos, afirmam que, ao ser beneficiada por fatores políticos, a TV
Globo inicia um processo de expansão, pois já em 1966, um ano após passar a operar no Rio
26
SIMÕES, Cassiano F.; MATTOS, Fernando. Elementos histórico-regulatórios da televisão brasileira. In:
BRITTOS, Valério C.; BOLAÑO, César R. (Orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia, p. 39.
27
Ibid, p. 39-40.
28
Ibid, p. 41.
41
de Janeiro, a TV Paulista é incorporada por ela. Porém, com o incêndio que atingiu a
instalação da emissora paulistana, no ano de 1969, a TV Globo concentra o comando da
empresa e da programação na TV Rio (TV Globo), tornando-se, desde então, a central de toda
rede. Para os autores, houve um arranjo da regulamentação do setor, com o intuito de
beneficiar a empresa, que pode proceder, portanto, a um processo de expansão, com emissoras
próprias ou afiliadas, com um “princípio de organização espacial e territorial”29.
É uma hipótese bastante plausível a de que o fator desestabilizar do ambiente
concorrencial dos anos 1960 deve-se ao início das operações em rede
nacional pela Globo, que vai diferenciá-la da ainda poderosa TV Tupi, dos
Diários Associados, que (e, quem sabe, em conseqüência) entra em processo
de decadência. Fazendo uso da infra-estrutura da Rede Nacional de
Telecomunicações, inaugurada dois anos antes pelo governo militar, a então
TV Globo leva ao ar, em 1969, o Jornal Nacional, primeiro programa da
televisão brasileira em rede nacional, que inauguraria o padrão de televisão
vigente até os dias de hoje30.
Embora tenha sido outorgada com a concessão do presidente Juscelino Kubitschek, para
operar na cidade do Rio de Janeiro, em 30 de dezembro de 1957, o Canal 4 do Rio de Janeiro
(TV Globo) efetivamente entra pela primeira vez no ar em 26 de abril de 1965. Neste meio
tempo, a TV Globo selou contrato de colaboração e assistência técnica com o grupo norteamericano Time-Life, além de receber desta um aporte de cinco milhões de dólares
estadunidenses.31
Lins da Silva relata que a Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados
que investigou o caso Time-Life deu parecer favorável à investigação que atestava que a
parceria, entre as empresas brasileira e norte-americana, infringia o artigo 160 da Constituição
da República, mas os governos militares da época atestaram a validade da operação.
[...] o procurador-geral da República e o presidente Castello Branco, em
março de 1967, decidiam que a operação havia sido legal, o que seria
referendado em 1968 pelo presidente Costa e Silva. No ano seguinte, 1969, o
Time-Life retirava-se da Globo que, a esta altura, já se preparava para ser
rede nacional, o que se tornara possível com a expansão e modernização dos
29
SIMÕES, Cassiano F.; MATTOS, Fernando. Elementos histórico-regulatórios da televisão brasileira. In:
BRITTOS, Valério C.; BOLAÑO, César R. (Orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia, p. 43.
30
Ibid, p. 42-43.
31
SILVA, Carlos Eduardo L. da. Muito Além do Jardim Botânico. São Paulo: Summus, 1985, p. 30.
42
serviços de telecomunicações através de sofisticada rede de microondas
construída [...]32.
Entretanto, a estruturação de uma empresa em rede, principalmente no setor de rádiodifusão no Brasil, por possuir um território de dimensão continental, não pode ser analisada
exclusivamente pelo viés político. Não que este aspecto não conte. Tornou-se ele um dos
pilares para explicar o processo de expansão da empresa. Mas, numa análise mais justa e
direcionada pela busca da imparcialidade, objetiva-se ir um pouco mais adiante. Para isso,
deve se incluir, necessariamente, as implicações que incidem sobre o capitalismo moderno e
as mudanças de paradigmas do próprio sistema econômico, implementados pelo mercado em
âmbito mundial, a partir do mesmo período, em que a TV Globo emergia como empresa.
Conforme assinala Harvey, o capitalismo na década de 1960 já demonstrava uma
mudança de lógica para a condição da produção pós-moderna. A isso, o autor denomina de
acumulação flexível, “um confronto direto com a rigidez do fordismo. Essa acumulação
flexível apóia-se na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos
produtos e padrões de consumo”, mas, ressalta ele, numa economia de escala, as empresas se
vêem obrigadas a flexibilizar a produção, contudo, sem abrir mão de um comando central 33,
como é o caso da TV Globo e os nós da rede que compartilha.
Para Harvey, a acumulação flexível caracteriza-se por novas maneiras de fornecimento
de serviços financeiros, surgimento de setores de produção inteiramente recentes e novos
mercados. Além disso, diz Harvey, as mudanças envolvidas com a produção da acumulação
flexível ainda criam um vasto movimento no emprego do chamado setor de serviços, rápidas
mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual tanto entre setores como regiões
geográficas.
32
SILVA, Carlos Eduardo L. da. Muito Além do Jardim Botânico, p. 32.
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo:
Loyola, 1987, p. 135-162.
33
43
Segundo o autor, a acumulação flexível se sobressai, principalmente pelas “taxas
altamente intensificadas de inovação comercial tecnológica e organizacional”. Com isso, diz
Harvey, permite-se a “compressão do tempo”, pois devido à comunicação via satélite e os
baixos custos do transporte, favorecem-se as tomadas de decisões, privada e pública, num
espaço cada vez maior e diversificado.
De modo mais geral, o período de 1965 a 1973 tornou cada vez mais
evidente a incapacidade do fordismo e do keynesianismo de conter as
contradições inerentes ao capitalismo. Na superfície, essas dificuldades
podem ser melhor apreendidas por uma palavra: rigidez. Havia problemas
com a rigidez dos investimentos de capital fixo de larga escala e de longo
prazo em sistemas de produção em massa que impediam muita flexibilidade
de planejamento e presumiam crescimento estável em mercados de consumo
invariantes. Havia problemas de rigidez nos mercados, na alocação e nos
contratos de trabalho (especialmente no chamado setor monopolista). E toda
tentativa de superar esses problemas de rigidez encontrava a força aparente
invencível do poder profundamente entrincheirado da classe trabalhadora – o
que explica as ondas de greve e os problemas trabalhistas do período de
1968 a 197234.
Isso revela, de acordo com Harvey, inclusive, a intensificação dos compromissos do
Estado que se viu sob pressão em estender a cobertura de programas de assistência
(assistência social e direitos de pensão, por exemplo), pois as empresas buscavam empreender
maior racionalização, reestruturação e intensificação do controle do trabalho a partir da
mudança tecnológica, da automação, da busca de novas linhas de produto e nichos de
mercado como lógica para baratear a produção. Para Harvey, tal situação foi ocasionada
porque a “rigidez na produção restringia expansões da base fiscal para gastos públicos”.35
Por trás de toda a rigidez específica de cada área estava uma configuração
indomável e aparentemente fixa de poder político e relações recíprocas que
unia o grande trabalho, o grande capital e o grande governo no que parecia
cada vez mais uma defesa disfuncional de interesses escusos definidos de
maneira tão estreita que solapavam, em vez de garantir, a acumulação do
capital36.
Harvey afirma que a aceleração do giro do capital e da produção, que exigiu novas
formas de produção (uso de tecnologias da automação e robôs) e formas organizacionais
34
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna, uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural, p. 136.
Ibid, p. 136.
36
Ibid, p. 136.
35
44
(“como sistemas de gerenciamento de estoques just-in-time, que corta drasticamente a
quantidade de material necessária para manter a produção fluindo”) só foi possível por ter
sido escoltada pelo consumo.
A acumulação flexível foi acompanhada na ponta do consumo, portanto, por
uma atenção muito maior às modas fugazes e pela mobilização de todos os
artifícios de indução de necessidades e de transformação cultural que isso
implica. A estética relativamente estável do modernismo fordista cedeu
lugar a todo o fermento, instabilidade e qualidades fugidias de uma estética
pós-moderna que celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e
a mercadificação de formas culturais37.
Logo, é evidente que a questão política se mantém vinculada aos princípios de
mudanças de paradigmas do próprio capitalismo. Há uma ligação aí, mas é preciso ressaltar
que, embora a TV Globo tenha surgido num período ditatorial e de exceção da história
brasileira, com possíveis favorecimentos para atuar numa área com reserva de mercado, a
empresa soube assimilar a crise organizacional “e as novas tecnologias da informação”, ao
introduzir, para o setor brasileiro de rádio-difusão, uma “nova forma organizacional como
característica da economia informacional/global: a empresa em rede”.38
É preciso entender, ainda, que entre 1964/1985, o Brasil passou por um período
ditatorial que se estendeu por 29 anos, em que as questões sociais e políticas do país se
guiavam, basicamente, por relações de conotação binária entre cultura e censura, repressão e
injustiças sociais, favorecimentos e clientelismo, endividamento e corrupção, Instituições e
ausência de legitimação.
Há, com isso, no histórico da TV Globo, no mínimo, uma ambigüidade, para não se
dizer um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que o governo militar a apoiava, ou, ainda que
seja, não restringia sua expansão, o próprio governo mostrava-se mais contraditório que a
empresa, pois seguia um modelo de desenvolvimento de cunho fordista - que se caracterizava
pelo sinônimo de produção em série e racionalização da produção, com o incentivo de
37
38
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna, uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural, p. 148.
CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura, p. 191.
45
abertura de grandes fábricas e forte concentração financeira - , com base numa política
intervencionista Keynesiana, ao dotar o Estado com responsabilidade de equilíbrio e
estabilidade no mercado (visto os incentivos para a implantação de multinacionais no país e a
criação de inúmeras estatais).
Entretanto, enquanto o próprio governo brasileiro se pautava por esta política, muitos
outros Estados, de capitalismo mais avançado, passavam a abandonar a política
intervencionista. Por outro lado, a TV Globo, diferentemente do governo, trilha o caminho
oposto, ou seja, identifica e assimila a crise organizacional e passa a buscar novas tecnologias
da informação que possibilitem o arranjo de um sistema produtivo flexibilizado.
Contudo, mesmo que o governo militar tenha hesitado em contornar as dificuldades de
duas crises do petróleo, o endividamento do setor público, a inflação em alta, o aumento de
impostos e queda na oferta de postos de trabalho, a TV Globo, pelo contrário, se caracteriza
por ter acompanhado as inovações tecnológicas que dariam suporte a globalização.
Apesar de sua lógica financeira implacável, o seu sucesso provém, também
do fato de ter conseguido, em trinta anos, tornar-se ao mesmo tempo espelho
e parte do ideal brasileiro. Portanto, em ter conseguido tanto refletir quanto
estimular. A ausência de um concorrente [...] forte constitui, sem dúvida uma
limitação, mas essa situação de quase monopólio numa sociedade
heterogênea obrigou o canal de Roberto Marinho a integrar uma
problemática de interesse geral, sem dúvida mais restritiva do que seria de se
desejar. Por exemplo, a capacidade da Globo agiu sobre a estética, a criação
visual, os efeitos especiais, e atualmente, as novas tecnologias e pesquisa de
uma certa inovação da imagem estão bem sintonizadas com a mentalidade
brasileira. Da mesma forma, durante a ditadura, a rede, mesmo sendo oficial,
não foi jamais submissa aos militares, como se a função de comunicação
social obrigasse a um mínimo de distância39.
Logo, é evidente que a TV Globo acompanha as tendências tecnológicas que permitem
à ela manter-se num continuísmo empreendedor e inovador. Assim foi ao implementar a
expansão da empresa, quando percebeu que já vivenciava o princípio da Era Informacional do
39
WOLTON, Dominique. Elogio do Grande Público, uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996, p.
159.
46
desenvolvimento, onde “a fonte de produtividade acha-se na tecnologia de geração de
conhecimentos, de processamento da informação e de comunicação de símbolos”40.
Na verdade, conhecimentos e informação são elementos cruciais em todos os
modos de desenvolvimento, visto que o processo produtivo sempre se baseia
em algum grau de conhecimento e no processamento da informação.
Contudo, o que é específico ao modo informacional de desenvolvimento é a
ação de conhecimentos sobre os próprios conhecimentos como principal
fonte de produtividade. O processamento da informação é focalizado na
melhoria da tecnologia do processamento da informação como fonte de
produtividade, em um círculo virtuoso de interação entre as fontes de
conhecimentos tecnológicos e a aplicação da tecnologia para melhorar a
geração de conhecimentos e o processamento da informação: é por isso que,
voltando à moda popular, chamo esse novo modo de desenvolvimento de
desenvolvimento informacional, constituído pelo surgimento de um novo
paradigma baseado na tecnologia da informação41.
Inclusive, e por causa disso, a TV Globo implementa na rede que administra, ainda na
primeira década de atuação no mercado, sistemas de informação como fator de reciclagem e
aprendizado contínuo.
Antecipar-se a este fator, muito antes dos concorrentes, não pode ser creditado,
exclusivamente, a fatores e favorecimentos políticos. O crescimento e expansão de uma
estrutura flexível que permite ajustes diretamente relacionados com a demanda de um
mercado de massa, à época ainda potencial, eliminaria custos de infra-estrutura, contratação,
planejamento e operação e facilitaria, sobremaneira, a própria administração da empresa como
um todo.
[...] organizações bem-sucedidas são aquelas capazes de gerar
conhecimentos e processar informações com eficiência; adaptar-se à
geometria variável da economia global; ser flexível o suficiente para
transformar seus meios tão rapidamente quanto mudam os objetivos sob o
impacto da rápida transformação cultural, tecnológica e institucional; e
inovar, já que a inovação torna-se a principal arma competitiva. [...]. Nesse
sentido, a empresa em rede concretiza a cultura da economia
informacional/global: transforma sinais em commodities, processando
conhecimentos42.
Desta maneira, quando a TV Globo começa a se expandir como empresa, ao mesmo
tempo em que utiliza o sistema de telecomunicações construído pelo governo militar, e que a
40
CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura, p. 35.
Ibid, p. 39.
42
Ibid, p. 39.
41
47
possibilitou atuar em nível nacional, ela precisava não só manter a fidelidade dos públicos que
atende (critérios de qualidade), mas, também, o padrão de produção (rotinas internas)
conciliando, sobretudo, pela flexibilidade, a estrutura que permite à empresa atuar regional e
localmente em cada ponta da rede, de forma dinâmica, sem onerar o sistema como um todo.
Os anos 70 foram, ao mesmo tempo, a época provável do nascimento da
Revolução da tecnologia da Informação e uma linha divisória na evolução do
capitalismo [....]. A crise real dos anos 70 não foi a dos preços do petróleo.
Foi a da inabilidade do setor público para continuar a expansão de seus
mercados e, dessa forma, a geração de emprego sem aumentar os impostos
sobre o capital nem alimentar a inflação, mediante a oferta adicional de
dinheiro e o endividamento público. Embora as respostas a curto prazo para
a crise de lucratividade enfocassem a redução de mão-de-obra e o desgaste
salarial, o verdadeiro desafio para as empresas e o capitalismo como um todo
era encontrar novos mercados capazes de absorver uma crescente capacidade
de produção de bens e serviços43.
Mas isso ainda não dava à ela um sentido de todo. Era preciso mais, era necessário
elaborar um discurso aglutinador que agregasse, em um único espaço, não só o que deveria
expor ao mercado, mas, também, acessar os públicos dispersos no campo social, pois assim
manteria um fluxo crescente de consumidores conectados à rede.
Esse discurso deveria mais que explicitar como as atividades da empresa eram
executadas, desde a produção, bem como a operação e administração deste complexo
televisivo, e que, permitisse criar e estimular o reconhecimento de uma identidade própria e
original que a diferenciaria dos demais rivais, favorecendo-a na busca do lucro.
Identidade pode ser definida como “o processo pelo qual um ator social se reconhece e
constrói significado principalmente com base em determinado atributo cultural ou conjunto de
atributos, a ponto de excluir uma referência mais ampla a outras estruturas sociais”44.
Ao implementar um discurso de identidade pelas chamadas – na tentativa de atrair a
atenção de telespectadores, ao mesmo instante que acena para as agências de publicidade e
anunciantes –, as chamadas passam, também, a servir como instrumento de reversão na queda
da audiência, inclusive nas pontas do sistema, tal como preparar lançamentos de novos
43
44
CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura, p. 101.
Ibid, p. 39.
48
produtos ou facilitar a operação do tempo da programação, e legitimar a atuação da própria
empresa.
A legitimação “explica a ordem institucional outorgando validade cognoscitiva a seus
significados objetivados”45.
A legitimação justifica a ordem institucional dando dignidade normativa a
seus imperativos práticos. É importante compreender que a legitimação tem
um elemento cognoscitivo assim como um elemento normativo. Em outras
palavras, a legitimação não é apenas uma questão de valores. Sempre
implica também conhecimento46.
Para demonstrar a coerência organizacional ao mercado, a empresa precisou refletir essa
legitimação, e fez das chamadas uma forma de converter em sentido esta qualidade, este
padrão, como um elemento de identificação não só do estilo da administração que a empresa
mantém, mas também do que produz e concorre com os demais rivais do setor, e sobretudo,
no que organiza e administra (em âmbito interno), levando a TV Globo a desenvolver durante
os anos de 1970 este discurso de chamamento.
As chamadas, portanto, ao serem analisadas, possibilitam ir além, tornando viável
identificar não só as variantes que ligam a TV Globo e a rede às questões políticaseconômicas, mas, sobretudo, com as implicações de cunho ideológico-cultural. As chamadas
permitem equacionar as variáveis ligadas aos produtos e serviços que a empresa oferta e como
eles se arranjam na grade de programação.
As chamadas são direcionadas aos públicos aos quais a empresa busca atrair,
despertando nestes uma expectativa de se manter algum tipo de relação, sejam os
telespectadores que, ao sintonizarem o canal da emissora encontram algo que os satisfaça,
entretenimento ou informação, sejam as agências de publicidade e anunciantes, que por sua
vez, buscam manter alguma forma de contato com o público da TV Globo e sua rede. Tudo
isso num único lugar, ou seja, no bloco comercial da programação.
45
BERGER, Peter L; LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade: tratado de sociologia do
conhecimento. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 132.
46
Ibid, p. 132.
49
Uma vez atraídos os telespectadores, no vácuo destes vêm às agências de publicidade e
anunciantes. Por isso, as chamadas podem ser declaradas não apenas como instrumentos
discursivos que dão sentido à rede como um todo, ao dar significado a todos os nós que
constituem a rede como uma única empresa. Mas, ainda, permitem que sejam reveladoras da
própria dinâmica que envolve a TV Globo e a rede, tanto no âmbito interno como externo a
ela, pois as chamadas são elementos que exteriorizam a compatibilidade da emissora central
(TV Globo) com clientes, a sociedade e seus funcionários e parceiros.
Por isso, ao se fazer valer de uma freqüência cíclica das chamadas, a TV Globo não só
cria a expectativa, disponibilizando nelas a promessa do conteúdo a se exibir. Ela,
efetivamente, expõe ao mercado “as implicações das relações organização-ambiente e a
administração”47, uma vez que elas permitem que sejam reconhecidas como um ambiente de
extensão da empresa. Isso se dá pelo fato das chamadas estarem localizadas nos blocos
comerciais da programação, que nada mais é que o espaço destinado aos serviços de
vinculação das propagandas de agências de publicidade e anunciantes, mas que, também, são
utilizados pela própria TV Globo, como forma de resolver as implicações que podem
atrapalhar ou prejudicar a própria atuação como empresa capitalista.
Assim, as empresas estarão motivadas não pela produtividade, e sim pela
lucratividade, para a qual a produtividade e a tecnologia podem ser meios
importantes mas, com certeza, não os únicos. E as instituições políticas,
moldadas por um conjunto maior de valores e interesses, estarão voltadas, na
esfera econômica, para a maximização da competitividade de suas
economias. A lucratividade e a competitividade são os verdadeiros
determinantes da inovação tecnológica e do crescimento da produtividade.
São suas dinâmicas históricas concretas que nos podem fornecer as pistas
para o entendimento dos caprichos da produtividade48.
Ao optar pelas chamadas como o meio de atrair a atenção dos públicos, a TV Globo
determina, para a rede, o discurso, e um meio que permite a ela superar a inércia inicial de se
manter um contato, criar uma expectativa de captura da ação na tentativa de se manter a
47
48
MORGAN, Gareth. Imagens da Organização: edição executiva, p. 171.
CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura, p. 100.
50
relação recíproca destes públicos, e a empresa. Ao estimular esta expectativa de captura da
atenção, explicita, ao mesmo tempo, o fluxo de informações e as práticas organizacionais.
A análise das chamadas permite entender como, “ao resolver a questão interna da
formação de competências e da escolha de estratégias”49, a empresa busca nelas um elemento
conversor da atenção dos públicos heterogêneos, aos quais ela se reporta e tenta atrair,
potencializando, sobremaneira, a própria audiência.
De acordo com Porter, a concepção de estratégia ultrapassa o sentido simplista de
posição ideal no conjunto das atividades da empresa, que possibilite diferenciá-la dos
concorrentes, apenas por agregar as atividades pertinentes à ela ao lhe proporcionar uma
representação dos processos de produção contra seus rivais num determinado posicionamento
do mercado, tornando esta empresa diferente da concorrência.
Para Porter, estratégia se insere numa dimensão que leva em conta também a
necessidade da companhia, de instigar os atributos que podem ser viáveis à capacidade da
própria empresa. O autor define estratégia como sendo “a criação de compatibilidade entre as
atividades da empresa”50.
As chamadas, ao serem um instrumento conversor de sentido para a empresa em todo o
território nacional, tornam-se fundamentais na região e no local do próprio nó, pois, com as
chamadas, torna-se possível explicitar de forma coerente como a empresa compatibiliza suas
atividades entre os nós (fluxo interno) e o vínculo com uma sociedade composta por
indivíduos heterogêneos (âmbito externo). Isso favorece-a como empresa televisiva pois, ao
reconstruir uma realidade com uma disseminação de grau elevado de especialização, permite
a seus administradores objetivarem as metas traçadas num plano interno de gestão51.
49
FLEURY, Afonso; FLEURY, Maria Tereza L.. Estratégias Empresariais e Formação de Competências:
um quebra-cabeça caleidoscópio da indústria brasileira. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 88.
50
PORTER, Michael E. Competição = On Competition: estratégias competitivas essenciais. 4. ed. Rio de
Janeiro: Campus, 1999, p. 63-73.
51
MORGAN, Gareth. Imagens da Organização: edição executiva, p. 115-118.
51
Assim, retornando a Weber, é possível entender este processo, já que as chamadas
demonstram um mínimo de reciprocidade das ações, uma vez que, para o autor, o que conta é
a “probabilidade de que uma determinada forma de conduta social de caráter recíproco pelo
seu sentido, tenha existido, exista ou venha a existir”52, torna-se o suficiente para entender que
as chamadas dão sentido às relações das unidades entre si, da própria rede administrada pela
TV Globo e os públicos que almeja atender, pois facilitam expor produtos e serviços, assim
como potencializar a audiência da rede ao se manter uma relação social a partir das
expectativas da atenção.
Como observou Weber, a captura do sentido da ação, produz ação social para além da
mera situação comum, pois, indiferente do conteúdo, observa o autor, é a expectativa da ação
de captura de sentido que prevalece numa relação social.
Um mínimo de reciprocidade nas ações é, portanto, uma característica
conceitual. O conteúdo pode ser o mais diverso: conflito, inimizade, amor
sexual, amizade, piedade, troca no mercado, cumprimento, não cumprimento,
ruptura de um pacto, concorrência econômica, erótica ou de outro tipo,
comunidade nacional, estamental ou de classe. (nesses últimos casos sim, se
produzem ações sociais para além da mera situação comum) 53.
Por isso, é, ao dar um novo escopo para a análise que envolve a TV Globo, pelo prisma
da Gestão de Negócios, que se torna viável compreender que a empresa, embora mantenha o
vínculo com diferentes interesses, é uma empresa capitalista, com uma gestão centrada em
princípios, e que busca, no mercado, uma ação de sentido econômico, ao disponibilizar, nestes
40 anos de existência, produtos e serviços, tais como novelas, telejornais, shows, programas
de auditório, serviços de cidadania e educação, eventos esportivos, locação de espaços de
propaganda etc, que têm, nas chamadas, uma ponte de conversão para dar sentido ao que a TV
Globo instiga aos atributos que podem ser viáveis à capacidade da própria empresa, ao criar
compatibilidade entre suas atividades e o mercado.
52
FORACCHI, Marialice M.; MARTINS, José de S.. Sociologia e Sociedade, leituras de introdução à
sociologia, p. 142.
53
Ibid, p. 142.
52
Desta forma, a empresa implementa um processo específico de identidade, que é
explicitada pelas chamadas, as quais dão sentido e demonstram a coerência, dela e de todos os
nós da rede que administra, ao possuir um conjunto de atividades que a diferencia dos
concorrentes e que lhe favorece na busca do lucro e do retorno de seus investimentos. Ao
instigar os indivíduos heterogêneos dispersos no campo social e no mercado, espera que estes
mantenham uma relação social, e lhe proporcionem, com o índice de audiência que ela espera
alcançar, o reconhecimento do esforço que empreendeu.
Porém, é justamente a legitimação da TV Globo que se encontra em risco nesta fase de
transição do sistema analógico para o digital, pois, além dela ter que ajustar e adaptar a
produção e operação à nova realidade tecnológica, precisa, mais do que nunca, continuar a
despertar a atenção de seus clientes, principalmente os telespectadores, já que a programação
da emissora perde o caráter linear, o que tem reflexo direto sobre a própria audiência e a
demanda publicitária, e que estão relacionados diretamente com a gestão de negócios, pois
precisa conciliar a oferta e demanda, para manter, na soma final, um índice de audiência
satisfatório para a obtenção da verba publicitária.
A empresa passa a operar no sistema digital, portanto, num novo arranjo de discurso,
caracterizado aqui pelas chamadas da programação. Quanto à oferta de produtos e serviços,
com primazia ao conteúdo de uma programação fragmentada, a TV Globo saiu na frente, já
que nos últimos anos ela vem se preparando para atuar no sistema digital, ao passar a
direcionar e concentrar esforços como produtora de conteúdo e prestadora de serviços. Assim,
centrada basicamente na atividade de produtora, a emissora espera preencher a
multiprogramação, que caracteriza o sistema digital de televisão.
CAPITULO 2
As chamadas como conversores do padrão de qualidade,
da cultura e ritmo da programação:
os expoentes da televisão geralista
Teatro é a arte do ator. Cinema
é a arte do diretor e TV, a arte
do anunciante1.
O brasileiro permanece, em média, cinco horas por dia na frente do aparelho de tevê2.
Seja para divertir-se ou obter algum tipo de informação, cerca 98% da população no Brasil
acompanha o que é transmitido pela televisão3. Esse é o tamanho potencial do mercado e a
demanda que as empresas televisivas de sinal aberto almejam atender ao se considerar a
estimativa sobre aparelhos de tevê existentes em lares brasileiros.
Os dados relativos à audiência indicam se o aparelho receptor está ligado e em qual
sinal está sintonizado. Logo, entende-se que, quando isso ocorre, de alguma maneira satisfaz
aos interesses de quem se conecta à determinada empresa televisiva. Isto significa que,
indiferente ao propósito do por quê o telespectador está numa conexão direta com a empresa,
de qualquer modo, foi atraído até ali e, indiferente do tempo que permanecer em contato,
enquanto estiver de acordo mútuo, harmonia ou reciprocidade, mantém de alguma maneira
um vínculo, pois, as “sociedades estão cada vez mais estruturadas em uma oposição bipolar
entre a Rede e o ser”4.
Assim, para apontar a participação no mercado de mídia eletrônica televisiva de sinal
aberto, de determinada rede, faz-se necessário levar em consideração a participação na
audiência de cada canal, pois ela corresponde ao critério de market share.
1
AUTRAN, Paulo. In: LEME, Álvaro; CALSAVARA, Kátia. O rei dos palcos. Veja São Paulo, São Paulo,
Ano 39, n. 32, p. 30, 16 ago. 2006.
2
MENA, Fernanda. Campanha quer desligar TVs do planeta. Folha de S. Paulo, São Paulo, p. E7, 25 abr. 2005.
3
BUCCI, Eugênio (Org.). Tv aos 50 anos. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000, p. 9-10.
4
CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura. v.1. 3 ed. São Paulo: Paz e Terra,
1999, p. 23.
54
[...], a participação de mercado, conceito econômico utilizado para
contabilizar a parcela relativa ao mercado dominada por uma determinada
empresa dentro de um setor industrial, não se baseia no conceito de
audiência, mas no de participação na audiência (share de audiência), definida
como a proporção, expressa em percentual, da presença de um determinado
segmento de público na audiência total de um meio, veículo ou parte dele5.
De acordo com Simões e Mattos, uma das complexidades deste setor é a prerrogativa
que envolve as definições de mercado em televisão, uma vez que é possível considerar como
consumidores tanto os anunciantes, que são “os consumidores do produto denominado espaço
publicitário (que são efetivamente as agências de publicidade e os anunciantes)”, bem como
os telespectadores, “os consumidores do produto denominado programa televisivo (aqui
caracterizado pela audiência ou parte dela)”. Por isso, a participação de uma determinada
empresa televisiva no mercado (market-share) fica entendida como a participação na
audiência. Esse referencial serve, também, como parâmetro para distinguí-la dos demais
concorrentes.
Afinal, o que define um mercado não é a quantidade de pessoas com
potencial para serem consumidores, mas a quantidade de consumidores, em
si. Permanecendo na arena econômica e tomando os telespectadores de um
canal de TV por consumidores, chegamos à conclusão de que a noção de
participação na audiência é a que se mostra adequada6.
Portanto, é a noção de participação na audiência - mensurada nas cidades paulistas da
região metropolitana da Grande São Paulo: Santo André, São Bernardo e São Caetano
(Grande ABC) - o referencial adotado como parâmetro que distingue determinada empresa
televisiva de sinal aberto no Brasil. Esta aferição da audiência é realizada por equipamentos
interligados a dezenas de aparelhos receptores em lares pré-selecionados. Isso possibilita o
monitoramento on line (webservice) da performance de cada rede. Desta forma, as empresas
acompanham a medição na participação da audiência em tempo real, minuto a minuto, dia
após dia.
5
SIMÕES, Cassiano F.; MATTOS, Fernando. Elementos histórico-regulatórios da televisão brasileira. In:
BRITTOS, Valério C.; BOLAÑO, César R. (Orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia. São Paulo:
Paulus, 2005, p. 45.
6
Ibid, p. 46.
55
O controle do conjunto de dados permite avaliar a concorrência e é capaz de identificar
e quantificar o índice da própria emissora, assim como a participação proporcional de cada
competidor, a partir da programação transmitida pelas TVs. As informações auxiliam as
tomadas de decisões para reverter a queda na audiência, se for o caso. A medição auxilia no
gerenciamento da programação, que com a ajuda de pesquisas qualitativas, direcionam
projetos para a criação de novos produtos e serviços. Esse monitoramento em tempo real é
fundamental para os departamentos comerciais e de marketing das emissoras, bem como de
agências de publicidade e anunciantes, pois, assim, podem rever as estratégias e os meios de
divulgação e planejamentos de marketing.
Cada ponto percentual na audiência corresponde a 52,3 mil televisores ligados em
domicílios da região do grande ABC. No Brasil existem aproximadamente 62,2 milhões de
televisores nos 44,1 milhões de domicílios brasileiros com aparelhos de TV (DTV). Operam
em território nacional, 338 emissoras de sinal aberto7.
Para ilustrar a diferença existente entre participação na audiência e a própria
audiência, costuma-se dizer que o cálculo da audiência considera como
universo de pesquisa o total de domicílios com televisores (mercado
potencial), ao passo que a participação considera como universo o total de
domicílios com televisores efetivamente ligados (mercado real). Logo, a
participação na audiência é o que, em economia, equivale ao conceito de
participação de mercado8.
Assim, com base na audiência de televisores ligados, pode-se afirmar que a TV Globo e
a Rede que a constitui, é apontada como sendo a empresa líder do setor de mídia eletrônica no
Brasil, com uma participação na audiência, entre 20h e 22h, com picos de preferência de
público que chega a 80%. “O que significa que oito entre dez telespectadores ativos assistem
7
GRUPO DE MÍDIA SÃO PAULO. Mídia dados. Disponível em:
<http://www.gm.org.br/midia_dados/2004/televisão.htm >. Acesso em: 20 mai. 2005.
8
SIMÕES, Cassiano F.; MATTOS, Fernando. Elementos histórico-regulatórios da televisão brasileira. In:
BRITTOS, Valério C.; BOLAÑO, César R. (Orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia, p. 46-47.
56
à Rede da TV Globo naquele momento verificado, enquanto os 20% restantes assistem a
outros canais de TV”9.
Com este aval, o telespectador permite que a empresa torne-se líder de mercado com um
share de audiência nacional entre as redes, das 7h às 24 horas, de segunda-feira a domingo,
que, nos últimos cinco anos, girou em torno de 53% dos televisores ligados10 ao canal da TV
Globo e a Rede que ela administra11. Este índice de audiência é quase o dobro da soma dos
indicativos dos quatro principais concorrentes juntos. A TV Globo possui uma programação
88% nacional12, e produzida por ela mesma, que é transmitida durante as 24 horas do dia, e de
forma ininterrupta o ano todo. Exceção feita apenas para as paradas técnicas, em rede ou em
cada afiliada, de forma isolada, nas madrugadas das segundas-feiras, em dias prédeterminados, para a manutenção, ajustes e substituições de equipamentos.
O mercado publicitário corrobora, e muito, para a performance da TV Globo. O Brasil
se tornou, em 2004, o 10º maior mercado de publicidade do mundo13. O setor movimentou R$
R$ 19,08 bilhões nos meios de comunicação em forma de investimentos publicitários em suas
marcas e produtos. A televisão aberta abocanhou 60% deste volume, ou seja, R$ 11,4
bilhões14. O mercado brasileiro de publicidade em TV de sinal aberto é o maior da América
Latina. O mercado publicitário no Brasil representa quase 0,8% do Produto Interno Bruto do
país, abaixo do 1,3% dos Estados Unidos15. A comparação indica, ainda, um potencial de
crescimento do setor existente no mercado nacional. A TV Globo e sua Rede de Televisão
movimentam cerca de 78% do bolo publicitário destinado às emissoras nacionais de sinal
9
SIMÕES, Cassiano F.; MATTOS, Fernando. Elementos histórico-regulatórios da televisão brasileira. In:
BRITTOS, Valério C.; BOLAÑO, César R. (Orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia, p. 47.
10
MÍDIA DADOS. Grupo de Mídia São Paulo. São Paulo: Porto Palavra Editores Associados, 2005, p. 153.
11
FOLHA ON LINE. Brasil. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2503200628.htm>.
Acesso em: 01 ago. 2006.
12
TV GLOBO. Institucional. Disponível em: <http://www.redeglobo3.globo.com/institucional>. Acesso em: 23
mai. 2005.
13
AD NEWS. Notícias. Disponível em: < http://www.adnews.com.br>. Acesso em: 09 set. 2005.
14
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE JORNAIS. Jornal ANJ. Disponível em :
<http://www.anj.org.br/jornalanj/?q=node/697>. Acesso em: 04 set. 2006.
15
AD NEWS. Notícias. Disponível em: < http://www.adnews.com.br>. Acesso em: 09 set. 2005.
57
aberto16 e que correspondeu a R$ 8,89 bilhões neste mesmo ano em termos nominais, sem
desconto no preço de tabela.
Em 2004, o custo da TV Globo foi de R$ 2,802 bilhões. As receitas com publicidade
chegaram a casa dos de R$ 3,77 bilhões (já descontadas comissões de agências e impostos). O
lucro bruto (antes de taxas, impostos, depreciações, amortizações e transferências para a
Globopar a título de aluguel) foi de R$ 971 milhões. O lucro líquido foi de 112,8 milhões17.
Em 2005, o mercado brasileiro de publicidade cresceu 14,7% em relação ao ano
anterior, com um movimento de negócios da ordem de R$ 21,9 bilhões, colocando o Brasil na
oitava posição do ranking mundial do setor18. Como não há dados referentes ao faturamento
exclusivo da TV Globo, pertinentes ao ano de 2005, estima-se, utilizando a mesma proporção
de crescimento do mercado em movimentação sobre negócios publicitários, que a TV Globo
mobilizou, em negócios com este segmento, algo próximo a R$ 10 bilhões, em termos
nominais, sem desconto no preço de tabela. Considerando os descontos, de forma
proporcional ao ano anterior, a empresa faturou em 2005 cerca de R$ 4,24 bilhões.
Entretanto, como deixou de ser uma empresa autônoma, a Globopar, holding que
controla as empresas do Grupo Globo (Ver Capítulo 1) não divulgou dados pertinentes à TV
Globo e sua circulação de negócios no ano de 2005. A Holding como um todo, “registrou uma
geração de caixa (Ebitda, lucro antes de impostos e amortizações) de R$ 1,368 bilhão, 10,7%
a mais do que em 2004 (R$ 1,236 bilhão). Já o faturamento do grupo cresceu 4,7%, para R$
5,588 bilhões, contra R$ 5,339 bilhões em 2004”.19
16
CASTRO, Daniel. Outro Canal: TV chegou ao “fundo do poço”, diz Globo. Folha on Line. São Paulo, Jul..
2005. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u43018.shtml >. Acesso em: 27
jul. 2005.
17
AD NEWS. Notícias. Disponível em: < http://www.adnews.com.br>. Acesso em: 09 set. 2005.
18
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE JORNAIS. Jornal ANJ. Disponível em :
<http://www.anj.org.br/jornalanj/?q=node/697>. Acesso em: 04 set. 2006.
19
FOLHA ON LINE. Brasil. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2503200628.htm>.
Acesso em: 01 ago. 2006.
58
A maior parte do volume de negócios da TV Globo é obtida pelo departamento
comercial da emissora, que administra a operação de 70 intervalos por dia durante a
transmissão da programação, ao vincular anualmente 12 milhões de comerciais como
resultado do atendimento a mais 5,6 mil agências e 38.400 clientes (anunciantes)20.
“Aproximadamente um terço de toda a verba da publicidade nacional vai para a contabilidade
da TV Globo e a Rede”21.
A quantidade de comerciais vinculados nos blocos comerciais da TV Globo e o volume
de agências e anunciantes que atende demonstra que há
[...], uma efetiva correspondência com a questão da audiência da TV: quanto
maior for a audiência, maior será o preço de venda do espaço publicitário e,
conseqüentemente, maiores serão as possibilidades de retroalimentação de
investimentos na qualidade da produção, da programação e da distribuição22.
Embora empresas deste tipo operem numa conexão direta com os consumidores, estas
devem atuar no mercado, de forma a perpetuarem tanto o fluxo de conectividade, como evitar
que criem fatores de transtorno para os demais concorrentes. Por isso, há uma regulamentação
do setor, pois, assim, impede-se que fiquem sujeitas à geração de ineficiência por parte de um
dos competidores, “externalidade”, “falhas de mercado” e “a duplicação ineficiente de infraestrutura”23.
Além disso, Simões e Mattos afirmam que a regulamentação do setor tenta evitar um
poder excessivo da companhia no mercado, assim como diminuir as possíveis causas
complicadoras para a atuação de uma empresa em rede, além de estimular a competitividade.
Assim, o fato de que essas redes em geral apresentam economias de escala,
demanda regulação da entrada para se evitar duplicação ineficiente de infraestrutura, com a conseqüente elevação de custos e perda de bem estar. Por
último, o fato de estas redes envolverem conexão direta com os
consumidores gera um poder de mercado significativo para as empresas que
administram essas redes, o que, associado com as vantagens derivadas de sua
20
TV GLOBO. Institucional. Disponível em: <http://www.redeglobo3.globo.com/institucional>. Acesso em: 23
mai. 2005.
21
SIMÕES, Cassiano F.; MATTOS, Fernando. Elementos histórico-regulatórios da televisão brasileira. In:
BRITTOS, Valério C.; BOLAÑO, César R. (Orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia, p. 45.
22
Ibid, p. 43.
23
Ibid, p. 43-44.
59
localização, que geram rendas extraordinárias, acaba por completar o
conjunto de argumentos favoráveis à regulação24.
Todavia, ainda segundo Simões e Mattos, a TV Globo, ao invés de ser limitada pela
regulamentação existente para as empresas que operam no setor, acaba, pelo contrário, por ser
beneficiada, uma vez que, segundo eles, as normas que limitam o acesso à audiência por
determinada empresa não são observadas e implementadas pelos órgãos reguladores
responsáveis pela fiscalização do setor. Assim, os autores dizem que o acesso ao principal
objeto desse tipo de empresa - a audiência - , não está submetida a um controle e
acompanhamento específico. Isso acontece, para eles, entre outros fatores, pelo fato,
principalmente, da regulamentação do setor considerar como índice de audiência os
televisores existentes nos domicílios, e não os efetivamente ligados e sintonizados no canal de
determinada emissora25.
Esses meandros característicos do meio televisão tornam difícil a análise da
concentração, que por vezes deriva para a análise da propriedade das
concessões e, por outras, para a da produção do audiovisual. Por outras
ainda, a análise não é clara pela dificuldade de definir aquilo de que se cuida
quando se trata de mercado - de publicidade ou de audiência - , além de
outras implicações, dificuldades que eventualmente se podem perceber até
mesmo nos órgãos reguladores, que atuam na defesa da concorrência26.
Indiferente desta dificuldade, de apontar se a TV Globo concentra ou não audiência, o
fato é que ela é líder do setor, seja adotando um ou outro parâmetro de comparação. Neste
caso, ao considerar como base o índice relativo ao universo dos domicílios com aparelhos de
televisão (DTV), a empresa alcança 32% da preferência27 do público telespectador, o que a
caracteriza, também, como a primeira entre as emissoras de televisão. Porém, o que vale,
neste momento, é que, qualquer que seja o índice adotado com referência a audiência, uma
vez que esteja definido que a TV Globo e a Rede que administra se sobressai perante os
24
SIMÕES, Cassiano F.; MATTOS, Fernando. Elementos histórico-regulatórios da televisão brasileira. In:
BRITTOS, Valério C.; BOLAÑO, César R. (Orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia, p. 43-44.
25
Ibid, p. 39-41.
26
Ibid, p. 47.
27
Ibid, p. 44.
60
demais concorrentes, é o suficiente para entender que ela ocupa a posição de empresa número
um do setor.
Isto não significa que tal discussão não deva ser considerada. Pelo contrário, o tema
deve ser tanto discutido como aprofundado. Entretanto, o que interessa é que tenha ficado
evidente que em televisão de sinal aberto, existe a ligação entre telespectadores, agências de
publicidade e anunciantes, ao considerá-los como sendo o nexo de causalidade para o sucesso
que determinada empresa alcança, e que, são estes os consumidores dos produtos e serviços
ofertados por determinada empresa do ramo.
Então, as chamadas cumprem um papel preponderante ao atrair a expectativa dos
telespectadores, pois elas devem cumprir não só a função de captar a atenção e filiação destes
à programação, mas, sobretudo, também, a de manter o refluxo desta situação de conexão à
Rede. Estes, ao responderem com a sintonia do sinal da emissora no aparelho receptor, atraem
os demais clientes.
Embora anunciantes e agências de publicidade busquem os espaços comerciais da TV
Globo pela quantidade expressiva de telespectadores conectados à ela, isso não se dá
exclusivamente pelo fato da empresa agregar à essa filiação, um número considerável de
indivíduos com potencial de consumo nas mais variadas faixas de estratificação social (renda,
escolaridade, faixa etária, gênero, sexo, etc). É claro que esse é fator fundamental. Porém, ao
disponibilizar as chamadas da programação nos blocos comerciais, a empresa possibilita,
justamente às agências de publicidade e anunciantes, vincularem suas propagandas, também
com a intenção de alcançarem melhores performances, potencializando, assim, a eficácia de
mensagens publicitárias. Esse processo se dá, sobretudo, porque no Brasil, a TV Globo é a
empresa televisiva que realiza uma simbiose entre a integração da ordem social e o lúdico,
potencializando, sobremaneira, as funções de mensagens publicitárias.
[...] o signo publicitário faz passar a ordem social em sua dupla determinação
de gratificação e repressão. Gratificação, frustração: as duas vertentes
61
inseparáveis da integração. Sendo legenda, cada imagem dissipa a
polissemia angustiante do mundo. Mas para ser legível, ela se faz pobre e
expedita – ainda suscetível de muitas interpretações, restringe seu sentido
pelo discurso que a subintitula, como uma segunda legenda. E sob, o signo
da leitura, sempre remete a outras imagens. A publicidade, por fim,
tranqüiliza as consciências por uma semântica social dirigida e dirigida, em
último termo, por um único significado, que é a própria sociedade global.
Esta assim se reserva todos os papéis: suscita uma multidão de imagens, cujo
sentido, por outro lado, esforça-se em reduzir. Suscita a angústia e a acalma.
Cumula e engana, mobiliza e desmobiliza. Sob o signo da publicidade,
instaura o reino da liberdade do desejo. Mas nela o desejo nunca é
efetivamente liberado – seria o fim da ordem social –, o desejo só é liberado
na imagem e em doses suficientes para provocar os reflexos de angústia e de
culpabilidade ligados à emergência do desejo. Aliciada pela imagem, mas
enganada e culpabilizada também por ela, a veleidade de desejo é recuperada
pela instância social 28.
Portanto, as chamadas, por estarem localizadas nos blocos comerciais possibilitam
estender as contradições entre gratificação e repressão. Este processo não ocorre apenas na
tentativa de atrair a atenção dos telespectadores para o conteúdo da publicidade, mas,
sobretudo, facilita a dicotomia entre gratificação e repressão, o que acaba por potencializar as
chances das mensagens das agências de publicidade e anunciantes tornarem-se mais
eficientes.
Isto explica porque a TV Globo, ao optar por inserir no bloco comercial, o conteúdo da
programação, utiliza as chamadas, já que é a empresa que introduz, no Brasil, um modo
próprio e original de oferecer seus produtos e serviços.
Levando-se em conta isso, é possível afirmar que é, num único espaço, localizados nas
chamadas da programação dos blocos comerciais da emissora, que a emissora consegue reunir
de uma só vez os diversos públicos que espera atingir: os consumidores de seus produtos e
serviços (telespectadores, agências de publicidade e anunciantes).
Ortiz Ramos explica que o sistema televisivo brasileiro foi implementado a partir dos
anos 50 do século passado, seguindo o modelo americano, e, portanto, construído em íntima
28
ADORNO, Theodor (et al). Teoria da Cultura de Massa. 5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 296-297.
62
relação com a publicidade, e, desde então, produção de entretenimento e necessidades dos
anunciantes caminharam sempre lado a lado29.
Segundo o autor, a produção televisiva estadunidense surge pelas mãos das agências de
publicidade. De acordo com ele, tais programas de patrocinadores limitavam-se à participação
exclusiva de agências de publicidade e propaganda na criação e produção dos programas a
serem exibidos.
Conforme Ortiz Ramos, no Brasil, de forma análoga à americana, onde o sistema adotou
o chamado magazine concept de publicidade e que, segundo ele, caracteriza-se pela venda de
espaços publicitários nos mais diferentes tipos de programas, possibilitou às companhias de
Tevê estadunidenses, a retirada do patrocinador exclusivo privilegiado no intervalo comercial.
Com isso, explica, o controle passa para as redes, que controlam a produção ou compram
programas de realizadores independentes.
Esse processo, instaurado nos Estados Unidos no final dos anos 50, chega
aqui na década seguinte. Depois, com o avanço da pesquisa de mercado
caminha-se para a noção de público-alvo, da venda de audiências
qualificadas em diversos horários. Esta será considerada uma grande
inovação da TV Globo, a venda de tempo de comercial e não de
programação. A Globo adota, então, o chamado sistema de módulos, os
quais são pré-planejados conforme a homogeneidade de gêneros/conteúdos
de programa e de audiência, e facilitam o controle da demanda publicitária
pela emissora30.
Ora, com a utilização dos sistemas de módulos, as chamadas tornam-se fundamentais
nesta engrenagem, pois estimulam as expectativas das oportunidades de negócios com os
diversos públicos que busca alcançar. Ao considerar tanto o telespectador como as agências
de publicidade e anunciantes, os consumidores dos serviços e produtos que a empresa
disponibiliza ao mercado, a TV Globo busca, pelas chamadas da programação, uma conexão
da compatibilidade entre suas atividades com os clientes que atende, já que as chamadas se
tornam um elo da filiação dos telespectadores à emissora, os quais acabam por criar um vácuo
29
30
RAMOS, José Mário O. Televisão, Publicidade e Cultura de Massa. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 44.
Ibid, p. 45.
63
que arrasta os demais clientes (agências de publicidade e anunciantes) a buscar algum vinculo
com ela e sua Rede.
Isso leva a entender que a política de programação da TV Globo dá extrema importância
às chamadas ao longo da programação, pois elas agregam em um único espaço o nexo de
causalidade que envolve a questão econômica e que, obrigatoriamente, a empresa necessita
acessar para obter e se manter no lucro. Entretanto, é fato que a empresa, ao considerar ambos
os elementos intrínsecos à política de programação, blocos comerciais e programação, faz dos
dois blocos, um todo coeso. O que leva a entender que, mesmo as chamadas sendo corolário à
programação, na realidade, para a política da empresa, tanto blocos comerciais como
programação são concebidos simultaneamente como forma de desenvolver a produção,
distribuição e comercialização dos produtos e serviços que ela administra pois, sem um, não
se tem o outro. Por isso, não dá para fazer diferenciação entre uma coisa e outra, uma vez que
as duas se complementam: programação e comercial.
Para criar uma compatibilidade entre estes módulos (programação e comercial), a
empresa segue um padrão de programação que a diferencia dos demais concorrentes. Assim, a
TV Globo precisa incorporar sistemas e métodos que possam agilizar a produção de forma
contínua, para suprir a demanda do mercado. Portanto, a questão do método, do padrão de
produção, envolve duas vertentes opostas que tentam delimitá-lo.
A primeira procura enquadrá-lo a partir de características como limpeza – no
sentido de concisão da imagem e texto –, luxo, ausência de erros e falhas,
ritmo, enfim, uma qualidade audiovisual decorrente da potencialidade
tecnológica de uma televisão plena de recursos. O enfoque geralmente
desliza para a crítica ideológica, identificando o padrão com hábitos de
consumo, estilo de vida e visão estética – na acepção do termo – de uma
classe num determinado momento da modernização brasileira. [...] A outra
visão de padrão está internalizada na industria cultural e procura desvincular
31
o padrão da sua componente ideológica .
Na avaliação de Ortiz Ramos, o termo qualidade audiovisual se encaixa naquilo que
caracteriza o padrão definido como Institucional, e que, no mercado brasileiro, é conhecido
31
RAMOS, José Mário O. Televisão, Publicidade e Cultura de Massa, p. 58-59.
64
como o chamado padrão Globo, ou padrão Global. Para ele, muitos analistas e críticos
confundem o padrão de produção com o conteúdo educativo ou cultural (no sentido burguês e
elitista do termo). Já os admiradores da TV Globo o entendem como sendo a qualidade dos
programas no sentido de eles gostarem ou não.
Padrão de produção nada tem a ver com a qualidade do programa, nos vários
sentidos em que o qualificativo é usado (qualidade cultural, educativa, de
entretenimento, de emoção, de estética etc.). Padrão de produção é a criação
de rotinas internas e de equipes técnicas capazes de realizar, a nível
industrial, isto é, com regularidade e freqüência, programas. E os programas
devem atender a várias demandas como as necessidades de clareza do
mercado e simplicidade no contato com idéias novas, além das necessidades
de entretenimento, de figuras de ficção e de um mínimo de qualidade técnica
e estética32.
Para Ortiz Ramos, as duas concepções de padrão não completam de forma satisfatória a
materialidade do padrão e suas relações com o processo cultural ideológico mais amplo. Para
ele, a primeira distinção do termo padrão fica na superficialidade, à captação de alguns traços
da programação que remete ao gosto de classe imposta à outra. Além disso, afirma, a questão
limita por tabela um aprofundamento da modernização audiovisual que procura ampliar seu
público nacional e internacionalmente, com produção popular de massa. Por isso, comenta
Ortiz Ramos, mesmo a produção sendo direcionada preferencialmente a um público popular,
deve-se obedecer critérios de qualidade33.
Ora, este obedecer critérios de qualidade surge na TV Globo por via da publicidade. Ele
é derivado das propagandas vinculadas nos blocos comerciais da própria emissora ao longo
destes 40 anos de atividades no mercado. Ou seja, as próprias propagandas de agências de
publicidade e anunciantes servem de espelho para determinar os critérios de qualidade que
permitem à empresa definir seu padrão de produção e que, impreterivelmente, ela deve seguir.
A TV Globo, ao determinar para parte dos clientes (agências de publicidade e
anunciantes), uma propaganda com critérios de qualidade, é porque na realidade, é a forma de
32
33
RAMOS, José Mário O. Televisão, Publicidade e Cultura de Massa, p. 59-60.
Ibid, p. 60.
65
garantir a ela mesma, determinados parâmetros onde pode encontrar e basear o próprio padrão
de qualidade.
Caso não se decidisse por isso, a empresa empenharia recursos e tempo em demasia, na
tentativa de acompanhar agências de publicidade, nacionais e internacionais, as quais aplicam
somas bilionárias em projetos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) para empreender novas
técnicas de persuasão e padrão de produção de propagandas voltadas para o áudio-visual. Ao
se ver limitada pela incapacidade de aplicar somas dispendiosas na busca da inovação destes
critérios de qualidade, a TV Globo torna tal processo mais prático e menos oneroso quando,
apenas, acompanha as mudanças impostas pelo mercado audiovisual publicitário.
Neste caso, tem-se um caminho contrário: é a empresa que está no vácuo das agências
de publicidade e propaganda. As chamadas, localizadas no mesmo espaço que os comerciais
de seus clientes, permitem um acompanhamento diário desse critério de qualidade. O bloco
comercial torna-se o espelho da TV Globo e da Rede, pois ela segue os reflexos que enxerga e
identifica ali, como essenciais ao seu padrão, e que guiam os gestores da empresa na adoção
de critérios para uma política voltada simultaneamente tanto para a programação como para o
bloco comercial.
A TV Globo passa a praticar esse método no início da década de 1970, na mesma época,
Raymond Williams vai comparar o estilo de programação, intercalada por blocos comerciais,
diferenciando-o do modelo inglês, onde a programação não permitia a interrupção de
programas para inserção de comerciais. O autor conceitua, então, esse tipo contínuo de
programação como seqüencial. Já, em comparação ao modelo constituído por blocos
comerciais, Williams o denomina de fluxo. Para ele, os blocos da programação e comerciais
permitiam um fluxo serializado por unidades diferentemente relacionadas, no qual a
66
temporalidade, embora real, não é explicitada, e no qual a organização interna é uma outra
coisa diversa da que é mostrada34.
Williams acreditava que este fluxo constituía-se como uma irresponsabilidade de
sentimentos e imagens que atravessavam a exibição de um filme na televisão, com trechos da
narrativa se fundindo com comerciais e pedaços de filmes anunciados nos intervalos, num
processo confuso e ilógico35.
A reflexão de Williams ainda permanece instigante, e a crítica que hoje se
faz às suas colocações é de ter adotado uma visão ainda muito restrita das
‘unidades’ da programação como textos específicos, como se fossem livros e
filmes, o que o levou a ver uma total ausência de sentido no processo de
mistura de segmentos diversos. Acabava, assim, por subestimar a
complexidade da difusão das produções televisivas e suas possibilidades de
leitura, num mundo moderno marcado pela rapidez, fragmentação e
visualidade. Podemos, então, pensar numa ‘experiência de ver TV’ do
telespectador, que processa conjuntamente comerciais e programas, exigindo
tanto determinados procedimentos de linguagem, como uma certa qualidade
audiovisual das produções. Assim, a noção de fluxo e seus desdobramentos
aponta para a necessidade de compreendermos também a materialidade da
realização dos comerciais, pois a massa de pequenos segmentos dos
intervalos exerce uma influência determinante nos padrões dos produtos
ficcionais audiovisuais modernizados. A aproximação com a realização dos
comerciais vai permitir uma ampliação do leque de questões que atravessam
cinema e TV, já que está localizada num ponto de intersecção dos dois
meios, e partilha problemas do processo específico do audiovisual
brasileiro36.
Segundo Ortiz Ramos, a massa de comerciais para televisão no Brasil, é viabilizada a
partir da interligação entre cinema de longa-metragem e o filme publicitário, embora ele
afirme que, os processos dessa interligação deram-se de forma distinta, a vinculação entre
cinema e publicidade é análoga à americana, já que em busca de qualidade, televisão e
agências vão recorrer à tradição audiovisual já estabelecida do cinema37.
Os excessivos recursos de produção do cinema publicitário conduzem, sem
dúvida, a uma inquestionável qualidade audiovisual. Essa é uma tendência
internacional, e alguns autores consideram os comerciais uma forma de
‘comunicação concentrada’, ou a ‘quintessência da TV’, conforme coloca
Jonh Ellis, com imagens condensadas que conduzem a uma ‘experiência’ de
‘ver comerciais’. A louvação, às vezes, é exagerada, mas possibilita a
34
RAMOS, José Mario O. Televisão, Publicidade e Cultura de Massa, p. 69.
Ibid, p. 69.
36
Ibid, p. 70, aspas do autor.
37
Ibid, p. 72.
35
67
compreensão das interações audiovisuais entre as produções que a televisão
veicula e os comerciais. O intervalo comercial acaba se sobressaindo no
fluxo, estabelecendo parâmetros para a programação. A interação ocorre
também no sentido contrário, sendo que uma programação mais elaborada
não aceita mensagens publicitárias sem um padrão mínimo 38.
Tudo indica que, a TV Globo, ao ajustar a produção, desta vez, do sistema analógico
para o digital, vai seguir no vácuo das agências de publicidade, já que há a diferença nos
formatos dos aparelhos televisores e de laptops widescreen, com telas de formato de cinema,
ou seja, mais largas do que as televisões comuns. Pesquisa realizada pela Pacific Media
Associates (PMA) identificou que a maior parte das TV’s de tela plana utilizadas no sistema
digital, possuem mais de 30 polegadas e apresentam formato retangular. “As TVs atuais quadradas - remetem aos primeiros filmes sonorizados e tem relação com o formato da
película utilizada na época. Os cinemas usam a imagem mais larga há muito tempo, mas as
televisões e os monitores se mantiveram no formato antigo”39.
A transição deve ter percalços. Alguns softs de computador foram feitos para
o formato padrão e podem ficar estranhos no formato retangular. Além disso,
os programas feitos para o formato 4:3 não irão se adaptar bem às
widescreen. Os aparelhos podem exibir os programas no tamanho original
colocando barras pretas no espaço sobressalente ou esticando a imagem para
que caiba na tela40.
A partir da publicidade, a TV Globo, então, determina para toda a Rede, os sistemas,
métodos e critérios de qualidade que devem ser adotados como sendo o padrão de produção
coerentes e compatíveis ao que produz e oferta ao mercado, nacional e estrangeiro, abrindo
caminho, assim, para que se produza material audiovisual próprio, e nos mesmos critérios de
qualidade da mídia internacional.
Ultrapassar a barreira destes critérios de qualidade, além de oneroso, seria para a TV
Globo adentrar numa zona de perigo, uma vez que não pode correr o risco de ofuscar e
competir com os objetivos de planos de marketing das agências de publicidade e anunciantes.
38
RAMOS, Jose Mario O. Televisão, Publicidade e Cultura de Massa, p. 87, aspas do autor.
EVOLUÇÃO DIGITAL: TVs e laptops widescreen ganham espaço no mercado. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 20 Set. 2006. Folha Informática, p. 12.
40
Ibid, p. 12.
39
68
Na maior parte do tempo da programação anual, esse ciclo só é quebrado quando há produção
de mini-séries e programas especiais que são levados à grade de programação com o objetivo
de testar as novas tendências do mercado audiovisual e que podem resultar, ainda em
eliminação de custos, performances superiores de rotinas de produção, capazes de
potencializar a regularidade e freqüência dos programas e demandas de produtos e serviços,
ao levar em conta a inovação tecnológica de equipamentos e treinamento de pessoal. O
mesmo vale para cada nó da Rede, como um todo, guardada as devidas proporções regionais e
locais que devem ser respeitadas em termos de mercado e venda de espaços publicitários,
demanda e oferta. Daí, as chamadas serem consideradas mediadoras do padrão de produção
para a TV Globo, que, por sua vez, especifica para a Rede, o padrão a seguir.
Esse é um dos motivos que dificultam outras emissoras a acompanharem o ritmo de
padrão de produção da emissora carioca. Uma vez que os concorrentes disputam os 22%
restantes da verba publicitária destinada à televisão de sinal aberto, vale lembrar que a TV
Globo e a Rede ficam com cerca de 78% da verba publicitária para esta mídia.
Como os concorrentes não podem se dar ao luxo de esnobar a verba que sobra no
mercado, acabam por permitir o vínculo de propagandas que não correspondem a mínimos
critérios de qualidade que acabam por diferenciar os rivais do setor de rádio-difusão. De
alguma maneira, este processo cria um contraste entre o que é exibido na grade de
programação da concorrência e seus correspondentes blocos comerciais.
Por sua vez, tais concorrentes acreditam que podem alcançar a performance da líder de
mercado no Brasil apenas adotando os critérios de qualidade da programação da TV Globo ao
imitá-la ou copiá-la.
Logo, não percebem que não basta apenas possuir compatibilidade, mas devem manter a
posição de competidor numa sustentabilidade a médio e longo prazo. Para Porter, é mais
69
difícil para a concorrência emular o emaranhado do conjunto de atividades de certas empresas
do que copiar determinadas características de uma atividade, produto ou serviço41.
O autor afirma que esse emaranhado só pode ser quebrado pelo concorrente quando este
se coloca num patamar de posicionamento estratégico novo em que o líder, por razões
excludentes não identificou ou não atua42.
Assim, por exemplo, mesmo que determinados concorrentes venham a copiar alguns
traços do padrão de produção da TV Globo, para se manterem num posicionamento
sustentável devem explorar e, concomitante, administrar todos os fatores que implicam nos
processos da empresa que a condicionam43.
Porter diz que muitas empresas tornam-se incapazes de distinguir entre eficácia
operacional e posicionamento no mercado. Aponta ele que executivos têm confundindo
ferramentas e técnicas gerenciais, como “gestão da qualidade total”, “competição baseada no
tempo”, “tercerização”, “parceria”, “reengenharia” e “gestão de mudança”, por exemplo,
como opções de incrementar a operacionalidade, mas acabam por deixar de identificar outros
fatores que reforçam a posição da empresa perante os concorrentes. O todo, diz Porter, é mais
importante do que qualquer parte individual44.
As escolhas de posicionamento determinam não apenas as atividades a
serem desempenhadas pela empresa, mas também a forma como elas se
relacionam uma com as outras. Enquanto a eficácia operacional diz respeito
a atingir a excelência em atividades individuais, ou funções, a estratégia trata
da combinação de atividades45.
Por isso, este estudo tem como objeto as chamadas, uma vez que no Brasil, a TV Globo
ao perceber este todo característico ao meio televisivo de sinal aberto, buscou nelas a forma
de compatibilizar as inúmeras implicações que se colocam como fatores complicadores da
41
PORTER, Michael E. Competição = On Competition: estratégias competitivas essenciais. 4. ed. Rio de
Janeiro: Campus, 1999, p. 71-72.
42
Ibid, p. 73.
43
Idem, Vantagem Competitiva: criando e sustentando um desempenho superior. 17. ed. Rio de Janeiro:
Campus, 1989, p. 44-45.
44
Ibid, p. 47.
45
Idem, Competição = On Competition: estratégias competitivas essenciais, p. 68.
70
atuação da empresa no mercado. Desta forma, seguindo Porter, as empresas que conseguem
desempenhar um papel de destaque são aquelas que iniciam o mais cedo possível essa função
de definir e incorporar na identidade das próprias atividades uma posição competitiva de
otimização ou da coordenação de obtenção de dados originários das vantagens competitivas a
partir dos elos dentro de uma posição competitiva única. Assim, diz ele, administrar elos
torna-se mais complexo do que administrar as próprias atividades de valor46. “Dada à
dificuldade de reconhecer e administrar elos, a habilidade para fazer isto freqüentemente
produz uma fonte sustentável de vantagem competitiva”47.
Esse foi, e é, o caso da TV Globo, que ao introduzir os sistemas de módulos, garantiu,
pelas chamadas, uma forma de manter critérios de qualidade para a empresa e toda a Rede,
uma vez que possibilita-a, manter ao longo do tempo, a própria performance num todo de
valor agregado.
Mas não é só. A política de programação da TV Globo vai buscar na ação do teatro
brechtiano uma forma de resolver a velocidade e o tempo do discurso que deve ser utilizado
para atrair os telespectadores. Assim, mais limitada pelas questões tecnológicas, do que
ideológicas, a empresa, entre as décadas de 1960 e 70, encontra no teatro do dramaturgo
alemão Bertolt Brecht uma função instrumental com ação de dois sentidos: “no primeiro ele
está a serviço da preservação da atividade teatral e no segundo, a serviço de sua modificação”,
com isso, a empresa optou por uma definição narrativa que pudesse assegurar uma
conciliação entre padrão de produção e forma de despertar a atenção dos telespectadores, ao
adotar um discurso audiovisual precedido também por uma certa prática modernista, pois,
“para seu palco, o público não é mais um agregado de cobaias hipnotizadas, e sim uma
assembléia de pessoas interessadas, cujas exigências ele precisa satisfazer”48.
46
PORTER, Michel E. Vantagem Competitiva: criando e sustentando um desempenho superior, p. 41-46.
Ibid, p. 46.
48
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. v.1. São
Paulo: Brasiliense, 1985, p. 79.
47
71
De acordo com Walter Benjamin, “nada é mais característico do pensamento de Brecht
que a tentativa do teatro épico”, que busca modificar “as relações funcionais entre palco e
público, texto e apresentação”. Desta forma, seu principal emprego seria o “de interromper a
ação, e não ilustrá-la ou estimulá-la. E não somente a ação de um outro, mas a própria”49.
Então, para Benjamin, “tanto o processo de desenvolvimento da realidade do tempo”,
como a forma do “discurso sobre a história”, são seguidos por uma certa prática que incorpora
uma cronologia que rompe a “homogeneidade” e o “vazio”, típicos de uma época précapitalista50, pois tais práticas possibilitam uma forma narrativa que seja “capaz de levar em
consideração os sofrimentos acumulados e de dar uma nova face às esperanças frustradas - ,
de fundar um outro conceito de tempo, tempo de agora (Jetztzeit), caracterizado por sua
intensidade e sua brevidade”51.
Tais práticas, afirma Benjamin, são incorporadas, primeiro pelo cinema e, depois, pelo
rádio, a partir das décadas iniciais do século XX, quando a evolução tecnológica permitiu que
as empresas do ramo pudessem modificar o próprio conteúdo e programação, ao adaptá-los,
respectivamente, aos novos tempos do capitalismo industrial.
Se o cinema impôs o princípio de que o espectador pode entrar a qualquer
momento na sala, de que para isso devem ser evitados os antecedentes muito
complicados e de que cada parte, além do seu valor para o todo, precisa ter
um valor próprio, episódico, esse princípio tornou-se absolutamente
necessário para o rádio, cujo público liga e desliga a cada momento,
arbitrariamente, seus alto-falantes52.
Ora, a TV Globo ao utilizar as chamadas, implementa um discurso narrativo e estético
(audiovisual) que permite a empresa ancorar toda a programação, limitando-a pelo referencial
de velocidade e tempo das chamadas. A partir disso, é certo afirmar que toda a programação
da Globo segue um ritmo semelhante aos usados nas chamadas, pois permitem as constantes
mudanças de tomadas de imagens, alterações de plano e interrupção discursiva audiovisual. A
49
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura, p. 79-81.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Prefácio. In: BENJAMIN Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios
sobre literatura e história da cultura. v. 1. São Paulo: ed. Brasiliense, 1985, p.7.
51
Ibid, p. 7.
52
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura, p. 83.
50
72
exemplo do teatro brechtiano, é como se toda a programação se tornasse, em si mesmo, uma
colcha de retalhos, como se uma chamada estivesse seguida da outra, numa constante
mudança, com o objetivo de estar sempre despertando a atenção.
Isto é fato, pois, em média, as imagens exibidas, sejam elas transmitidas durante a
própria programação, ou nos blocos comerciais, têm no máximo um minuto e meio de
duração. A informação consta da tabela comercial da TV Globo, onde a empresa alerta os
clientes, agências de publicidade e anunciantes que qualquer anúncio acima deste tempo será
submetido à apreciação antecipada da emissora, bem como aqueles em formato de
comunicado (sobretudo vinculados nos intervalos, ou breaks, exclusivos do Jornal Nacional,
Jornal da Globo e do Fantástico), os quais “não podem ser confundidos com a
informação/editorial dos programas e devem ser submetidos à apreciação da Rede Globo”. A
empresa alerta, ainda, que os “comerciais com duração fora do padrão ficam sujeitos à nãoexibição, e os espaços reservados serão faturados, sem crédito”53.
Quer dizer que, isto é, a empresa, quando aceita um comercial acima deste teto limite de
tempo, vai ter que arranjar parte da programação para encaixar esta propaganda ou anúncio.
Isso significa que o ritmo, a velocidade da programação e blocos comerciais tem uma
cadência própria que varia de 15 segundos a um minuto e meio, em média.
Como estão sempre sendo interrompidas e iniciadas, num movimento constante que faz
lembrar um ziguezague, uma flexuosidade, criam um efeito de ângulos salientes e reentrantes
alternados, que possibilitam a percepção falseada de que não há uma linearidade na
transmissão da grade de programação.
Assim, ao utilizá-las como vetores referenciais de tempo e velocidade, simbolizam e
instrumentalizam, para a empresa, uma flexibilidade do discurso que tem como característica
53
REDE GLOBO. Lista de Preços: abril a setembro/2005. Rio de Janeiro. 2005, p. 36-37. Dados referentes aos
valores cobrados sobre o tempo e espaços locados (blocos comerciais e programação), as agências de
publicidade e anunciantes, de acordo com horários da programação (nacional e local), mercado (nacional, e/ou
regional), break exclusivo, observações importantes, produtos de desenvolvimento comercial, patrocínios,
material de exibição, geração via satélite e exibidoras da Rede Globo.
73
básica as constantes mudanças que possibilitam retratar os elementos da realidade, com uma
“incessante”, “viva” e “produtiva” ordenação dos fatos e ficção que se coloca, “no fim desse
processo, e não no começo”, pois, assim, se forma as condições que abrem caminho para que
os telespectadores não sejam trazidos “para perto”, mas “afastados dele”54. É pela ruptura
constante do discurso audiovisual que se torna possível despertar o interesse do telespectador.
É na parte que antecede o final de cada ruptura, da seqüência exibida, que se encaixa a
mensagem ou informação que deve ser exposta, dita e transmitida, uma vez que “não se
propõe desenvolver ações, mas representar condições”55.
Comutações semelhantes ocorrem entre o mundo da vida cotidiana e o
mundo do jogo, quer seja o brinquedo das crianças quer, ainda mais
nitidamente, o jogo dos adultos. O teatro fornece uma excelente ilustração
desta atividade lúdica por parte dos adultos. A transição entre as realidades é
marcada pelo levantamento e pela descida do pano. Quando o pano se
levanta, o espectador é transportado para um outro mundo, com seus
próprios significados e uma ordem que pode ter relação, ou não, com a
ordem da vida cotidiana. Quando o pano desce, o espectador retorna a
realidade, isto é, à realidade predominante da vida cotidiana, em comparação
com a qual a realidade apresentada no palco aparece agora tênue e efêmera,
por mais vivida que tenha sido a representação alguns poucos momentos
antes. A experiência estética e religiosa é rica em produzir transições desta
espécie, na medida que a arte e a religião são produtores de campos de
significação56.
Isso leva a entender que a utilização cíclica das chamadas, numa complexa ramificação
destas por toda programação da TV Globo, ao privilegiar o fator econômico, numa grandeza
de primeira instância, evidencia que elas são frutos da produção e administração específica
dos produtos que perdem o sentido de identidade de criação, “ao se tornar uma cultura
efêmera, sem significado a médio e longo prazo, sem autoria, feita em série, como uma
imitação, cópias umas das outras, cópias rudimentares daquilo que já foi um dia denominado
arte”57.
54
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura, p. 81.
Ibid, p. 81.
56
BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade: tratado de sociologia
do conhecimento. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 43.
57
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1989, p. 123.
55
74
Theodor Adorno e Max Horkheimer denominaram este setor da economia, onde a
empresa televisiva opera, de Indústria Cultural, uma vez que empresas que atuam nesta área,
segundo eles, utilizam-se da cultura como matéria prima a ser beneficiada e administrada em
escala de produção58.
O denominador comum cultura já contém virtualmente o levantamento
estatístico, a catalogação, a classificação que introduz a cultura no domínio
da administração. Só a subsunção industrializada e conseqüente é
inteiramente adequada a esse conceito de cultura59.
A cultura, então, torna-se uma questão que envolve a análise organizacional, e sua
percepção se dá pela reificação.
Para G. Lukacs, a burocracia transforma os seres e as coisas em res,
ontologicamente, humanamente praticamente vazios de toda essência, de
todo sentido vivificante. A questão cultural na sociedade organizada tem seu
aproveitamento pelo prisma de produto. Hegel havia avaliado a atividade
humana pela totalidade criada pela produção como movimento de alienação,
Marx como fenômeno de alienação, como fetichismo da mercadoria, em
Lukacs é a reificação60.
As chamadas, então, ao serem processadas e re-elaboradas num processo cíclico, num
movimento que vem e vai, no aparecer e desaparecer, acabam por evidenciar o caráter de
produto em série a ser exibido, o que demonstra que a cultura, então, passa a ser entendida
não só num termo restrito e sinônimo de “agente da reprodução social, acentuando sua
natureza complexa, dinâmica e ativa”61, mas que abrange um sentido mais amplo que está
inserido na classificação de coisa, reificação, de produto que o termo restringe.
Esta cultura, oriunda da imprensa, do cinema, do rádio, da televisão, se coloca como
uma terceira cultura, pois “projeta-se ao lado das culturas clássicas – religiosas ou humanistas
58
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento, p. 123.
Ibid, p. 123.
60
LAPASSADE, Georges. Grupos, Organizações e Instituições. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983,
p. 128.
61
JOHSON, Richard. O que é, afinal, Estudos Culturais. Belo Horizonte: Autentica, 1999, p.146-147.
59
75
– e nacionais. A sociologia americana detecta, reconhece a Terceira Cultura e a domina: mass
culture”62.
Cultura de massa, isto é, produzida segundo as normas maciças da
fabricação industrial; propaganda pelas técnicas de difusão maciça (que um
estranho neologismo anglo-latino chama de mass media): destinando-se a
uma massa social, isto é, um aglomerado gigantesco de indivíduos
compreendidos aquém e além das estruturas internas da sociedade (classes,
família, etc)63.
Para Morin, o termo cultura parece a priori extenso se for tomado num sentido próprio,
etnográfico e histórico, ou muito nobre se for levado pelo sentido que deriva e é requintado do
humanismo cultivado. Segundo o autor, a cultura tanto pode estimular virtudes, como inibir
ou proibir outras. Além do mais, ela pode ser universal, como a proibição do incesto, “mas as
regras e as modalidades desta proibição diferenciam-se segundo as culturas”. De acordo com
ele, o termo cultura segue uma seqüência que pode ser identificada na ordem de cultura
clássica (religiosas ou humanistas) e nacionais64.
Conforme Morin, o termo pode ser qualificado, num primeiro momento, quando o
Homem está num sentido em relação à natureza, as qualidades propriamente humanas do ser
biológico. Já na segunda, encontram-se as conceituações de “culturas particulares segundo as
épocas e as sociedades”65. Assim, para ele, cultura é aquela que
[...] constitui um corpo complexo de normas, símbolos, mitos e imagens que
penetram o indivíduo em sua intimidade, estruturam os instintos, orientam as
emoções. Esta penetração se efetua segundo trocas mentais de projeção e de
identificação polarizadas nos símbolos, mitos e imagens da cultura como nas
personalidades míticas ou reais que encarnam os valores (os ancestrais, os
heróis, os deuses). Uma cultura fornece pontos de apoio imaginários à vida
prática, pontos de apoio práticos à vida imaginária; ela alimenta o ser semireal, semi-imaginário, que cada um secreta no interior de si (sua alma), o ser
semi-real, semi-imaginário que cada um secreta no exterior de si e no qual se
envolve (sua personalidade)66.
62
MORIN, Edgar. Cultura de Massas no Século XX: neurose. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1997, p.14.
63
Ibid, p. 14.
64
Ibid, p. 14.
65
Ibid, p. 14-15.
66
Ibid, p. 15.
76
Logo, a cultura é o insumo básico que a TV Globo deve processar e administrar, pois
ela é uma empresa televisiva generalista de sinal aberto, “quer dizer, aquela que, através da
diversidade dos seus programas, tenta se dirigir a todas as classes sociais”67.
Essa necessidade de se dirigir a todas as classes sociais força a empresa a utilizar um
instrumento que facilite uma aproximação, no mesmo instante que a torna um reflexo do
caráter heterogêneo dos indivíduos e valores das práticas culturais e sociais da população.
Para isso, vai buscar desenvolver uma identidade de sentido, que seja comum tanto a
programação como aos indivíduos heterogêneos e dispersos no campo social.
A TV Globo, então, vai utilizar as chamadas como uma ponte de convergência para a
questão cultural da programação, uma vez que elas permitem compactar, estereotipar,
minimizar, reduzir, comprimir em um pequeno espaço de tempo, a programação, com suas
várias dimensões da realidade social e do caráter heterogêneo dos indivíduos, criando um elo
inicial da expectativa de captura de sentido destes. Por isso, as chamadas evidenciam o grau
reducionista, uma vez que a cultura está limitada pela esfera econômica.
Mesmo quando da exibição de programas importados (geralmente made in U.S.A,
seriados, filmes, shows etc), a TV Globo vai preparar a recepção destes, justamente pelas
chamadas, destacando, nestes casos, as cenas das situações mais corriqueiras do cotidiano, de
preferência que o trecho a ser exibido tenha cunho universal, como por exemplo: o amor,
traição, incesto, a educação das crianças, separação de casais, a violência, ação etc. Portanto,
o clichê (lugar comum) é de suma importância para ela.
A estereotipagem, [...], é a operação que consiste em pensar o real por meio
de uma representação cultural preexistente, um esquema coletivo
cristalizado. Assim, a comunidade, avalia e percebe o indivíduo segundo um
modelo pré-construído da categoria por ela difundida e no interior da qual
ela o classifica. Se se tratar de uma personalidade conhecida, ele será
percebido por meio da imagem pública forjada pelas mídias. As práticas
sociológicas e semiológicas definem geralmente o estereótipo em termos de
67
WOLTON, Dominique. Elogio do Grande Público, uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996, p.
165.
77
atribuição: [...] - o japonês, o pequeno-burguês, a dona de casa - a uma
constante de predicados68.
Cultura, neste caso, é compreendida como algo sem autonomia, como um reflexo das
relações político-econômicas69. Ao subordinar à cultura a essas relações, as chamadas
preparam mentes e corações, pois elas são os estandartes, as insígnias da identidade cultural
que a empresa processa. Então, ao apropriar-se dos símbolos de identidade nacional, é que a
TV Globo consegue dar lógica para o que dissemina.
O fato de os programas serem produzidos no Brasil, abordando situações
tipicamente brasileiras, é menos importante que o tratamento que lhes é dado
e as ideologias que lhe são subjacentes, verificando-se que os meios de
comunicação de massa em geral e a televisão em particular se apropriam de
temas que fazem parte do cotidiano nacional e reelaboram-nos, concedendolhes uma formulação ideológica que tenha trânsito fácil70.
Logo, ideologia pode ser definida como “uma concepção do mundo que está
implicitamente manifesta na arte, no direito, na atividade econômica e nas manifestações da
vida individual e coletiva”71.
Segundo Oliven, essa concepção de mundo, atrelada à uma imagem que é difundida
como correspondente à uma cultura tipicamente nacional ou, de povo ordeiro e trabalhador,
vai influenciar a própria forma de conceber e processar os produtos de entretenimento e
informação ofertados pela Indústria Cultural brasileira, e torna-se intrínseco à TV Globo.
Portanto, esse ideal de cultura nacional fica na órbita de dois modelos de construção e,
embora possam ter a conotação de diferentes, ambos esquemas se originam a partir de uma
mesma questão em comum, ou seja, a da “suposição eurocêntrica de que seria impossível
construir uma civilização nos trópicos” e, assim, isto é tomado “como um desafio a ser
vencido”72.
68
AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de Si no Discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005, p.
125-126.
69
JOHSON, Richard. O que é, afinal, Estudos Culturais, p. 144-145.
70
OLIVEN, Ruben G. Violência e Cultura no Brasil. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 79-80.
71
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília: Universidade de Brasília, 2001, p. 123.
72
OLIVEN, Ruben G. Violência e Cultura no Brasil, p. 77.
78
Ainda de acordo com Oliven, a primeira solução consiste em apostar na seriedade do
brasileiro e afirma que havendo esforço e líderes é possível fazer vingar uma civilização
nestas terras73.
Esta vertente é simbolizada pelo mundo da ordem e progresso e vai
encontrar seu desenvolvimento na imagem do caxias, do povo ordeiro e,
mais recentemente, do este país que vai para frente e do vamos trabalhar
para vencer a crise. Esta visão perpassa nossa história recente e é
apresentada constantemente por uma de nossas classes dominantes e
intelectuais a seu serviço como a verdadeira imagem do Brasil74.
A segunda opção, de acordo com o autor, se dá a partir da tese de que nos trópicos
existe uma cultura característica, totalmente diferente de outros países, pois as categorias
racionais são irredutíveis à razão, já que tudo e todos se misturam gostosamente numa grande
loucura75.
A solução pretensamente alternativa ao desafio de construir uma civilização
nos trópicos, embora seja aparentemente menos rígida, é tão ideológica
quanto a primeira e representa a outra face da mesma moeda. Ela é o
resultado de uma resposta muito peculiar ao desafio de construir uma
civilização nos trópicos e de uma maneira caricata segue o seguinte
raciocínio: sabemos que o velho Freud ensinava que a civilização e a cultura
são frutos da repressão, e que um personagem de Dostoievski afirmava que
se Deus não existe tudo é permitido. Ocorre, como todo mundo sabe, que
Deus é brasileiro e, se não existe pecado do lado de baixo do Equador, é
preciso perguntar que tipo de cultura pode haver no Patropi, pois não
existindo pecado não há o que reprimir76.
Para dar ênfase a este processo, típico da indústria cultural, que opera produtos
caracterizados pelo contraste qualitativo (rico-pobre, bonito-feio, magro-gordo, limpo-sujo,
branco-preto etc.), a TV Globo vai realçar, vai destacar esta mesma imagem idealizada da
cultura nacional - , ao reproduzir uma visão daquilo que Sérgio Buarque de Holanda
expressou como sendo o “Homem Cordial”, de que “a contribuição brasileira para a
73
OLIVEN, Ruben G. Violência e Cultura no Brasil, p. 77.
Ibid, p. 77.
75
Ibid, p. 78.
76
Ibid, p. 77.
74
79
civilização será de cordialidade - daremos ao mundo o homem cordial”77 - , quando destaca a
questão da violência urbana.
Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário
da polidez. Ela pode iludir na aparência - e isso se explica pelo fato de a
atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada
de manifestações que são espontâneas no homem cordial: é a forma natural e
viva que se converteu em fórmula. Além disso, a polidez é, de algum modo,
organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior,
epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça
de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar
intactas sua sensibilidade e suas emoções78.
Portanto, o contraponto que é trabalhado na linha de programação, à esta visão de
ordem e progresso, de cordialidade brasileira, de peculiar imagem e cultura de um povo
original, se dá, constantemente, quando contrastada pelos relatos factuais da ruptura desta
mesma ordem, desta mesma cordialidade, desta visão de mundo e os estragos que a violência
nas cidades brasileiras causa à esta cultura brasileira, dita e reforçada como própria e original.
Para Oliven, essa sobreposição entre o homem bom, cordial, e um outro violento,
marginalizado, sem bens, aconteceria para escamotear uma situação de exclusão social.
De fato a violência é alçada ao status de questão nacional entre nós, quando
o modelo econômico entra em crise torna-se difícil continuar lançando mão
do discurso da segurança nacional porque não existe mais a ameaça da
guerrilha. Com o recrudescimento [...], do desemprego e da crise política é
preciso criar um novo bode expiatório. Este é o marginal, figura que é
utilizada para exorcizar os fantasmas de nossa classe média, tão assustada
com a perda de seu status, com a sua crescente proletarização e com a queda
de seu poder aquisitivo, alcançando nos anos do milagre. É preciso
tranqüilizá-la e exconjurar seus demônios como se fazia na Idade Média
queimando bruxas. Neste sentido, a ênfase que programas como o Fantástico
emprestam à violência na cidade e o bombardeamento constante por parte
dos meios de comunicação e dos políticos [...] a respeito da necessidade de
um maior policiamento visam criar um clima de tensão permanente que,
longe de ameaçar o sistema, o consolida79.
77
HOLANDA, Sérgio B. de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 146.
Ibid, p. 147.
79
OLIVEN, Ruben G. Violência e Cultura no Brasil, p. 18.
78
80
O que se constata, afirma Oliven, “é que nas diferentes variantes dos modelos de
construção de identidade, o que se desenvolve é um tipo que tem mais conotação de
nacionalidade e/ou raça que a de classe”80.
Todavia, conforme aponta o autor, ao contrário de outros países desenvolvidos e de
tradição democrática, como os Estados Unidos e a Inglaterra, por exemplo, onde as diferenças
culturais ainda são visivelmente demarcadas, mas as sociais, econômicas e de direitos civis
foram ampliadas, no Brasil a questão cultural se sobrepõe à questão social e econômica.
Em nenhuma destas sociedades existe a crença num ethos próprio originado
a partir de um processo de apropriação e reelaboração de símbolos culturais.
O que parece caracterizar o Brasil é justamente o fato de ser uma sociedade
de imensas diferenças sociais e econômicas, na qual se verifica uma
tendência de transformar manifestações culturais em símbolos de coesão
social, que são manipulados como formas de identidade nacional81.
Na avaliação de Oliven, aquilo que é visto como prejudicial à imagem séria do Brasil
não merece ênfase por parte das empresas que compõem a Indústria Cultural, uma vez que
elas promovem acentuadamente a imagem sui generis de nossa cultura.82
[...] nunca é demais lembrar que os canais de televisão e de rádio são
concessões estatais que podem ser revogadas a qualquer momento e que o
controle do Estado se faz sentir em relação à cultura pelo menos desde a
criação da industria cultural. A interferência estatal em relação à cultura se
acentua justamente na década de trinta quando começa a se consolidar uma
sociedade urbano-industrial no Brasil. [...]. O que já se pode observar
naquela época é o desenvolvimento de duas tendências complementares do
Estado em relação à cultura: ele interfere proibindo e censurando aquilo que
é visto como prejudicial à imagem séria do Brasil, mas em contrapartida,
atua promovendo a imagem sui generis de nossa cultura83.
Daí, no Brasil, afirma o autor, o Estado se coloca no papel de responsável em resguardar
a memória nacional e ser o “bastião da identidade nacional”84.
O papel do Estado em relação à cultura no Brasil é, entretanto, complexo: ele
não é apenas o agente de repressão e de censura, mas também o incentivador
da produção cultural e, acima de tudo, o criador de uma imagem integrada
do Brasil que tenta se apropriar do monopólio da memória nacional85.
80
OLIVEN, Ruben G. Violência e Cultura no Brasil, p. 78.
Ibid, p. 73.
82
Ibid, p. 81.
83
Ibid, p. 81.
84
Ibid, p. 8.
85
Ibid, p. 8.
81
81
“O fato de este mesmo Estado permitir a crescente desnacionalização,..., da economia
não é assumido como contraditório já que estas duas questões são propostas como
desvinculadas”86.
À medida que a ordem burguesa se consolida no Brasil, o Estado tenta criar
um projeto que privilegia o cultural, sem querer alterar fundamentalmente as
regras da ordem econômica e política. Assim, através de uma abertura
restrita, do afrouxamento da censura e de uma reforma partidária que visa à
reordenação de poder pelo alto se pretende soldar a sociedade sem modificar
substancialmente questões-chave como a legislação trabalhista, a
distribuição de renda, a posse da terra, etc.87.
Foi ao assumir este posto de guardião da cultura nacional que surgem os primeiros
traços que vão fundamentar o que viria a se tornar a tradição da própria industria cultural
brasileira, a partir do mundo do trabalho e lazer. Ou seja, há um legado proveniente das
transformações ocorridas durante o próprio desenvolvimento desta indústria cultural, ainda
na primeira metade do século passado.
Oliven diz que passou a ser essencial à ideologia da cultura brasileira, por ocasião do
desenvolvimento da industrialização, operar uma transformação em que, por motivos do
desenvolvimento do capitalismo por aqui, pudesse criar simbolicamente a idéia do homem
brasileiro trabalhador, ordeiro e cumpridor de horários, em contraste com a figura do
malandro, como resultante da categoria de pachola que se ligava à idéia do favor88.
No Brasil, essa ideologia liberal sofreu uma “transfiguração” antes mesmo da abolição
da escravatura, “já que a noção burguesa de direitos convivia e era ofuscada pela prática do
favor que é a nossa mediação quase universal”89.
Embora a instituição do favor e do clientelismo continue existindo até os
nossos dias, tudo ocorreu antes que houvesse uma efetiva industrialização no
Brasil que só se iniciou no fim do século passado e que se desenvolveu mais
substancialmente depois da crise mundial do capitalismo a partir de 1929.
No fim do século passado e primeiras décadas deste, a mão-de-obra desta
incipiente industrialização era, em boa parte de origem européia, com uma
militante liderança anarquista. Isto não chegava a se constituir numa ameaça
86
OLIVEN, Ruben G. Violência e Cultura no Brasil, p. 82.
Ibid, p. 82.
88
Ibid, p. 31-32.
89
Ibid, p. 29.
87
82
‘política’ já que o proletariado era numericamente pequeno e a questão
social podia ainda ser tratada como um caso de polícia. È a década de trinta,
quando a industrialização se intensifica, que a questão de Estado, que, saindo
de uma crise política, utiliza a massa que migra do campo para a cidade
como uma força legitimadora. Entra em cena o personagem povo e o
populismo90.
Oliven afirma que, o Estado se antevê às reivindicações do próprio proletariado
nascente, diferentemente do ocorrido na Europa, em que os operários de lá passaram “por
longas lutas”, e aos poucos foram arrancando “concessões que encurtaram sua jornada de
trabalho, elevaram seus salários, melhoraram suas condições de vida e garantiram maiores
direitos políticos. A greve e o sindicato foram dois instrumentos chave nestes processos” 91.
Já no Brasil, o processo se deu de modo muito diferente. A legislação
trabalhista criada por Vargas, na medida em que se antecipou às
reivindicações dos trabalhadores e lhes concedeu vantagens e direitos pelos
quais a classe operária como um todo ainda não tinha lutado, criou uma
estrutura sindical atrelada ao Ministério do Trabalho que funcionou como
um poderoso e eficiente mecanismo de controle, impossibilitando a
organização a nível horizontal entre trabalhadores. Isto, em última análise,
reedita, no contexto urbano-industrial, o padrão do paternalismo e do
clientelismo no qual mais vale procurar favores do patrão do que se unir e se
organizar com seus iguais. É fácil perceber como o favor continua
existindo92.
Paralelamente ao mecanismo de controle trabalhista, via legislação, feita por Getúlio
Vargas, a rejeição ao trabalho “e como estratégia de sobrevivência”, diz Oliven, é que a
malandragem deve ser entendida, já que ela se torna uma alternativa ao trabalho manual que
no Brasil tem sido historicamente considerado uma atividade não-dignificadora, algo
reservado somente para os escravos93.
Como se sabe, o fim da escravidão no Brasil não significou o surgimento de
uma sociedade mais aberta, mas a continuidade do padrão de dominação
oligárquica. Mesmo com a intensificação da industrialização, o trabalho
assalariado não se tornou uma forma de qualificação, pois a ordem social
continua sendo fortemente excludente. Assim, a malandragem, ao recusar o
trabalho assalariado, se configura numa alternativa - transformada em
estratégia de sobrevivência - numa sociedade que marginaliza o trabalhador,
não lhe assegurando condições de viver decentemente do fruto de seu labor.
90
OLIVEN, Ruben G. Violência e Cultura no Brasil, p. 29-30, aspas do autor. Quando o autor afirma séc.
passado, refere-se ao séc. XIX.
91
Ibid, p. 30.
92
Ibid, p. 30.
93
Ibid, p. 31.
83
Por isto é importante que o tema da malandragem se desenvolve mais
intensamente na música popular brasileira nas décadas de 1920, 30 e 40. Ao
voltar da Europa em 1933, Oswald de Andrade teve fina perspicácia ao
afirmar que, no Brasil, o contrário do burguês não era o proletário, mas o
boêmio. Ironia à parte, ele captou um aspecto essencial da ideologia da
cultura brasileira por ocasião do desenvolvimento da industrialização. Assim
como o século passado não havia lugar para o exercício de direitos,
operando-se, portanto, principalmente com a categoria do favor, no começo
do século atual não havia espaço - salvo entre os militantes anarquistas para a idéia do conflito entre capital e trabalho, sequer a nível das
representações simbólicas94.
A malandragem, e o fascínio que tal situação despertava na música brasileira, surge
neste espaço em que há uma ausência “do conflito entre capital e trabalho”, que “ainda não
recobria todo o espaço social no Brasil”. Entre outros temas, a música dessa época ainda vai
abordar a questão da escassez de dinheiro, da mulher do malandro, da embriagues, da
masculinidade, valentia, esperteza, critérios de categoria de respeito, jogatina e golpes etc95.
O crescimento vertiginoso que o rádio teve, a partir da industrialização, catapulta o
alcance da música popular às parcelas cada vez maiores de ouvintes. “O rádio cresce através
da publicidade de mercadorias e serviços e vai se tornar o meio de comunicação hegemônico
até ser suplantado pela televisão que surge na década de cinqüenta”96.
Não é pois casual que Getúlio Vargas tenha percebido a importância deste
novo meio de comunicação de massa, tendo sido o primeiro político latinoamericano a se valer dele como instrumento de propaganda, o que fica claro
numa mensagem enviada ao Congresso no dia 1º de maio de 1937 na qual
afirma que ‘à radiofonia está reservado o papel de interessar todos por tudo
quanto se passa no Brasil’ e que ‘no interior, torna-se necessário realizar
uma obra de educação cívico-política, reforçando o conhecimento do regime
democrático e seu funcionamento, dando a conhecer, em toda a extensão do
país, qual a orientação dos seus dirigentes e o alcance das medidas
administrativas em curso’. O ‘regime democrático’ a que se referia Getúlio
cairia por terra seis meses mais tarde com a instauração do Estado Novo,
cujo texto de proclamação significativamente foi transmitido na íntegra
através do rádio pela voz do próprio presidente. Implantação da ditadura do
Estado Novo obviamente teria importantes repercussões sobre a cultura,
principalmente com a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP) em 27 de outubro de 1939. Era natural que um dos alvos do DIP fosse
o rádio, para a qual foi criada uma divisão que, de acordo com uma
publicação oficial, tinha ‘a seu cargo, não apenas superintender todos os
94
OLIVEN, Ruben G. Violência e Cultura no Brasil, p. 31-32, aspas do autor. Quando o autor afirma séc.
passado, refere-se ao séc. XIX.
95
Ibid, p. 32-49.
96
Ibid, p. 50.
84
serviços de radiodifusão no país, como também orientar o rádio brasileiro
em suas atividades culturais, sociais e políticas. A cooperação, a
coordenação das atividades culturais do rádio, a unidade de espírito e de
esforços que hoje reina nessa importante esfera da vida nacional, é obtida
graças à orientação impressa nesse setor do DIP numa atmosfera de perfeita
compreensão e espontânea colaboração de todas as emissora’ 97.
Oliven lembra que, a partir daí, foi criada a Hora do Brasil e outros programas,
justamente entre as 19 e 20 horas quando a maioria da população está em casa. Oliven não
descarta ter ocorrido a cooptação de artistas e compositores pelo sistema da época que
passaram a cantar e elaborar músicas que, ao contrário de então, começam a exaltar a
regeneração do malandro e que, malandro que é malandro trabalha, cumpre horários, constitui
família etc, com sentido de promover uma imagem ufanista do Brasil, pois “o governo estava
empenhado em integrar o crescente proletariado à disciplina do trabalho fabril”98.
A prévia criação do Ministério do Trabalho e da legislação trabalhista, bem
como outras medidas, já indicavam esta orientação. Um dos alvos do DIP
foi, portanto, reverter a tendência dos sambistas de exaltar a malandragem,
incentivando os compositores a enaltecer o trabalho e a abandonar as
referências elogiosas à malandragem99.
É pela perspectiva da tradição de programas a determinados horários, que deve ser
entendida a política de programação da TV Globo. Não se está dizendo que a empresa é um
Aparelho Ideológico de Estado, no sentido definido por Althusser, como sendo aquela
instituição que funciona exclusivamente com a finalidade de formar os sujeitos atrelados a
ideologia do Estado100. Isto torna-se complicado, pois Althusser concebia a questão ideológica
como um cimento social, o que limitaria a ação do indivíduo na sociedade, e, se fosse assim, a
empresa, criaria empecilhos ao seu próprio desempenho.
Conhecedor deste processo, Roberto Marinho, o fundador da TV Globo, aproveita-se da
experiência que detinha na administração das empresas, como a Rádio e o Jornal O Globo e
ajusta a TV Globo, esta tradição, arraigada na sociedade brasileira, que era, justamente a de
97
OLIVEN, Ruben G. Violência e Cultura no Brasil, p. 50-51.
Ibid, p. 51.
99
Ibid, p. 51.
100
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado: nota sobre aparelhos ideológicos de Estado. 2 ed.
Rio de Janeiro: Graal, 1985, p. 69.
98
85
acompanhar em determinados horários, tanto os programas noticiosos, como de
entretenimento (rádio-novela, futebol, programa de auditório etc).
É neste sentido que a programação da TV Globo vai se apropriar de algo que já está
consubstanciado na sociedade. É por este prisma que deve ser entendido que, em
determinados períodos do dia e da semana, a programação da empresa vai privilegiar o
contraste de entretenimento e informação, pois já era assim desde a década de 1930. A
empresa não rompe uma tradição. Ela apenas pega carona nos hábitos e práticas já
consolidados entre os próprios indivíduos.
Pouco tempo depois, as normas baixadas pelo Ministério das Comunicações, Portaria
nº. 406, de 16 de maio de 1974, segundo parágrafo, determina que,
as empresas de radiodifusão sonora e de televisão ficam, também, obrigadas
a manter um departamento com a incumbência de planejar, de orientar e de
supervisionar a programação, incluída a comercial, de zelar para que sejam
atendidas as manifestações da cultura nacional, de estimular e de
complementar os objetivos educacionais101.
A mesma portaria, no parágrafo sexto, alerta para o fato de que a não observância do
disposto sujeitará as empresas infratoras à aplicação das penalidades previstas na legislação
vigente102.
É por esta perspectiva, portanto, que se deve entender que, no Brasil, quase a totalidade
das empresas televisivas que surgiram nas primeiras duas décadas da chegada da televisão ao
Brasil, já atuavam no mercado com emissoras de rádio. Há um novo arranjo de uma situação
que se originou nas rádios e migrou para a televisão. Nesse processo, a TV Globo é a que
melhor soube, pelo menos é o que indica os índices de audiência, adaptar a programação que
vinha das rádios à televisão, dando-lhe uma roupagem nova e com as características
peculiares deste veículo de massa. Caso não fosse assim, seria o mesmo que dizer que o rádio
inventou a novela, quando a rádio-novela tem sua origem na tradição do folhetim, no Brasil.
101
102
SANTOS, Reinaldo. Vade-Mécum da Comunicação. 6 ed. Rio de Janeiro: Trabalhistas S.A., 1988, p. 345.
Ibid, p. 345.
86
O que ocorre é que os produtos de entretenimento e informação processados pela
Industria Cultural e, em especial pela TV Globo, são confeccionados e distribuídos numa
formatação que moldura e engessa, momentaneamente, a realidade, e isto é resultado de um
processo social-histórico recorrente, como forma de promover e dar trânsito aos próprios
produtos e serviços, a partir da apropriação de símbolos de identidade nacional.
A TV Globo, entretanto, ao processar tais símbolos, acaba por assumir um papel de
empresa nacionalista cultural, pois para se aproximar dos indivíduos e dar fluxo ao que
produz, acaba por processar e estimular a preservação e difusão da história e valores culturais
do povo brasileiro, ao se colocar como agente integrante desse processo, ao regenerar e
fortalecer a preservação da identidade de um povo, pois acessa
[...] a meta de regenerar a comunidade nacional criando, preservando ou
fortalecendo a identidade cultural de um povo quando se percebe que ela
está faltando ou sendo ameaçada. O nacionalista cultural vê a nação como o
produto de sua história e cultura exclusiva, e como uma solidariedade
coletiva dotada de atributos exclusivos103.
Segundo Oliven, os motivos que levam “os produtores de símbolos nacionais e da
cultura de massa” a elegerem “itens culturais produzidos originalmente por grupos
dominados”, como, por exemplo, a feijoada e o samba, é que, ao incorporar tais símbolos na
produção e reprodução do conteúdo da cultura de massa, apresentam-se “vantagens políticas”
que servem para ocultar “uma situação de dominação racial”, “que se presta à difusão de uma
imagem de democracia racial”104.
Para os que citam o Carnaval e o Futebol - , pois eram manifestações originárias na
classe dominante brasileira e que aqui foram introduzidas pelas famílias abastadas, entre o
final do século XIX e o início do XX - , Oliven explica que, no momento em que tais
manifestações tornam-se populares, é nesta mesma época em que se dá a entrada das massas
no cenário político, e a classe dominante brasileira encontra aí um modo de integrar essas
103
104
CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura, p. 39.
OLIVEN, Ruben G. Violência e Cultura no Brasil, p. 71.
87
massas ao processo de desenvolvimento, utilizando as próprias manifestações culturais, ao
transformá-las “em artigo de consumo e turismo e em símbolo de identidade nacional”105.
Se no passado, Era Industrial, essas questões ocorriam mais por motivos ideológicos ou
de poder, no mundo da Era da Informação, ou seja, pós-moderno, não que elas tenham
desaparecido, mas é o mercado consumidor que vai exigir uma diversificação e novas opções
de programação e serviços.
Por isso que, não se busca analisar uma política de programação focada nos programas,
mas, nos módulos que a TV Globo originariamente implantou nas atividades de uma emissora
televisiva brasileira, já que pelos módulos é possível transitar entre, uma programação
herdeira da tradição Industrial, linear, para à programação da Era da Informação, ou seja,
fragmentada.
De acordo com Sennett, as pessoas, na sociedade pós-industrial, refletem compromissos
calcados em constantes desenlaces, já que passam a reprojetar no próprio comportamento, as
rápidas mudanças provenientes das transformações econômicas, políticas e sociais. Segundo o
autor, isso faz com que os indivíduos deixem de manter um vínculo de assiduidade, inclusive,
em relação ao consumo, seja ele de bens materiais ou simbólicos106.
È essa relação de consumo que exige a mudança do suporte televisivo analógico para o
digital. Para a Tv Globo, portanto, mesmo que os riscos existam, a mudança pode trazer mais
vantagens que desvantagens, já que o mercado consumidor caracteriza-se, justamente, pela
oferta de produtos e serviços diversificados sem que haja a necessidade de uma relação, por
parte dos consumidores, com vínculos de assiduidade. Além disso, como a concorrência direta
aumenta, com a oferta de produtos e serviços, como, também, as emissoras que operam em
sinal fechado, via cabo ou satélite, buscam popularizar as tarifas de acesso ao sistema delas
105
OLIVEN, Ruben G. Violência e Cultura no Brasil, p. 70.
SENNETT, Richard. A Corrosão do Caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio
de Janeiro: Record, 1999, p.13-73.
106
88
com o objetivo de ganho de escala, a TV Globo corre o risco de perder receita, já que os
anunciantes dela passam a migrar, também para outras empresas.
Uma mudança na moderna estrutura institucional acompanhou o trabalho a
curto prazo, por contrato ou episódico. As empresas buscaram eliminar
camadas de burocracia, tornar-se organizações mais planas e flexíveis. Em
vez das organizações tipo pirâmide, a administração quer agora pensar nas
organizações como redes107.
Ainda, seguindo Sennett, essa ausência de uma rotina prevista com horários fixos,
típicas da produção linear, ao permitir maior liberdade de ação aos indivíduos, vem, ao
mesmo tempo, provocando ansiedade e insegurança na população economicamente ativa, já
que ela passa a buscar novas formas de preencher o tempo ocioso, fora do local de trabalho,
com atividades que não exijam comprometimentos calcados na rigidez de horários, por
exemplo108.
É a dimensão do tempo do novo capitalismo, e não a transmissão de dados
high-tech, os mercados de ação globais ou o livre comércio, que mais
diretamente afeta a vida emocional das pessoas fora do local de trabalho.
Transposto para a área familiar, 'Não há longo prazo' significa mudar, não se
comprometer e não se sacrificar109.
Segundo Sennett, isso ocorre pelo fato das empresas implementarem sistemas de
produção flexível. O autor especifica três modelos básicos dos atuais sistemas de produção
flexíveis:
- Reivindicação contínua das instituições (a prática administrativa passa a ser em rede e não
mais piramidal; surgem reinvenções; reengenharia busca-se maior produtividade e,
conseqüentemente, a redução de empregos);
- Especialização flexível (a busca por novos nichos de mercado leva a empresa, cada vez mais
rápido, a lançar e disponibilizar produtos variados; substitui-se a linha de montagem por ilhas
de produção, os funcionários, ou contratados, se deparam com mudanças nas tarefas semanais
a até diárias – são os chamados turnos e trabalhos domésticos);
107
SENNETT, Richard. A Corrosão do Caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo, p.
23.
108
Ibid, p. 13-25.
109
Ibid, p. 25.
89
- Concentração sem centralização (nova forma de organização do trabalho, onde se permite a
flexibilização da produção, mas um controle mais direto sobre o funcionário por meio
eletrônico)110.
Esse comportamento flexível do cliente telespectador é que incide diretamente sobre a
audiência da TV Globo. Ao atuar em uma plataforma operacional que permite a flexibilização
dos produtos e serviços que administra, ela não só mantém-se competitiva, mas passa a
explorar, também, novos nichos de mercado.
A oferta dos meios de comunicação tem valor de uso, na medida que ela
compensa a curto prazo as frustrações sofridas no trabalho, na família e na
educação. O consumo de bens de entretenimento, alivia, em aspectos
determinados, os indivíduos do processo de trabalho e possibilita um tipo de
satisfação substitutiva. O central nisso é a necessidade, dos que trabalham,
de fugir do trabalho alienado, e não a necessidade por entretenimento111.
Por sua vez, mesmo atuando num mercado mais flexibilizado, isso não significa que ela
vá abandonar o discurso que encampa do Estado e, caracterizado aqui, como um discurso
baseado na identidade nacional, pois é por ele que ela aproveita-se de um certo anacronismo
da população brasileira, que não distingue entre sentimento nacional e estatismo, uma vez que
essa confusão decorre porque a população, de modo geral, dá mais vazão ao lado emocional,
ao invés do racional. “Sem dúvida nenhuma, nós ainda não atingimos o estado mental em que
a razão prevalece. Mas nós podemos amadurecer mais rapidamente nessa direção por meio da
informação”112.
De fato, a Globo coloca-se como uma indústria, um instrumento de
modernização e integração e um fator de identidade nacional. Ela é um
instrumento de cultura de massa numa sociedade hierarquizada. Se o seu
objetivo não é modificar as estruturas sociais, é, pelo menos, saber apreendêlas e acompanhá-las. Aí encontramos de imediato o papel de laço social da
televisão. Além disso, a Globo se faz presente nos programas educativos
como Telecursos, Globo Ecologia e Globo Ciência, sabendo que esses
programas não são rentáveis. E não apenas por questão de prestígio, mas
também para satisfazer a uma certa concepção do seu papel, que podemos
110
SENNETT, Richard. A Corrosão do Caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo, p.
54-65.
111
FILHO, Ciro M. (org.). A Linguagem da Sedução: a conquista das consciências pela fantasia. São Paulo:
Com-Arte, 1985, p. 38.
112
SABINO, Mario. FHC explica FHC e o Brasil. Revista Veja, São Paulo, Ano 39, n. 11, p. 100, 22 mar. 2006.
90
perceber claramente nos seus folhetins (as novelas), onde existe uma
verdadeira interação popular113.
Isso leva a entender que a TV Globo desenvolve uma política de programação
modulada mais em valores que correspondem às emoções e, onde esses são igualmente
respeitáveis, já que para ela, o melhor sistema político é o que respeita o pluralismo114.
Ao serem utilizadas como balizadoras e norteadoras da relação do tempo da
programação com a própria narrativa, as chamadas adquirem uma faceta instrumental, pois
busca-se alcançar os indivíduos dispersos no campo social, com seus horários flexíveis, para
que estes se juntem numa ação que favoreça a empresa.
O fato é que, embora a TV Globo tenha inovado na produção, no cerne da empresa
televisiva brasileira, ao implementar uma estrutura flexível baseada nas tecnologias da
informação, como elementos de desenvolvimento da empresa e otimização dos processos de
produção, esta modalidade de empresa se caracteriza como uma mídia de programação
generalista, ou seja, deve satisfazer a diferentes públicos. Por isso, ela armou uma grade de
ofertas suscetível de gerar múltiplas expectativas: é a idéia de menu. Essa forma de fazer a
programação da televisão, organizada de forma contínua e linear, é a mesma há cinco
décadas, que encontra em seu contexto ideológico intrínseco, uma relação à coletividade e a
unidade social, tendo nos símbolos de identidade nacional, um fator de transitividade115.
A programação, mesmo que não seja jamais respeitada, é uma espécie de
construção da relação com a realidade que ordena tanto os programas como
o calendário do tempo cotidiano. Ela exprime uma aceitação e uma
responsabilidade voluntária com os diferentes momentos da vida dos
indivíduos, com as diferentes aspirações dos habitantes de um país, com os
diversos componentes culturais de uma sociedade em seu conjunto. Ela é
uma espécie de representação em miniatura da sociedade, e da maneira como
concebem os indivíduos que nela vivem. A programação é quase um retrato
da sociedade e participa diretamente da construção da realidade social, como
diria a sociologia etnometodológica116.
113
WOLTON, Dominique. Elogio do Grande público, uma teoria crítica da televisão, p. 159-160.
ARNAUD, André-Jean (et al.). Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito. Rio de
Janeiro: Renovar, 1999, p. 607.
115
WOLTON, Dominique. Elogio do Grande Público, uma teoria crítica da televisão, p. 100.
116
Ibid, p. 106-107.
114
91
Ora, as chamadas permitem que a TV Globo desenvolva uma política onde os produtos
e serviços sejam conexos ao tema central da televisão daquele dia de transmissão, ou para os
próximos dias da grade de programação, amarrando-os aos interesses da publicidade e
propaganda. A isto se denominou de publicidade agregada, e o elo deste processo está
justamente nas chamadas. Por isso elas carregam, em seu conteúdo, a própria programação, e
é onde, junto com a publicidade, que se pode analisar o discurso como um todo, e suas
implicações ideológico-político-culturais.
Embora empresas televisivas de sinal aberto, como a TV Globo, tenham implementado
as mudanças organizacionais necessárias para se adaptarem aos novos tempos do capitalismo
pós-moderno, a linearidade da programação deste tipo de empresa, que atua como emissora
televisiva de sinal aberto e conteúdo generalista, permanece, basicamente, a mesma da época
da introdução da televisão no Brasil.
Neste período que caracteriza a Era Industrial, a TV Globo buscou, pelas chamadas,
resolver as questões que envolvem a linearidade da programação e sua velocidade, já que ao
lançar mão das chamadas, consegue conciliar o tempo da própria programação com a
demanda publicitária. Isso é, as chamadas podem ser entendidas como sendo um conversor
que, ao canalizar as implicações pertinentes ao padrão de produção, agregam em um único
espaço, tanto as questões ideológico-político-culturais, como favorece a empresa no trânsito
da demanda dos clientes, a questão da coesão nacional e os próprios interesses econômicos da
Globo.
As chamadas criam a compatibilidade da construção do tema central da programação
(entretenimento e informação), conciliando-os aos interesses da publicidade. As chamadas
conectam todos os diferentes blocos (programação e comercial) e os transformam em um todo
conexo e com sentido, criando uma coerência entre ordem social (repressão e gratificação),
unidade nacional (cultura e coesão), e mercado (satisfação dos clientes).
92
No sistema digital, embora de forma menos acentuada, utiliza-se tanto os símbolos de
identidade nacional como um política de programação. A semelhança que une a programação
da TV geralista (atacado) e a TV com a multiprogramação (varejo) é que, em ambos os casos,
há necessidade de equilíbrio entre oferta e demanda.
Essa ‘codificação’ das emissões em uma função essencial de ponto de
referência cultural e relembra que a recepção não é totalmente livre. A
importância da programação está, além disso, diretamente ligada ao status da
televisão geralista, sempre com um perigo de desnaturalização, se a
programação atinge uma adequação estrita entre a demanda e oferta, como é
tendência da televisão privada e como será a fortiori da televisão temática. A
força da programação resulta, de fato, da capacidade de manter uma
autonomia da oferta em relação à demanda, e portanto, da possibilidade de
apresentar programas que nem sempre têm garantido o sucesso de audiência
- duas condições que, a priori, dão à televisão pública a possibilidade de
estabelecer a melhor programação, visto que a televisão privada é
excessivamente submetida a uma programação ‘econômica’, em que a oferta
deve tender a corresponder exatamente, por razões de rentabilidade, à
demanda. Existe aí, portanto, um risco de empobrecimento da noção de
programação, cujo extremo é a televisão temática, na qual, por definição,
não existe defasagem entre a oferta e a demanda. A mesma palavra pode,
portanto, indicar práticas substancialmente diferentes117.
As chamadas da programação, portanto, cumprem uma função de potencializar uma
compatibilidade em comum: os produtos culturais ofertados pela empresa e a identidade
cultural dos indivíduos dispersos no mercado e campo social. É dessa forma que a TV Globo
não só instiga os clientes, visando que estes se filiem à empresa, mas, pelas chamadas é que se
dá o nexo de continuidade deste processo, já que elas refletem a diversificação da oferta, pela
variação da demanda, constituindo-se em legitimadoras da própria programação.
117
WOLTON, Dominique. Elogio do Grande Público, uma teoria crítica da televisão, p. 70, aspas e grifo do
autor.
CAPÍTULO 3
As chamadas como conjunto de elementos simbólicos
culturais no processo de reprodução da empresa
como poder hegemônico
O eu,como um servidor do EU, tem suas
“liberdades”.Tal como o escravo liberto
pelo senhor romano que, ao mesmo
tempo que se tornava seu eterno devedor,
tinha suas “liberdades”. Mas não muita.
Tal como o servo liberto que deveria
mostrar a seu senhor que está à sua
disposição indo à sua casa todos os dias
pela manhã, lá estão eu e Eu. Com a
diferença que ambos “habitam a mesma
casa”. Ou quase, já que o eu talvez não
se dê conta de que foi “chamado”.
Menos, ainda, de que “atendeu” ao
chamado1.
O espectro de uso das chamadas, pela TV Globo, não se limita apenas a uma única
dimensão. As chamadas se constituem nas ordens da matriz e representam os interesses da
cúpula da empresa. Portanto, ao considerá-las, numa análise, deve-se, obrigatoriamente, levar
em conta a esfera interna e externa da emissora. Portanto, as chamadas tornam-se, também,
sinalizadores da própria identidade da cultura corporativa, ao demonstrarem as relações da
empresa e a Rede no âmbito interno e externo.
Por isso, ao fazer uso das chamadas, a TV Globo viabiliza uma forma de
institucionalizar e instigar o sentido de envolvimento de todos aqueles que, de alguma
maneira, fazem parte, ou, participam, do cotidiano da empresa, ao compactuar,
simultaneamente, com estes, a intenção de se garantir um processo contínuo de contribuição
às práticas rotineiras e vínculos à visão e valores da emissora.
De acordo com Pichon Rivière, vínculo pode ser entendido “como uma estrutura
complexa que inclui um sujeito, um objeto, e sua mútua inter-relação com processos de
1
FREDDO, Antonio Carlos. A Ideologia em Ato: a filiação imaginária do sujeito. Santos: Leopoldianum, 2004,
p. 20, grifos e aspas do autor.
94
comunicação e aprendizagem”2. Portanto, as chamadas tornam-se um processo de
comunicação e aprendizagem, uma vez que seu uso tem por finalidade promover à dinâmica
de interpretação, a partir de sua demonstração, já que são usadas na “emergência da fantasia
básica” com o intuito de despertar a atenção, abordar e integrar os sujeitos aos propósitos da
empresa. Desta maneira, explicitam as fantasias universais, já que é pela compreensão do
existente (explicitado), que pode-se promover rupturas e transformações, ou, perpetuar os
interesses da empresa como fonte de poder de delegação e assunção de papéis.
“Quanto mais plásticos forem os papéis, mais saudável é o grupo, e quanto mais
estereotipados forem esses papéis, mais patológico ele se torna por não possibilitar a ruptura
dos mecanismos estereotipados de delegação e assunção de papéis”3.
Logo, as chamadas facilitam a compreensão do existente, do explicitado, do direcionado
à sociedade e mercado, já que as chamadas, simultaneamente, instigam os laços e vínculos,
com a TV Globo e os nós que constituem a rede, e, também, facilitam o desenvolvimento dos
recursos e, assim, resolve-se a questão interna da formação de competências e da escolha de
estratégias4.
Pelas chamadas expõe-se as “relações organização-ambiente e a administração”5, como
síntese das práticas organizacionais. Utilizadas como um processo de comunicação
institucional, elas declaram as atividades rotineiras que são realizadas no âmbito da empresa
e demonstram a forma de gestão de negócios que a emissora empreende sobre os recursos
humanos que controla. Assim, dessa maneira, é que a TV Globo desperta também a atenção
daqueles que se vinculam a ela pelo foco da “questão interna da formação de competências”6.
2
FISCMANN, Janice B. Como agem os grupos operativos? In: ZIMERMAN, David. E.; OSÓRIO, Luis C. (et
al). Como Trabalhamos com Grupos. Porto Alegre: Artes médicas, 1997, p. 96.
3
Ibid, p. 96.
4
FLEURY, Afonso; FLEURY, Maria Teresa L. Estratégias Empresariais e Formação de Competências: um
quebra-cabeça caleidoscópio da industria brasileira. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 88.
5
MORGAN, Gareth. Imagens da Organização: edição executiva. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 171.
6
FLEURY, Afonso; FLEURY, Maria Teresa L. Estratégias Empresariais e Formação de Competências: um
quebra-cabeça caleidoscópio da industria brasileira, p. 88.
95
Com isso, a empresa evidencia a coesão existente entre a parte central e as extremidades da
rede, pois declara-se como uma unidade constituída de uma totalidade única.
Atualmente, a TV Globo é composta por cinco unidades próprias (geradoras), que se
encontram nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Brasília. São
tidas como as geradoras primordiais, sendo as duas principais, as que se encontram na capital
carioca e paulista, respectivamente. A cabeça de rede fica na cidade do Rio de Janeiro. A rede
que a constitui se completa, ainda, por outras 110 unidades, designadas de afiliadas7.
Santos e Capparelli, baseados em dados do Sistema de Informação dos Serviços de
Comunicação
de
Massa
(Siscom),
disponibilizado
pela
Agência
Nacional
de
Telecomunicações (Anatel), afirmam que os números relativos à rede da TV Globo é maior
que o divulgado pela própria empresa, sendo que formada por cinco geradoras, “96 geradoras
afiliadas, 19 retransmissoras próprias e 1.405 retransmissoras afiliadas”8.
A TV Globo conta com oito mil funcionários. Sob a responsabilidade das afiliadas estão
outros, oito mil e setecentas pessoas, perfazendo um total de 16,8 mil empregados em toda
rede. A distribuição de recursos humanos se dá numa proporção de 5% de executivos, 10% de
elenco, 28% de recursos jornalísticos, outros 6% na área de negócios, 30% de profissionais de
TV e 21% no setor de administração e tecnologia9.
O que importa é que, no nível organizacional, há uma estrutura interna hierarquizada em
forma piramidal, com comandos que controlam unidades, departamentos e setores
operacionais, tendo como base a relação entre a cabeça de rede e as demais unidades. Assim,
as chamadas, ao serem providas de uma central com o objetivo de coordená-las, determinar a
prioridade de seu uso e garantir a alocação de recursos (produção e distribuição destas
7
TV GLOBO. Institucional. Disponível em: <http://www.redeglobo3.globo.com/institucional>. Acesso em: 23
mai. 2005.
8
SANTOS, Suzy dos; CAPPARELLI, Sérgio. Coronelismo, radiodifusão e voto: a nova face de um velho
conceito. In: BRITTOS, Valério C.; BOLAÑO, César R. (Orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia.
São Paulo: Paulus, 2005, p. 85-86.
9
TV GLOBO. Institucional. Disponível em: <http://www.redeglobo3.globo.com/institucional>. Acesso em: 23
mai. 2005.
96
chamadas) para o próprio sistema, descrevem os rituais da organização, pois elas acabam por
agregar a cultura corporativa, que pode ser entendida como sendo:
[...] um conjunto de valores e pressupostos básicos expresso em elementos
simbólicos, que em sua capacidade de ordenar, atribuir significações,
construir a identidade organizacional, tanto agem como elemento de
comunicação e consenso, como ocultam e instrumentalizam as relações de
dominação.10
A partir disso, pode-se dizer que ao optar pelas chamadas como o meio de atrair a
atenção dos públicos que se encontram no ambiente externo, a TV Globo determina também
para a esfera interna, o fluxo de informações e práticas organizacionais, assim como
implementa uma forma de comunicação institucional - uma vez que a empresa declara não só
os produtos que oferta de sua grade de programação e serviços - , mas evidencia a estrutura
física, as práticas rotineiras das atividades, as operações que realiza no âmbito da empresa, os
recursos humanos que possui etc. Além disso, as chamadas declaram a coesão existente entre
a parte central e as extremidades da rede (âmbito interno), possibilitando o fortalecimento dos
laços de confiança com seus participantes e colaboradores. Com isto, busca, pelas chamadas,
um uso instrumental que desenvolve e reforça a cultura corporativa, uma vez que a empresa
cria um elo de unidade ao evocar a atenção daqueles indivíduos inseridos nos limites de
atuação da empresa.
As chamadas não só dão sentido ao que é produzido, operado, distribuído e oferecido
como produtos e serviços. Por serem derivadas de um plano interno de gestão (provenientes
de uma central), elas explicitam não só os resultados do modo de produção flexível que
caracteriza a rede, mas possibilitam construir uma ponte de convergência entre os dois lados:
o ambiente externo e interno da TV Globo. Assim, acabam por se tornar fontes reveladoras
das peculiaridades intrínsecas e pertinentes à empresa. Por serem dedutíveis, deixam entrever
as pegadas deixadas ao percorrer o caminho que levam-na a buscar a atenção do público
externo. Refazendo-se este caminho, no sentido contrário, torna-se viável reconstituir e
10
FLEURY, Maria Teresa L. (et al). Cultura e Poder nas Organizações. São Paulo: Atlas, 1996, p. 22.
97
enxergar a empresa de fora para dentro, o que significa que as chamadas são, na realidade,
uma estrada de mão dupla.
Seguindo este caminho, torna-se possível identificar, ainda, as relações existentes no
âmbito interno dos nós (seu funcionamento, sua dialética) e os fatores que perpassam e
delimitam a atuação de funcionários, departamentos e unidades. Tais fatores são pertinentes
às chamadas, pois estas exibem os processos que resultam das práticas corporativa e que, ao
serem também intrínsecas à elas, como por exemplo, a cultura corporativa, os sistemas de
informação, a estrutura, os papéis desempenhados, além de demonstrarem a redundância, a
variedade, a aleatoriedade, acabam por evidenciar a produção de um padrão coerente. Isto
resulta numa dedução lógica de tudo aquilo que cruza o raio de ação da empresa.
Assim, como conversores, que devem transformar a corrente alternada em contínua, ou
seja, atrair a atenção dos públicos heterogêneos difusos na sociedade para o foco da emissora,
é possível, realizando o caminho inverso, pontuar a relação interna entre os nós da rede que
constituem a empresa: a cultura corporativa da TV Globo e sua dinâmica.
Neste caso, como as chamadas são utilizadas de forma flexível, faz-se uma imagem das
partes que se defrontam com o todo. É a TV Globo e a rede que falam e se mostram pelo
discurso intrínseco das chamadas, ou seja, a Rede Globo, composta por um emaranhado de
nós, pode ser entendida dentro daquilo que Morgan definiu como um sistema desdobrado em
partes, de modo que, tenha a capacidade de auto-organizar-se e regenerar-se continuamente. É
a idéia do holograma.
Este princípio parece expressar um ideal impossível. Mas existem pelo
menos três maneiras pelas quais a filosofia do ‘todo nas partes’ pode ser
realizada na prática: focalizando a cultura corporativa, os sistemas de
informações, as estruturas e os papéis11.
Com isso, entende-se que a TV Globo prioriza uma cultura corporativa, sistemas de
informação, estrutura e papéis, como princípios que possibilitam a implementação de uma
11
MORGAN, Gareth. Imagens da Organização: edição executiva, p. 115-118, aspas do autor.
98
estratégia legitimadora dos valores que acredita serem ponto de apoio e identidade, levando
sócios, parceiros, funcionários, colaboradores e, inclusive, o público que atende
(telespectadores, agências de publicidade e anunciantes) a se filiarem à ela, ao manterem uma
relação com a visão e valores da empresa. Conforme observa Morgan, tais valores facilitam a
adaptação ao mercado e criam a oportunidade para que novas filiações se realizem a partir do
âmbito interno da empresa.
A adoção da visão, aspirações, valores centrais, normas e outras dimensões
da cultura corporativa cria a capacidade de cada pessoa incorporar o todo e
agir como se o representasse. Desta forma, a cultura que une uma
organização pode ter uma forma durável, ainda que mudando sempre,
porque as visões, valores e códigos são expressos em diferentes maneiras em
diferentes momentos e evoluem à medida que as circunstâncias mudam12.
Ao fundir como alicerce da própria estrutura organizacional uma cultura corporativa
que dá oportunidade, ainda que de forma controlada, à filiações das mais variadas, a empresa
encontra um terreno fértil para atuar e crescer no mercado, agregando participantes no raio de
ação de sua esfera de influência interna e externa. Sem a necessidade de abrir mão do controle
central das atividades e da política empresarial, a empresa se solidifica ao fazer com que
investidores, empresários, funcionários e, inclusive, telespectadores, agências de publicidade
e anunciantes, tornem-se, também, parte do sistema, ao incorporar a filosofia da TV Globo,
em que a parte representa o todo.
Desta maneira, as afiliadas passam a reproduzir o mesmo comportamento da Central
Globo, pois, em cada região do país, estas “filiais independentes” se reportam às centrais
regionais, que, por sua vez, então ligadas ao comando da rede na cidade do Rio de Janeiro.
Isso leva ao crescimento do próprio sistema, enquanto permanece com uma estrutura enxuta.
Ao se expandir em partes a empresa superou a dificuldade de agregar pessoal
e desenvolver potencialidades ao implementar sistemas de informações que
possibilitam o acesso a um banco de dados de memória e inteligência
organizacional13.
12
13
MORGAN, Gareth. Imagens da Organização: edição executiva, p. 119.
Ibid, p. 119.
99
De acordo com Morgan, a cultura, o caráter e a base de conhecimento da organização
como um todo estão embutidos na nova parte. Para o autor, a parte torna-se rapidamente
sinônimo do todo porque os que se ligam a ela absorvem e reproduzem as qualidades que
conferem à organização, seu caráter distintivo. Afirma o autor que, usando a informática e um
forte senso de valores e cultura corporativa como forças unificadoras, a empresa é capaz de
operar de maneira completamente descentralizada, ajustando-se às circunstâncias especiais
encontradas em ambientes específicos. Contudo, a TV Globo permanece uma empresa
altamente integrada.
O processo de fixar o todo nas partes, e que permite identificar as relações no âmbito
interno da empresa, revela a dimensão dessa lógica, identificada nas chamadas, ao se entender
a maneira como tarefas e serviços são organizados. Ao contrário de papéis baseados em
princípios mecanicistas e especializados, típicos da Era Industrial (fordista), passa-se a
priorizar uma estrutura dinâmica de equipes de trabalho que desenvolvem processos
completos.
Os grupos que constituem os conjuntos passam a desempenhar papéis ou funções
amplamente definidos. Constata-se, seguindo Morgan, que, para melhorar o autogerenciamento, as pessoas são treinadas em múltiplas capacidades, sendo as equipes
intercambiáveis, podendo trabalhar de maneira orgânica e flexível.
Na prática, as equipes absorvem muitas das funções que, na organização
burocrática, seriam desempenhadas por pessoas de diferentes departamentos,
como planejamento, pessoal, treinamento, controle de qualidade e
engenharia. Este padrão é evidente em grupos de trabalho de todos os tipos.
Parece haver uma tendência natural para abarcar o todo, no sentido de que as
equipes são responsáveis e recompensadas pelo desempenho efetivo de um
conjunto de tarefas, logo percebem que o trabalho se torna muito mais fácil e
mais eficaz se forem capazes de influenciar e determinar o contexto e as
condições que influenciam seu desempenho14.
Na esteira deste processo holográfico, em que as partes representam o todo, vem à tona,
a exemplo das chamadas, a dinâmica da empresa. Como as chamadas acabam por agregar um
14
MORGAN, Gareth. Imagens da Organização: edição executiva, p. 120-123.
100
ethos, um “conjunto de moral, costumes e características que revelam a tendência cultural”15,
das práticas cotidianas da empresa e daquilo que processa, os indivíduos que querem
participar de sua esfera interna, só podem permanecer ali, de fato, se reproduzirem esse ethos.
Portanto, as chamadas acabam reforçando esses valores característicos ao universo interno da
empresa.
Ao mesmo tempo estimulam, entre outros fatores, o desenvolvimento de uma dinâmica
em que pessoas, equipes e outras unidades envolvidas na gestão de pessoal e operação,
passem a desenvolver a capacidade de assumir desafios e encontrar soluções para prover as
necessidades do momento. Isso leva os profissionais da empresa ou unidades, a executar ou
operar em tarefas até mesmo quando departamentos, seções e/ou gerências são desativadas ou
eliminadas. Morgan cita que, assim, se facilita a “capacidade”, a “inteligência” e o “controle”,
ao serem distribuídos de maneira que possibilite, a qualquer elemento individual, tornar-se
parte vital do todo. Além disso, continua o autor, há chance que tais profissionais criem
capacidade de crescer, desenvolver e mudar a si próprios de acordo com as experiências por
que passam.
Isso ocorre em cada departamento da empresa e envolve a todos, independente da
unidade ou setor, desde serviços administrativos, produção ou operação. Como exemplo,
pode-se citar, para ficar apenas na área cultural e operacional, um ator que está familiarizado
com as gravações de uma telenovela pode assumir um papel de direção na gravação da mesma
ou de uma minissérie. Até mesmo um auxiliar de gravação, com o tempo, desenvolve a
capacidade necessária para desempenhar uma função de cinegrafista.
Entretanto, segundo Morgan, para que não haja inércia nesta dinâmica, deve-se evitar
que tais papéis tornem-se estáticos. Ora, uma vez mais, a exemplo das chamadas, que, ao
serem repetidas continuadamente, evidenciam um excesso de repetição que, a princípio, pode
15
PINTO, Virgílio N. Comunicação e Cultura Brasileira. 2.ed. São Paulo: Ática, 1989, p. 73.
101
parecer que sejam sempre de formatação fixa, na realidade, não são. Ao serem repetidas,
denotam a necessidade de se trabalhar em redundância, ou seja, ao haver uma freqüência
repetitiva das ações é que se cria o espaço para a inovação e o desenvolvimento de
oportunidades.
Portanto, é fato que, baseado neste processo, a TV Globo e a rede estão inseridas numa
constante redundância de produção, operação e administração, que favorece-a e resultam no
surgimento de espaços para a inovação e o desenvolvimento das oportunidades.
As
constantes repetições abrem caminho para o compartilhamento de informação, como fonte de
criatividade, o empenho, a confiança mútua e o entendimento em comum.
Ainda dentro desta visão e processo em que é estimulada e desenvolvida tal cultura
corporativa, auto-organizador, faz-se necessário uma abordagem de redundância das próprias
funções desenvolvidas por aqueles que estão envolvidos com a empresa, pois os membros
participantes adquirem aptidões que favorecem o envolvimento em desafios do momento, ao
invés de se limitarem à “estrita descrição de cargo e adotar a atitude de isto não é da minha
responsabilidade, típica das abordagens administrativas mais mecanicistas”16.
Em vez de acrescentar peças de reposição ao sistema, funções extras são
acrescentadas a cada peça da operação para que cada parte seja capaz de
desempenhar várias funções. Este é o princípio que rege os grupos de
trabalho auto-organizados. Os membros adquirem múltiplas capacidades
para que possam desempenhar as funções uns dos outros e substituir uns aos
outros quando for necessário. E a equipe toda absorve uma crescente
quantidade de funções à medida que desenvolve maneiras mais eficientes de
abordar seu trabalho. A qualquer momento, cada membro da equipe possui
capacidades que são redundantes no sentido de que não estão sendo usadas
no trabalho que está sendo feito. No entanto, esta estrutura organizacional
possui grande flexibilidade e cria uma capacidade de auto-organização
dentro de cada parte do sistema 17.
Na opinião de Ortiz Ramos, esta prática da Rede Globo só é possível devido ao ritmo de
“rotinas perversas” do cotidiano interno da empresa que estabelece e define “características de
um padrão mínimo necessário para manter o espectador sintonizado numa rede”, mas, que por
16
17
MORGAN, Gareth. Imagens da Organização: edição executiva, p. 116-127.
Ibid, p. 127.
102
outro lado, obscurecem as relações de recursos humanos entre estes empregados e os
patrões18.
Aos profissionais e equipes da Rede Globo, delega-se uma responsabilidade que
compreende uma enormidade de repetições de tarefas e atividades. Entretanto, esta
redundância pode tornar-se insuportável, mas é conduzida e estendida ao seu grau máximo,
nos limites do suportável. Portanto, é por esta mesma redundância, a exemplo das chamadas,
que se torna possível identificar outro aspecto da cultura e dinâmica corporativa da empresa,
pois esta se apresenta juntamente com uma variedade que a própria redundância deve
comportar. Assim, é lógico afirmar que estes mesmos profissionais e equipes devem dar lugar
ao revezamento, não só pelo limite físico do cansaço, mas para possibilitar a própria
variedade.
Para explicar este grau de variedade, Morgan sugere o princípio cibernético do
“requisito da variedade”. Segundo ele, uma equipe ou unidade tem que ser capaz de
reconhecer, absorver e lidar com as variações de seu ambiente para evoluir e sobreviver na
empresa. Além do mais, aponta o autor, esta variedade deve apresentar, embutida em si, em
cada parte do sistema onde ela é diretamente necessária, e não à distância, pois esse sistema
de controle requer uma dose de variedade e complexidade na proporção do sistema que ele
controla.
O princípio sugere que quando a variedade e a redundância são incluídas em
nível local – no ponto de interação com o ambiente e não em pontos
afastados, [...], a capacidade de evolução é fortalecida. Indivíduos, equipes e
outras unidades recebem o poder de descobrir inovações em questões locais
que têm a ver suas necessidades. Isto também provê um recurso de inovação
dentro da organização mais ampla, uma vez que a variedade e inovação
experimentada são compartilhadas e usadas como recursos para aumentar o
aprendizado. O princípio da variedade pode desempenhar um papel vital no
desenvolvimento da capacidade de evolução de toda a empresa19.
18
19
RAMOS, José Mário O. Televisão, Publicidade e Cultura de Massa. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 60.
MORGAN, Gareth. Imagens da Organização: edição executiva, p. 128-132.
103
As chamadas seguem uma ordem pré-estabelecida, mas elas podem ser usadas, também,
de forma aleatória, pois como se encontram diluídas ao longo da programação, apresentam-se
no sistema com um alto grau de aleatoriedade e variedade para produzir um padrão coerente.
Além disso, a empresa se faz valer de uma dedução lógica. Dessa forma, demonstra a
coexistência de um alto grau de especialização e cumpre função de disseminar, no mesmo
espaço, tanto no âmbito da rede, como na sociedade e mercado, o padrão intrínseco à
empresa. Outros dados em comum entre o todo e as chamadas da programação, são a presença
simultânea de características de expansão criativa e a sobreposição como base de
funcionamento.
Como a empresa precisa responder a demanda de curto prazo, já que as pessoas tornamse “alheias ao futuro e assumam atitudes ‘presentistas’, voltadas para a gratificação imediata,
para horizontes de curto prazo e para a existência cotidiana”20, a TV Globo esforça-se em
construir um discurso que não pode ser longo e que, ao mesmo tempo, de conta de dar
transitividade ao que administra.
Logo, é essa emergência de dar conta desse fluxo, que a TV Globo vai contornar o
componente daquilo que os pós-modernistas rotulam como o fim das grandes narrativas21, ou
seja, observa-se que, ao dotar o discurso das chamadas, no molde de discursos curtos, ela o
engendra certa dose de flexibilidade. Desta maneira, as chamadas tornam-se modulares e
podem ser intercambiáveis de acordo com a demanda e a necessária retro-alimentação do
fluxo que a empresa administra. Isso favorece a empresa na busca de instigar a atenção, não
só dos públicos que atende no ambiente externo, mas, principalmente, dos funcionários que,
constantemente, também, devem ser lembrados de apresentar uma performance que
possibilite continuar esse processo de desdobramento em partes e, entendido, como auto-
20
SZTOMPKA, Piotr. A Sociologia da Mudança Social. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 73,
aspas do autor.
21
Ibid, p. 73.
104
organizador. Com isso, mantém-se o crescimento da rede para assegurar a própria dinâmica
em que está alicerçada.
Primeiro, o utopismo, isto é, articulação de abrangentes imagens ideais da
sociedade perfeita almejada. [...] o utopismo esteve intimamente ligado à
idéia de progresso durante muitos séculos. Mas hoje estamos claramente
testemunhando uma moda antiutopismo. A explosão final do pensamento
utópico deu-se recentemente com a queda do sistema comunista, o último
dos fracassos no intento de realizar-se uma visão utópica do mundo. O que
restou foi a incerteza e a imprevisibilidade do futuro, agora visto como
inteiramente contingente, aberto a desenvolvimentos casuais e aleatórios.
Isto solapa a outra premissa da idéia de progresso - a orientação para o
futuro. Inexiste qualquer projeto orientado para o futuro capaz de apoderarse da imaginação humana e mobilizar a ação coletiva (papel tão bem
desempenhado, a seu tempo, pelas idéias socialistas, por exemplo). De modo
mais específico, inexiste qualquer visão de um mundo melhor (oferecida, a
seu tempo, pela utopia comunista); em lugar disso, o que temos são
prognósticos catastróficos ou simples extrapolações de tendências presentes
(como por exemplo nas teorias da sociedade pós-industrial). Além disso,
inexiste qualquer programa de aperfeiçoamento social e inexistem pautas
sobre como escapar aos procedimentos contemporâneos22.
Assim, as chamadas são trabalhadas sempre pela perspectiva do hoje, do amanhã, ou no
máximo, no sentido de que as coisas devem acontecer nos próximos dias. Essa idéia de
imediato vai alimentar a necessidade de que para a rede crescer ela deve pautar a própria
filosofia no agora. Essa idéia requer, então, que se delegue uma certa dose de liberdade, para
que os nós da própria rede, para que estes possam atuar neste processo de prover o agora.
Dessa maneira, cada interconexão pode operar de forma independente.
Essa liberdade é delegada aos nós da rede, pois as chamadas são utilizadas nas mais
variadas necessidades. Desde encurtar o tempo da programação (neste caso, as chamadas são
eliminadas de determinados blocos comerciais), ou preencher os espaços dos blocos
comerciais que não foram vendidos na sua totalidade e estão com espaços publicitários
ociosos.
Isso leva a entender que há uma certa liberdade de ação, uma vez que a liberdade
interna é implementada para que cada parte possa atuar de forma que evolua e não prejudique
o todo. Isto deve-se pelo fato de que as afiliadas cobrem áreas determinadas, numa região
22
SZTOMPKA, Piotr. A Sociologia da Mudança Social, p. 72.
105
geograficamente definida. Um planejamento central dificultaria o crescimento do próprio
sistema.
Conforme Morgan, o planejamento centralizado sufocaria as necessidades locais que
poderiam ser solucionadas naquele momento e naquele espaço. Com isso, a TV Globo
estipulou especificações mínimas para que cada parte atue de acordo com o todo. Desta
maneira, a autonomia concedida em certa dose favorece a “ocorrência de inovação
pertinente”, que auxilia a preservar a capacidade de auto-organização (auto-planejadas), ao
invés, de planejados no sentido tradicional23.
O autor, afirma que assim se evita o papel de “grandes planejadores”, o que favorece
uma maior concentração da “facilitação”, “orquestração” e “gerenciamento dos limites”,
proporcionando um ambiente onde se criam condições que permitam que este próprio
“sistema descubra sua própria forma”24, de operacionalizar sem que, contudo, desvie-se do
padrão.
Um desafio é ajudar as unidades operacionais, sejam elas filhotes da
empresa original, equipes de trabalho, grupos de pesquisa ou indivíduos, a
operarem dentro de uma esfera de autonomia responsável. Outro desafio é
evitar a anarquia e o fluxo completamente livre que surgem quando, por um
lado, não existe nenhum parâmetro ou diretriz e, por outro, existe excessiva
centralização25.
Essa liberdade deve ser entendida como limitada, dentro de perímetros administrativos
impostos pela central, não sendo estendida, na sua totalidade, aos funcionários. De acordo
com Ramos, o patrão, neste tipo de empresa, rádio-difusão e, principalmente em empresas
televisivas de sinal aberto, deve contornar a suposta liberdade de seus funcionários, sobretudo,
artistas e jornalistas, já que a emissora deve seguir a imposição de uma legislação específica
do setor como concessionária pública.
A Mídia é, [...], mesmo nos países capitalistas mais avançados, submetida a
ambientes político - normativos mais rígidos do que os que regulam a
Empresa em geral. Isso decorre de sua natureza intrinsecamente pública,
23
MORGAN, Gareth. Imagens da Organização: edição executiva, p. 130-131.
Ibid, p. 130.
25
Ibid, p. 130-131.
24
106
mesmo quando se trata da imprensa, regida, ao contrário da radiodifusão,
por regime contratual privado. O Patrão, na Mídia, precisa contornar a
liberdade que seus profissionais de criação – jornalistas e artistas – almejam
possuir, por ser essa liberdade, em tese, a essência de seu trabalho. Essa é
uma particularidade da Mídia, enquanto empresa, que não se encontra na
Empresa como tal.26
A empresa vai cercar-se de limites não só para especificar os parâmetros técnicos em
que a produção cultural é adequada, e entendida, como sendo os critérios de qualidade, que
estão ligados às rotinas “internas e de equipes técnicas capazes de realizar, a nível industrial,
isto é com regularidade e freqüência, programas”27 e serviços, com o objetivo de vertê-los ao
mercado e sociedade sob uma técnica e estética específicas, mas que, ao mesmo tempo,
também, limita a liberdade dos funcionários.
Essa liberdade é limitada pelo emprego do texto, já que ao buscar parâmetros e
referências do teatro brechetiano, a TV Globo encontrou a solução não só para dar conta da
política de programação, mas resolver a questão do controle da própria produção, pois o texto
derivado do teatro brechetiano permite uma função instrumental de dois casos: “no primeiro
ele está a serviço da preservação da atividade teatral e no segundo, a serviço de sua
modificação”28. É aí que entra o controle da suposta liberdade de tais profissionais (artistas e
jornalistas), uma vez que o texto permite não só que obtenha-se um roteiro, mas um controle
direto sobre os funcionários da empresa. Toda a tecnologia existente permite verter esta
produção numa velocidade cada vez maior.
Para seu texto, a representação não significa mais uma interpretação
virtuosística, e sim um controle rigoroso. Para sua representação, o texto não
é mais fundamento, e sim roteiro de trabalho, no qual se registram as
reformulações necessárias. Para seus atores, o diretor não transmite mais
instruções visando a obtenção de efeitos, e sim teses em função das quais
eles têm que tomar posição. Para seu diretor, o ator não é mais um artista
mímico, que incorpora um papel, e sim um funcionário, que precisa
inventariá-lo29.
26
RAMOS, Murilo C. A força de um aparelho privado de hegemonia. In: BRITTOS, Valério C.; BOLAÑO,
César R. (Orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia. São Paulo: Paulus, 2005, p. 74-75.
27
RAMOS, José Mário O. Televisão, Publicidade e Cultura de Massa, p. 59-60.
28
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. vol. 1.
São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 79.
29
Ibid, p. 79.
107
De acordo com Ramos, essa suposta liberdade, dos profissionais que atuam em
empresas do setor de rádio-difusão, na realidade revela que, veículos de comunicação são
detentores de um poder específico, já que na tradição liberal, a mídia, na forma original de
imprensa, ou jornalismo, é herdeira de um tipo de mandato público, onde deve fazer valer os
interesses de determinados grupos que têm, na forma de propriedade e gestão, uma essência
privada, ao atuar num setor eminentemente público na sua função social precípua de agir
como um watchdog, ou cão de guarda, dos poderes estabelecidos – executivo, legislativo e
judiciário30.
E não poderia ser diferente. De suas práticas produtivas – do tecnológico e
gerencial-disciplinar aos processos de distribuição e circulação, com ênfase
para as técnicas de marketing com seu impacto direto nos comportamentos
socioculturais – alimenta-se a ideologia dominante no capitalismo31.
Nesta perspectiva, seguindo Ramos, é possível identificar uma certa hierarquia da
ordem de capacidade de projeção de poder na sociedade democrática liberal:
[...], a empresa, ou seja, o conjunto ideológico dos preceitos que conformam
o que também chamamos de mercado; as instituições de comunicação, ou
como as tratamos mais comumente, a Mídia; o Grupo, conjunto de
associações pessoais que mais influenciam nossos comportamentos; a
família; as Igrejas; a escola; o Sindicato ou Associação de trabalhadores ou
empresariais; e o chamado Terceiro Setor.32
Então, de acordo com o autor, a empresa moderna e, principalmente, as companhias que
atuam no setor de mídia, devido à singularidade destas em serem “produtora e disseminadora
de conteúdos jornalísticos, informativos em geral, e de entretenimento, embebidos em sua
virtual totalidade da lógica do consumo total, que é a principal força ideologicamente
reprodutora do capitalismo”, tornam-se exemplos nítidos da atualização da idéia de Gramsci
de “aparelhos privados de hegemonia a compor a sociedade civil contemporânea”, por ser
30
RAMOS, Murilo C. A força de um aparelho privado de hegemonia. In: BRITTOS, Valério C.; BOLAÑO,
César R. (Orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia, p. 65-66.
31
Ibid, p. 65.
32
Ibid, p. 64.
108
possível manter uma coalizão de forças que permitem a reprodução capitalista de forma a se
perpetuarem à dominação ao se assegurar “o consenso dos dominados”33.
Para Ramos, o conceito de hegemonia, de Gramsci, é o mais adequado para especificar
o poder que a empresa detém, não só nos limites da esfera interna, mas, também e,
principalmente, no âmbito externo, uma vez que, “os mecanismos de poder – não se limitam
mais aos institutos de dominação direta, aos mecanismos de coerção”, embora estas
instituições continuem a desempenhar um papel importante na “reprodução da sociedade
segundo interesses de uma classe dominante”, uma vez que a sociedade política não se
restringe mais exclusivamente ao “governo, com a burocracia executiva, com os aparelhos
policial-militares”34, e sim numa relação em lutas hegemônicas que se localizam “em uma
frente ampla, que inclui as instituições da sociedade civil, educação, sindicatos, família, com
possível desigualdade entre diferentes níveis e domínios”, bem como da relação entre estes35.
Hegemonia é liderança tanto quanto dominação nos domínios econômico,
político, cultural e ideológico de uma sociedade. Hegemonia é poder sobre a
sociedade como um todo de uma das classes economicamente definidas
como fundamentais em aliança com outras forças sociais, mas nunca
atingido senão parcial e temporariamente, como um equilíbrio instável.
Hegemonia é a construção de alianças e a integração muito mais do que
simplesmente a dominação de classes subalternas, mediante concessões ou
meios ideológicos para ganhar seu consentimento. Hegemonia é um foco de
constante luta sobre pontos de maior instabilidade entre as classes e blocos
para construir, manter ou romper alianças e relações de
dominação/subordinação, que assume formas econômicas, políticas e
ideológicas.36
Na avaliação de Ramos, a TV Globo, ao se valer da audiência que alcança, pode ser
denominada como uma empresa com força e características que a posiciona, na sociedade,
33
RAMOS, Murilo C. A força de um aparelho privado de hegemonia. In: BRITTOS, Valério C.; BOLAÑO,
César R. (Orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia, p. 60-64.
34
Ibid, p. 60-61.
35
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília: Universidade de Brasília: 2001, p. 122.
36
Ibid, p. 122.
109
como um Aparelho Privado de Hegemonia37, uma vez que a empresa exerce um papel de
liderança hegemônica sem precedentes na sociedade brasileira.
A particularidade brasileira, entretanto, [...], é a capacidade que a Mídia tem
demonstrado de se colocar, mediante o uso de um absurdo poder de pressão,
fora do alcance mesmo dos mais mínimos controles legais. Aqui ela pretende
ser apenas uma e Empresa, e seus concessionários, principalmente, apenas
patrões. E nenhum representante da Mídia brasileira é mais patrão do que as
Organizações Globo. Patrão não apenas de seus funcionários, mas também
de seus pares, radiodifusores e imprensa; e patrão dos poderes institucionais,
seja no Congresso Nacional, onde sua capacidade de pressão é quase
imperial, seja no Poder Executivo, sobre o qual jamais poupou pressão e do
qual obteve o que quis, [...]38.
Assim, tais organismos privados no seio da sociedade surgem como um “mundo
intermediário da sociedade civil” e o Estado. Estes organismos passam a atuar numa relação
que tende ao equilíbrio entre os interesses não mais totalitário do Estado, mas aos da iniciativa
privada39.
Por um lado, velhos aparelhos ideológicos de Estado (como Igrejas, as
Universidades) tornam-se autônomos, passam a fazer parte da sociedade
civil; e por outro, com a própria intensificação das lutas sociais, criam-se
novas organizações, novos institutos também autônomos do Estado – os
sindicatos, os partidos de massa, os jornais de opinião etc.–, os quais embora
possam ter como objeto a defesa de interesses particulares, privados,
tornam-se também portadores materiais de cultura, de ideologias40.
Desta maneira, “a sociedade passou de seu período meramente liberal para um período
liberal democrático”41.
Em seu tempo, Gramsci via a sociedade civil, estruturada pelo que tão
apropriadamente chamou de aparelhos privados de hegemonia, como
alternativa viável de produção de novas hegemonias emancipatórias, na
medida em que subentendia um relativo equilíbrio entre estes aparelhos, da
igreja laicizada às escolas igualmente laicas, dos sindicatos em ascensão
política à imprensa de opinião ainda não totalmente comercializada, em
especial na Europa. Ele acreditava ser possível a produção de consensos
emancipatórios pela via de uma cultura e uma prática política
revolucionárias, ao alcance de um proletariado socialmente majoritário e
politicamente educado, graças ao partido de massas [...]. O que Gramsci não
antecipou foi a rápida e progressiva modificação da imprensa; os jornais de
opinião logo perderiam espaço para os jornais de massa, comerciais, e, em
37
RAMOS, Murilo C. A força de um aparelho privado de hegemonia. In: BRITTOS, Valério C.; BOLAÑO,
César R. (Orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia, p. 57.
38
Ibid, p. 74-75.
39
Ibid, p. 61-62.
40
Ibid, p. 61.
41
Ibid, p. 61-62.
110
pouco tempo mais, século XX adentro, para um rádio e uma televisão
igualmente massificados e ainda mais dominados pelo financiamento
comercial atrelado ao consumo capitalista e por conteúdos de lazer escapista
tão mais atraentes quanto fossem seus conteúdos ideologicamente
alienantes42.
Vale lembrar, que as emissoras de televisão no Brasil surgem no contexto comercial, a
exemplo das empresas estadunidenses, por exemplo, e diferentemente, das empresas de TV’s
européia, de propriedade do Estado, e que, eram conceituadas como um “Aparelho Ideológico
de Estado, um lugar de produção de estratégias discursivas”43. Somente em meados da década
de 1980 é que a Europa vai ter um processo consolidado das empresas televisivas comerciais,
assim, a TV Globo, a exemplo de suas congêneres no mundo, adquire um caráter de empresa
que exerce algum tipo de poder na sociedade em que atuam.
Essa relação hegemônica de poder, permite que a sociedade civil, “as instâncias
ideológicas de legitimação passam a ser privado, em relação ao público”, se coloque frente ao
Estado, este por sua vez, vai ter que negociar, pois se vê limitada em impor uma visão de
mundo, ao conferir e legitimar as relações de consenso, “conjunto de organismos ou de
objetivações sociais”, em que a maior parte do conjunto se norteia pela mesma “direção
político-ideológica”44.
Poder é aquela relação entre os sujeitos humanos que, com base na produção
e na experiência, impõe a vontade de alguns sobre os outros pelo emprego
potencial ou real de violência física ou simbólica. As instituições sociais são
constituídas para impor o cumprimento das relações de poder existentes em
cada período histórico, inclusive os controles, limites e contratos sociais
conseguidos nas lutas pelo poder45.
Se pelo foco da esfera interna, as chamadas servem, sobremaneira, como um
instrumento de dominação e poder em âmbito institucional, ao disseminar a cultura
corporativa, com os valores e crenças da TV Globo, determinando a relação de dominação e
42
RAMOS, Murilo C. A força de um aparelho privado de hegemonia. In: BRITTOS, Valério C.; BOLAÑO,
César R. (Orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia, p. 62-63.
43
RAMOS, José Mário O. Televisão, Publicidade e Cultura de Massa, p. 45-46.
44
RAMOS, Murilo C. A força de um aparelho privado de hegemonia. In: BRITTOS, Valério C.; BOLAÑO,
César R. (Orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia, p. 61-62.
45
CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura. v.1. 3 ed. São Paulo: Paz e
Terra, 1999, p. 33.
111
subordinação daqueles que integram o cotidiano da rede, acaba, por sua vez, em integrar,
concomitantemente, ao cotidiano dela e da Rede que administra, os telespectadores e, no
vácuo destes, as agências de publicidade e anunciantes, já que as chamadas criam um campo
de significação, gerando sentido, a partir dos valores culturais da empresa.
É neste processo, que a empresa converte os diferentes comportamentos culturais,
assimétricos, convergindo todos a igualdade, simetria, pertinente à visão de mundo da
empresa e condizentes aos valores culturais da própria empresa. “O que se pretende não é,
meramente, perpetuar a exploração do ou no trabalho, mas perpetuar a empresa e suas
condições de reprodução”46.
[...] perpetuar a empresa e suas condições de reprodução a partir de uma
imagem ‘inserida’ no inconsciente do sujeito na (da) empresa. A empresa se
baseia em formas de manipulação que não se resumem, apenas à exploração
física dos sujeitos, mas em uma exploração psíquica. A empresa não se
satisfaz mais em utilizar o indivíduo como instrumento. Quer utilizar seu
inconsciente, sua personalidade, seus desejos. Não basta mais à empresa o
sujeito. Esse, fruto de sua produção, ela o nega. Mas nega no sentido
freudiano. Ela quer mais, ela quer o Eu, ela quer o sujeito do inconsciente, o
sujeito do desejo. Ela quer o sujeito do enunciado. Sua intenção é reproduzir
em seu inconsciente por meio de um ato ideológico por excelência. A
empresa quer ligar-se ao Eu por um ato imaginário de filiação. Ela quer se
reproduzir no Eu através de um ato imaginário de filiação. Ela quer se
instalar no Eu, sujeito do enunciado, lugar e agente da produção dos
enunciados. Como ali está o significante que representa a empresa, sua
imagem, as enunciações dele, sujeito, serão os enunciados dela, empresa. O
significante se instala no Eu como instância fundadora dos discursos. O Eu
se confunde com a imagem da empresa, que se situa no lugar do Outro. Se o
inconsciente aparece no enunciado, é aí que está a empresa.
Há, portanto, uma manipulação por parte da empresa no sentindo de contornar a
assimetria existente na sociedade, ao converter os indivíduos à simétrica dos valores culturais
da própria empresa, a TV Globo procede numa manipulação ideológica que está baseada em
um engano consciente, pois ao estimular pelas chamadas uma relação de assimilação dos
hábitos, práticas e rotinas da própria empresa, já que estas são elos de comunicação e
consenso, a empresa dissemina os próprios rituais da organização, um conjunto de seus
valores, que de forma simbólica, ordenam, atribuem significações, corroboram na construção
46
FREDDO, Antonio Carlos. A Ideologia em Ato: a filiação imaginária do sujeito, p. 103, grifos do autor.
112
da identidade organizacional, que acabam por ocultar e instrumentalizar as relações de
dominação, que são gerenciadas e combinadas em módulos, e resultam num discurso de
enunciação.
As chamadas ao demonstrarem a intencionalidade da empresa, concomitantemente,
expressam um iludir a seus filiados, “simulando o cumprimento das condições de uma ação
comunicativa”. A ação estratégica da TV Globo funda-se numa “situação inversa àquela da
ação comunicativa, em que as ações dos indivíduos não são, ou pelo menos, pressupõem-se
que não sejam, coordenadas por cálculos egocêntricos de interesses, mas pelo
entendimento”47.
Diz Habermas, resumindo sua própria teoria que ‘enquanto na ação
estratégica um ator influi no outro empiricamente, mediante a ameaça de
sanções ou a promessa de gratificações a fim de conseguir o desejado
prosseguimento de uma interação, na ação comunicativa cada ator aparece
racionalmente motivado a uma ação complementar e isso graças ao efeito
vinculante locutivo de uma oferta do ato de fala’. Isto significa dizer que há,
ou se propõe que haja, o estabelecimento de uma relação que reflete uma
situação onde indivíduos, no papel de interlocutores, orientam-se ao
entendimento mútuo acerca de alguma coisa referente a alguma das esferas
do mundo vivido, quer seja do mundo objetivo, social ou subjetivo48.
Ao serem utilizadas, as chamadas, com a intenção do ato comunicativo entre a empresa
e os indivíduos, remetem ao fato de que não são restritivas, opositoras aos próprios sujeitos.
Pelo contrário, vão justamente, ao estamparem a diferenciação destes indivíduos,
demonstram, conscientemente, os meios de agir sobre estes.
Essa diferenciação, intrínseca às próprias chamadas, as caracterizam como
ideologicamente transitivas, pois caso fossem estanques, iriam solapar a própria produção e
serviços ofertados pela empresa. Elas, as chamadas, são ideologicamente transitivas, já que
podem ser combinadas não só com a própria programação, mas, constantemente, são refeitas
e rearticuladas de forma que não haja empecilho à transitividade delas próprias. Caso não
47
48
FREDDO, Antonio Carlos. A Ideologia em Ato: a filiação imaginária do sujeito, p. 106.
Ibid, p. 106. As aspas são do autor; os grifos são de Habermas.
113
fossem assim, haveria restrição no próprio sistema que estão inseridas, a rede, ou, ainda,
limitariam o próprio ato da ação comunicativa.
Pelo contrário, a empresa, instiga os próprios sujeitos filiados a participarem do dia a
dia dela. A empresa ao agir estrategicamente sobre os indivíduos, motiva e estimula-os a
padrões de comportamento específicos, a fim de alcançar seu próprio êxito, por isso torna-se
evidente, que as chamadas não se prestam, apenas, a finalidade de recrutar, selecionar e
relacionar os clientes entre si e familiarizá-los com os produtos e serviços, mas buscam, além
de possibilitar que todos os filiados venham a se encontrar no ambiente da empresa, que estes
reproduzam valores, crenças, tradições, emoções, que constituem a história da própria
empresa.
A TV Globo, assim pretende buscar pelas chamadas, instigar seus filiados a não
permanecerem estanques, paralisados, já que desta maneira, a empresa não poderá se
abastecer para o próprio crescimento, pelo contrário, os clientes são estimulados,
direcionados, guiados há hábitos e valores que os levem a desempenhar também, a exemplo
dos próprios funcionários, outros papéis, e não só se coloquem como telespectadores,
agências de publicidade e anunciantes passivos em uma função estática.
Logo, para a TV Globo, o cliente telespectador, não cabe apenas sintonizar o canal da
emissora no dial do aparelho televisor e acompanhar a programação, é preciso muito mais,
que isto, para a empresa, o cliente telespectador deve cumprir isso como função básica, não
obstante, este não deve se acomodar apenas com isso. Tem que viver o mundo da empresa,
manter-se mais que conectado, emitir suas opiniões quanto à qualidade da programação e
serviços, feedback, ao desempenhar a função de consultores. O telespectador é instigado, até
mesmo, a utilizar a estrutura da empresa para suas reivindicações como cidadão, eleitor,
pagador de impostos. O telespectador cliente deve procurar os departamentos da empresa para
114
que, também, possa participar e contribuir para com a comunidade dele, ou seja, a TV Globo
vai utilizar o próprio telespectador como elo entre a empresa e a comunidade em que ele vive.
A esse tipo de filiado cliente, a empresa torna-se uma mediadora não só de seus direitos,
bem estar, ao tentar resolver as implicações cotidianas que o afetam como cidadão,
consumidor, pai de família, trabalhador etc, mas, vai proporcionar a esse mesmo cliente,
também, a diversão, entretenimento, aprendizado e educação, que proporcionará, pelos
inúmeros programas e serviços oferecidos pela emissora. Caso queira, esse mesmo
telespectador pode, ainda, participar das promoções institucionais da empresa. A empresa vai
estimular a participação dos indivíduos, pois para ela, quanto mais atuantes e vividos sejam
aos valores e ideais dela pelos seus filiados, melhor, uma vez que os filiados participativos
vão incluir no próprio cotidiano, o viver da própria empresa. O mundo destes será o mundo da
emissora. Para estes, quem sabe a TV Globo não permite que tornem-se filiados pelo âmbito
interno, na forma de subalternos assalariados.
A literatura existente sobre a empresa, sua tipologia, seu gerenciamento, sua
estrutura, sua dinâmica é vasta e diversificada. Mas tal diversificação,
amplitude de estudos, teorias administrativas, de análise organizacional tem,
entretanto, deixado de lado o aspecto da empresa que mais salta aos olhos,
justamente o mais elementar dentre tudo o que se pode dizer sobre ela, qual
seja, que, pelo fato de a vida cotidiana, na sociedade moderna, ser permeada
por empresas, elas vêm tendo sobre os indivíduos uma influência mais
profunda do que se pode supor: não somos, ‘no mercado’, meramente,
consumidores de seus produtos, ou seus empregados, ou usuários de seus
serviços, somos, principalmente, ‘internalizadores de sua imagem’,
divulgadores de sua marca’, e de sua ‘imagem’49.
Quanto aos outros clientes, as agências de publicidade e anunciantes, por sua vez,
devem como princípio básico, é ao menos o que a TV Globo espera destes, que encontrem os
clientes telespectadores e possam manter uma ou mais relações sociais no ambiente da
empresa. Estes clientes devem fazer até mesmo mais que isso, devem estimular e patrocinar
promoções, estender até mesmo sua presença aos programas, o merchandising, para fazeremse mais presentes e manterem mais contatos com os outros clientes/telespectadores, se
49
FREDDO, Antonio Carlos. A Ideologia em Ato: a filiação imaginária do sujeito, p. 37, aspas do autor.
115
possível, a todos os instantes. Até certa medida, as chamadas revelam que, o que vale para os
funcionários, vale para todos os clientes, já que todos se encontram no ambiente da empresa.
Esse é um dos motivos de a empresa manter cursos, programas e incentivos
que impõem, inconscientemente, formas e maneiras de pensar, sentir, ver,
viver, através das quais é transmitida a ideologia da empresa por aqueles
que, enquanto alta direção, se julgam, na empresa, donos não apenas do
poder, mas da vida e da psique dos indivíduos50.
Entre as inúmeras funções em que as chamadas são utilizadas, pois colocam-se de modo
multifacetado, um dos empregos evidente delas, é a da ação comunicativa de disseminar a
cultura da empresa e, inculcar nos filiados, nos clientes, o conjunto de valores, significações,
rituais e práticas pertinentes à própria TV Globo.
As chamadas são constituídas por uma certa dose de heterogeneidade, assim elas podem
ser classificadas e diferenciadas mais pela diversidade orgânica, do que pela uniformidade,
porém
não
deixam
de
constituírem-se
como
ideológicas,
pois
proporcionam
significações/construções da realidade que acabam por contribuir, para a produção, a
reprodução ou a transformação das relações de dominação, “em circunstâncias específicas,
para estabelecer ou manter relações de dominação”51.
É preciso deixar claro, no entanto, que como as chamadas são formatadas, revelam-se
derivadas da imposição inflexível de regras, normas e convenções que correspondem a um
modelo/código de discurso, que considera o discurso em termos da concretização de códigos
com molduras e classificações fortes, e há uma prática normativa altamente arregimentada52,
proveniente do domínio privado, que busca pelas articulações, moldar os interesses que vão
favorecer a própria empresa.
Esta inflexibilidade deve ser entendida pelo prisma dos valores, crenças, tradições,
emoções, que constituem a história da empresa e se manifestam na superfície das relações
com os filiados da empresa. Portanto, pelas chamadas, se identificam a forma em que se dá a
50
FREDDO, Antonio Carlos. A Ideologia em Ato: a filiação imaginária do sujeito, p. 102.
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social, p. 117.
52
Ibid, p.125.
51
116
dominação dos indivíduos como resultado de regras que buscam, antes de tudo, que possam e
sejam reproduzidas por práticas, conscientes ou inconscientes, que vão beneficiar a empresa53.
Esta inflexibilidade deve ser vista e entendida pelo jeito com que a empresa se mantém em
ordem.
É zelar para que a mos maiorum da empresa seja respeitada, aceita e, acima
de tudo, interiorizada e reproduzida por todos. E se torne uma ‘máxima’ de
vida. Eis porque essa esfera específica da sociedade, a organização moderna,
se torna tão interessante para análise. Mais especificamente falando, a
administração da empresa, sua forma, seu como. Administrar é, de certa
forma, um ‘de acordo com sua lei’, que deve impor e se sobrepor á ‘lei’ dos
outros. Administrar a empresa tornou-se, literalmente, a imposição dos
sujeitos à uma lei que não a deles, mas à lei dela, empresa, à sua lei54.
De forma racional, a empresa fundamenta à disseminação de sua cultura corporativa,
visando uma dominação, em virtude da crença na validade do estatuto legal e da competência
funcional em que se vale em âmbito social, e na qual ela mesma, baseia-se para poder guiar os
próprios filiados. Por isso, então, a empresa necessitar de realizar manobras lingüísticas para
chegar aos objetivos que almeja, e ver a vontade dela concretizada pela manipulação.
53
FREDDO, Antonio Carlos. A Ideologia em Ato: a filiação imaginária do sujeito, p. 80.
Ibid, p. 65. Aspas e grifo do autor. Segundo o autor, a expressão em latim Mos maiorum é utilizada no sentido
latino da cultura, do estilo de vida, dos comportamentos, dos (bons) hábitos, regulados pelos usos e pelos
costumes, quer seja, uma regra ou ordem, uma ‘máxima’ de vida.
54
CAPITULO 4
As chamadas como elo entre a administração
e a prática organizacional: o domínio nas
relações impessoais
Hoje é um novo dia, de um novo tempo
que começou. Nesses novos dias as
alegrias serão de todos, é só querer.
Todos os nossos sonhos serão verdade. O
futuro já começou Hoje a festa é sua
Hoje a festa é nossa É de quem quiser
Quem vier. A festa é sua Hoje a festa é
nossa É de quem quiser Quem vier1.
O fato que permite avançar em inúmeras frentes, a partir do mesmo ponto de análise, as
chamadas, é que são nelas em que se encontram os subsídios que viabilizam identificar e
atribuir as afinidades, tanto ao modo de ação e representação, bem como, possibilitam à
analogia entre a TV Globo e sua estrutura, a prática social e suas relações no quadro
institucional, uma vez que, por elas, encontram-se o conjunto completo das características
intrínsecas à própria empresa e a dialética com a sociedade e o mercado.
As chamadas, assim, ao serem evidenciadas, demonstram ainda, o grau elevado de
especialização daquilo que a TV Globo administra, o que a beneficia nos vínculos das
relações que mantém nas esferas de atuação em que nutri algum vínculo, seja com a própria
rede, a sociedade ou mercado, destacando-se desta maneira dos demais concorrentes que
atuam na área de rádio-difusão brasileiro e, em especial, no setor de mídia eletrônica.
Em foco, as chamadas, permitem assim, a análise de sua “plausibilidade que remete às
ramificações, ou seja, através da observação de suas implicações chega-se a um conjunto de
diferentes dados e de quão bem elas se ajustam umas às outras”2.
1
VALLE, Marcos; VALLE, Paulo S.; MOTTA, Nelson. Um Novo Tempo. Hoje é um novo dia. 1 partitura.
Violão. Disponível em: <http://www.vagalume.uol.com.br/cpaste.php>. Acesso em: 20 mai. 2005.
2
YIN, Robert K. Estudo de Caso: planejamento e métodos. 3. ed. Porto Alegre: Bookman, 2005, p. XII.
118
Desde o momento em que são instrumentalizadas, as chamadas passam a revelar , além
do próprio comportamento empresarial ante o espaço público, as práticas constitutivas ao
âmbito interno, como a valorização dos sistemas de informação, a estrutura da rede, a
redundância da ação, a variedade e a aleatoriedade; o que a favorece na produção de um
padrão coerente, com dedução lógica, com nexo, beneficiando-a na desconstrução3 e
reconstrução da realidade que dissemina. Assim, desde este momento e, por esta maneira, a
empresa pode utilizar as chamadas para a captação da atenção e manutenção da filiação
daqueles que se juntam à ela.
Como essas chamadas resultam de um arranjo específico da linguagem, pode-se dizer
que elas estão situadas no campo lingüístico, no qual se mantêm relações de dominação, tanto
na perspectiva da arena interna, como externa à empresa, pois, se a TV Globo procede de
forma tática e convincente, transformando a linguagem, é porque ela considera que a
informação pode ser expressamente estratégica e persuasiva4, e que, pode tanto favorecê-la na
reprodução dos sujeitos sociais que se filiam à firma, como na sua própria transformação para
manter alguma forma de poder.5
“Campo deve ser compreendido como o lócus, no qual se trava um embate entre atores
e/ou instituições em torno de formas de poder específicas que caracterizam a área em
questão”6. Uma vez pontuada essas características, é possível compreender as implicações e,
disponibilizar a exposição de como os fatores se correspondem, contribuindo para delimitar a
3
De acordo com Souza e Fleuri, o termo desconstrução foi introduzido pelo filósofo francês Jacques Derrida,
indicando a necessidade de comportamentos críticos nos confrontos das formas totalizantes e absolutizantes de
cada tradição cultural, particularmente daquela do Ocidente . Sob alguns aspectos, o desconstrucionismo se
aproxima de algumas posições do pensamento pós-moderno. A desconstrução é um processo de historicidade e,
portanto, de relativização dos saberes, incidindo sobre os níveis de compreensão, da autocompreensão e, em
particular, da pré-compreensão. SOUZA, Maria Izabel P. de; FLEURI, Reinaldo M. Entre limites e limiares de
culturas: educação na perspectiva intercultural. In: FLEURI, Reinaldo M. (Org.). Educação Intercultural:
mediações necessárias. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 53.
4
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília: Universidade de Brasília, 2001, p. 263.
5
MAGALHÃES, Izabel. Prefácio à edição brasileira. In: FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança
Social. Brasília: Universidade de Brasília, 2001, p. 11.
6
LOPES, Alice Ribeiro C.; MACEDO, Elizabeth. O pensamento curricular no Brasil. In: LOPES, Alice Ribeiro
C.; MACEDO, Elizabeth (Orgs.). Currículo: debates contemporâneos. São Paulo: Cortez, 2002, p. 17, grifo das
autoras.
119
forma em que se dá a gestão da empresa, assim como empreende para manter as interações e
vínculos com os funcionários, parceiros, clientes e sociedade.
Esse conjunto de diferentes dados, possibilita entender que a produção da empresa é
procedente de uma teorização, portanto, a teoria ao descrever um objeto, a teoria, de certo
modo, inventa-o7.
Da perspectiva do pós-estruturalismo, hoje predominante na análise social e
cultural, é precisamente esse viés representacional que torna problemático o
próprio conceito de teoria. De acordo com essa visão, é impossível separar a
descrição simbólica, lingüística da realidade - isto é, a teoria - de seus
‘efeitos de realidade’. A ‘teoria’ não se limitaria, pois, a descobrir, a
descrever, a explicar a realidade: a teoria estaria irremediavelmente
implicada na sua produção. Ao descrever um ‘objeto’, a teoria, de certo
modo, inventa-o. O objeto que a teoria supostamente descreve é,
efetivamente, um produto de sua criação8.
Logo, como produto de criação, as chamadas significam serem o resultado dos métodos
e critérios de produção, bem como, frutos das rotinas internas da TV Globo. Não é a toa que,
embora, a empresa tivesse autorização governamental para operar, a partir de 1958, ainda só o
fez, mais de meia década depois.
Neste período, a TV Globo teorizou e planejou o objeto a ser processado, para então,
assim, efetivamente, produzir e comercializar os seus produtos e serviços, logo, a teorização
do objeto, chamada da programação, é resultado da busca de objetivos especificados pela
própria cúpula da empresa. Porém, ao invés de abandonar o termo teoria, parece suficiente
adotá-lo pela compreensão da noção de que mantenha seu papel ativo na constituição daquilo
que ela supostamente descreve. É nesse sentido que a palavra teoria, ao lado da palavra
discurso é empregada9.
Nessa direção, faria mais sentido falar não em teorias, mas em discursos ou
textos. Ao deslocar a ênfase do conceito de teoria para o de discurso, a
perspectiva pós-estruturalista quer destacar precisamente o envolvimento das
descrições lingüísticas da ‘realidade’ em sua produção. Uma teoria
supostamente descobre e descreve um objeto que tem existência
7
SILVA, Tomaz T. da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte:
Autêntica, 1999, p. 11, aspas do autor.
8
Ibid, p. 11, aspas do autor.
9
Ibid, p. 13-14.
120
independente relativamente à teoria. Um discurso, em troca, produz seu
próprio objeto: a existência do objeto é inseparável da trama lingüística que
supostamente o descreve10.
Deste modo, é possível considerar que é a partir de uma trama lingüística, que a TV
Globo obterá uma reificação da própria linguagem. Portanto, é fato que a linguagem, para a
emissora, torna-se o insumo básico que permite a ela atuar, tanto nos limites da própria
fronteira interna, como sobre e na sociedade, bem como, disponibilizar produtos e serviços ao
mercado, ao processar aquilo que encontra em forma de linguagem proveniente do cotidiano
social.
A linguagem, que pode ser aqui definida como sistemas de sinais vocais, é o
mais importante sistema de sinais da sociedade humana. Seu fundamento,
naturalmente encontra-se na capacidade intrínseca do organismo humano de
expressividade vocal, mas só podemos começar a falar de linguagem quando
as expressões vocais tornam-se capazes de se destacarem dos estados
subjetivos imediatos ‘aqui e agora’. Não é ainda linguagem se rosno, grunho,
uivo ou assobio, embora estas expressões vocais sejam capazes de se
tornarem lingüísticas, na medida em que se integram em um sistema de
sinais objetivamente praticável. As objetivações comuns da vida cotidiana
são mantidas primordialmente pela significação lingüística. A vida cotidiana
é sobretudo a vida com a linguagem, e por meio dela, de que participo com
meus semelhantes. A compreensão da linguagem é por isso essencial para
minha compreensão da realidade da vida cotidiana. [...]. A linguagem tem
origem e encontra sua referência primária na vida cotidiana, referindo-se
sobretudo à realidade que experimento na consciência em estado de vigília,
que é dominada por motivos pragmáticos (isto é, o aglomerado de
significados diretamente referentes a ações presentes e futuras) e partilho
com outros de uma maneira suposta evidente. Embora a linguagem possa
também ser empregada para se referir a outras realidades, [...], conserva
mesmo assim seu arraigamento na realidade do senso comum da vida
diária11.
As chamadas, por estarem localizadas no campo lingüístico, apresentam-se com uma
essência hegemônica, que etimologicamente significa dirigir, guiar, conduzir, pois permite à
empresa que as utilize, tanto de forma coercitiva, de forma simbólica, mas também quando o
faz pelo consenso, pela persuasão, uma vez que elas estão inseridas num sistema convincente
de idéias pelas quais se conquista a adesão até da classe dominada12.
10
SILVA, Tomaz T. da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo, p. 11-12.
BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade: tratado de sociologia do
conhecimento. Petrópolis:Vozes, 1985, p. 56-58, grifo dos autores.
12
ARANHA, Maria Lúcia de A.. História da Educação. 2.ed. São Paulo: Moderna, 1996, p. 174.
11
121
É numa trama lingüística que a empresa vai retro-alimentar-se, num processo cíclico em
que caracterizam as chamadas como um discurso dialético, uma vez que, evidenciam-se a luta
hegemônica, pois são apresentadas com uma faceta discursiva contraditória e instável, num
balançar constante de articulação e rearticulação de parâmetros delimitadores.
Além disso, a prática discursiva, a produção, a distribuição e o consumo
(como também a interpretação) de textos são uma faceta da luta hegemônica
que contribui em graus variados para a reprodução ou a transformação não
apenas da ordem de discurso existente (por exemplo, mediante a maneira
como os textos e as convenções prévias são articulados na produção textual),
mas também das relações sociais e assimétricas existentes13.
Segundo Diana Barros, discurso pode ser definido como sendo
[...], o plano do conteúdo do texto, que resulta da conversão, pelo sujeito da
enunciação, das estruturas sêmio-narrativas em estruturas discursivas. O
discurso é, assim a narrativa ‘enriquecida’ pelas opções do sujeito da
enunciação que assinalam os diferentes modos pelos quais a enunciação se
relaciona com o discurso que enuncia14.
Então, o discurso se torna o uso de linguagem como forma de prática social e não, como
atividade, puramente individual ou reflexo de variáveis situacionais.
Isso tem várias implicações. Primeiro, implica ser o discurso um modo de
ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e
especialmente sobre os outros, como também um modo de representação.
Trata-se de uma visão do uso de linguagem que se tornou familiar, embora
freqüentemente em termos individualistas, pela Filosofia lingüística e pela
Pragmática lingüística [...]. Segundo, implica uma relação dialética entre o
discurso e a estrutura social, existindo mais geralmente tal relação entre a
prática social e a estrutura social: a última é tanto uma condição como um
efeito da primeira. Por outro lado, o discurso é moldado e restringido pela
estrutura social no sentido mais amplo e em todos os níveis: pela classe e por
outras relações sócias em um nível societário, pelas relações específicas em
instituições particulares, como o direito ou a educação, por sistemas de
classificação, por várias normas e convenções, tanto de natureza discursiva
como não-discursiva, e assim por diante. Os eventos discursivos específicos
variam em sua determinação estrutural segundo o domínio social particular
ou o quadro institucional em que são gerados15.
O discurso das chamadas apresenta-se como sincrético, uma história em quadrinhos, um
filme, uma canção popular, pois reúne tanto textos lingüísticos - , indiferentemente se oral,
escrito, ou os dois simultaneamente, uma poesia, um romance, um editorial de jornal, uma
13
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social, p. 123-124.
BARROS, Diana Luz P. de. Teoria Semiótica do Texto. 4 ed. São Paulo: Ática, 2002, p.85, aspas da autora.
15
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social, p. 90-91.
14
122
oração, um discurso político, um sermão, uma aula, uma conversa de crianças, quanto como
um texto visual ou gestual, uma aquarela, uma gravura, uma dança.
“Um texto define-se de duas formas que se complementam: pela organização ou
estruturação que faz dele um ‘todo de sentido’, como objeto da comunicação, que se
estabelece entre um destinador e um destinatário”16. Ao possibilitarem isso simultaneamente,
mesmo que momentaneamente, perpassam pelas mais variadas concepções de mundo abrindo
caminho para que se possa amarrar, ligar os produtos e serviços da empresa ao contexto, o
qual lhe impõe um valor atual ao serem condicionadas por um núcleo significativo mais ou
menos estável e constante onde se ancoram as mais variadas atribuições que se queira dar17.
Ou seja, as chamadas possibilitam a ancoragem, que nada mais é que
[...] o procedimento semântico do discurso por meio de que o sujeito da
enunciação ‘concretiza’ os atores, os espaços e os tempos do discurso,
atando-os a pessoas, lugares e datas que seu destinatário reconhece como
‘reais’ ou ‘existentes’ e produzindo, assim, o efeito de sentido de realidade
ou de referente18.
Isso leva a entender que, embora possam ser utilizadas como elementos de
identificação, legitimação, as chamadas são limitadas pelo fator de contexto em que são
utilizadas, pois caso estivessem isoladas dele, ou, ainda, de determinadas situações, quase
nada significariam de maneira precisa, inequívoca. Assim, é fato que ao estarem inseridas na
reprodução da reconstrução da realidade, isso é, o que determina o valor/sentido delas, pois
situam-se
[...], numa ambivalência que lhe fixa, a cada vez e momentaneamente, o
valor. É o contexto que, a despeito da variedade de sentidos de que a palavra
seja suscetível, lhe impõe um valor ‘singular’: é o contexto também que a
liberta de todas as representações passadas, nela acumuladas pela memória, e
que lhe atribui um valor ‘atual’. Mas independentemente do emprego que
dela se faça, a palavra existe no espírito com todos os significados latentes e
virtuais, prontos a surgir e a se adaptarem ás circunstâncias que a evoquem’.
Assim, por mais condicionada que esteja a significação de uma palavra ao
seu contexto, sempre subsiste nela palavra, um núcleo significativo mais ou
16
BARROS, Diana Luz P. de. Teoria Semiótica do Texto, p. 7, aspas da autora.
GARCIA, Othon M. Comunicação em Prosa Moderna: aprenda a escrever, aprendendo a pensar. 15 ed. Rio
de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1992, p. 158.
18
BARROS, Diana Luz P. de. Teoria Semiótica do Texto, p. 84.
17
123
menos estável e constante, além de outros traços semânticos potenciais em
condições de se evidenciarem nos contextos em que ela apareça19.
De acordo com Garcia, contexto pode ser definido como o ambiente lingüístico onde se
acha a frase.
Todavia, outros autores preferem atribuir a esse termo sentido mais amplo,
incluindo nele o que Matoso Câmara chama de ‘situação’ (‘ambiente físicosocial onde a frase é enunciada’) e acrescentando ainda, alguns, o fator
‘experiência’. Existem assim três espécies de contexto: o verbal, o da
situação e o da experiência (do emissor e do receptor). Seja como for, é
usual o emprego do termo contexto com o sentido amplo de qualquer
ambiência em que se encontra a palavra20.
No caso do setor de rádio-difusão, em especial da televisão, os três tipos de contexto
estão imbricados, de forma que, não se pode excluir um deles para que se entenda o todo no
qual a empresa está inserida, pois este setor da economia apresenta-se com um paradoxo, que
refleti uma ambigüidade perante o próprio posicionamento de mercado, mediante o contexto,
uma vez que neste domínio há duas coisas indivisíveis ao mesmo tempo, pois é preciso que
haja uma interação entre aquilo que a empresa oferece entre produtos e serviços das imagens
estandardizadas, apesar de polissêmicas, e as condições de recepção que criam uma outra
polissemia, ligadas ao contexto cultural e político da recepção21.
Diante desta ambigüidade, a empresa necessita criar, construir e delimitar a ambiência
em que se dará o encontro dos diversos clientes que deve atender, de modo que a experiência,
como os textos que processa, deve ser parte integrante deste contexto. Nesse sentido, precisa
conquistar, superar o desafio de buscar e trazer para si todos aqueles que ela acredita que
possam se filiar à ela, pois há um antagonismo que caracteriza a questão do contexto que a
empresa televisiva está inserida, e que, portanto, a TV Globo deve buscar resolver não apenas
pela necessidade de demonstrar o que opera e processa/administra, resultando nos serviços e
produtos que disponibiliza, porém deve, obrigatoriamente, se quiser ser bem sucedida aos
19
GARCIA, Othon M. Comunicação em Prosa Moderna: aprenda a escrever, aprendendo a pensar, p. 158,
aspas do autor.
20
Ibid, p. 158, aspas do autor.
21
WOLTON, Dominique. Elogio do Grande Público: uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996,
p. 77.
124
intentos que almeja, ir além da argumentação pela persuasão, ela, a empresa,
obrigatoriamente, deve construir a verossimilhança, a plausibilidade pelo provável22.
Por que insistir no laço entre a imagem da televisão, o contexto de emissão e
de recepção, a organização das imagens numa grade de programas, a
igualdade e a confiança? Porque são essas características, e não apenas a
força de atração das imagens animadas, que explicam a sedução e o sucesso
da televisão. É essa ligação entre lógica estética, a produção de imagens e os
liames sociais inerentes a essa mesma produção e recepção de imagens que
caracteriza, até o momento, a televisão, e explica, sem dúvida, o seu sucesso.
É essa ligação que não levamos suficientemente em conta quando refletimos
sobre o futuro da televisão: a sedução das imagens e o seu sucesso são
inseparáveis de uma certa representação social e cultural. É nisso que o dado
técnico, a imagem, está de alguma forma dissociado de um dado
sociocultural, explicando, segundo pensamos, a unidade teórica fundamental
da televisão. Mas por que essa ligação entre a imagem de televisão e certas
condições sociais e culturais necessárias ao seu sucesso continua
imperceptível? Isso mereceria uma análise aprofundada que permitisse
escapar do discurso convencional sobre o impacto ‘não controlado’, que
sempre receamos, das imagens sobre ‘o público’. É portanto, no coração da
imagem, fator evidente de liberdade individual, que é preciso também buscar
o laço social23.
Esse laço entre a empresa televisiva e à sociedade, precisa ser construído por ela
própria. Para que isso ocorra, a própria TV Globo se coloca na posição de responsável, ao
assumir-se como agente ativo na dinâmica social. Ao alardear esta atividade, a empresa ganha
status para os indivíduos que enxergam nela um agente de transformação do cotidiano destes,
ainda que, seja mero reflexo de uma realidade social mais profunda, como, também, um
discurso representado idealizante, como fonte social, assim, as chamadas acabam por
caracterizar a TV Globo como sendo uma forma organizacional hegemônica, pois a sociedade
democrática liberal não se coloca isoladamente como tal, uma vez que não é a única forma
organizacional de poder predominante na sociedade contemporânea.
Há também os resíduos de uma forma anteriormente mais evidente em que
se atinge a dominação pela imposição inflexível de regras normas e
convenções. Isso parece corresponder a um modelo ‘código de discurso’,
que considera o discurso em termos da concretização de códigos com
molduras e classificações fortes e uma prática normativa altamente
arregimentada. Tal modelo contrasta com o que poderíamos chamar o
modelo ‘articulação’ de discurso [...], que corresponde à forma
organizacional hegemônica. Os modelos ‘código’ são altamente orientados
22
23
ROCCO, Maria Thereza F. A Linguagem Autoritária. São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 55.
WOLTON, Dominique. Elogio do Grande Público: uma teoria crítica da televisão, p. 72, aspas do autor.
125
para a instituição, enquanto os modelos ‘articulação’ são mais orientados
para o (a) cliente/público; [...]. Por outro lado, autores do pós-modernismo
sugerem uma forma organizacional emergente de poder que é bastante difícil
de apontar, mas que representa uma outra mudança na orientação
institucional associada a uma descentralização de poder explicitada e parece
ligar-se a um modelo ‘mosaico’ de discurso que caracteriza a prática
discursiva como uma constante rearticulação de elementos minimamente
restringidos. A prática discursiva que parece adequar-se a esse modelo foi
identificada como pós-moderna, e o exemplo mais claro é a publicidade24.
A TV Globo insere-se neste processo, incluindo, ela própria, no quadro institucional,
passando a caracterizar-se como uma empresa hegemônica de poder. Ao valer-se de um
modelo mosaico de discurso, a empresa, não só vai permitir a ela mesma rearticular os
inúmeros textos que processa, mas, é por este mesmo modelo-mosaico que a emissora
implementa, constituídos por elementos carregados numa certa dose de inflexibilidade de
regras, normas e convenções, provenientes, justamente de um domínio particular
da
experiência constituída e organizada a partir de si, que vai desenvolver uma constituição
metafórica dela mesma como um elemento potente na transformação não apenas do discurso,
mas, também, do pensamento e da prática, favorecendo e caracterizando-a como empresa
hegemônica nas interações que mantém. Assim, ela estrutura a própria forma de pensar e agir,
ao metaforizar-se neste discurso, ela influencia todos aqueles que, de alguma forma, buscam
ou, mantém interações com ela.
As metáforas penetram em todos os tipos de linguagem e em todos os tipos
de discurso, mesmo nos casos menos promissores, como o discurso
científico e técnico. Além disso, as metáforas não são apenas adornos
estilísticos superficiais do discurso. Quando nós significamos coisas por
meio de uma metáfora e não de outra, estamos construindo nossa realidade
de uma maneira e não de outra. As metáforas estruturam o modo como
pensamos e o modo como agimos, e nossos sistemas de crença, de uma
forma penetrante e fundamental. Algumas metáforas são tão profundamente
naturalizadas no interior de uma cultura particular que as pessoas não apenas
deixam de percebê-las na maior parte do tempo, como consideram
extremamente difícil escapar delas no seu discurso, pensamento ou ação,
mesmo quando se chama sua atenção para isso25.
24
25
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social, p. 125-126.
Ibid, p. 241.
126
As chamadas compatibilizam a inserção da própria empresa na reconstrução da
realidade ao favorecer e criar uma delimitação do espaço, da ambiência, do contexto, para que
os indivíduos heterogêneos que se filiam à empresa, possam reconhecer-se no espaço do
auditório dela, e desta maneira, se colocarem numa certa posição de lugares dentro deste
auditório, acreditando e passando a entender a empresa como necessária ao dia a dia.
Ora, para se colocar neste papel por cota ou, de rotina, a empresa vai desenvolver um
modelo de ação pré-estabelecido, desenvolvido durante uma representação, e que pode
apresentar ou utilizar em outras ocasiões.
Essas rotinas constituem modelo de comportamento preestabelecidos que o
diretor de uma empresa adota em uma reunião com os empregados, que o
juiz aplica em uma seção do tribunal, que a enfermeira segue nos contatos
com um doente, que o pai emprega durante uma refeição em família...
Indissociável da influência mútua que os parceiros desejam exercer uns
sobre os outros, a apresentação de si é tributária dos papeias sociais e dos
dados situacionais. Uma vez que é inerente a toda troca verbal e submetida a
uma regulamentação sociocultural, ela supera largamente a intencionalidade
do sujeito que fala e age26.
Esta troca verbal não é só tributária dos papéis sociais e dos dados situacionais, mas vai
encontrar nas constantes pesquisas de mercado, um referencial que a empresa possa, ela
mesma, guiar e retro-alimentar-se neste processo. Assim, vai guiar, conduzir, buscar
gerenciar, de certa maneira, todos aqueles que se encontram no recinto dela, nas posições que
ocupam nos limites deste auditório e nas interações que mantém nele. Este discurso das
chamadas é uma extensão de um discurso de gerenciamento organizacional do domínio das
organizações para o domínio da pessoa27.
Para atuar neste espaço, a empresa precisa argumentar, persuadir para convencer e,
simultaneamente, gerenciar os sujeitos vinculados à ela. Para isso, é preciso compreender que
a argumentação está ligada a um espaço, a um lugar, onde se faz necessário delimitar o
próprio ambiente ao qual tudo que é operado e processado, resultando em serviços e produtos,
26
AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de Si no Discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005, p.1213.
27
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social, p. 239.
127
deva ser vertido a um destino, a um mercado, a um auditório no qual a empresa poderá
persuadir, de forma convincente, àqueles aos quais ela, a TV Globo, se propõe obter a adesão
de todo ser racional, sobremaneira e, principalmente, daqueles que se encontram além das
fronteiras internas da própria empresa, para isto, a empresa leva em conta a relação dos
indivíduos situados no âmbito externo da emissora, ou seja, aqueles que estão no campo
social e mercado.
Embora esse indivíduo (pela relação física que mantém com o veículo e
também em função da natureza e tipo de estruturação da mensagem verbal
que lhe é dirigida) tenha a ilusão de que é o sujeito único, receptor pessoal
da mensagem individualizada, na verdade sua real condição é a mesma
daquele grupo indeterminado (assistindo ao programa ao vivo ou não, em
recintos fechados maiores ou menores); é a mesma daquela multidão
informe, daquela massa receptora a quem se dirige o verbal da TV situações que se constituem, tanto num caso, quanto no outro, em formas de
auditório particular, no qual importa não o número de pessoas, mas o tipo
de mensagem, calcada no diálogo, e sem apresentar um caráter universal. Há
quase que uma ‘inércia’ de ordem psicológica nos auditórios particulares,
conforme ensina Perelman. E o espectador da TV se define como auditório
particular, um tipo de auditório no qual o processo de persuasão ocorre pela
presença de pseudodiálogos entre o orador (locutor) e o interlocutor
(espectador) a quem esse locutor se dirige. Nesses termos, de acordo com
Perelman, e considerando pertinente a definição do auditório da TV
enquanto ‘auditório particular’ iremos verificar que a argumentação do
verbal na TV será muito mais de natureza persuasiva28.
Chäim Perelman29 “conceitua auditório enquanto um grupo ou grupos de pessoas às
quais se dirige a argumentação, cujo objetivo é basicamente o de conseguir adesão, de
convencer ou de persuadir tais pessoas em face de uma determinada idéia ou tese”30.
Idéias e teses que podem ser identificadas e localizadas nas chamadas, uma vez que por
elas, mesmo que não se apague de vez a polissemia das imagens e da recepção, é por elas que
se facilita a ligação entre si das questões e relações entre estética, rotinas de produção e
variáveis sociológicas (político-cultural), as quais implicam diretamente sobre o campo de
atuação das empresas televisivas. As chamadas possibilitam aglutinar num único espaço, além
28
ROCCO, Maria Thereza F. A Linguagem Autoritária, p. 56, aspas e grifo da autora.
De acordo com Rocco, e, seguindo a autora, como são muitas as referências bibliográficas aos dois autores da
Nova Retórica, Chäim Perelman e Olbrechts-Tyteca, Traité de l’ Argumentation - La nouvelle rhétorique, se
fará alusão apenas, ao primeiro nome dos teóricos, no caso, Chäim Perelman. In: ROCCO, Maria Thereza F. A
Linguagem autoritária, p.53.
30
Ibid, p. 55, grifo da autora.
29
128
dos componentes e elementos substanciais do emprego, tanto da sintaxe, como dos diferentes
níveis da descrição lingüística da reconstrução da realidade, delimitar o espaço no próprio
quadro institucional e, aí sim, atuar num determinado espaço onde há associação dos textos,
empresa televisiva (mercado) e campo social, dando lhe um caráter provável ao que
argumenta como reconstrução de uma determinada realidade. Contudo, a empresa vai agir
para que haja adesão ao auditório particular dela e a uma determinada idéia, a um discurso,
sendo que a formação do próprio auditório, acaba por se constituir em um objetivo, também,
primeiro, em função do qual se desenvolve e dirige todo o processo argumentativo que
repousa no tripé auditório, discurso, orador, de vez que não há razão para a existência de um
orador e seu discurso se não houver um auditório a quem se dirigem ambos31.
Na televisão, a argumentação é apresentada com características do gênero epidítico, o
que vai exigir do orador (TV Globo), simultaneamente a este processo de argumentar, juízos
vários sobre valores os mais diversos. De acordo com Perelman, o que mais contribui para o
sucesso da argumentação é o modo de hierarquizar tais valores, a ponto de acabar sendo mais
importante, para um auditório, a forma de hierarquização que propriamente o valor
veiculado32.
No tocante à argumentação, outros apoios fazem-se necessários para o desenvolvimento
do próprio processo argumentativo, como a noção de lugares, que amplia o enfoque
conceitual de lugar com uma visão classificatória e sedimentada, que na concepção
contemporânea de lugares os focaliza como espécies de suportes, de pressupostos que
sustentam o encaminhamento desta ou daquela natureza de argumentação. O que leva as
dicotomias de lugares, a privilegiar determinadas situações sociais, conforme o recorte do
tempo e da ideologia vigente, como por exemplo, a idéia de durável, lugar ligado ao
31
32
ROCCO, Maria Thereza F. A Linguagem Autoritária, p. 55.
Ibid, p. 58.
129
classicismo e considerado qualitativamente superior, se oporia o precário, enquanto fugaz, e
que, segundo Perelman, é um lugar valorizado pelo romantismo33.
As chamadas, então, num primeiro momento, tornam-se fundamentais para que isto
ocorra, pois vão permitir posicionar cada filiado de forma classificatória (quantidade),
exclusividade (qualidade) e, como suporte (meio), para que as hierarquizações que almeja
sejam potencializadas com mais sucesso ao privilegiar determinadas situações conforme a
oposição existente dentro dos próprios auditórios particulares, uns, especializados, e outros,
marcados pelo senso comum. Esse senso comum consiste numa série de crenças admitidas no
seio de uma sociedade determinada, sendo que seus membros as presumem como sendo
partilhadas por todo o ser racional.
Além desses ‘lugares’, outros mais aparecem na categorização da Nova
Retórica: os ‘lugares de quantidade’, em que se tem a prevalência do muito
sobre o pouco, bem como a passagem quase automática do normal ao
normativo, criando-se assim uma regra a partir de uma característica bastante
disseminada. Quanto aos outros ‘lugares’, Perelman define-os como ‘lugares
de qualidade’. Em oposição aos anteriormente descritos, os ‘lugares de
qualidade’ desvalorizam o número, o quantitativo, em favor do único, valor
que será uma das pedras de toque dos procedimentos argumentativopersuasivos. Evidentemente, o privilégio e a escolha de qualquer tipo de
‘lugares’ serão efetivados em função de certas visões de mundo, de padrões
eleitos, de um tempo histórico, de uma determinada ideologia. Assim, por
exemplo, as relações velho/novo; durável/momentâneo; rico/pobre, entre
outras, serão caracterizadas e valorizadas diversamente, como aliás já foram
em períodos anteriores da história34.
Ao manter esta estrutura, na forma de pensar e agir, constantemente, a emissora carioca
esteja demarcando, delimitando o próprio espaço dela e daqueles que se encontram neste
recinto, neste auditório. É por isso que as chamadas se tornam plausíveis, pois, além de
permitirem identificar o marco, a fronteira entre o campo social e mercado (esfera externa),
bem como, as práticas rotineiras da administração (âmbito interno) dela própria e a rede que a
constitui, elas estão, todo momento, marcando as posições, os lugares de seus filiados. Ao
tomar as chamadas como a representação da cultura da empresa, elas passam a serem
33
34
ROCCO, Maria Thereza F. A Linguagem Autoritária, p. 58.
Ibid, p. 58-59, aspas e grifos da autora.
130
entendidas como instrumento de dominação de indivíduos, grupos, coletivos, tanto na esfera
pública, como daqueles nos limites internos dela, ou melhor, daqueles que se enxergam ali,
cada qual em sua posição, em seu devido lugar.
Para tal, a empresa precisa arquitetar o espaço dela própria rotineiramente, onde poderá
ser vista e lembrada num determinado cenário, numa paisagem. Este auditório tem figuração,
ambiente. A empresa então ganha, pela linguagem, uma face, que nada mais é que:
[...] ‘o valor social positivo que dado indivíduo efetivamente reivindica por
meio da linha de ação que os outros supõem que ele adotou durante um
contato particular’. A face é uma imagem do eu ‘delineada segundo certos
atributos sociais aprovados e, apesar disso, partilháveis, uma vez que
podemos, por exemplo, causar uma boa imagem de nossa profissão ou de
nossa fé quando causamos uma boa imagem de nós mesmos’. KerbratOrecchioni redefine sucintamente a noção goffmaniana de face como ‘o
conjunto das imagens valorizantes que, durante a interação, tentamos
construir de nós mesmos e impor aos outros’. O essencial aqui é o face-work,
ou figuração, a saber, ‘tudo o que uma pessoa executa para que suas ações
não a façam perder a face para ninguém - aí incluída ela própria. [...]. Em
síntese, Kerbrat-Orecchioni retoma o princípio de gerenciamento de faces
para mostrar como ele governa, na língua, os fatos estruturais e as formas
convencionais. A análise conversacional une, assim, o estudo dos fenômenos
de língua
propriamente ditos (morfemas especializados, tipos de
modalizadores, enálages de pessoas: a gente ou nós por eu e você etc.) às
interações no interior das quais a imagem que o locutor constrói de si e do
outro é capital35.
As chamadas são as cortinas deste auditório. Elas separam o palco, cenário e coxias da
platéia, os clientes (telespectadores, agências de publicidade e anunciantes), elas representam
essa dualidade, elas são a aresta entre estes dois lados, já que, por elas, se tem acesso tanto aos
fatores contextuais ou sócio-históricos, como, também, permitem acessar o lado interno onde
se dá a produção, a fabricação de sentido (objeto de significação), que nada mais é que o
ambiente dela, ou seja, a empresa. São pelas chamadas que a emissora (sujeito) enuncia,
concretiza seus atores (filiados internos e externos) no tempo, amarrando-os, ao próprio
espaço da TV Globo.
É assim que a empresa ‘se vê’, tanto quanto é vista. Como esfera da
sociedade que funciona sob a égide de normas interiorizadas, onde deve
reinar um consenso perfeito, onde se empreende e se leva adiante uma obra
35
AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos, p. 13-14, aspas e grifos da autora.
131
coletiva. Mas a empresa se propõe mais. Ela propõe uma relação social
formadora e socializadora dos indivíduos, de acordo com um padrão
específico de comportamentos, valores, leis, cultura, estabelecidos por ela, a
partir do qual pretende perpetuar um determinado estado. Ela pretende
desempenhar o papel de regulador social global. Para isso, a empresa joga
com a ‘alteridade’, com a aceitação do outro como se fosse sujeito pensante e
autônomo. Ela joga com a entrada do indivíduo em um ‘universo específico’
de valores, criando normas particulares, sistemas de referência, mitos, e uma
ideologia que serve de lei organizadora, não apenas da vida física material e
social do indivíduo que dela participa, dentro e fora da empresa, mas,
também, e principalmente, da vida mental de tais indivíduos A empresa vai,
também, favorecer a manifestação das pulsões sob a condição de que sejam
metaforizadas e metabolizadas em desejos socialmente aceitáveis para ela.
Ela vai valorizar o desdobramento de fantasias e de projeções imaginárias,
mas somente na medida em que tais fantasias e projeções imaginárias
estejam voltadas à consecução de seus objetivos. Do mesmo modo, ela vai
‘trabalhar’ com símbolos que têm a função de unificação, assegurando o
sucesso de sua ‘penetração’, não apenas no consciente do indivíduo, mas
principalmente em seu inconsciente, já que é aí que garantir-se-á sua
permanência no mundo. Por isso, empresas [...] ‘levam a sério’ a metáfora
do bem comum, da criação do ‘bem’ e da ‘moral’, de valores etc36.
Quando a TV Globo exprime, e suas afiliadas reproduzem, “Globo, a gente se vê por
aqui!” é neste momento que ela está demarcando e exprimindo, concomitantemente, o
auditório (virtual), bem como, passa a argumentar-persuadir pelo discurso que adota e
dissemina. Porém, ao tempo que delimita este espaço dela, este tipo de slogan, considerado
aqui como a chamada matriz, a empresa não só revela os meios que se vale para persuadir,
mas, é ao fazer assim que institui e especifica a própria autoridade da empresa (orador) sob
seus filiados.
Com isso, a empresa expressa, nitidamente, racionalmente a autoridade e superioridade
dela sob todos os filiados que estão no auditório demarcado por ela mesma. Logo, Globo, a
gente se vê por aqui, pode ser identificado como uma expressão variante e proveniente do
campo sócio-cultural e político que engendra práticas de relações de poder e autoritarismo
intrínsecos ao processo histórico brasileiro. Por isso, quando a empresa declara, Globo, a
gente se vê por aqui, ela remete todos os filiados a uma vertente indesejável da cultura
brasileira que simboliza duas concepções da realidade nacional. “Uma delas é a visão do
36
FREDDO, Antonio Carlos M. A Ideologia em Ato: a filiação imaginária do sujeito. Santos: Leopoldianum,
2004, p. 175-177, aspas e grifo do autor.
132
mundo como foco de integração e cordialidade, a outra é a visão do mundo como feito de
categorias exclusivas, postas numa escala de respeitos e de deferências”37.
Neste sentido, a empresa reúne e hierarquiza os indivíduos heterogêneos dispersos no
campo social e mercado, já que quando exprime (tomando tal declaração pela perspectiva
pós-modernista, e considerando-a como uma das variantes daquilo que Da Matta identificou
como sendo o Você sabe com quem está falando?) Globo, a gente se vê por aqui, torna-se um
dos equivalentes de Você sabe com que está falando?: Quem você pensa que é?; Onde você
pensa que está?; Recolha-se á sua insignificância!; Mais amor e menos confiança; Vê se te
enxerga!; Você não conhece o seu lugar?; Veja se me respeita!; Será que você não tem
vergonha na cara?; Mais respeito!; e assim por diante; pois tais expressões, são exemplos (no
caso, Globo, a gente se vê por aqui!) que podem realizar o mesmo ato expressivo e consciente
que, na sociedade brasileira, parece fundamental para o estabelecimento (ou restabelecimento)
da ordem e da hierarquia38.
Para Da Matta, O você sabe com que está falando? (que no caso aqui, é representado
por seu equivalente, Globo: a gente se vê por aqui!), expressa nada mais que as formas e
contornos dos ritos autoritários entre situações de conflito e de crises que caracterizam a
sociedade brasileira e que, delimitam o posicionamento entre as camadas dominantes e
vencedoras que sempre adotam a perspectiva da solidariedade, ao passo que os dissidentes e
dominados assumem sistematicamente a posição de revelar o conflito, a crise e a violência do
sistema social brasileiro.
Noto, inicialmente, que a maioria dessas expressões assume uma forma
interrogativa, o que no Brasil, surge como um modo evidente ao cordial porque muito positivo - de interação social. Em nossa sociedade, a
indagação está ligada ao inquérito, forma de processamento jurídico
acionado quando há uma suspeita de crime ou pecado de modo que a
pergunta deve ser evitada. Sem a interrogação, a vida social parece correr
dentro do seu fluxo normal, de modo que é possível postular uma provável
37
DA MATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 5. ed. Rio
de Janeiro: Guanabara, 1990, p. 148-151.
38
Ibid, 159.
133
ligação entre o temor das formas interrogativas e as sociedades preocupadas
com a hierarquia, onde normalmente tudo deve estar no seu lugar. A
pergunta em tais sistemas pode configurar uma tentativa de tudo
revolucionar, detendo (ou suspendendo) a rotina santificada do sistema39.
Em parte, isso explica, o fato das chamadas não serem usadas na forma interrogativa.
Os questionamentos, quando ocorrem, são delegados ao departamento de jornalismo da
empresa. Ali ganham legitimidade, pois, afinal, a sociedade “Sabe com quem está falando?”!
Assim, as chamadas desempenham uma função, também, que é a de permitir a separação
entre a programação voltada para a diversão, lazer, entretenimento e informação já que são
[...] a distinção muito nítida entre que se depreende da informação e o que se
depreende do resto dos programas, pois a informação é aquilo que se
relaciona com o mundo objetivo tal qual e, mobilizando o cidadão como
espectador, enquanto o resto dos programas - ficção, esporte,
documentários, jogos - solicita-o mais como espectador. A informação é
aquilo que obriga o espectador a ver o mundo e a se interessar, por pouco
que seja, pela marcha da historiada qual ele está, a maior parte do tempo,
excluído como protagonista, mas pela qual ele é responsável devido a seu
status de cidadão de uma democracia de massa40.
Isso não quer dizer que a empresa vá banir o uso de chamadas que utilizem
questionamentos, é certo que vai restringi-las, mas, quando o fizer, será de forma que remeta
ao próprio ambiente, ao próprio auditório dela. Jamais na possibilidade de questionar a
autoridade dela e do sistema em que lhe garante uma posição de poder hegemônico no quadro
institucional. Isso significa que quando a empresa trabalha na modalidade interrogativa, trata
o questionamento de forma em que não dá respostas objetivas a questões outras ignoradas, de
forma astuta e apta “procura levar o interlocutor, pelos processos persuasórios, a aderir às
idéias do narrador, do orador e a dar certas respostas que quase nunca são próprias desse
interlocutor, configurando-se antes em repostas induzidas pela habilidade de questionamento
do orador”41.
É possível, pois, que o uso do ‘Você sabe com quem está falando?’ tenha
ficado muito mais comum nessas eras de mudança social e de
‘desenvolvimento’ justamente porque hoje não se tem mais a antiga e ‘boa
39
DA MATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro, p. 148.
WOLTON, Dominique. Elogio do Grande Público: uma teoria crítica da televisão, p. 69-70.
41
ROCCO, Maria Thereza F. A Linguagem Autoritária, p. 64.
40
134
consciência’ de lugar. Ou melhor, hoje se usa mais o ‘Você sabe com quem
está falando?’ justamente porque a totalidade do sistema fundado no
‘respeito’, na ‘honra’, no ‘favor’ e na ‘consideração’ está a todo momento
sendo ameaçada pelo eixo do econômico e da legislação - esses mecanismos
universalizantes - que a velocidade dos meios de comunicação de massa
torna cada vez mais ‘legiferante’. Na medida em que as marcas de posição e
hierarquização tradicional, como a bengala, as roupas de linho branco, os
gestos e maneiras, o anel de grau e a caneta-tinteiro no bolso de fora do
paletó se dissolvem, incrementa-se imediatamente o uso da expressão
separadora de posições sociais para que o igualitarismo formal e legal, mas
evidentemente cambaleante na prática social, possa ficar submetido a outras
de hierarquização social42.
O próprio Da Matta admite que o Você sabe com quem está falando?, seja uma
expressão de uso corrente nos inúmeros contextos da vida social do brasileiro, já que, não é
exclusivo de uma categoria, grupo, classe ou segmento social.
Muito ao contrário, a expressão parece mesmo permitir a identificação por
meio de projeção social, quando o inferior dela se utiliza para assumir a
posição de seu patrão ou comandante, agindo em certas circunstâncias como
se fosse o próprio superior e assim usando os laços de subordinação para
inferiorizar um outro indivíduo que, normalmente (isto é, pelos critérios
econômicos gerais), seria igual43.
Inclusive, afirma o autor, isto é um indicativo da perplexidade de uma estrutura social
onde a hierarquia parece estar baseada na intimidade social. Embora, diz Da Matta, tais
relações estejam demarcadas a partir do eixo econômico do trabalho, é evidente que há uma
estrutura social, onde as classes sociais também se comunicam por meio de um sistema de
relações entrecortadas. Conforme Da Matta, em tais situações, inibe-se, mesmo que
parcialmente, os conflitos e o sistema de diferenciação social e político fundado na dimensão
econômica do sistema.
Numa sociedade assim constituída, onde as relações de trabalho somam-se a
um conjunto de laços pessoais regidos por valores tais como a intimidade, a
consideração, o favor, o respeito e apreciações éticas e estéticas
generalizantes (como as categorias de limpo, bem-apessoado, correto, sagaz,
bom, de fino trato etc), existem possibilidades para uma hierarquização
contínua e múltipla de todas as posições do sistema, mesmo quando elas são
radicalmente diferenciadas ou formalmente idênticas. Desse modo, é
possível compensar e complementar diferenciações sociais radicais e
conflituosas, como a de patrão/empregado, operando-se por cima do eixo
42
DA MATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro, p. 162,
aspas do autor.
43
Ibid, p. 155-156.
135
econômico (que é o eixo efetivamente básico) uma classificação de caráter
moral que permite dividir os patrões em bons e maus, felizes e infelizes que
consideram ou não consideram seus empregados, que são limpos ou sujos
etc. Tais considerações, embora possam parecer etéreas para o
macroanalista, parecem-me fundamentais se deseja realmente aprender a
operação do sistema, abandonando sua abordagem meramente formal ou, o
que é, pior, formalista44.
Da Matta chega a esta constatação, ao levar em consideração um tipo de classificação
social baseada em múltiplos eixos, uma vez que permite a compensação e busca de
complementaridade dos extremos da escala hierarquizada da sociedade. Segundo o sociólogo,
é justamente por se levar em conta esta tipologia que se dá, igualmente a operação inversa,
isto é, a diferenciação contínua e sistemática dos iguais, e que proporciona identificar, com
graus de sucesso variáveis, a manutenção de um esqueleto hierárquico e complementar que
convive com os ideais igualitários e complica a percepção do modo de operar do sistema.
Como resultado, Da Matta vê que o subterfúgio do uso do Você sabe com quem está falando?,
ou aqui, no caso, Globo, a gente se vê por aqui!, é o resultado de uma prática das relações
sociais que, se iguala num plano, hierarquiza no outro, o que impedi certamente a tomada de
consciência social horizontal.
Se o critério econômico é determinante do padrão de vida, ele não é de modo
algum determinante das relações pessoais (e morais). É, pois, muito mais
fácil a identificação com o superior do que com o igual, geralmente cercado
pelos medos da inveja e da competição, o que, entre nós, dificulta a
formação de éticas horizontais. Diante disso, diria que, no Brasil, vivemos
certamente mais a ideologia das corporações de ofício e irmandades
religiosas, com sua ética de identidades e lealdade verticais, do que as éticas
horizontais que chegaram com o advento do capitalismo ao mundo ocidental
e à nossa sociedade. O ‘Você sabe com quem está falando?’, então, por
chamar a atenção para o domínio básico da pessoa (e das relações pessoais),
em contraste com o domínio das relações impessoais dadas pelas leis e
regulamentos gerais, acaba por ser uma fórmula de uso pessoal,
desvinculada de camadas ou posições economicamente demarcadas. Todos
têm o direito de se utilizar do ‘Você sabe com quem está falando?’, e mais,
sempre haverá alguém no sistema pronto a recebê-lo (porque é inferior) e
pronto a usá-lo (porque é superior). Aliás, tudo indica que uma das razões
sociais do ritual de separação em estudo é precisamente o de permitir e
legitimar a existência de um nível de relações sociais com foco na pessoa e
nos eixos e dimensões deixados necessariamente de lado pela universalidade
classificatória da economia, dos decretos e dos regulamentos. O ‘Você sabe
44
DA MATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro, p. 156,
grifos do autor.
136
com quem está falando?’ - e podemos dizer isso sem receio de cometer um
curto-circuito sociológico - é um instrumento de uma sociedade onde as
relações pessoais formam o núcleo daquilo que nós chamamos de
‘moralidade’ (ou ‘esfera moral’), e tem um enorme peso no jogo vivo do
sistema, sempre ocupando os espaços que as leis do Estado e da economia
não penetram. A fórmula ‘Você sabe com quem está falando?’ é assim, uma
função da dimensão hierarquizadora e da patronagem que permeia nossas
relações diferenciais e permite, em conseqüência, o estabelecimento de elos
personalizados em atividades basicamente impessoais45.
Ao utilizar-se da expressão Você sabe com quem está falando? em uma de suas
derivações, no caso, Globo, a gente se vê por aqui!, a empresa, não só passa a instituir uma
hierarquização, ao tomar todos que se encontram no auditório dela como subordinados seus,
em relação à carga de moralidade com relação à cultura da firma, mas vai, por tabela, limitar e
negar a todos aqueles que se filiam a ela, em saber, realmente, com quem se está falando, uma
vez que se por um lado, sabe-se que é a com a TV Globo e os nós da rede, mas,
paralelamente, por outro, se impede que o interlocutor deixe de saber com quem, ela, a
empresa, realmente está interagindo46, nas relações que mantém (no caso, com o Estado,
grupos políticos e econômicos), tornando-as inacessíveis ao próprio auditório e indivíduos
que adentram neste ambiente da emissora. Tomada pelo âmbito interno, a empresa declara aos
funcionários que estes não precisam saber o que o patrão faz ou, com quem anda.
Empresas do setor de mídia eletrônica, como é o caso de emissoras televisivas, utilizemse do recurso à linguagem coloquial, para disseminar os discursos que processam. Na TV
Globo, em especial, isto é levado ao extremo, pois, os encarregados da emissora,
principalmente os envolvidos com a produção cultural, mais precisamente jornalistas e
artistas, nas suas atividades rotineiras, são instruídos e exigidos para que mantenham uma
dinâmica discursiva de cunho intimista, amistosa e cordial, como se fossem todos integrantes
de um único grupo (funcionários e clientes), já que num descuido, podem demonstrar que a
baixa afinidade com uma proposição pode expressar falta de poder, e não falta de convicção
45
DA MATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro, p. 158159.
46
Ibid, p. 160.
137
ou, conhecimento, e aquilo que pode ser reivindicado como conhecimento (e, portanto, a
expressão de alta afinidade com uma proposição) depende de relações de poder47.
A empresa procede assim para manter um laço de intimidade, já que ela institui deste
modo, tanto a própria autoridade (hierarquização), como a dominação, proporcionando-lhe
contornar a relação comercial que está baseada no eixo econômico. Deste modo, implementa
uma hierarquização e elos personalizados em suas atividades puramente comerciais.
Ela propõe a sujeição à uma imagem idealizada da empresa, que comporta
determinados preceitos de comportamentos esperados de todos, com vistas à
consecução de objetivos pré-determinados pela alta direção. Por isso a fala
do dirigente está inserida em um contexto de ações estratégicas onde sua
(atu)ação está orientada para a consecução dos fins da empresa. Para tal, atua
de modo a influenciar as decisões do subordinado para que sejam,
efetivamente, aquelas desejadas na empresa48.
Subordinado pode ser definido como aquele indivíduo que, na cadeia escalar, está
submetido à autoridade de um superior hierárquico, à autoridade desse dirigente49.
Dirigente pode ser entendido como
aquele indivíduo encarregado de uma organização formal ou de uma de suas
sub-unidades. Dirigente é aquele que ocupa um cargo executivo de baixa,
média ou alta hierarquia de uma empresa (que podemos ver, por sua vez,
como qualquer estrutura formalmente organizada com a finalidade declarada
de produzir ou distribuir um bem de consumo ou de produção, ou de prestar
um serviço visando lucro), e que, de algum modo, a representa. Ele detém,
na empresa, o poder político e decisório, e a controla. Quem é esse
indivíduo?ele ocupa, de modo geral, os cargos mais conhecidos, ente nós:
chefia, gerência, diretoria, superintendência, presidência50.
A chamada, Globo, a gente se vê por aqui!, é o lócus, a delimitação do espaço da
empresa e o reposicionamento dos filiados neste espaço, cada qual em seu lugar. A emissora
usa esta chamada como um referencial que vai permitir ancorar as qualidades deste eu dela e
demonstrar sua própria ação onde vai lidar com os tipos de processos que são codificados em
orações e com os tipos de participantes envolvidos (participantes aqui significa elementos em
orações). Isso significa que, esta chamada matriz, envolve os dois tipos principais dos
47
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social, p. 201.
FREDDO, Antonio Carlos M. A Ideologia em Ato: a filiação imaginária do sujeito, p. 80.
49
Ibid, p. 69.
50
Ibid, p. 69.
48
138
processos relacionais, onde o verbo marca uma relação (ser, ter, torna-se) entre os
participantes, e processos de ação, onde um agente age em direção a um objetivo51.
Mesmo que e, embora, parte do espaço que ocupa seja público, a empresa o considera
como sendo de sua extensão, como particular, uma vez que possui concessão para atuar neste
ambiente, a TV Globo se vê obrigada então, se deseja obter sucesso naquilo que almeja,
inserir-se, ela própria, neste recinto público, por isso, vai sinalizar para todos os indivíduos
heterogêneos que se filiam a ela (âmbito interno e externo) que estão num espaço privado,
particular, estão inseridos nela, fazem parte dela.
A TV Globo inscreve-se neste mesmo discurso, neste quadro figurativo, numa relação
de dependência mútua. As chamadas tornam-se a representação da própria empresa no quadro
institucional, ou seja, a totalidade da atividade de determinado indivíduo, em cada ocasião,
realizada com o objetivo de influenciar de certa maneira um dos participantes52.
Atuar sobre um indivíduo buscando antecipar e influenciar suas decisões: a
isto se pode denominar, [...] na linha de pensamento de Habermas, de ação
estratégica. Para o autor, uma ação orientada ao êxito chama-se de
estratégica quando ela é considerada de acordo com a observância de regras
de escolha racional, e avaliado o grau de eficiência obtido na tentativa de
influenciar as decisões de outro sujeito. A ação estratégica se aplica às ações
sociais em que os indivíduos se regem por regras de escolha racional,
levando em conta as conseqüências que podem ter nas decisões de um outro
sujeito. Isso significa dizer que, no cálculo que um indivíduo faz de seu
próprio êxito, há uma expectativa quanto às decisões de, pelo menos, um
outro indivíduo que também atua, em algum grau, com vistas a realização de
seus próprios propósitos53.
Objetivo este que parte de uma estratégia delineada na e pela cúpula da empresa que ao
utilizar a linguagem como um meio, influencia todos aqueles que se encontram no auditório
dela (os filiados), os quais devem ser guiados, de forma sutil, para que desempenhem,
instrumentalizem uma ação em que a empresa seja a beneficiada.
De acordo com Jürgen Habermas,
51
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social, p. 221.
AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de Si no Discurso: a construção do ethos, p. 11-12.
53
FREDDO, Antonio Carlos M. A Ideologia em Ato: a filiação imaginária do sujeito, p. 46.
52
139
chama-se ação instrumental a uma ação orientada ao êxito, quando
considerada sob o aspecto da observância de regras técnicas de ação e
avaliado seu grau de eficácia na intervenção em um dado estado físico
pertencente ao mundo objetivo, enquanto considerado como a totalidade dos
estados de coisas existentes, ou que podem apresentar-se, ou serem
produzidos, mediante uma adequada intervenção do indivíduo54.
Para entender as chamadas e as implicações que recaem sobre a empresa, faz se
necessário ir além do aspecto do cálculo utilitário de alternativas de ação, maximixação da
utilidade ou, ainda, da aplicação de técnicas.
Diz Habermas que as ‘interações estratégicas também são vistas, de modo
geral, como lingüisticamente mediadas; mas, dentro desse modelo, os atos de
fala mesmo são assemelhados a ações orientadas ao êxito. Pois, para sujeitos
que agem estrategicamente, que conduzem diretamente a realização de seus
planos de ação, a comunicação lingüística é um meio como outro qualquer;
eles se servem da linguagem por causa de efeitos perlocucionários’55.
A empresa vai jogar com as chamadas entre o ambiente externo e interno sempre num
sentido inversamente proporcional, implementando, gerenciando e mantendo, de uma só vez,
a hierarquização, a autoridade e o domínio sobre, tanto daqueles que se filiam por dentro,
como por fora, tomando todos ali como subordinados de seus dirigentes ou, colocando estes,
em posição hierárquica de inferioridade no ambiente dela. Quando se fala inversamente
proporcional, entende-se que a empresa se coloca como intermediária entre os funcionários e
os clientes, direcionando uns aos outros, e, vice-versa, ao tomar a todos que se encontram no
espaço dela, como subordinados de seus dirigentes. Isso se dá pelo fato de haver um espaço
vago entre o locutor e o alocutário e vice-versa, na troca de papéis que se instaura a partir de
um diálogo, que corresponde à unidade mínima de comunicação, de vez que não há ato verbal
sem interlocutor (mesmo virtual), logo, as chamadas vão intervalar este vazio existente56.
As chamadas tornam-se uma ligação a um algo mais. Elas são na realidade um elo entre
a própria administração e a prática organizacional da TV Globo, uma vez que por elas se
direcionam, inculcam nos indivíduos (filiados) uma posição ou função.
54
FREDDO, Antonio Carlos M. A Ideologia em Ato: a filiação imaginária do sujeito, p. 43-44, aspas e grifo do
autor.
55
Ibid, p. 75-76, aspas e grifo do autor.
56
ROCCO, Maria Thereza F. A Linguagem Autoritária, p. 82.
140
Tal afirmação se dá, baseada a partir da própria Teoria Administrativa, já que para esta
há a necessidade que o indivíduo seja guiado, seja conduzido, seja motivado. E nesse sentido
de um algo mais além do recrutamento, seleção e admissão que a teoria administrativa afirma
que o dirigente deve estar preparado, para inculcar nos subordinados, uma série de conceitos e
atitudes para que estes encarem da maneira desejada uma determinada atividade, formando no
subordinado, comportamentos considerados adequados às atividades da empresa e que
facilitem a execução eficiente das tarefas ou papéis que vão suprir as necessidades da própria
empresa indo de encontro aos objetivos traçados pelos dirigentes.
Em outras palavras, ‘o bom administrador procurará deliberadamente criar
nos subordinados uma atitude capaz de conduzi-los à execução das
atividades da maneira desejada’. [...] Propõe-se, aí, uma nova identidade do
sujeito: um sujeito que se identifica com a imagem idealizada da empresa.
Nessa ‘imagem’ estão embutidos comportamentos que ocultam hábitos,
atitudes, valores, crenças, que propõem uma mudança de personalidade no
indivíduo. Com a ‘construção’ de uma imagem idealizada ..., que vai ser
‘inculcada’ inconscientemente pelo sujeito, espera-se sua adequação aos
valores da empresa. A identificação do subordinado com essa imagem vai
fazê-lo sentir-se sujeito. Mas essa identificação é imaginária, por que traz a
‘imagem’, o significante, presença ilusória do objeto que ele evoca e crê ser:
o outro, e o que ele representa, a empresa. A imagem que ele tem de si
mesmo não lhe pertence, pertence ao outro. Sujeito, é sujeito do outro57.
Quando a TV Globo, então, utiliza-se das chamadas, ela está não só se colocando como
interlocutor, mas forçando e reforçando a atuação do dirigente sobre o subordinado, visando
torná-lo esse tipo ideal, esse modelo desejado de subordinado que se encontra no espaço da
empresa, sejam os próprios empregados, telespectadores ou agências de publicidade e
anunciantes, cada qual na sua função ou papel que lhe foi atribuído ou idealizado previamente
pelos dirigentes.
Enquanto a teoria administrativa fala de mudança de comportamento, de
doutrinação, de procedimento-padrão, a prática organizacional vai falar de
um espectro de atuação que vai desde a sedução do sujeito, envolvendo-o em
seus interesses através de promessas (que não irá cumprir), até a coerção,
forçando a modificação de comportamentos, impondo hábitos e atitudes,
impondo ‘novos valores’. Seria possível classificar esse momento como um
‘momento psicanalítico’, onde à semelhança da constituição do Pai, em que,
57
FREDDO, Antonio Carlos M. A Ideologia em Ato: a filiação imaginária do sujeito, p. 75-76, aspas e grifo do
autor.
141
com a incorporação do Pai, é incorporado (superegóicamente) seu sistema de
valores, suas crenças, seus comportamentos, o mesmo ocorreria com o
sujeito e a empresa e seu sistema de valores, normas, tradições,
comportamentos? Imagem idealizada do Pai, a empresa ganha espaço no
inconsciente. Como não apenas a cultura normativa se instala em nível
supergóico, mas tece sua trama em todo o aparelho psíquico do indivíduo,
este é o momento da presença do outro no Eu58.
Por isso, as chamadas da programação da TV Globo, serem expressas, sempre, na voz
de um gênero masculino, de um locutor, de um homem que está em off, pois assim, facilita a
incorporação, inconscientemente, deste pai. Pai este que sempre vai se pronunciar
assertivamente de vez que não há como discutir sobre o que foi dito, nem a favor, nem contra;
modalidade injuntiva, representada lingüisticamente pelo uso do imperativo.
Interessante observar [...] o enfoque de Perelman no tocante ao imperativo
que, conforme opinião geral, traz, já em si, forte valor persuasivo. O autor
mostra-nos, entretanto, que a força do imperativo existe na razão direta da
força impositiva da pessoa que dá a ordem: trata-se de uma queda de braço
ao contrário - um só cede se o outro colocar a força na mesma direção.
Também Carlos Vogt, refletindo sobre uso e valor do imperativo,
diferentemente do enfoque de Perelman, mas caminhando em direção
paralela, afirma que esse modo verbal estabelece uma relação de autoridade
entre falante e ouvinte, acrescentando que tal relação existe em função de um
esquema social, cujos comportamentos se pautam ou pela ‘submissão’, ou
pela ‘agressão’59.
A empresa, em contra partida, vai se colocar ao lado deste pai ausente (inconsciente)
como a provedora de sustento, conteúdo e serviços (material e imaterial) a seus filiados. Para
não contradizer esta voz masculina, a TV Globo não inclui chamadas na programação numa
voz feminina, uma vez que a empresa, para contrabalançar essa ausência do pai, vai atuar
como a grande provedora. Provedora do sustento de alguns milhares de indivíduos na esfera
interna e de parte do setor de mídia (publicitário, técnico, produtoras etc) em que atua, mas,
será também uma, se não a maior, provedora da memória histórica áudio-visual dos
indivíduos dispersos na sociedade. Para estes, ela, a provedora, tem mais que a memória, tem
estórias, conselhos, e informações que vão conduzi-los pelo mundo.
58
FREDDO, Antonio Carlos M. A Ideologia em Ato: a filiação imaginária do sujeito, p. 78-79, aspas e grifo do
autor.
59
ROCCO, Maria Thereza F. A Linguagem Autoritária, p. 64, aspas da autora.
142
Mesmo quando das chamadas específicas de telejornais, quando há um revezamento
entre um apresentador e apresentadora, estes, quando surgem no vídeo, são colocados pela
empresa numa conotação de encarregados desta provedora e do pai (dirigente que aparenta
estar ausente), pois estes vieram em nome dos dirigentes para contar as novas. Mesmo assim,
não se quebra a linha hierárquica e autoritária estabelecida na voz do narrador masculino (paidirigente) que não aparece. Voz essa que varia de acordo com o serviço ou produto. Para cada
ocasião e objetivo, emprega-se um locutor com um determinado timbre de voz.
Indiferente a isso, ao gênero do narrador (masculino ou feminino), das chamadas de
telejornais, neste caso, o (a) narrador (a) é colocado (a), está (ao) numa função, num papel
(eis) que possibilita (m) “o simulacro discursivo do enunciador, explicitamente instalado no
discurso, a quem o enunciador delegou a voz, ou seja, o dever e o poder narrar o discurso em
seu lugar”60, ou seja, no lugar do (s) dirigente (s) da empresa.
O orador deve ‘inspirar confiança’ para que o discurso não corra o risco de
perder a credibilidade. Orador, o animador deve ‘conciliar o auditório’,
hipotecando-lhe sua solidariedade e demonstrando sua estima. Deve também
assumir uma função de ‘mentor’, cabendo-lhe, portanto, ‘aconselhar’,
‘dirigir’, ‘advertir energicamente’, sem com isso causar sensação de
inferioridade no grupo. Conforme ensina a teoria de Perelman, o importante
é que o auditório ‘tenha a impressão de decidir em plena liberdade’61.
A TV Globo, quando declara, então, A gente se vê por aqui!, ela está, na realidade,
ancorando os mais diferentes fatores e indivíduos, ao predomínio paradoxal da igualdade dos
diferentes.
Diz Habermas que ‘sujeitos que se reconhecem reciprocamente como tais,
devem se ver mutuamente como idênticos, na medida em que ambos tomam
a posição de sujeitos; eles devem subsumir-se respectivamente a si mesmo e
ao outro sob a mesma categoria. Do mesmo modo, o conteúdo de
reciprocidade exige o reconhecimento da não-identidade de um e de outro;
ambos devem mesmo afirmar sua absoluta diferença, pois ser sujeito
compreende uma pretensão de individuação’. A pretensão de individuação é
o maior empecilho ao êxito da empresa. Não há espaço na empresa para a
diferença. A igualdade dos sujeitos deve predominar. E essa igualdade é
construída na paradoxal igualdade dos diferentes, onde o diferente não vê
que se tornou um absolutamente igual, e onde o absolutamente igual se crê
60
61
BARROS, Diana Luz P. de. Teoria Semiótica do Texto, p. 88.
ROCCO, Maria Thereza F. A Linguagem Autoritária, p. 70, aspas da autora.
143
diferente. Diferente do outro, o sujeito nunca foi tão igual ao outro. Sua
diferença é anulada pela igualdade (que vê refletida) na imagem que o outro
lhe reflete. Sua imagem refletida é a imagem do outro. Um absolutamente
igual62.
De fato, a própria empresa, exprime isso de outra forma. Quando da cobertura de
grandes eventos, onde o departamento de jornalismo deve ter uma atuação destacada, há
chamadas da programação que remetem aos telejornais da casa, ressaltando a qualidade
(lugares) dos profissionais de tal secção. Nestes casos, a TV Globo declara e assume uma
posição de imparcialidade, tanto com a sociedade e o mercado (telespectadores, agências de
publicidade e anunciantes), como com seus próprios empregados, ao declarar a isenção destes.
Neste momento, a empresa oculta que toma a todos de forma igual e sob a autoridade dela,
pois, para que haja a imparcialidade enunciada, é preciso tratar a todos como se fossem iguais.
Há uma certa tradição de ‘objetividade’ no jornalismo, ou seja, de manter a
enunciação afastada do discurso, como garantia de sua imparcialidade.
Existem como se sabe, recursos que permitem ‘fingir’ essa objetividade, que
permitem fabricar a ilusão de distanciamento, pois a enunciação, de todo
modo, está lá, filtrando por seus valores e fins tudo o que é dito no discurso.
O principal procedimento é o de produzir o discurso em terceira pessoa, no
tempo do ‘então’ e no espaço do ‘lá’63.
Enunciação pode ser entendida como “a instância de mediação entre as estruturas
narrativas e discursivas que, pressuposta no discurso, pode ser reconstruída a partir das pistas
que nele espalha”. Isso faz com que as chamadas sejam caracterizadas como mediadoras
“entre o discurso e o contexto sócio-histórico e, nesse caso”, deixam-se apreender graças às
relações intertextuais64.
As chamadas são mediadoras, se constituem em um interdiscurso entre o que a empresa
opera, produz e oferta (programação e serviços), o contexto sócio-histórico, bem como, à
manutenção das inter-relações, ao garantir a empresa um modo seguro e controlável de
instituir a própria autoridade, ao se comunicar por meio de relações entrecortadas
62
FREDDO, Antonio Carlos M. A Ideologia em Ato: a filiação imaginária do sujeito, p. 93, aspas e grifo do
autor.
63
BARROS, Diana Luz P. de. Teoria Semiótica do Texto, p. 55, grifos e aspas da autora.
64
Ibid, p. 86.
144
(enunciações), com seus subordinados. Por isso, que as chamadas da TV Globo expõem e
permitem a empresa desenvolver uma forma particular de ação social, racionalmente em
direção a um fim e, orientada de forma a atingir este mesmo fim, ao se valer de tipos
referências (mediações) que permitem configurar os diferentes em iguais. Para chegar a isso, a
TV Globo classifica cada fenômeno particular de acordo com os traços gerais apresentados
pelos mesmos, considerando acidental tudo o que não se enquadre dentro da generalidade.
Como as chamadas partem do geral (imagens polissêmicas e ambigüidade da recepção),
em direção ao particular (remete para dentro da empresa, demarcando cada qual em uma
posição e seus respectivos lugares), elas estão baseadas e orientadas em referências de tipos
idéias que descreveriam ações possíveis entre os indivíduos. Os indivíduos ao captarem
sentido nestes referencias (estereótipos) tem a própria atenção, ou expectativa desta atenção,
voltada, a partir daquele momento, para à empresa. Desta forma, estão potencializadas as
chances de se manter algum contato com aquilo que a TV Globo processa. Isso a favorece não
só em iniciar tais relações sociais, mas possibilita garantir a manutenção dos já filiados, nas
inter-relações dos diferentes, que num processo de mediação, tem como elo neste espaço, as
chamadas, já que elas vão permitir converter ou, manter os filiados como iguais.
A relação entre conceito genérico e o fenômeno concreto é de natureza tal
que permite classificar cada fenômeno particular de acordo com os traços
gerais apresentados pelo mesmo, considerando acidental tudo o que não se
enquadre dentro da generalidade. Além disso, a conceituação generalizadora
considera o fenômeno particular um caso cujas características gerais podem
ser deduzidos de uma lei. A conceituação típico-ideal chega a resultados
diferentes da conceituação generalizadora. O tipo ideal, segundo Weber,
expõe como se desenvolveria uma forma particular de ação social se o
fizesse racionalmente em direção a um fim e se fosse orientada de forma a
atingir um e somente um fim. Assim, o tipo ideal não descreveria um curso
concreto de ação, mas um desenvolvimento normativamente ideal, isto é, um
curso de ação ‘objetivamente possível’. O tipo ideal é um conceito vazio de
conteúdo real: ele depura as propriedades dos fenômenos reais
desencarnando-os pela análise, para depois reconstruí-los. Quando se trata de
tipos complexos (formados por várias propriedades), essa reconstrução
assume a forma de síntese, que não recupera os fenômenos em sua real
concreção, mas que os idealiza em uma articulação significativa de
145
abstrações. Desse modo, se constitui uma ‘pauta de contrastação’, que
permite situar os fenômenos reais em sua relatividade65.
Sendo assim, as chamadas são elaboradas de forma que se encaixam entre os quatro
tipos em que Weber classificou como sendo possível desenvolver, cultivar e manter um curso
de ação social, ao reconstruir os fenômenos de forma relativa. Portanto, a TV Globo vai
aglutinar nas chamadas, tanto textos que remetam a racionalidade, a valores, a afetividade ou,
ainda, a tradição, como modelos que tocam, acessam os indivíduos. Isto permite potencializar
e despertar uma conduta nestes ditos sujeitos heterogêneos, os quais passam a encontrar
sentido naquilo que lhes é declarado, enxergando-se ali como diferentes. Entretanto, como
afirma Weber, nenhum tipo específico pode ser encontrado, na realidade, em toda sua pureza,
o que dá as chamadas um caráter híbrido das enunciações que são processadas pela emissora.
Como são descoleções e recoleções, dos mais variados textos, as chamadas se
caracterizam por se constituírem numa enunciação híbrida e impura, sem, contudo,
abandonarem a escala hierarquizadora das relações e sentidos.
Seria essa uma possível explicação para a prática administrativa fundar-se
sobre a manipulação, a internalização, a identificação? Seria essa prática
uma forma de atuação que busca a ‘reconstrução’ da identidade do sujeito,
condizente com o que a empresa chama de sua ‘cultura’? Se sim, explica-se
o porquê a empresa exerce um significativo grau de influência sobre o
sujeito. Em um sentido estrito, poder-se-ia dizer que essa influência é
exercida com vistas à dissolução do Eu. O dirigente, ao representar a
empresa, ao ser ele a imagem da empresa aparece como um outro que, por
um mecanismo de identificação, desagrega e se impõe sobre o Eu. Este é, ao
que parece, o ‘caminho’ para o exercício da influência; e, talvez por isso, ela
seja uma ‘exigência’. O dirigente deve exercer influência sobre o
subordinado, deve ter sobre ele algum grau de poder, senão, apregoam teoria
e prática, o subordinado, não ‘produz’. A empresa aparece, assim, como uma
das esferas mais coercitivas da sociedade66.
Ao hierarquizar as posições e lugares dos filiados, a determinadas funções e papéis, a
empresa acredita que será beneficiada por estes. Mas, para isto, ela deve manter uma certa
65
WEBER, Max. Marx Weber, textos selecionados. São Paulo: Nova Cultural, 1997, p. 8, grifo e aspas do
autor.
66
FREDDO, Antonio Carlos M. A Ideologia em Ato: a filiação imaginária do sujeito, p. 79-80.
146
influência sobre estes seus subordinados, já que é um modo como um dirigente provoca
efeitos perlocucionários, utilizando a linguagem como meio, que vai garantir a produção.
A dimensão perlocucionária do ato de fala constrói um ‘cenário’ com vistas
à manipulação das convicções, da concordância, da confiança e da atenção
do sujeito. Por buscar a internalização de comportamentos compatíveis com
aqueles determinados como ‘bons’ pela empresa, e a identificação ao
significante, a manipulação está diretamente relacionada à formação das
condições que levam à identificação do sujeito com a imagem da empresa.
Por fundar-se no momento ideológico da empresa, a atuação do dirigente é
um fazer-de-conta-que-o subordinado-é-sujeito67.
Manipulação pode ser entendida como sendo
[...] o percurso narrativo da manipulação ou percurso narrativo do
destinador-manipulador é aquele em que o destinador atribui ao destinatáriosujeito a competência semântica e modal necessárias à ação. Há diferentes
modos de manipular, e quatro grandes tipos de figuras de manipulação
podem ser citados: a tentação, a intimidação, a provocação e a sedução68.
Manipulação esta que se dá na própria manufatura das chamadas, sua construção, onde
serão combinados e editados textos que além de agregarem uma racionalidade, valores,
afetividade e a tradição, são intercaladas nos blocos comerciais de forma que possam
intimidar, tentar, provocar e seduzir estes. Pela manutenção das chamadas, a TV Globo
completa o percurso narrativo da ação ou, percurso narrativo do sujeito, que vai se constituir
pelo encadeamento lógico dos programas da competência e da performance aos lhes repassar
competência para uma dada ação que deve ser executada69.
Então, ao considerar as chamadas como o uso estratégico da linguagem e, considerandose que, para Habermas, ego pode, por meio de emissões lingüísticas, motivar alter a um
comportamento desejado, instrumentalizando-o para seu próprio benefício, e - , levando-se
em conta, além desta afirmação de Habermas, a definição de administração como a arte de
conseguir que as pessoas façam as coisas, uma vez que James Stoner chama a atenção para o
fato de os dirigentes atingirem os objetivos da organização fazendo com que outras pessoas
67
FREDDO, Antonio Carlos M. A Ideologia em Ato: a filiação imaginária do sujeito, p. 81, aspas e grifos do
autor.
68
BARROS, Diana Luz P. de. Teoria Semiótica do Texto, p. 87.
69
Ibid, p. 84.
147
executem as tarefas que se façam necessárias e não eles mesmos executando estas tarefas - , é
que torna viável afirmar que as chamadas são na realidade a fala do dirigente, pois elas estão
na esfera da ação estratégica ao mesmo tempo que explicitam a ideologia da empresa,
introduzindo um significante que representa a empresa, já que as chamadas possuem um ou
mais significantes que tem a capacidade de provocar o fenômeno da internalização, em nível
superegóico, da imagem (da empresa) à qual o indivíduo vai identificar, se filiar, e se ver
como sujeito dela70.
Conseqüentemente, as chamadas trazem em si, tanto os atos perlocucionários, já que são
os que dizem respeito aos efeitos visados pelo uso da linguagem, entre os quais os de
convencer e persuadir, como também os atos locucionários, que são aqueles que encerram a
força com que os enunciados são produzidos. Foi a partir de Austin e Searle, os quais
definiram os atos de linguagem como sendo aqueles atos que realizam-se na proporção em
que dizer se faz fazer que proporcionou classificar tais atos71.
Os atos perlocucionários permitem a empresa manipular uma modalização que nada
mais é que “a determinação que modifica a relação do sujeito com os valores (modalização do
ser) ou, que qualifica a relação do sujeito com o seu fazer (modalização do fazer)”72.
É o uso manipulado da linguagem que possibilita ao dirigente moldar as
convicções, a concordância, a confiança e a atenção do subordinado. O
aspecto relevante é que essa ação leva em consideração as forças afetivas e
inconscientes dos sujeitos, o que dá ao dirigente a possibilidade de moldar
imaginariamente os acontecimentos do mundo objetivo e usar, em benefício
dos fins que busca, a capacidade, os recursos e o descontentamento de seus
subordinados. Como o dirigente, por envolver o subordinado com
comportamentos dito ‘adequados’ de trabalho, oculta dele que está agindo
estrategicamente, mantém-se a ilusão de que ele é tratado como sujeito73.
As chamadas são constituídas por textos que vão permitir a modalização de enunciados
de estado, que também pode ser denominada modalização do ser e atribui existência modal ao
70
FREDDO, Antonio Carlos M. A Ideologia em Ato: a filiação imaginária do sujeito, p. 82-83.
ROCCO, Maria Thereza F. A Linguagem Autoritária, p. 80.
72
BARROS, Diana Luz P. de. Teoria Semiótica do Texto, p. 88.
73
FREDDO, Antonio Carlos M. A Ideologia em Ato: a filiação imaginária do sujeito, p. 73, aspas e grifo do
autor.
71
148
sujeito de estado, o que vai comportar a própria modalização de enunciados do fazer que é,
por sua vez, responsável pela competência modal do sujeito do fazer, por sua qualificação
para a ação74.
A TV Globo vai influenciar de uma só vez modalizações do ser quanto do fazer para
que se estimule nestes o querer, o dever, o poder e o saber.
Na modalização do fazer é preciso distinguir dois aspectos: o fazer-fazer,
isto é, o fazer do destinador que comunica valores modais ao destinatáriosujeito, para que ele faça, e o ser-fazer, ou seja, a organização modal da
competência do sujeito. Na organização modal da competência do sujeito
operador, combinam-se dois tipos de modalidades, as virtualizantes, que
instauram o sujeito, e as atualizantes, que o qualificam para a ação. O deverfazer e o querer-fazer são modalidades virtualizantes , enquanto o saber fazer
e o poder-fazer são modalidades atualizantes75.
As modalizações se dão pelo fato das chamadas se valerem de recursos técnicos que vão
da argumentação quase lógica (ridículo, ironia, por comparação, transitividade), passa pela
argumentação do sacrifício (afetivo), mas, também, podem ser de argumento pragmático
(calcado no real, como por exemplo, as chamadas de telejornais, documentários), uma vez que
elas não se amparam unicamente, de forma exclusiva, de uma das técnicas argumentativas,
visto como, simultaneamente, trazem em si uma trança de técnicas argumentativas.
Este processo destaca e evidencia-se pela expressão verbal argumentativa-persuasiva
(textos orais) do narrador que, combinados com figuras de linguagem irão provocar efeitos
persuasivos fortes, evidentes, quanto para, subliminarmente, levar à adesão e manipulação.
É o caso, por exemplo, da alusão, por meio da qual são evocados estados
emocionais e afetivos do receptor, sem que ele disso se aperceba claramente.
Omitindo dados identificadores, o orador vai lentamente construindo o perfil
afetivo do receptor, seu perfil psicológico e, quando este receptor se dá conta
de que é o alvo das descrições alusivas, já está inteiramente envolvido
emocionalmente. Também nessa linha de baixo impacto, inscrevem-se os
slongans, os provérbios e máximas que, mesmo estereotipados, atuam sobre
o receptor, na medida em que este os aceita como corretos, não questionando
sobre suas reais funções76.
74
BARROS, Diana Luz P. de. Teoria Semiótica do Texto, p. 43
Ibid, p. 43, grifo da autora.
76
ROCCO, Maria Thereza F. A Linguagem Autoritária, p. 64-67, grifos da autora.
75
149
Ao evocar, constantemente, os estados emocionais e afetivos de seus filiados, a TV
Globo evidencia uma predominância de uso de chamadas focadas nos recursos da
argumentação pelo ridículo, ironia, por comparação, transitividade e, principalmente, pela
afetividade emotiva que se constitui em forte componente desse tipo de argumento, que tem
no fator sucesso seu mais forte ponto de apoio. Essa manipulação visa refletir o real,
plasmado por um conjunto de opiniões correntes, tendo, pois que dimensioná-lo
necessariamente sob a ótica dos indiscutíveis valores do senso comum. O real ainda pode ser
categorizado em outros tipos de argumentos, conforme afirma Perelman, e pode ser
implementado pela propagação, contágio, vulgarização, consolidação, desperdício, exagero
entre outros.
Na verdade, não se trata exatamente de um verdadeiro conjunto de opiniões.
Trata-se antes de acordos que se exercem sobre estereótipos tacitamente
aceitos. Ecléa Bosi mostra que normalmente ‘o processo de estereotipia se
apodera da nossa ida mental’ e que nesse ‘processo os padrões correntes
interceptam as informações no trajeto rumo à consciência’. Adverte ainda a
autora sobre o poder da imagem, de vez que nosso universo, hoje, é
permeado por imagens de toda a natureza (jornal, outdoor, cinema, TV etc.).
Diz também Bosi que ‘essas imagens têm autoridade sobre nós: e para nos
invadirem elas nos pedem apenas o trabalho de ficarmos acordados’.
Conclui, afirmando: ‘O estereótipo nos é transmitido com tal força e
autoridade que pode parecer um fato biológico’77.
Isso evidencia e dá conta de como a TV Globo pode amortecer o impacto de
reportagens, notícias, informações e mensagens dos próprios telejornais, principalmente o de
maior audiência, o Jornal Nacional. Para isso, a empresa vai inserir, no bloco posterior aos
fatos relatados como reais à política, economia, ao social, ou seja, do dia a dia, revelando os
conflitos existentes na sociedade, como a crise e a violência do sistema social brasileiro, por
exemplo, e que incidam ou, fujam ao controle do próprio quadro institucional, com reflexos
diretos sobre a própria audiência.
A chamada inserida, às vezes é utilizada de forma exclusiva no bloco comercial, ou
seja, sem que sejam seguidas ou, acompanhadas por outros comerciais de agências de
77
ROCCO, Maria Thereza F. A Linguagem Autoritária, p. 68-69, aspas da autora.
150
publicidade e anunciantes. Geralmente, reporta a um programa que segue logo após o
telejornal, porém, o mais interessante é que, nos casos em que a chamada surge isolada nesse
bloco, pode estar ali para transmutar ou, quebrar o impacto causado pelas informações
transmitidas.
Isso, não descarta a hipótese da chamada estar sendo usada ideologicamente, de forma
leniente aos interesses de grupos políticos, embora, a empresa possa alegar, a priori, que ela
recorre a essa manobra com o intuito de evitar que seus filiados externos migrem, sintonizem
os canais dos rivais, na busca de mais informações, sobre a mesma noticia dada pela própria
TV Globo, desta maneira, a empresa pode evitar uma suposta queda da audiência.
Um exemplo, de como os telespectadores não percebem as implicações ideológicas que
recaem sobre as chamadas, encontra-se no próprio comportamento deles. Para 52% dos
brasileiros (índice próximo à taxa de audiência da emissora), a TV Globo é a empresa de
mídia que mais se destaca no cenário nacional, entretanto, esses mesmos clientes, dizem
desconfiar das informações abordadas pelo departamento de jornalismo dela.
Há um
paradoxo aí, pois esses mesmos clientes, parecem não atentarem que a manipulação
ideológica possa ocorrer de forma entrecortada, pelo interdiscurso das chamadas.
Esse paradoxo foi revelado pelo Instituto GlobeScan, em pesquisa, realizada entre
março e abril de 2006, em nove regiões metropolitanas do Brasil (Belém, Belo Horizonte,
Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, e São Paulo), quando 55%
dos brasileiros entrevistados disseram desconfiar dos veículos de comunicação, ou seja, as
emissoras e empresas de televisão, rádio e jornal.
A pesquisa, ainda, aponta que 80% dos brasileiros acreditam que a mídia em geral
exagera na cobertura das notícias ruins; outros 64% dos entrevistados concordam que
raramente encontram na grande mídia as informações que gostariam de obter; já, para 45%
dos brasileiros, entrevistados na pesquisa, afirmaram não concordar que a cobertura da grande
151
mídia seja cuidadosa; para outros 44% dos consumidores destas empresas, estes disseram
deixar, no último ano, de consultar uma empresa de mídia específica por terem perdido a
confiança nela. Além dos outros nove países em que o mesmo levantamento foi realizado
simultaneamente, apenas no Brasil, os jornais foram citados como veículos (empresas) mais
confiáveis que a televisão (empresas televisivas de sinal aberto)78.
Tais dados corroboram e validam o fato de que os indivíduos dispersos no campo social
e no mercado, não são tão passíveis ou indefesos, quanto às implicações ideológicas nos
discursos disseminados pelos departamentos de jornalismo das empresas de mídia e,
principalmente, pelas emissoras televisivas de sinal aberto, em especial, daquilo que é
processado e transmitido pela TV Globo e o seu departamento de jornalismo, já que pelo
jornalismo, torna-se explicita a questão da luta de classes.
Alain Touraine vai mais além, afirmando que numa sociedade pós-industrial
em que os serviços culturais substituíram os bens materiais no cerne da
produção, é a defesa da personalidade e cultura do sujeito contra a lógica dos
aparatos e mercados que substitui a idéia de luta de classe79.
A empresa, mesmo alegando que inseri as chamadas nos blocos comerciais do
telejornalismo para alavancar a própria audiência, o que sem dúvida tem sentido, implementa
uma manipulação de forma transversal, pois, como lembra Da Matta, é evidente que há uma
estrutura social, onde as classes sociais também se comunicam por meio de um sistema de
relações entrecortadas, logo, é aí que os clientes/telespectadores podem deixar de prestar
atenção que, a manipulação que a TV Globo implementa, na busca do lucro e poder, vai darse, justamente, de forma oblíqua.
78
INSTITUTE GLOBESCAN.
News. Disponível em: <http://www.globescan.com/news_archives/bbcreut.html>. Acesso em: 14 mai. 2006. Pesquisa encomendada pela BBC, Reuters e Media Center ao
Institute GlobeScan. Pesquisa realizada, simultaneamente, além do Brasil, em mais nove países: Alemanha,
Coréia do Sul, Egito, Estados Unidos, Índia, Indonésia, Inglaterra, Nigéria, e Rússia. Apenas os entrevistados
alemães, superam o índice de rejeição dos brasileiros à atuação das empresas de mídia. Para cerca de 57% da
população alemã, as empresas do setor de mídia não são confiáveis.
79
CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura; v.1. 3 ed. São Paulo: Paz e
Terra, 1999, p. 39.
152
A TV Globo vale-se do chamado argumento de autoridade nestas relações entre ato e
pessoa, que acabam por resultar em situações de prestígio, que nada mais é que a qualidade
atribuída a alguém e, cujos efeitos são valorizados e largamente aceitos, pois, para tais atos,
de determinado agente, goza-se de prestígio por serem amplamente reconhecidos a ponto de
serem imitados socialmente, quando não incorporados pelos auditórios como critério de valor
e medida de julgamento. Para Perelman, autoridade e prestígio se fundem, enquanto
argumento, por serem da mesma natureza pelo fato de tal argumento de autoridade basear-se
na força de ações de juízos de uma pessoa ou, de um grupo de pessoas como meio de prova
em favor de uma tese80.
Reconhecido o prestígio e a autoridade de quem fala, o orador pode e tem legitimidade
para desenvolver seus atos que está diretamente ligado ao discurso e a figura do locutor, do
animador. Daí ser indissociável a separação da relação entre quem diz, o que diz e a forma
pela qual se diz. A relação locutor-discurso se faz indissociável, portanto, seja em razão da
característica pessoal do emissor, do orador, seja pela forma segundo a qual é estruturada a
linguagem em que esse discurso é expresso81.
Como a televisão é um trabalho coletivo, os enunciados podem mudar de significado
quando atualizado por diferentes pessoas, por isso a programação da TV Globo vai seguir elos
com modelos mosaicos que, entrelaçados, vão possibilitar dar sentido de todo e, por isso,
também, que o locutor que narra as chamadas varia numa proporção limitada. Os modelos
mosaicos são variáveis em algumas dezenas, pois mesmo que engessem, momentaneamente,
sem restringi-lo, possibilitam manter o caráter de transitividade do próprio discurso. A
empresa procede assim, para quebrar a possível interferência que as constantes mudanças de
oradores (aqui, referente ao conteúdo carregado nas chamadas) possam causar
(inconscientemente) uma dose de interferência, na própria enunciação, já que estes são
80
81
ROCCO, Maria Thereza F. A Linguagem Autoritária, p. 69-70.
Ibid, p. 70.
153
polifônicos e oferecem-se ao auditório sob ângulos de vários recortes. Desta maneira, com
mudanças constantes destes modelos, a empresa restringe ao máximo possível mutações de
significados ao que processa pelo trabalho coletivo.
Perelman reporta-se ainda ao que denomina ‘comunicação oratória’, cuja
finalidade é estabelecimento de uma ‘identificação’ entre orador e público.
Aparece aí, em geral, um ‘nós’ persuasivo, através do qual o orador se inclui
entre (ou se identifica com) o público e faz deste parte de sua atividade. O
‘nós’ ao ‘todos’ há pequena distância, mas muito espaço para
desenvolvimento das operações persuasivas. Entre o uso de ‘nós’ e o de
‘todos’ ocorre, por assim dizer, uma homogeneização entre sentimentos,
sensações e opiniões das pessoas. Ora, na medida em que há uma
abrangência do público e do orador, há também um processo de
identificação quase total, por meio da qual todos são o orador e o orador é
todos, definido por um nós. E assim torna-se fácil equalizar tais sentimentos,
sensações e opiniões a que nos referimos, na proporção em que se
transformam em técnicas argumentativas, operando sobre esses valores que
acabam por adquirir característica de julgamento definitivos e válidos para
grandes massas de receptores em auditórios de natureza particular82.
Essa equalização dos diferentes em iguais, é implementada pela inscrição de
argumentos por comparação, que se processam por meio de declarações analógicas. Através
da comparação, atribuem-se e hierarquizam-se valores. Essas relações de valorização, dadas
como estabelecidas, acabam por se tornar irrefutáveis. Ao proceder assim, a empresa lhe dá
um caráter superlativo, o quê acaba por ser um elemento de argumentação quase lógica, na
medida em que torna a situação, o objeto, o indivíduo, a sensação ou, a emoção a que se
reporta, superior (ou inferior) a todos os outros.
O Processo de comparação se dá formalmente por meio de qualificação,
desqualificação, identificação de pessoas, objetos, situações, sensações. [...]
Pela comparação pode-se persuadir através do medo e até mesmo de
ameaças implícitas, de caráter psicológico, e que tanto mais serão válidas
quanto mais forem dignos de credibilidade os ângulos valorizados por um
grupo, por uma autoridade, em detrimento de alguns outros, então
desvalorizados. [...] O superlativo acaba por ser um elemento de
argumentação quase lógica, na medida em que torna a situação, o objeto, o
indivíduo, a sensação ou emoção a que se reporta superior (ou inferior) a
todos os outros - e de forma absoluta. Cria-se a idéia do incomparável, do
único, do inigualável. Imbricam-se aqui algumas características dos
‘lugares’, no caso do ‘lugar de qualidade’, e do único, [...] Ora, se os fatos
são colocados nesses termos, seja por meio de uma argumentação quase
lógica, seja por meio de algumas bases pragmáticas, calcadas no real
ordinário, o que se afirma de algo torna-se, de certo modo, irrefutável, na
82
ROCCO, Maria Thereza F. A Linguagem Autoritária, p. 65, aspas e grifos da autora.
154
medida em que, pelo superlativo, suprimem-se os parâmetros de avaliação
comparativa. Para Perelman, ‘o caráter peremptório (do superlativo)
dispensa também mais facilmente a prova’83.
Os recursos da argumentação quase-lógica e da argumentação do sacrifício, segundo
Perelman, vão se dar pelo espectro das paixões, já que narrativas desse cunho, valem-se de
diferentes posições passionais ao levar em conta os estados emocionais dos indivíduos.
Numa narrativa, o sujeito segue um percurso, ou seja, ocupa diferentes
posições passionais, saltando de estados de tensão e de disforia para estados
de relaxamento e de euforia e vice-versa. Distingue-se paixões simples e
paixões complexas, pelo critério da complexidade sintática do percurso. As
paixões simples resultam de um único arranjo modal, que modifica a relação
entre o sujeito e o objeto-valor; enquanto as paixões complexas são efeitos
de uma configuração de modalidades, que se desenvolve em vários percursos
passionais84.
Nesse caminho, paixão é “um efeito de sentido de qualificações modais, que, na
narrativa, modificam a relação do sujeito com os valores. O querer-ser, por exemplo, pode
produzir o efeito de sentido da ambição”85, ou seja, “essas qualificações organizam-se sob a
forma de arranjos sintagmáticos de modalidades ou configurações passionais”86.
O estado inicial do percurso das paixões complexas é denominado por
Greimas estado de espera. A espera define-se pela combinação de
modalidades, pois o sujeito deseja um objeto (querer-ser) mas nada faz para
consegui-lo e acredita (crer-ser) poder contar com outro sujeito na realização
de suas esperanças ou na obtenção de seus direitos. Caracteriza-se, portanto,
pela confiança no outro e em si mesmo e pela satisfação antecipada ou
imaginada da aquisição do valor desejado. Ao saber impossível a realização
do seu querer e infundadas as suas crenças, o sujeito passa ao estado de
insatisfação e de decepção. [...]. O contrato de confiança estabelecido entre
sujeitos não é necessariamente um contrato verdadeiro, mas, na maior parte
das vezes, um contrato imaginário, um simulacro. Os simulacros não têm
fundamento intersubjetivo, embora determinem , mesmo assim, as relações
entre sujeitos87.
Essas paixões são moldadas e implementadas pelos próprios percursos gerativos da
programação e blocos comerciais, que se inscreve numa narrativa, onde se dá o momento em
que os elementos semânticos são selecionados e relacionados com os sujeitos. Para isso, esses
83
ROCCO, Maria Thereza F. A Linguagem Autoritária, p. 66, aspas e grifo da autora.
BARROS, Diana Luz P. de. Teoria Semiótica do Texto, p. 47.
85
Ibid, p. 88.
86
Ibid, p. 47.
87
Ibid, p. 49-50, grifos da autora.
84
155
elementos inscrevem-se como valores, nos objetos, no interior dos enunciados de estado88, em
contraste com a propaganda do bloco comercial, os quais estão na órbita ao tema central da
televisão geralista e que, vão reforçar os tipos de fantasias que a publicidade oferece e não as
proposições lógicas desta89.
Percurso gerativo pode ser entendido como a construção do sentido do texto, é o plano
do conteúdo sob a forma de um percurso de engendramento do ou dos sentidos. Isso vai
permitir a esquematização de um enunciado, “que vai do mais simples ao mais complexo, do
mais abstrato ao mais concreto e que se organiza em níveis ou lugares de articulação da
significação, passíveis, cada qual, de descrição autônoma”90. A empresa vai jogar ao longo da
programação e intervalos comerciais (publicidade) com os paradoxos individuais, em
polarizações de paixões, dos subordinados.
Vale lembrar que é assim que a empresa procede desde que ela, a TV Globo, introduziu
no Brasil um sistema de módulos, derivado da noção de público-alvo, da venda de audiência
qualificada em diversos horários, pré-planejadas conforme a homogeneidade de
gêneros/conteúdos, de programa e de audiência, o que facilita o controle da demanda
publicitária pela emissora. A emissora implementa por elas a modalização dos indivíduos ao
intermediar a relação sujeito/objeto daquilo que oferta em produtos e serviços.
O destinatário dessas imagens, isto é, o público de massa, retroage sobre as
condições e o estilo de produção da televisão. Às limitações estritas da
imagem-filme ou da imagem-vídeo, incorporam-se as limitações ligadas ao
fato de que essas imagens são produzidas para um público complexo demais
para se caracterizar, pois não se trata de um público popular, nem de um
público de elite, e tampouco um público ‘médio’, mas uma espécie de
mistura dos três, impropriamente chamado de ‘publico de massa’. O caráter
‘multiposicionado’, como dizemos no jargão de marketing, inerente ao
público da televisão, faz a sua complexidade e a sua força: essa última,
portanto, não pode ser reduzida a nenhuma das estratificações sociais e
culturais clássicas (popular, médio, de elite), remetendo às três ao mesmo
tempo, mas de maneira alguma de modo específico91.
88
BARROS, Diana Luz P. de. Teoria Semiótica do Texto, p. 42.
ROCCO, Maria Thereza F. A Linguagem Autoritária, p. 86.
90
BARROS, Diana Luz P. de. Teoria Semiótica do Texto, p. 88.
91
WOLTON, Dominique. Elogio do Grande Público: uma teoria crítica da televisão, p. 75, aspas e grifo do
autor.
89
156
Esse processo, em forma de caracteres (elementos individualizadores de uma pessoa ou
coisa, e tidos aqui, como sendo os tipos ideais apontados por Weber), e possibilidades
argumentativas-persuasivas que aparecem como recursos que possibilitam construir as
enunciações (interdiscurso) fundamentais para a empresa.
A argumentação ad humanitatem é entendida como sendo aquela que se
utiliza de argumentos válidos para um grupo universal, para um auditório
universal, para a humanidade, como o próprio nome já diz, enquanto a
argumentação ad hominem, embora se mostre vária e diversa, depende dos
tipos particulares de auditório a que o orador se dirige. A argumentação ad
hominem varia sua escala de valores, conforme variam os quadros
conceituais de grupos de indivíduos. Ainda que muitos filósofos tenham
discutido e condenado a validade do argumento ad hominem, na medida em
que o consideram um pseudo-argumento. Perelman não vê ‘ilegitimidade’ no
procedimento. Alerta, porém, para certa confusão freqüente entre a
argumentação ad hominem e a argumentação ad personam, que se
caracteriza basicamente por uma desqualificação do adversário que é
individualmente atacado92.
A partir daí, entende-se que a chamada matriz, aquela identificada como sendo, Globo,
a gente se vê por aqui!, é considerada como uma argumentação ad humanitatem, pois é
direcionada ao grupo universal dos indivíduos heterogêneos dispersos no campo social,
mercado e os próprios funcionários. As outras chamadas da programação que são utilizadas
para identificar os programas e serviços, encaixam-se nas argumentações ad hominem, já que
se
mostram
variadas,
diversificadas
e
direcionadas
aos
tipos
conceituais
de
gêneros/conteúdos. As chamadas de telejornais trazem em si, às vezes, tanto a argumentação
ad hominem, como a ad personam, que desqualifica ou ataca individualmente um
determinado sujeito.
Como as chamadas da programação são comerciais da própria programação da empresa,
elas, como já foi dito anteriormente, ancoram e orientam os vários níveis de significação.
Como são constituídas de modelos que visam ao todo de um processo retórico-argumentativo,
com vistas à persuasão, implicam no fato de que qualquer mudança na elaboração destes
modelos incide no todo do discurso da programação e serviços da empresa, como na relação
92
ROCCO, Maria Thereza F. A Linguagem Autoritária, p. 80, grifos e aspas da autora.
157
dos filiados com ela. Isso não impede que a TV Globo, vez por outra, teste possíveis
mudanças deste interdiscurso, mas, até efetivá-los de forma definitiva, vai implicar em
reconsiderar a própria estratégia discursiva adotada, e que está imbricada na relação de poder
como empresa hegemônica.
As chamadas, em geral, podem ser delimitadas com base em características comuns aos
próprios comercias existentes na televisão, uma vez que, vale lembrar, a TV Globo tem como
referencial a própria publicidade. Opta-se, então, em destacar, em linhas gerais, às principais
nuances destes comerciais (chamadas), uma vez que elas assemelham-se na utilização dos da
retórica-argumentativa dos comerciais dos próprios clientes da emissora, agências de
publicidade e anunciantes.
Desta maneira, a temática retórica-argumentativa das chamadas da programação da TV
Globo resumem-se à algumas características que correspondem às funções dos textos orais da
emissora.
Assim, [...] o verbal da TV, sobretudo o dos comerciais, apresenta algumas
funções básicas relevantes. Cabe, pois, a esse verbal: expressar a relação
antes-depois; transmitir valores e verdades ‘definitivas’ aos telespectadores,
através de depoimentos e entrevistas, seja com pessoas comuns, seja com
experts, celebridades e autoridades; conferir credibilidade a ocorrências
comuns, banais, bem como outorgar seriedade e validade científica a
determinados produtos, situações e experiências, utilizando um discurso
marcadamente científico; montar diálogos e monólogos para testemunha ou
discutir fatos e situações; fixar e manter a cadeia de significação; ancorar a
variedade dos diferentes sentidos; resolver contradições e ambigüidades da
imagem; ligar as imagens móveis entre si; elucidar a imagem, adiantando a
ação narrativa; dar o fecho (quase sempre em off), que semelhantemente à
função exercida pelo coro grego, comenta a ação; dar vida à figura do
animador, imprescindível, mas que não subsiste sem o verbal93.
O sucesso desses comerciais, as chamadas, ainda, só é obtido, devido aos inúmeros
recursos de linguagem que são utilizados, conjuntamente ao verbal, uma vez que, alcançam o
objetivo a que se propõem, que é a de um processo retórico-argumentativo com vistas à
persuasão, por depender não de suas proposições lógicas, mas dos tipos de fantasia que
oferece. Por isso que a voz do narrador varia no timbre.
93
ROCCO, Maria Thereza F. A Linguagem Autoritária, p. 86, aspas e grifos da autora.
158
Para conseguir esses efeitos via TV, inúmeros são os recursos de linguagem
utilizados, dentre os quais destacamos: presença do imperativo explícito ou
subliminar; estruturação sintática á base de frases curtas, frases nominais e
justaposição; estruturação lexical calcada na repetição; presença de slogans e
sintagmas clichezados; predomínio de adjetivos superlativizados e
advérbios; repetição valorizadora de nomes de produtos e de suas
qualidades; presença de jogos verbais; presença de rima e ritmo reforçadores
e ampliadores da significação; recurso à linguagem coloquial; recurso à
exortação; recurso a metáforas, metonímias e outras figuras; presença de
aliterações, assonâncias e anáforas; recurso a paralelismos e comparações94.
Todas estas características, dos textos orais e suas figuras de linguagem, utilizadas nas
chamadas, carregam em si uma seqüência de dados argumentativos com operações verbais,
como por algumas características especiais da linguagem que se revelam coladas aos
processos argumentativos.
Verifica-se, de modo não canônico, a forma pela qual se dão, por exemplo,
as ligações entre funções léxicas, morfológicas, sintáticas da língua e que
passam a ter irrefutável papel argumentativo. Um primeiro ponto diz respeito
à função persuasiva do aposto, focalizado não só isoladamente, mas,
principalmente, quando estabelece oposições e semelhanças. Ligada a essa
função sintática do aposto, aparece a função qualificadora dos adjetivos, que
também se ligam e aderem a nomes, em utilizações altamente valorativas e
por meio das quais se instaura um processo avaliatório de caráter persuasivo.
Esses valores atribuídos pelos adjetivos são freqüentemente adaptados,
manejados (remanejados também), em função da visão de mundo que se
tem, que se quer transmitir e sobre a qual se tenta obter adesão completa95.
Todas estas características apontadas até aqui, embora, sejam comuns às chamadas da
TV Globo como um todo, elas se sobressaem pelo volume de repetições, pois é isso que acaba
por demonstrar e reforçar o objetivo da empresa, a qual busca completar a adesão ao seu
auditório de forma veemente. Tanto é que, a empresa é, de longe, no Brasil, a que mais utiliza
este tipo de comercial e que, ainda, é a empresa televisiva que, mais tempo mantém no na
grade de programação, esse tipo de campanha publicitária, caso comparada as suas
congêneres no país.
As chamadas vão ser inseridas, durante os 70 intervalos da programação - em média
três vezes a cada intervalo, uma no início, uma no meio e uma no final de cada bloco
94
95
ROCCO, Maria Thereza F. A Linguagem Autoritária, p. 87, grifo da autora.
Ibid, p. 61, grifo da autora.
159
comercial, simultaneamente para toda a rede, perfazendo um total anual em torno de 75.600
chamadas - , e, em conformidade, com as características de determinado público alvo que a
emissora busca atingir.
Levando-se em conta o valor médio dos espaços a serem locados às agências de
publicidade e anunciantes, em cada período do dia, como a quantidade de chamadas e o
tempo utilizado por elas durante à programação, o uso destes espaços comerciais, pela própria
TV Globo, equivale para a empresa, a um custo de mídia em torno de R$ 1,78 bilhão de reais
ou, cerca de U$ 776 milhões.96
Como as chamadas da programação da TV Globo são caracterizadas, também, como
comerciais, isso, consolida a empresa na posição de liderança de gastos com publicidade no
setor privado. Vale lembrar que não está levando-se em conta os investimentos realizados
pela emissora em outras mídias, pertencentes ou, não, ao Grupo Globo. Só para se ter uma
idéia do volume dos custos das inserções das chamadas, As Casas Bahia, empresa brasileira
do setor de varejo e, tida como a maior anunciante no Brasil, gastou em 2004, com
propaganda, considerando-se todos os tipos de mídia, cerca de U$ 553,39 milhões. Em
segundo lugar vem a Unilever Brasil, com U$ 186 milhões. A General Motors do Brasil
ocupa a terceira colocação, com gastos em publicidade de U$ 116 milhões97.
O gasto da TV Globo, com as inserções das chamadas nos blocos comerciais da própria
programação, revela que a empresa recorre à repetição, já que esta é a técnica mais simples
96
REDE GLOBO. Lista de Preços: abril a setembro/2005. Rio de Janeiro. 2005, p. 5. Dados referentes aos
valores cobrados sobre o tempo e espaços locados (blocos comerciais e programação), às agências de
publicidade e anunciantes, de acordo com horários da programação (nacional e local), mercado (nacional, e/ou
regional), break exclusivo, observações importantes, produtos de desenvolvimento comercial, patrocínios,
material de exibição, geração via satélite e exibidoras da Rede Globo. Como a TV Globo não divulga valores dos
custos pertinentes às inserções das chamadas nos blocos comerciais que a empresa aloca para si própria, o
cálculo foi feito a partir das tarifas para a transmissão em rede nacional, correspondendo, respectivamente, a
média de cada período do dia (matutino, vespertino, noturno e madrugada), de segunda a sexta-feira. Portanto,
para efeito aritmético, desconsiderou-se os valores dos mesmos, praticados pela empresa aos sábados e
domingos. Os valores utilizados estão baseados nos custos dos comerciais de 30 segundos. Conversão à moeda
norte-americana pela cotação de cada dólar no valor de R$ 2,30.
97
MÍDIA DADOS. Grupo de Mídia São Paulo. São Paulo: Porto Palavra Editores Associados, 2005, p. 421.
160
para criar e estimular a presença num determinado auditório ou, manter os filiados que já
estão no âmbito da empresa.
A ‘repetição’, enquanto figura argumentativa, acentua, duplica a sensação de
presença do objeto, pessoa ou da situação a ser mediada. Cremos que a
repetição, além desse efeito duplicador e reforçador de que fala Perelman, é
responsável também por uma certa progressão e alargamento do sentido.
Assim, a repetição faz com que atribuamos diferentes valores semânticos a
cada um dos elementos repetidos. [...]. Como variáveis e decorrências da
repetição, aparecem outras técnicas verbais argumentativas, tais como a
‘insistência’, a ‘enumeração’ e a ‘evocação de detalhes’, que procuram não
só reafirmar a presença, mas também buscam fixar o todo a ser retido,
insistindo e descrevendo a seriação dos detalhes que compõem esse todo98.
Segundo Perelman, essa adesão, essa presença no auditório, se dá por meio de um uso
consciente e calcado do verbal, onde várias possibilidades evocadoras e mantenedoras da
presença são exploradas, para se manter vivos para a consciência certos elementos (objetos,
pessoas, emoções - reais ou não), mesmo que não haja qualquer base calcada em
demonstrações formais ou provas, pois
o sentimento considera apenas o presente; a razão considera o futuro e a
passagem do tempo. E pelo fato de o presente preencher mais a imaginação,
a razão comumente é vencida; mas depois que a força da eloqüência e a
persuasão fizeram parecer presentes as coisas futuras e remotas, então a
razão prevalece sobre a revolta da imaginação99.
A TV Globo vai explorar e potencializar, de fato, estas possibilidades evocadoras e
mantenedoras, ao buscar manter vivo à atenção nela, isso ocorre quando manipula uma
relação de antes-depois que, justifica-se, apenas aos objetivos dela. Ela recorre a este
expediente porque precisa reconstruir a realidade que permite a empresa dar fluxo ao que
processa, opera e administra, por isso, essa dimensão do tempo se dá sempre pelo foco de um
eterno presente, sempre num sentido de um hoje interminável.
O título deste trabalho provém justamente daí, pois para a empresa, Todo dia é o mesmo
dia, como ele precisa manipular isso, escamotear esta reconstrução da realidade, ela vai
recorrer a esse jogo de antes-depois, mas que sempre remete a um mesmo sentido do agora.
98
99
ROCCO, Maria Thereza F. A Linguagem Autoritária, p. 62, aspas e grifos da autora.
Ibid, p. 61.
161
Então, mesmo quanto recorre a um amanhã, este é colocado num sentido de infinito que
nunca chega. Torna-se uma promessa que está constantemente sendo substituída, mas que,
concretamente, não se realiza, uma vez que faz parte do jogo do antes-depois. Caso contrário,
se este amanhã chegar, os filiados podem entender que não há a necessidade de se ver,
assistir, acompanhar um algo mais.
As chamadas, embora, tragam em suas partes o todo (metonímia) do próprio programa
ou, serviços ofertados, juntamente com a metáfora da TV Globo, elas buscam modalizações
do ser para manter seus subordinados num eterno hoje presencial (modalização de estado de
se fazer presente), que são engendrados pela força do texto oral (o verbal do narrador) que
apóia, reproduz e ancora o sentido desses detalhes que emocionam, tensionam, mais
eficazmente, o próprio processo de persuasão do veículo (televisão), na medida em que esse
visual que causa impacto, terá existência mais real e, sentido mais amplo, pela mediação do
verbal100. É por este verbal que o imperativo (ordem) do dirigente deve ser compreendido.
Logo, esse verbal está reportando ao mesmo hoje, sempre ao momento do aqui e agora,
ou, no máximo daqui a pouquinho. Num único dia da programação, a empresa chega a citar
todos os outros dias da semana, como, por exemplo, nesta segunda (feira)!, nesta terça
(feira)!, nesta quarta (feira)!, ..., ou, ainda, domingo no Fantástico!, e, assim por diante. Isto
por si só evidencia que a empresa vai inculcar nos filiados um hoje que nunca tem fim, já que
para ela, a repetição é um incansável jogo do antes-depois.
Mesmo quando manipula com um amanhã ou, vez por outra, com
na próxima
segunda,..., ou, dia tal estréia, ou ainda, em setembro estréia (ou qualquer outro mês, por
exemplo), ela, a TV Globo, sempre remete e reforça este jogo do hoje, do agora e do aqui. Ela
usa essa manipulação para instigar, provocar uma expectativa, fantasias que na realidade
100
ROCCO, Maria Thereza F. A Linguagem Autoritária, p. 63.
162
fixam os filiados no presente e no auditório dela, cada qual em seu espaço delimitado, é a
manutenção, o reforço de manter a posição de lugar e da hierarquia.
O clímax deste simulacro para a empresa é reforçado pela narração do enunciado de
chamadas que explicitam o próprio Hoje, já que o narrador vai anunciar que este hoje só
ocorre depois de alguma coisa. O estilo narrativo das chamadas é típico da década de 1970,
quando consolida-se a própria programação da emissora, ou seja, é por isso que a narração do
locutor em off evidencia-se de forma arrastada, pastosa, melosa, como se estivesse
apaixonado, inclusive, isso, vai conferir a chamadas, uma conotação naquilo que é
denominado e conhecido popularmente, como algo brega, fora de moda.
Na realidade, este estilo narrativo é usado justamente para despertar as paixões no
telespectador, ao mesmo tempo em que servem de contraste as propagandas dos clientes,
agências de publicidade e anunciantes, isso se dá, para que ocorra o consumo simbólico da
publicidade.
Outra observação importante no jogo do antes-depois, encontra-se nos horários
anunciados da programação. Para os horários matutinos e vespertinos, determinadas
chamadas especificam a hora em que se dará a exibição do programa ou serviço, como por
exemplo, amanhã às 9 horas ..., ou, ainda, Hoje, às 5 horas da tarde ..., já nos horários da
noite, não se vê isso. Os enunciados trazem, ainda, muitas vezes, apenas um depois do
programa tal ...., ou, ainda, suas derivações, como na próxima segunda..., por exemplo.
Além da explicação dessa manipulação, de um antes-depois, há de se entender que tal
situação remete para duas vertentes, ambas imbricadas ao ideológico, tanta a técnica, como a
sócio-cultural. Uma é que em televisão, há uma tendência de não anunciar horários relativos
aos períodos noturnos, como 23 horas, por exemplo, quando muito da necessidade de utilizarse horários para o período noturno, diz-se que a exibição se dará ás 11 horas da noite, por
exemplo. Nesse caso, entende-se que a emissora manipula com o intuito de maximizar o
163
espaço da propaganda, ou seja, há uma economia de tempo, espaço (imagem e verbal), dando
mais fluidez aquilo que se anuncia.
No tocante ao que implica ao campo social e, portanto, ideológico, o motivo é mais de
ordem político-cultural que, propriamente dito, pertinente à trama lingüística. O que liga as
chamadas da programação noturna e, o modo de anexar a elas os horários, resulta da tradição
da própria industria cultural brasileira, o mundo do trabalho e lazer, ou seja, há um legado
resultante das transformações ocorridas durante o desenvolvimento desta mesma indústria, a
partir dos anos de 1930, quando passa a ser essencial à ideologia da cultura brasileira, criar
simbolicamente a idéia de homem trabalhador e cumpridor de horários. Essa tradição da
sociedade industrial vem embutida nas chamadas.
As chamadas, assim, são manipuladas de forma que não explicitem que a programação
avança até o início da madrugada, desta maneira, a empresa contorna a questão da
responsabilidade de levar seus filiados a terem menos horas de repouso, ou seja, a empresa
não se vê como responsável pela diminuição dessas horas de repouso que seus filiados terão,
mesmo sendo a empresa a responsável pela transmissão da programação madrugada adentro.
Portanto, quando a questão da malandragem for abordada por ela, será sempre vista pelo
enfoque saudosista do malandro que dava um jeito para viver.
É por este enfoque, também, que o jogo do antes-depois, deve ser levado em conta. Isso
não significa que a empresa não necessite demarcar com exatidão o horário noturno. Vai até
fazê-lo, quando das mudanças que implicam na rotina da transmissão cotidiana,
principalmente, nas transmissões de eventos que ocorrem em outros continentes que está
atrelada a questão do fuso horário. Nesses casos, em nome da audiência e dos custos entre a
operação e direitos de transmissão, ela vai, vez ou outra, explicitar o horário, mesmo que seja
necessário explicitar que a transmissão, por exemplo, vai ocorrer no meio ou, no final da
madrugada.
164
Tomada pelo âmbito interno, sob o ângulo daquilo que incide aos funcionários do setor
cultural, as chamadas remetem estes a não refletir em horários, mas sempre num antes e
depois. A chefia direciona os empregados, lembrando-os que os serviços destinam-se a tal
programa ou, vai ao ar, antes-depois da exibição de determinado evento. Neste caso, as
chamadas são instrumentalizadas com o objetivo de inculcar o agendamento da produção e
programação.
[...] função de calendário, de estruturação, função importante sobretudo
porque, [...], a televisão é uma espécie de relógio imutável da vida cotidiana.
[...]. necessidade de respeitar os grandes gêneros da programação. Por mais
arbitrários que sejam, eles constituem portas de entrada a uma oferta de
imagens de todo gênero. Convencional e, por vezes, artificial, a grade de
programas (informação, esportes, documentários, variedades, programas
infantis ...) oferece uma espécie de modo de usar, de pré-grade de
interpretação para esse fluxo de imagens, sem falar que a “codificação” feita
pelo espectador modifica essa classificação, ou seja, esquece-a totalmente
nos seus procederes de mudança de sentidos. Essa função de ordenamento de
realidade não é necessária, a não ser pelo seu lado antiquado, tradicional e
familiar que constitui, na realidade, uma espécie de proteção. Em outras
palavras, imagem e organização - quer dizer, programação - ligam-se para
não deixar o espectador sozinho diante da descontinuidade de imagens101.
As chamadas, portanto, processam os paradoxos dos diferentes em iguais, logo, a TV
Globo evita deixar pistas de elementos contraditórios, para isto, ela vai atrelar as disparidades
existentes, pela simetria e complementaridade daquilo que organiza, como se tudo e todos
fossem únicos e conexos.
[...]. A mudança deixa traços nos textos na forma de co-ocorrência de
elementos contraditórios ou inconsistentes - mesclas de estilos formais e
informais, vocabulários técnicos e não-técnicos, marcadores de autoridade e
familiaridade, formas sintáticas mais tipicamente escritas e mais tipicamente
faladas, e assim por diante. À medida que uma tendência particular de
mudança discursiva se estabelece e se torna solidificada em uma nova
convenção emergente, o que é percebido pelos interpretes, num primeiro
momento, como textos estilisticamente contraditórios perde o efeito de
‘colcha de retalhos’, passando a ser considerado ‘inteiro’. Tal processo de
naturalização é essencial para estabelecer novas hegemonias na esfera do
discurso102.
Ao combinar, engessar e restringir, momentaneamente, elementos tão dispares, a
empresa consegue dar transitividade ao que administra. Ao cambiar os elementos que
101
102
WOLTON, Dominique. Elogio do Grande Público: uma teoria crítica da televisão, p 69-70.
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social, p. 128.
165
manipula pelas chamadas, a TV Globo implementa um procedimento de desembreagem ao
fornecer os actantes e as coordenadas espácio-temporáis do discurso da programação e,
simultaneamente, contornar a relação comercial que objetiva a empresa a disponibilizar o que
opera e processa, emprestando-lhe efeitos de realidade ou, de referente103, por isso, que as
chamadas vão possibilitar, tanto a tematização, como figurativação da programação e
serviços.
A TV Globo vai manipular os textos que processa de maneira a criar compatibilidade
em forma de modalidades naquilo que organiza dotando seus filiados de competência modal
variável, ao mesmo tempo que, abre caminho para um melhor tratamento das relações
intersubjetivas104.
Esse cuidado dos processos argumentativos se dá para que não haja uma ruptura dos
dois principais atributos que a empresa desenvolveu ao se expandir em rede, a conectividade,
ou seja, a capacidade estrutural de facilitar a comunicação sem ruídos entre seus componentes
e clientes, como a coerência, isto é, a medida em que há interesses compartilhados entre os
objetivos da rede, (...) seus componentes 105, e a clientela que busca atender.
O que interessa aqui é essa coerência, visto que no Capítulo 1, aborda-se a questão da
rede e a capacidade estrutural que a empresa desenvolve. Portanto, as chamadas permitem
anular o efeito de colcha de retalhos na aglutinação dos textos tidos como dispares. É por isso
que as chamadas, ao colocarem-se como contextualizadoras da TV Globo, podem ser
entendidas como a forma de explicitar a própria posição que ocupa no mercado. Isso pode ser
entendido naquilo que Michael Porter afirma ser o posicionamento em que a empresa colocase perante os rivais.
Isso significa que, quando algum concorrente copia a TV Globo, incluindo aí as
chamadas, estas, por não se encontrarem no mesmo ambiente da líder, ou seja, mesmo
103
BARROS, Diana Luz P. de. Teoria Semiótica do Texto, p. 54-55.
Ibid, p. 43.
105
CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura, p.191.
104
166
contexto, revelam uma identidade e processos de legitimação, que muitas vezes não condiz,
em toda sua dimensão, com aquilo que tenta-se emular da emissora líder, mas que o rival
pretende assumir como sendo pertinentes às próprias atividades que desenvolve, mesmo
encontrando-se num ambiente adverso ao da posição da TV Globo.
Ao copiar as chamadas, este rival até pode obter resultados próximos dos estimados, já
que, se o fez, é porque também passou a praticar métodos e critérios de produção
semelhantes, entretanto, o sentido que deriva daí, acaba por resultar, também, em paradoxos,
uma vez que determinadas implicações, ligadas ao posicionamento de mercado deste mesmo
concorrente, abre espaço para interpretações outras que vão além dos esperados, já que
acabam por expor os fatores e fatos que, em algum momento, vão se demonstrar não
correspondentes as práticas cotidianas deste rival, o próprio mercado e os indivíduos
heterogêneos dispersos no campo social aos quais busca-se atrair a atenção.
A imagem da televisão, mais do que qualquer outra imagem animada, é,
portanto, tributária de um contexto. É precisamente por isso que ela se
distingue do cinema e constitui, realmente, uma atividade de comunicação
social, pois remete a um quadro e a um contexto. Podemos compreender
melhor o status da frágil imagem televisiva se considerarmos a televisão
como uma tecnologia de contato bem como de imagens. Contato, além do
mas, de um gênero particular, pois é um laço feito à distância e de um gênero
em si mesmo particular e especular. Dizer que não existem imagens de
televisão sem contexto de produção e recepção enfatiza também a dimensão
social da televisão, que se encontra nas duas características de sua imagem: a
identificação e a representação. Estas não lhe são próprias, aplicam-se a
todas as imagens animadas, mas assumem também aqui uma dimensão
particular, uma vez que a televisão é o principal instrumento de percepção do
mundo da grande maioria da população106.
Assim, pode-se dizer que quando algum rival tenta ficar parecido com a TV Globo,
conseqüentemente,
assumindo
um
enunciado
semelhante
às
chamadas
da
líder,
obrigatoriamente, deve levar em consideração a necessidade de alguns ajustes. Isto é, ao
imitar as chamadas, deve-se ajustá-las ao contexto em que este concorrente encontra-se, pois,
caso contrário, elas vão evidenciar um equívoco, pois o contexto verbal tem duas espécies de
106
WOLTON, Dominique. Elogio do Grande Público: uma teoria crítica da televisão, p. 69.
167
efeito. Primeiro, pode eliminar um ou mais sentidos. Segundo, pode conferir destaque relativo
a um dos sentidos sem eliminar os outros.
Embora funcionem muito bem em alguns casos, [...] são muito ilusórios em
outros casos, especialmente onde palavras e significados estão envolvidos
em processos de contestação e mudança social e cultural. Nesses casos, a
relação palavra-significado pode mudar rapidamente, e assim muitos
significados potenciais são instáveis, e isso, pode envolver disputa entre
atribuições conflitantes de significados e significados potenciais das
palavras. [...]. Além disso, a mudança e a contestação de significados
resultam em mudanças na força e na clareza dos limites entre significados no
interior do significado potencial da palavra, e, de fato, a contestação pode
girar em torno desses limites. Ela pode girar também em torno da natureza
da relação entre significados no interior do significado potencial da palavra,
em torno do tipo de relação, se de complementaridade ou se, ao contrário,
hierárquica, e, nesse caso, em torno de relações específicas de dominação e
subordinação entre significados107.
Como exemplo, pode-se ter a chamada de um telejornal em rede nacional da TV Globo,
já que ao ser introduzida durante a programação, esta enunciação promete a exibição do
programa para todo o território nacional. Logo, os clientes entendem que o telejornal terá
início, meio e fim como um programa único. Já na concorrência, existem grades de
programação mal estruturadas, confusas, com mudanças de horários constantes de parte da
programação ou, de determinado programa, incluindo aí telejornais. Mas, não é só, há
também grades de programação, dos concorrentes, com falhas de gerenciamento entre a
central e os nós que constituem tal rede rival, onde a exibição em rede nacional, que havia
sido anunciada em determinado horário, possui bloco ou blocos intermediários, inseridos em
âmbito regional ou local.
[...], isto mostra que as marcas de coesão e conexão, que têm por função
facilitar a interpretação e, portanto, o cálculo da coerência, podem também
ser responsáveis, quando mal empregados, por incoerência. É preciso
ressaltar que essa incoerência parece não atingir o texto como um todo, por
ser local, e não impede o cálculo do sentido. [...] o uso de elementos não
próprios de um certo tipo de texto também é responsável por incoerências
locais108.
107
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social, p. 231-233.
KOCH, Ingedore Grunfeld V.; TRAVAGLIA, Luiz C. Texto e Coerência. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1993, p.
35-36.
108
168
Koch e Travaglia, explicam que a incoerência, nestes casos, pode ocorrer em duas
situações distintas. Na primeira, tais textos trazem consigo seqüências nas quais não há
nenhuma marca de relação entre os anunciados que as constituem. Na segunda, ocorrem
seqüências que contêm marcas de relação entre os enunciados ou partes de enunciados que as
constituem, ou seja, esta seqüência se coloca de tal forma que algumas são aceitáveis e outras
não, porque os marcadores que elas contêm não podem ser usados de qualquer modo por
terem uma certa especialidade no sistema da língua, ou aqui, no caso, no sistema da própria
rede e empresa concorrente.
Texto incoerente é aquele em que o receptor (leitor ou ouvinte) não
consegue descobrir qualquer continuidade de sentido, seja pela discrepância
entre os conhecimentos ativados, seja pela inadequação entre esses
conhecimentos e o seu universo cognitivo. Texto coerente é o que ‘faz
sentido’ para seus usuários, o que torna necessária a incorporação de
elementos cognitivos e pragmáticos109.
Para os autores, há a opção de se aceitar que textos incoerentes não existam. De acordo
com eles, o texto coerente é aquele que é usado numa formação bem particular, mas quando
este mesmo texto é utilizado inadequadamente em certos encadeamentos de frases, pode ser
caracterizado, também, não como incoerente, mas como textos inaceitáveis. Isso acontece,
segundo eles, porque é sempre possível calcular (ao menos em abstrato) uma situação na qual
elas são interpretáveis como exprimindo uma relação plausível entre os estados de coisas110.
Durante todos estes anos de atuação no mercado, a TV Globo vem demonstrando
desempenho superior aos concorrentes, exatamente, por implementar uma trama lingüística
que ela justifica como coerente ao que dissemina. Porém, a empresa é surpreendida ou ainda,
encontra, vez por outra, empecilhos na manutenção desta mesma coerência, quando dos
descuidos, por parte de seus funcionários, na manutenção das rotinas internas da empresa, o
que acaba por implicar diretamente sobre a coerência discursiva e sobre a questão ideológica
109
110
KOCH, Ingedore Grunfeld V.; TRAVAGLIA, Luiz C. Texto e Coerência, p. 32.
Ibid, p. 34.
169
da firma. Nesses momentos, o auditório desintegra-se, some, o espaço demarcado deixa de
existir e tudo se desmancha no ar.
A quebra deste discurso, ou seja, a ausência daquilo que para ela é coerente, vai
acontecer mais pelas falhas nas rotinas de produção e operação e, menos, pelos equívocos na
constituição do discurso que articula e dissemina. Essas falhas, quando ocorrem, podem
acontecer por inúmeros motivos. Um delas encontra-se no setor operacional, nesse caso,
envolve duas situações distintas, mas imbricadas: o quadro de pessoal e o de equipamentos,
maquinário. No quadro de pessoal, tanto do departamento artístico, jornalístico e de produção
dos programas, como, principalmente, os subordinados que operam o departamento técnico,
ou seja, os envolvidos no processo de produção e transmissão podem, em algum momento,
falhar, cometer erros, resvalar em descuidos na seqüência dos procedimentos do roteiro ou,
das rotinas internas, quando não são executadas com atenção, aí, nestes casos, ocasionam à
ruptura do discurso televisivo da empresa.
Já na utilização e operacionalidade de equipamentos, como está baseado na utilização
do tecnológico, principalmente, nas transmissões ao vivo, o sinal via satélite, apresenta-se por
uma ínfima diferenciação entre os dados que constituem a transmissão do áudio e do visual.
O sinal destes dados, ao chegar aos receptores (televisores), evidenciam uma diferença
da velocidade entre imagem e áudio. Nesses casos, a imagem que chega aos televisores está à
frente do áudio em poucos milésimos de segundo, o que, se não chega a criar certa
incoerência, de certa maneira, resulta num desconforto para aqueles clientes mais atentos, os
quais podem vir a perceber o descompasso, a ausência de sincronia entre o texto visual e oral.
Há aí, no mínimo, um ruído na decodificação daquilo que está sendo recepcionado pelos
clientes telespectadores. Este caso acaba por implicar na questão da atenção, podendo levar
parte dos clientes a deixarem de prestar atenção no que é transmitido. Essa mesma
diferenciação dos textos, provocados pela diferença de velocidade na recepção destes, oral e
170
visual, vez ou outra, torna-se perceptível quando, da troca lingüística entre os funcionários
narradores. Entre um diálogo e outro, há uma interrupção no fluxo discursivo, o que também
ocasiona uma quebra momentânea deste discurso.
Como a variação da velocidade dos dados, entre áudio e imagem, não são solucionados
de vez pela tecnologia, sendo que no sistema analógico tal diferença seja mais perceptível, a
TV Globo vem praticando uma manobra que reduz esta ocorrência nas transmissões. Tornouse prática habitual na empresa gravar parte do material que deva ser transmitido ao vivo, em
tempo real. A empresa, muitas vezes, grava e edita parte do material que deve ser transmitido
como se fosse ao vivo. Há uma manipulação da linguagem em que os consumidores são
induzidos a acreditarem que tal situação se dá em tempo real, quando, muitas vezes, isso não
ocorre de fato. Isto se dá com mais freqüência no departamento de jornalismo da empresa,
onde o conteúdo que deveria ser transmitido ao vivo é encaixado numa seqüência que permite
simular uma coerência que na realidade não existe. Com esse engodo, a empresa, assim, reduz
ao mínimo qualquer tipo de ocorrência que venha causar, se não uma ruptura discursiva, ao
menos reduz, a probabilidade de falhas operacionais e de rotina.
Outra ruptura discursiva relacionada ao setor operacional,
que ocorre durante as
transmissões, ocorre em aparelhos receptores que utilizam antena parabólica, onde o sinal da
empresa é captado diretamente do satélite, sem que haja a necessidade da intermediação de
qualquer outra empresa na distribuição do sinal da TV Globo, conhecido no mercado como,
TV por assinatura, via cabo ou satélite.
Nesse caso, as chamadas da programação continuam sendo inseridas nos blocos
comerciais, mas sem serem seguidas, em parte do mesmo bloco comercial, por outras
propagandas e anúncios. Não há uma seqüência completa de textos, ocorre aí um rompimento
do discurso que a empresa processa, ou seja, há neste caso, uma ausência da coerência de
sentido, há vazios e espaços pretos.
171
Em todas estas situações relatadas, essas ocorrências tornam-se portas de saída111 do
auditório, do espaço, dos lugares da empresa. São nestes momentos em que o consumidortelespectador e funcionários, mesmo que involuntariamente, tem a nítida noção de que tal
realidade transmitida, produzida artificialmente, na realidade é fruto de uma reconstrução em
que a TV Globo colocou-se como mediadora e, que naquele segundo, ou segundos de
ausência dela, de vazio discursivo, de ausência de continuidade, há uma fragmentação, uma
falha, uma incoerência, uma ausência de sentido, lacunas, vazios em que a empresa deixa de
ter um discurso coeso.
Além destes fatores, há, ainda, de se considerar a possibilidade da quebra de
equipamentos que vão possibilitar um erro na seqüência deste discurso ou, vão inviabilizar,
momentaneamente, a própria transmissão. Quando não, a interrupção no fornecimento de
energia, impede a transmissão e recepção do sinal da empresa em determinada localidade.
Então, a ruptura do discurso da empresa implica diretamente sobre o contexto. Uma vez
interrompido o discurso, esse fluxo sofre um desarranjo, desaparece, levando consigo o
auditório virtual.
Como as chamadas são fundamentais para o princípio da continuidade dos textos que a
TV Globo processa, elas também podem ser utilizadas como calhau, ou seja, vão completar
ou cobrir possíveis espaços que não puderam ser preenchidos pela venda publicitária, sob
responsabilidade do departamento comercial da emissora. Mesmo quando ocorrem problemas
técnicos, muitas vezes, utiliza-se um número maior de chamadas para que o setor operacional
ganhe tempo na tentativa de solucionar possíveis complicações.
Calhau pode ser entendido como o “anúncio geralmente usado para preencher espaço
destinado á publicidade. Por extensão, o comercial de TV ou rádio com o mesmo fim.
111
Grifo meu.
172
Geralmente, trata-se de mensagem do próprio veículo, ainda que não se confunda com sua
autopromoção”112.
Da mesma forma, mas fazendo-se o caminho inverso, a empresa, para recuperar o atraso
na transmissão da programação, vai retirar dos blocos comerciais uma quantidade
considerável de chamadas planejadas para serem inseridas, vinculadas. Com isso, a TV Globo
pode recuperar o tempo perdido ou, reduzir atrasos tanto por falhas operacionais, como da
transmissão de acontecimentos factuais que não estavam no planejamento da programação.
Observa-se que em períodos eleitorais que a empresa reduz não só os blocos da própria
programação, mas vai diminuir, também, a própria quantidade de inserções das chamadas,
numa tentativa de evitar transtornos aos clientes agências de publicidade e anunciantes.
A legislação do setor da rádio-difusão especifica que “o tempo destinado à propaganda
comercial de qualquer natureza, nas estações de rádio e de televisão, não poderá exceder de
25% (vinte e cinco por cento) do total de irradiação diária”113. Isso significa que, para cada
hora de transmissão, haverá 15 minutos de intervalos comerciais. Sendo que, cada bloco
comercial, interprogramas, é limitado pela legislação vigente, obrigatoriamente, devendo ter
duração máxima de cinco minutos.
A TV Globo não vai utilizar todo o tempo que a legislação permite. Para cada 15
minutos que pode vincular comercial, a empresa só vai utilizar 12 minutos, ou seja, a
emissora retém para ela mesma, três minutos, de cada hora, para inserir suas próprias
chamadas. Estes três minutos são utilizados pelas emissoras da TV Globo e os nós da rede,
em uma proporção que se dá de três por um, ou seja, em média, para cada três chamadas da
TV Globo, uma é local ou regional.
112
TV GLOBO. Comercial. Disponível em: <http://comercial.redeglobo.com.br>. Acesso em 05.mai. 2005.
SANTOS, Reinaldo. Vade-Mécum da Comunicação. 6 ed. Rio de Janeiro: Trabalhistas S.A., 1988, p. 156.
O autor refere-se ao Artigo 16 do Decreto n.º 52.286, de 23 de Julho de 1963, que instituiu as normas que
regulamentam as atividades das estações de rádio e televisão do país.
113
173
A estratégia facilita a manobra nos eventuais contratempos, tanto para alongar, como
para encurtar a programação. Aí está um dos segredos dela, ou seja, ela não ocupa todo o
espaço destinado à propaganda que tem direito. Poderia até fazê-lo, mas ao destinar à
comercialização, 80% do espaço que administra no bloco comercial, ela, a empresa, acaba por
valorizá-lo ainda mais. Logo, os 20% desse espaço, que é utilizado por ela mesma, é
proporcional, aproximadamente, ao custo que ela tem com estes mesmos espaços comerciais
que aloca para si.
Os concorrentes, como brigam pela fatia de 22% da verba publicitária que sobra no
mercado de televisão de sinal aberto, não podem se dar a este luxo. “Isto significa que todos
os elementos de uma organização devem incorporar dimensões críticas do ambiente em que
atuam para que possam auto-organizar-se para suportar as demandas que provavelmente
enfrentarão”114.
Como se vê, as chamadas podem ser usadas de forma a quebrar, romper essa ordem
estabelecida, proporcionando e dando oportunidade para que, esse mesmo discurso da TV
Globo, seja desarticulado e rearticulado num processo de retro-alimentação.
Assim, ao considerar o grau de importância que a linguagem adquire na luta de classes,
pois ela contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta ou
indiretamente, o moldam e restringem, suas próprias normas e convenções e também as
relações, as identidades e, as instituições que lhe são subjacentes115, permite compreender que
os discursos das chamadas estejam sempre numa mudança em progresso nas ordens do
discurso do que, propriamente dito, numa mudança nos eventos discursivos, que acabam
proporcionando a TV Globo um caráter organizacional hegemônico.
À medida que os produtores e os intérpretes combinam convenções
discursivas, códigos e elementos de maneira nova em eventos discursivos
inovadores estão, sem dúvida, produzindo cumulativamente mudanças
114
MORGAN, Gareth. Imagens da Organização: edição executiva. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 128.
MAGALHÃES, Izabel. Prefácio à edição brasileira. IN: FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança
social. Brasília: ed. Universidade de Brasília, 2001, p. 11.
115
174
estruturais nas ordens de discurso: estão desarticulando ordens de discurso
existentes e rearticulando novas ordens de discurso, novas hegemonias
discursivas. Tais mudanças estruturais podem afetar a ordem de discurso
‘local’ de uma instituição, ou podem transcender as instituições e afetar a
ordem de discurso societário. O foco na investigação da mudança discursiva
deveria manter a alternância entre o evento discursivo e tais mudanças
estruturais, porque não é possível avaliar a importância do primeiro para os
processos mais amplos de mudança social sem considerar as últimas, da
mesma forma que não é possível avaliar a contribuição do discurso para a
mudança social sem considerar o primeiro116.
O discurso das chamadas da programação da TV Globo é construído no sentido de
evitar falhas que venham a prejudicar o próprio desempenho da empresa e daquilo que ela
processa, pois, além delas evidenciarem com mais nitidez a ideologia da empresa, elas, as
chamadas, demonstram que, quem fala tem uma intenção em fazê-lo, este agente que fala tem
um plano ao levar em conta determinados fatores situacionais, já que acredita que haverá
êxito para isso, e, que tal agente, ao realizar tais operações necessárias para expressar
verbalmente esse plano, através das estruturas, acredita que o receptor, cliente, seja capaz de
reconstituir ou identificar a intenção comunicativa inicial.
Na primeira, o falante teria uma intenção comunicativa impossível no
contexto situacional, [...], neste caso é pouco freqüente e ocorreria mais com
pessoas que tenham problemas psíquicos ou neurológicos. Na segunda fase,
ocorre falha se o falante foi incapaz de projetar corretamente o plano de
produção do texto, quase sempre por má apreciação da situação e das
possibilidades do ouvinte. Por exemplo, contar um fato sem precisar bem os
protagonistas, julgando que são conhecidos do ouvinte e que este pode
reconhecê-los. Na terceira fase, as falhas repercutem diretamente sobre a
formulação lingüística, de forma que o texto, além de incoerente, seria
também sem coesão e/ ou “gramaticalmente incorreto”. Todas essas
evidencias levam-nos a defender a posição de que não existe o texto
incoerente em si, mas que o texto pode ser incoerente em / para determinada
situação comunicativa. Assim, será bom o texto quando o produtor souber
adequá-lo à situação, levando em conta intenção comunicativa, objetivos,
destinatários, outros elementos da situação de comunicação em que é
produzido, uso dos recursos lingüísticos etc. Por tudo isso, ao dizer que um
texto é incoerente, temos de especificar as condições de incoerência, porque
sempre alguém poderá projetar um uso em que ele não seja incoerente117.
A coerência das chamadas da TV Globo revela-se no nexo de causalidade,
telespectadores, agências de publicidade e anunciantes, o que resulta na conexão destes
116
117
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança social, p. 128.
KOCH, Ingedore Grunfeld V.; TRAVAGLIA, Luiz C. Texto e Coerência, p. 36-37.
175
públicos à empresa, os quais encontram sentido na Rede, apresentando-se como um todo
conexo de sentido com aquilo que ela administra.
Assim, as chamadas servem como um manual de consulta, onde todos aqueles que
sintonizam no dial, o canal da emissora, acabam por verificá-las, consultá-las, prestam
atenção e, desta forma passam a manter uma relação social com a empresa, visto que elas
permitem serem interpretadas com um sentido coeso ao que está sendo ofertado e proposto,
organizado, na grade de programação. Conseqüentemente, as chamadas constituem-se como
[...] portas de entrada a uma oferta de imagens de todo gênero. Convencional
e, por vezes, artificial, a grade de programas (informação, esportes,
documentários, variedades, programas infantis...) oferece uma espécie de
modo de usar, de pré-grade de interpretação para esse fluxo de imagens, sem
falar que a “codificação” feita pelo espectador modifica essa classificação,
ou seja, esquece-a totalmente nos seus procederes de mudança de sentidos.
Essa função de ordenamento da realidade não e necessária, a não ser pelo
seu lado antiquado, tradicional e familiar que constitui, na realidade, uma
espécie de proteção. Em outras palavras, imagem e organização - quer dizer,
programação - ligam-se para não deixar o espectador sozinho diante da
descontinuidade de imagens, [...], tanto o inesperado das imagens quanto o
fato de sabermos que sua aparição é organizada numa grade, por definição
insatisfatória, mas que constitui uma espécie de aquecimento temporário da
percepção118.
As chamadas em análise são consideradas como um discurso tridimensional, uma vez
que reúne tanto o texto, a prática discursiva e prática social sem engessar qualquer um destes,
ao lhe proporcionar
e contribuir diretamente, portanto, para retratar e modificar as
representações do mundo, e, assim, abrir espaço para a própria programação119.
Como se vê, as chamadas apresentam-se de forma multifacetadas. Podendo ser
utilizadas desde ferramentas para a captação da expectativa da atenção dos telespectadores,
como instrumentalizar os filiados a desempenharem determinadas funções, além, claro, de
facilitar as operações que envolvem a transmissão da programação, os resultados de anúncios
e, também, criar um todo de sentido coerente ao que a empresa administra.
118
119
WOLTON, Dominique. Elogio do Grande Público: uma teoria crítica da televisão, p. 70.
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social, p. 100-106.
176
As chamadas dão conta das explicações que correspondem aos fenômenos identificados
e que encontram suas correspondentes nas várias fontes de evidências derivadas da
triangulação entre proposições teóricas, dados coletados e analisados, o que possibilita
explicar os supostos vínculos causais em intervenções da vida real ao facilitar a investigação
de um determinado tópico por um conjunto de procedimentos pré-especificados120.
Logo, o discurso das chamadas é baseado num tripé constituído por coerência,
organização e permanência deste discurso ao longo da programação. Na TV Globo, as
chamadas exprimem essa relação, entre os estados das coisas que são anunciadas,
organizadas, num todo de sentido lógico com a programação e, por isso, a permanência deste
discurso desde a empresa ter se consolidado na posição de líder de mercado, no final da
década de 1970. Isso leva a entender porque as chamadas da empresa são as recordistas na
permanência de tempo em que são empregadas, caracterizadas como um tipo específico de
propaganda, devendo ser consideradas, no Brasil, como a campanha publicitária que mais
tempo permanece com o mesmo sentido.
120
YIN, Robert K., Estudo de Caso: planejamento e métodos, p. 34-35.
CAPÍTULO 5
Do sistema analógico para o digital:
a convergência ideológica
“Terá
uma
alma,
perguntava a si mesmo,
esse personagem que
sabe
moldar
sua
própria história para
exprimir almas tão
diversas? E se possui
almas diversas, através
de que boca, me dirá a
verdade?”1.
A implantação do Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre (SBTVD-T), chega
com a promessa de espetáculo de imagens e recursos de interatividade. A cidade de São Paulo
e região metropolitana da capital paulista são as primeiras localidades do país a conviver com
essa tecnologia a partir do próximo ano. Todas as geradoras e retransmissoras televisivas de
sinal aberto no país deverão estar operando pelo sistema digital nos próximos sete anos. Neste
prazo, o sistema deve estar implantado e cobrindo todo o território nacional.
Durante toda a próxima década, portanto, as principais redes nacionais de televisão,
Rede Globo, Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), Rede Record e Rede Bandeirantes,
estarão operando, simultaneamente, tanto no sistema analógico como no digital. Nesse
sentido, não só a TV Globo, mas, também, as outras emissoras que atuam em rede no
mercado, empenham-se, ao menos, em manter nos patamares atuais, os índices de audiência
consolidados. Emissoras de sinal aberto têm nos clientes telespectadores, agências de
publicidade e anunciantes, a sua lógica de mercado. Sem um desses clientes, se tem,
proporcionalmente, a redução dos outros. É por isso, que nesta fase de transição para o
1
Personagem Nicetas Coniates perguntando a si próprio. In: ECO, Umberto. Baudolino. 2.ed. Rio de Janeiro:
Record, 2001, p. 49.
178
sistema digital, optou-se em manter os dois sistemas, analógico e digital, funcionando
simultaneamente.
Ao término deste prazo, de uma década, considerado como o período de implementação
do sistema digital de televisão brasileiro, os canais do sistema analógico existentes, retornarão
para o Estado, então, a partir de 2016, o sistema analógico será extinto.
O fato é que, tendo as chamadas da programação da TV Globo como objeto de análise,
é por ele que se condensa em um único estudo, as inúmeras implicações que recaem sobre o
setor de rádio-difusão brasileiro. Isso se dá, principalmente, porque as chamadas são elos que
da tematização na TV geralista, como, também, podem ser usadas como expoentes da
programação da multiprogramação da TV Digital
Nada disso vale para a televisão fragmentada, em que existe, por certo, um
princípio de programação, mas reduzido ao mínimo, em torno de programas
conexos ao tema central da televisão temática. A responsabilidade global
com a realidade sociocultural que está no cerne da programação geralista não
existe na televisão fragmentada. Se a televisão geralista foi muitas vezes
chamada de espelho da sociedade, a televisão fragmentada é um espelho
quebrado2.
As empresas que atuam no setor, portanto, passam a desenvolver um novo estilo de
programação, uma vez que contam com novos canais, no mesmo sinal de freqüência. Esses
canais, caracterizados pela multiprogramação, força as empresas televisivas a atuarem com
uma gestão voltada para uma demanda não conexa, diferentemente do que ocorrida com o
sistema analógico, onde a programação desenvolvida estava atrelada a um tema central, por
isso, a denominação de televisão geralista. Entretanto, a programação no sistema digital
constitui-se como fragmentada, o que prejudica conciliar a verba publicitária de forma
agregada. Isso exige das empresas que atuam no setor, um novo arranjo do processo produtivo
e administrativo.
2
WOLTON, Dominique. Elogio do Grande Público, uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996, p.
107.
179
Essa característica de fragmentação, intrínseca ao sistema digital, coloca em risco os
negócios das empresas do ramo e, principalmente, aquilo que interessa a TV Globo, uma vez
que é a empresa que pode ser a mais prejudicada na mudança do sistema analógico para o
digital, já que ela detém 78% da verba publicitária destina à televisão e 53% da audiência
anual dos telespectadores que conectam-se a uma rede de televisão de sinal aberto. Isso ocorre
porque, no sistema digital, passa a ter uma diversificação da oferta de espaços publicitários,
ao mesmo tempo em que ocorre a dispersão da audiência, o que tem reflexos diretos sobre as
tarifas praticadas pela empresa, aos clientes agências de publicidade e anunciantes.
Com o aumento da oferta de informação, entretenimento e locação dos espaços
publicitários, ou seja, dos produtos e serviços, por exemplo, cresce, também, a disputa pela
captura da expectativa da atenção dos clientes telespectadores, fator este fundamental para
que as empresas do ramo mantenham-se no lucro.
Richard Lanham denomina a concorrência pela clientela, no sistema digital, de
economia da atenção. De acordo ele, o mais importante nesse sistema, é despertar a atenção
dos usuários, pois a informação e entretenimento passam a ser abundante e virtualmente
ilimitada e, portanto, muito barata. Segundo Lanham, um outro elemento passa a valer muito,
que é a capacidade das empresas em despertar a atenção das pessoas3.
Logo, a TV Globo, mais do que nunca, passa a dar mais ênfase a captura da atenção de
seus clientes. Não há como evitar isso, pois além da multiplicidade de suportes, que permite
uma diversificação da oferta, correspondente à diversificação da demanda, em três domínios
principais: o lazer, a informação e o institucional, e devido à questão da interatividade, que
resulta na mudança das relações, entre rede e ser, a um nível próximo da escala individual, as
empresas televisivas, obrigatoriamente, passam a dar prioridade a critérios, tanto sociográfico,
como geográfico.
3
MARTHE, Marcelo. A nova era da televisão. Revista Veja, São Paulo, Ano 39, n. 36, p. 95, 13 set. 2006.
180
Trata-se de reunir os espectadores dispersos com base numa mesma
aspiração ou, ao contrário, de agir sobre a sua identidade geográfica, com a
única condição de que haja um mercado suficiente para uma tal produção.
Nos dois casos, esse tipo de televisão fracionada parece reunir as vantagens
do individualismo e da sociedade de massa, em que os indivíduos se
agrupam de modo essencialmente pessoal, todavia, o número de indivíduos
confere ao gosto particular de cada um significado coletivo. Não se trata
mais do número indistinto da sociedade de massa, mas ao contrário de um
reagrupamento sobre base eletiva, misturando as vantagens do
individualismo e da sociedade de massa, sem nenhum dos inconvenientes de
uma ou de outro4.
Nessa fase de transição, a TV Globo saiu na frente dos concorrentes, pois, embora a
estrutura da rede que controla, seja fruto de um processo histórico, a opção em tornar-se uma
produtora de conteúdo, foi acelerado pelo endividamento da Globopar (Globo Comunicações
e Participações), holding que até então não controlava a TV Globo, mas era responsável pela
administração das outras empresas do Grupo. Assim, centrada, basicamente, nessa atividade,
a emissora espera preencher a programação dos quatro canais que começa a administrar.
Depois que o sistema digital estiver consolidado, estão previstos para cada emissora, até oito
canais na mesma faixa de freqüência.
O governo também planeja criar quatro novos canais públicos de televisão com a
implantação do sistema brasileiro de TV digital. A digitalização também deverá
permitir a concessão de canais para novas emissoras comerciais, possivelmente dois
no caso de São Paulo.Os novos canais públicos ficarão a cargo do Executivo. Eles
serão um espaço garantido para a transmissão de programações alternativas (além da
Radiobrás que já opera hoje), e voltadas para a educação (viabilizando a educação à
distância), a cultura (programação regional) e a cidadania (que poderá veicular
programação comunitária e de Câmaras Municipais, por exemplo). Para
implementarem a TV digital, as redes receberão um novo canal, com 6 MHz
(intervalo do espectro idêntico ao atual), para fazer a migração de um sistema para o
outro. As redes de TV serão obrigadas a usar todo o espectro, sob pena de perderem
o direito à freqüência, de acordo com regras que serão definidas pelo Ministério das
Comunicações. A idéia é incentivar a multiprogramação (o espectro permite a
transmissão de até quatro canais) quando as emissoras não estiverem transmitindo
em alta definição (de qualidade superior, que ocupa uma faixa maior do espectro).
Depois que solicitarem o novo canal digital, as redes de TV terão um prazo de seis
meses para apresentarem ao Ministério das Comunicações um projeto de viabilidade
técnica5.
Ainda que, as mudanças para o sistema digital, garantam certa superioridade frente aos
demais concorrentes, pelo emaranhado de compatibilidades que agrega, entre eles o foco
4
WOLTON, Dominique. Elogio do Grande Público, uma teoria crítica da televisão, p. 107.
ZIMMERMANNO, Patrícia. Lula assina decreto com padrão japonês para TV digital. Dinheiro. Folha On
Line. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u108993.shtml>. Acesso em: 29 jun.
2006.
5
181
voltado para a produção e organização de conteúdo e serviços, isto por si só, não exclui e
afasta, de forma definitiva, o risco de queda na audiência, fator que incidi diretamente sobre o
faturamento da TV Globo e sua rede.
Para manter o fluxo de audiência, a empresa precisa convergir seus telespectadores,
num caminho de mão dupla, entre os múltiplos canais, sob sua responsabilidade no sistema
digital, favorecendo-a numa retro-alimentação da audiência, que deve ser conciliando a
demanda publicitária, porém, deve redobrar esforços para que os clientes telespectadores não
desviem a atenção, já que o sistema digital brasileiro é o único no mundo que permite agregar
uma diversificação tecnológica que compreende um sistema de compressão de vídeo, Moving
Picture Experts Group (MPEG-4), proporcionando, inclusive a captura dos dados em
movimento, em celulares, por exemplo, como, também, disponibiliza a troca de dados e
interatividade, videogame, correspondência eletrônica, imagens, áudio, gráficos, informações
e entretenimento, por isso ele é dotado de um sistema operacional, middleware, que requer a
utilização de aplicativos, softwares, por exemplo. Essa tecnologia é apontada como uma
tendência futura a ser empregada em todo mundo, para o sistema de TV Digital6.
Como a atenção do cliente telespectador pode se dar para qualquer dos serviços
ofertados no sistema, torna-se mais fácil e prático, utilizar os próprios canais e serviços da
emissora, como potencializador do índice de audiência, num processo contínuo de retroalimentação, já que se têm os próprios consumidores dela conectados ao sinal da empresa.
Mesmo que haja uma certa dificuldade em conciliar a demanda, o fato é que as
chamadas da TV Globo nunca foram tão importantes e fundamentais para a empresa, pois vão
auxiliar na manutenção do fluxo de seus clientes entre os canais, com programação e serviços,
que a empresa passa a administrar no mesmo sinal.
6
O’ DRISCOLL, Gerard. The Essential Guide to Digital Set-top Boxes and Interactive TV. Upper Saddle
River: Prentice Hall PTR, 2000, p. 270-271.
182
A favor dos concorrentes da TV Globo, nesta fase de transição, está o fato de como há a
necessidade da troca, no mercado, dos aparelhos receptores das imagens geradas, pelas redes
televisivas de sinal aberto, pois, como a pendência da velocidade de produção e
comercialização dos aparelhos televisores digitais e das caixas decodificadoras para
conversão dos sinais transmitidos por estas redes, set-top Box, isso auxilia os rivais a
ganharem fôlego para que tenham chance de arranjar a própria gestão de negócios.
Estas caixas decodificadoras são fundamentais, uma vez que no sistema digital, não
ocorre a transmissão apenas do áudio-visual, mas, também, tem-se a troca de informações e
dados entre as redes e os usuários, clientes. O sistema digital brasileiro opera com protocolo
de mensagens, protocol, na formatação da rede mundial de computadores, World Wide WEb,
por isso, a necessidade de um sistema operacional, middleware, que comprime e organiza no
mesmo espectro de sinal, a diversificada e volumosa quantidade de dados, como imagens,
textos, gráficos, áudio etc. Isso requer aplicativos, softwares, para que haja a troca de dados
entre as empresas em rede e clientes7.
Como o Brasil é o único país a adotar a tecnologia japonesa, fora o Japão, os
fabricantes europeus afirmam que o Brasil pagará mais caro pela TV digital,
por não haver ganho de escala. O sistema digital norte-americano, conhecido
como ATSC, já foi adotado em quatro países (EUA, Canadá, México e
Coréia do Sul), e o sistema europeu (DVB) já foi oficialmente escolhido por
99 países. O sistema digital anunciado pelo governo vai incorporar soluções
de software desenvolvidas por universidades públicas e privadas brasileiras e
adotará um sistema de compressão de sinais diferente do usado no Japão. Os
japoneses usam o sistema MPEG-2; o Brasil usará uma versão mais recente,
também estrangeira, o MPEG-4. Por isso, os equipamentos para recepção da
TV digital brasileira só funcionarão no Brasil, a menos que outros países
latino-americanos decidam adotar o SBTVD-T8.
Mesmo com a redução do ganho de escala pelos fabricantes, a movimentação em
negócios, com a oferta de bens e serviços, a partir da implementação do sistema digital de
televisão no Brasil, para os próximos dez anos, é estimada em R$ 120 bilhões. Entra também
7
O’ DRISCOLL, Gerard. The Essential Guide to Digital Set-top Boxes and Interactive TV, p. 72-73.
LOLBATO, Elvira. Implementação da TV digital no país começa pela região metropolitana de SP. Dinheiro.
Folha On Line. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult9lu109020.shtml>. Acesso
em: 30 jun. 2006.
8
183
nesse cálculo, a troca dos telefones celulares por aparelhos que captam os sinais da
programação das TVs no visor. O setor público espera alcançar uma receita, com a futura
licitação de novos canais, de R$ 20 bilhões para o Governo9. O setor privado projeta um
movimento no comércio dos novos aparelhos receptores entre R$ 80 e R$ 100 bilhões10.
Para estimular os negócios e desenvolver a indústria brasileira, os japoneses, tanto do
setor público, como privado, comprometeram-se a cooperar. Com isso, há a assessoria de
equipes compostas por especialistas voltadas para a orientação da modernização da indústria
eletrônica brasileira, inclusive, com o objetivo de formar mão-de-obra especializada,
juntamente, com a instalação, no Brasil, de uma fábrica japonesa de semicondutores, chips,
além disso, linhas de financiamento do Banco Japonês de Fomento (JBIC)11 são
disponibilizadas para garantir o acesso a créditos para expansão da produção nacional.
O sistema digital japonês, Integrad Systems Digital Broadcasting (ISDB), garante não
só a transmissão de imagens em alta definição, mas é o mais indicado para aparelhos
receptores em movimento, caso de celulares e televisores instalados em veículos, além de
possibilitar sua utilização pelas empresas com diferentes plataformas operacionais, enquanto o
sistema de televisão digital estadunidense, Advanced Television Systems Committe (ATSC),
privilegia a transmissão de alta definição e, o europeu, Digital Vídeo Broadcasting (DVB),
por sua vez, permite uma diversificação maior da multiprogramação12.
Mesmo que a adoção do sistema digital de televisão, de matriz tecnológica japonesa,
favoreça a implantação de políticas públicas de inclusão digital, visando garantir o acesso da
população à economia virtual, baseando-se numa proposta de democratização da
9
A Tribuna Digital. Conteúdo. Disponível em:
<http://atribunadigital.globo.com/bn_conteudo.asp?cod=259711&opr=>. Acesso em: 12 ago. 2006.
10
LOLBATO, Elvira. Implementação da TV digital no país começa pela região metropolitana de SP. Dinheiro.
Folha On Line. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult9lu109020.shtml>. Acesso em:
30 jun. 2006.
11
ZIMMERMANNO, Patrícia. Lula assina decreto com padrão japonês para TV digital. Dinheiro. Folha On
Line. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u108993.shtml>. Acesso em: 29 jun.
2006.
12
FOLHA ON LINE. Dinheiro. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u105799.shtml>. Acesso em: 08.mar.2006.
184
comunicação, o mercado da rádio-difusão vai continuar restrito a alguns pares de empresas
televisivas, pois, embora, o sinal de transmissão reservado para cada empresa televisiva
permita o tráfego de uma quantidade considerável de dados, a restrição do uso do sistema
digital, por um número ilimitado de empresas, se dá menos pela questão tecnológica e, mais,
pela questão da regulamentação do próprio setor de rádio-difusão.
Como não houve modificação na essência da regulamentação setorial, já que é ela a
principal fonte de controle na radiodifusão, tanto de poder político, como de concentração de
mercado, é esta mesma regulamentação que continua a servir de marco regulatório entre as
três pontas clássicas da regulação econômica: a sociedade, empresa exploradora de serviço
público e governo.
Logo, a opção pelo sistema digital japonês ocorre porque é a única matriz tecnológica
que permite manter o elo ideológico e econômico entre os interesses, tanto governamentais,
como empresariais.
Do ponto de vista empresarial, isso quer dizer que, embora haja uma fragmentação da
programação, a regulamentação ao não ser alterada favorece a concentração da produção e
oferta de conteúdo. É dessa maneira que a holding Globopar espera juntar os cacos do espelho
quebrado, recompondo a fragmentação da audiência, dividida agora em partes, mas que está
fracionada, a partir da oferta de informação, entretenimento e serviços, que parte do mesmo
ponto de origem, ou seja, das empresas que formam a holding.
Já do ponto de vista estratégico do Estado brasileiro, a questão ideológica de coesão
nacional, ainda é mantida, mesmo porque, embora haja parte da fragmentação da
programação, opera-se, ainda com um dos canais dessas empresas televisivas, com a
programação voltada ao tema central, onde continuará a se trabalhar a idéia da coesão
nacional. Isso só é possível já que para este Estado, a questão econômica está desvinculada da
cultural, ou seja, o país possui uma deficiência cíclica na capacidade de promover o
185
desenvolvimento do conhecimento a partir de tecnologia desenvolvida no país, ou seja, a
opção ao sistema digital de outro país, indiferente do ganho de escala que possa resultar,
ratifica a dificuldade do Brasil em romper com um processo histórico de dependência do
conhecimento tecnológico, já que vem reincidindo nesse processo desde 1950, quando passou
a validar modelos de desenvolvimento baseado em tecnologias dos países do capitalismo
central.
Segundo Castells, o Brasil, e a América Latina em geral, caracteriza-se, no período
1950-90, pela transição mediante três modelos de desenvolvimento distintos, embora
imbricados. O primeiro modelo, era baseado em exportações agrícolas e matérias-primas,
troca de commodities primárias por produtos industrializados e Know-how das regiões mais
avançadas do mundo, o segundo buscava substituir importações pela expansão dos mercados
domésticos protegidos. No terceiro modelo, voltado para o mercado exportador, usa-se
vantagens comparativas em termos de custo para conquistar fatias de mercado na economia
global, na tentativa de imitar a trajetória bem-sucedida dos países asiáticos recémindustrializados.
Simplificando, [...] o primeiro modelo deteriorou-se na década de 60, o
segundo estava exaurido no final dos anos 70 e o terceiro, no geral, fracassou
na década de 80 (com exceção do Chile,...), transformando os anos 90 em
um período crucial de reestruturação da América Latina com a nova
economia global. Também, [...] tais fracassos foram determinados pelo
efeito combinado das transformações em curso na economia
informacional/global, aliadas à inabilidade institucional de quase todos os
países da América latina para se adaptarem a essas transformações13.
Se, por um lado, a escolha do sistema digital japonês, robustece esse papel de
coadjuvante que cabe ao Brasil na arena econômica internacional, ao reforçar o papel do país
como um exportador de produtos com baixo valor agregado, por outro, o governo brasileiro
contorna as implicações que recaem sobre a democratização do setor de radiodifusão, já que a
13
CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura. v.1. 3 ed. São Paulo: Paz e
Terra, 1999, p. 133.
186
opção ao sistema digital japonês, implica, diretamente, sobre o campo ideológico-cultural e
econômico nacional.
A preferência, pelo sistema digital de matriz japonesa, ocorre porque é neste sistema
que se mantém o elo ideológico-econômico que beneficia, simultaneamente, tanto as
atividades econômicas das empresas que atuam com redes televisivas, enquanto o Estado
mantêm-se no papel de guardião da memória nacional e instrumento de coesão.
E as camadas populares se ressentem bastante disso, porque há anos lhes é
martelada idéia de que o Estado é a nação. Não se justifica mais pensar que o
Estado é a expressão do sentimento nacional. A sociedade, sim, é que o
expressa. Isso não significa que se deve jogar fora o Estado, e sim ter clareza
de que ele não pode ter a primazia. Para que o sentimento nacional
corresponda, sem anacronismos, aos interesses da nação, é preciso entender
que o mundo de hoje é diferente daquele do passado. As barreiras do Estado
nacional não tem a mesma força coibitiva. Não se consegue mais manter a
economia fechada - e menos ainda a cabeça fechada. Quem tem Internet
salta fronteiras. Mas, ainda que a Internet não respeite fronteiras e os países
se integrem cada vez mais ao mercado mundial, o sentimento nacional, a
identidade nacional, não desaparece, e nem deve. É esta a dificuldade:
mostrar que os interesses do seu país são mais bem defendidos quando, sem
perder de vista os valores nacionais, se tomam providências que levam o seu
povo a ser mais competitivo, mais aberto aos ares do mundo14.
Logo, é por esse sistema digital que melhor se perpetua na sociedade brasileira a
ideologia hegemônica que, tanto a TV Globo, como suas congêneres no Brasil utilizam como
forma de dar transitividade aquilo que processam e operam, já que é pelo sistema digital de
matriz tecnológica japonesa que permite convergir, de forma transversal, a manipulação de
símbolos de identidade nacional, o que, sem sombra de dúvida, agrada ao Estado, já que este
não vai ter seu papel alterado como guardião da memória e depositário das obrigações de
manter a coesão nacional, ao mesmo tempo em que, as atividades básicas da empresa e
concorrentes, do setor de rádio-difusão, mantém-se, basicamente, nos moldes da gestão de
negócios que já empreendem.
Logo, é ainda, a partir daí, pelas chamadas da programação da TV Globo, que se busca,
também, elucidar a questão ideológica, ainda mais agora que, no sistema digital, há
14
SABINO, Mario. FHC explica FHC e o Brasil. Revista Veja, São Paulo, Ano 39, n. 11, p. 100, 22 mar. 2006.
187
necessidade da manutenção de um fluxo de mão dupla, visando a retro-alimentação, entre a
oferta da multiprogramação e serviços, juntamente, com a interatividade que é oferecida pelos
múltiplos canais que a empresa passa a operar no mesmo sinal de freqüência.
Para identificar a ideologia intrínseca as chamadas da programação, entretanto, é
preciso, antes, delimitar o próprio posicionamento ideológico na alocução, já que são
inúmeras às acepções que buscam delimitar determinada ideologia, em um específico
discurso, assim, busca-se restringir as possíveis explicações a apenas três vertentes.
Em uma delas, tenta-se dar conta tanto das propriedades de estruturas, ao considerar que
há um código, uma estrutura ou uma formação para mostrar que os eventos são restringidos
por convenções sociais. Em outra, busca-se localizar a ideologia no evento discursivo,
ressaltando a ideologia como processo, transformação e fluidez. Já em uma terceira
possibilidade, a ideologia ainda pode ser pontuada pelo prisma da concepção textual da
localização ideológica no texto, ou seja, a ideologia versus o discurso15.
De acordo com Fairclough, no primeiro caso, embora obtém-se a vantagem de mostrar
que os eventos são restringidos por convenções sociais, a mesma, acaba por se limitar devido
a desfocalização do evento no pressuposto de que os eventos são meras reproduções de
estruturas, uma vez que esta resulta em privilegiar a perspectiva da reprodução ideológica e
não a da transformação, numa tendência de representação das convenções mais claramente
delimitadas do que realmente são. Outro ponto falho neste tipo de conceitualização, segundo o
autor, é que não se reconhece a primazia das ordens de discurso sobre as convenções
discursivas particulares.
Nesse caso, diz Fairclough, existiria uma alternativa à opção da estrutura e que, seria a
de localizar a ideologia no evento discursivo, mas por outro lado, esta não explica os
15
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília: ed. Universidade de Brasília, 2001, p. 118.
188
investimentos ideológicos das (partes das) ordens de discurso, não apenas as convenções
individuais, mas a possibilidade de investimentos diversos e contraditórios.
No segundo caso, afirma Fairclough, a localização da ideologia no evento pode resultar,
contra-gosto do observador, a uma ilusão de que o discurso corresponde a processos livres de
formação. Todavia, lembra o autor, pode-se evitar este equívoco, quando se dá uma ênfase
simultânea nas ordens do discurso.
Para Fairclough, na terceira via de apreciação, obtêm-se a concepção textual da
localização da ideologia, ou seja, que estão no texto, e, na análise do autor, embora seja
verdade que as formas e o conteúdo dos textos trazem o carimbo (são traços) dos processos e
das estruturas ideológicas, não é possível ler as ideologias nos textos.
[...], isso é porque os sentidos são produzidos por meio de interpretações dos
textos e os textos estão abertos a diversas interpretações que podem diferir
em sua importância ideológica e porque os processos ideológicos pertencem
aos discursos como eventos sociais completos - são processos entre as
pessoas - não apenas aos textos que são momentos de tais eventos.
Alegações de descoberta dos processos ideológicos unicamente mediante a
análise textual têm o problema, agora familiar na sociologia da mídia, de que
os ‘consumidores’ de textos (leitores e telespectadores) parecem às vezes
bastante imunes aos efeitos das ideologias que estão supostamente ‘nos’
textos16.
Isso leva a entender que, a TV Globo guia-se pelo fato de que os indivíduos
heterogêneos e dispersos na sociedade e no mercado, não estão restringidos a exclusivas
cargas ideológicas ou que, há uma parcela desses que é imune aos efeitos ideológicos,
portanto, a análise das chamadas remete para o fato de que elas devem buscar, numa primeira
instância, entre outros propósitos, captar a atenção do público, ou seja, as chamadas, por sua
vez, devem ser manipuladas com o intuito de não restringir o emprego de inúmeras
ideologias, pois é assim que os indivíduos heterogêneos dispersos no campo social e mercado
têm a atenção despertada.
16
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social, p. 118-119, aspas do autor.
189
Inclusive, por causa disso,
pelos indivíduos constituírem-se como capazes de
interpretar de forma variada e adversa o discurso televisivo, como as estruturas, as normas, os
grupos, organizações e instituições, além do fator da multiprogramação e da interatividade,
que a TV Globo, portanto, precisa levar em conta a relação dialética discursiva das chamadas.
Como as chamadas são utilizadas com uma essência que visa expor a programação e serviços
da empresa, ao mesmo tempo que servem como potencializadoras da audiência, elas são
direcionadas para a maior parte possível da clientela que a empresa busca atingir, ou, agora,
ainda, voltadas a grupos específicos.
Outra questão importante sobre a ideologia diz respeito aos aspectos ou
níveis do texto e do discurso que podem ser investidos ideologicamente.
Uma alegação comum é de que são os ‘sentidos’, e especialmente os
sentidos das palavras (algumas vezes especificados como ‘conteúdo’,em
oposição à forma), que são ideológicos. Os sentidos das palavras são
importantes, naturalmente, mas também são outros aspectos semânticos, tais
como as pressuposições, as metáforas e a coerência17.
Então, ao se analisar o discurso das chamadas, considera-se o grau de importância que a
linguagem adquire na luta de classes, pois ela “contribui para a constituição de todas as
dimensões da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e restringem: suas
próprias normas e convenções e também as relações, as identidades e as instituições que lhe
são subjacentes”18, é que buscou-se identificar a questão ideológica que alcance todas as
dimensões em que a empresa esteja inserida, inclusive no sistema digital, incluindo-se aí o
fator da multiprogramação e da interatividade.
Ao fazer uso da linguagem na forma de discurso, portanto, a TV Globo, por intermédio
da Rede de Televisão que controla, explicita a forma estratégica e comunicativa19, ao
considerar que “a informação pode ser expressamente estratégica e persuasiva”20, pois ao
elaborar um discurso, reúne em um único espaço, além dos múltiplos interesses que busca
17
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social, p. 119, aspas do autor.
MAGALHÃES, Izabel. Prefácio à edição brasileira. In: FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança
Social. Brasília: ed. Universidade de Brasília, 2001, p. 11.
19
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa: racionalidade de la acción y racionalización
social. Barcelona: Taurus: 1992, p. 351- 432.
20
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social, p. 263.
18
190
equilibrar, entre os diversos públicos que atende, garantir e manter seu papel “fundamental na
transformação social”21 como aparelho privado hegemônico.
A prática social tem várias orientações - econômica, política, cultural,
ideológica - , e o discurso pode estar implicado em todas elas, sem que possa
reduzir qualquer uma dessas orientações do discurso. Por exemplo, há várias
maneiras em que se pode dizer que o discurso é um modo de prática
econômica: o discurso figura em proporções variáveis como um constituinte
da prática econômica de natureza basicamente não-discursiva, como a
construção de pontes ou a produção de máquinas de lavar roupa; há formas
de prática econômica que são de natureza basicamente discursiva, como a
bolsa de valores, o jornalismo ou a produção de novelas para a televisão.
Além disso, a ordem sociolingüística de uma sociedade pode ser estruturada
pelo menos parcialmente como um mercado onde textos são produzidos,
distribuídos e consumidos como ‘mercadorias’ (em ‘industrias
culturais’,...)22.
Com isso, pode-se dizer que as chamadas da programação constituem-se como um
discurso dialético, pois as chamadas apresentam-se por uma faceta discursiva contraditória e
instável, num balançar constante de articulação e rearticulação de parâmetros delimitadores da
luta hegemônica23.
Mesmo que tragam partes fixas que as marquem, as chamadas acabam por se
caracterizar por configurações de elementos mais ou menos instáveis e que apresentam
referências de superposição ao articularem textos e convenções prévias24.
Além disso, a prática discursiva, a produção, a distribuição e o consumo
(como também a interpretação) de textos são uma faceta da luta hegemônica
que contribui em graus variados para a reprodução ou a transformação não
apenas da ordem de discurso existente (por exemplo, mediante a maneira
como os textos e as convenções prévias são articulados na produção textual),
mas também das relações sociais e assimétricas existentes25.
Isso leva a entender que as chamadas são ideológicas, já que elas implicam num “modo
de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os
outros, como também um modo de representação”. As chamadas, portanto, são eventos
discursivos específicos, variam em sua determinação estrutural, segundo o domínio social
21
MAGALHÃES, Izabel. Prefácio à edição brasileira. In: FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança
Social, p. 11.
22
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social, p. 94.
23
Ibid, p. 123.
24
Ibid, p. 123.
25
Ibid, p. 123-124.
191
particular ou, o quadro institucional em que são geradas, como, também, possibilitam encerrar
no discurso tanto uma prática de representação do mundo, como de significação do mundo,
constituindo e construindo o mundo em significado26.
Uma é a aparente democratização do discurso, envolvendo a redução de
marcadores explícitos de assimetria de poder entre pessoas com poder
institucional desigual – professores e alunos, gerentes e trabalhadores, pais e
filhos, médicos e pacientes –, que é evidente numa diversidade de domínios
institucionais. A outra é o que venho chamando de 'personalização sintética,
a simulação de discurso privado face a face em discurso público para
audiência em massa (imprensa, rádio, televisão). Ambas as tendências
podem ser ligadas à influência do discurso conversacional do domínio
privado do 'mundo da vida' nos domínios institucionais. Essas tendências
sociais e discursivas são estabelecidas mediante luta e, além disso, são
estabelecidas com estabilidade apenas limitada, com a perspectiva de que
seus próprios elementos heterogêneos sejam considerados contraditórios,
levando a posterior luta e mudança27.
Logo, como as chamadas agregam uma contradição, é por elas que se faz o
esclarecimento daquilo que a empresa manipula, já que elas fornecem uma explicação
satisfatória da dialética de estruturas e eventos28, pois são constituídas por diferentes discursos
que, são arranjados a partir dos indivíduos heterogêneos dispersos na sociedade e mercado,
entretanto, esses mesmos indivíduos acabam, também, sendo caracterizados por um certo
hibridismo cultural, já que se encontram sob constante influência, interdependências e
rejeições29.
Processo de hibridação ocorre com a quebra e a mistura de coleções
organizadas por sistemas culturais diversos, com a desterritorialização de
produções discursivas variadas, constituindo e expandindo gêneros
impuros30.
Nessa perspectiva, as chamadas são consideradas como gêneros impuros, embora, já
tenham um cálculo embutido quanto ao grau de importância que a linguagem adquire na luta
de classes, contribuindo dessa maneira para a “constituição de todas as dimensões da estrutura
social que, direta ou indiretamente, o moldam e restringem: suas próprias normas e
26
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social, p. 91.
Ibid, p. 129.
28
Ibid, p. 117-118.
29
LOPES, Alice Ribeiro C.; MACEDO, Elizabeth. O pensamento curricular no Brasil. In: LOPES, Alice Ribeiro
C.; MACEDO, Elizabeth (Orgs.). Currículo: debates contemporâneos. São Paulo: Cortez, 2002, p. 23.
30
Ibid, p. 23.
27
192
convenções e também as relações, as identidades e as instituições que lhe são subjacentes”31,
que lhe permite adquirir um caráter hegemônico.
Norman Fairclough vai dizer que o discurso classificado como hegemônico,
necessariamente, deve levar em conta uma concepção ideológica transitiva, pois abrange tanto
as estruturas, isto é, ordens do discurso, ao se constituírem como resultado de eventos
passados, como nas condições para eventos atuais e nos próprios eventos, quando reproduzem
e transformam as estruturas condicionadoras, o que facilita ajuizar os aspectos ou níveis do
texto e do discurso que podem ser investidos ideologicamente32.
Neste sentido, e seguindo Gramsci, entende-se ideologia como “uma concepção do
mundo que está implicitamente manifesta na arte, no direito, na atividade econômica e nas
manifestações da vida individual e coletiva”33.
Segundo Tomazzi, o termo ideologia foi utilizado pela primeira vez por Destutt de
Tracy (1754-1836). Para esse pensador francês, a ideologia era a ciência da gênese das idéias.
Ele buscou explicar os fenômenos que interferem na formação das idéias, ou seja, a vontade, a
razão, a percepção e a memória. A expressão ideologia, ganha, então, outra conotação,
quando Napoleão Bonaparte, em 1812, vai usá-la no sentido de idéia falsa ou como ilusão. Já
Auguste Comte, afirmara que ideologia é o estudo da formação das idéias (relação do corpo
com o seu meio) e que, ela podia ser entendida, também, como o conjunto de idéias de
determinada época.
Na sociologia, Émilie Durkheim, em seu livro Regras do método
sociológico, ao discutir a questão da objetividade científica, afirma que para
o cientista ser o mais preciso possível ele deve deixar de lado todas as prénoções, as noções vulgares, as idéias antigas e pré-cinetíficas e as idéias
subjetivas. São essas idéias que ele entende por ideologia, ou seja, o
contrário de ciência. Em Karl Marx, não há uma única definição de
ideologia. No livro A ideologia alemã, ele se refere a ela como um sistema
elaborado de representações e de idéias, que correspondem a formas de
consciência que os homens têm em determinada época. Essas representações
31
MAGALHÃES, Izabel. Prefácio à edição brasileira. In: FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança
Social, p. 11.
32
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança social, p. 118.
33
Ibid, p. 123.
193
e idéias são qualificadas como quimeras, formas imaginárias, ilusão, sonho,
enfim, algo que está em oposição às condições materiais da vida real.
Aparece aí também a concepção de que a ideologia é a inversão da realidade,
no sentido de reflexo, como na câmara fotográfica, onde a imagem aparece
‘invertida’. Enquanto se afirma que as idéias é que definem a realidade,
Marx diz o contrário, isto é, que ‘a experiência condiciona a consciência’.
No mesmo livro pode-se encontrar a explicação de que a ideologia é
resultante da divisão entre trabalho manual e o intelectual; este esteve nas
mãos da classe dominante e, assim, à medida que o trabalho intelectual pôde
‘emancipar-se’ da realidade concreta em que foi produzido e transformar-se
em ‘teoria pura’, pode também transforma-se em teoria geral para todas as
sociedades, sem se levar em conta a historicidade delas34.
É preciso, no entanto, uma ressalva, já que, embora a definição ideológica formulada
por Gramsci seja aceita como transitiva, o próprio termo ideologia, ainda guarda um aspecto,
um ranço de falso e verdadeiro, sobretudo em sua orientação neomarxista, que lhe imputa
uma descontinuidade conceitual, uma vez que esta ainda carrega, pejorativamente que seja,
um sentido e uma visão falsa do mundo social, em oposição ao discurso verdadeiro que
representaria a realidade35.
A partir do entendimento pós-estruturalista de que a linguagem constitui a
realidade, essa visão é questionada, pois os significados nunca são fixos, mas
sempre construídos dentro de determinadas práticas. Não existem, portanto,
discursos falsos e verdadeiros, nem o lugar da ciência, na perspectiva
althusseriana, capaz de desvelar a ideologia. Existem apenas diversos
discursos constituintes de regimes de verdade, na acepção de Foucault. Por
outro lado, todas as narrativas, [...] , são parciais, dependem da posição de
seus emissores, não havendo uma posição privilegiada para emissão de
discursos36.
Althuesser, embora, tenha contribuído em demasia, para a discussão e apreciação do
termo ideologia, assim mesmo, não é conveniente aceitar, diz Fairclough, ainda que seja, essa
nomenclatura circunscrita a uma conotação de cimento social, pois os indivíduos sociais
caracterizam-se, justamente, pelo inverso desta idéia, já que os mesmos possuem mobilidade
social.
Quem procurou fazer essa relação, [...], foi Louis Althusser, em seu livro
Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Ele faz distinção entre poder
propriamente dito e os aparelhos de Estado. Entre os últimos, distingue os
34
TOMAZI, Nelson D. Sociologia da Educação. São Paulo: Atual, 1997, p. 146-147, aspas e grifos do autor.
LOPES, Alice Ribeiro C.; MACEDO, Elizabeth. O pensamento curricular no Brasil. In: LOPES, Alice Ribeiro
C.; MACEDO, Elizabeth (Orgs.). Currículo: debates contemporâneos, p.23.
36
Ibid, p. 23.
35
194
aparelhos repressivos e os ideológicos. Os ideológicos são as igrejas, as
escolas, a família, o sistema jurídico, o sistema político, os sindicatos, os
meios de comunicação, as letras, as artes, etc37.
Para Althusser, esses aparelhos inserem os indivíduos
no processo de reprodução ideológica e representam a forma na qual a
ideologia da classe dominante deve necessariamente realizar-se, atuando por
ritos, palavras, atos ou quaisquer outros meios, fazendo com que os
indivíduos sejam levados à sujeição e à submissão à ordem vigente,
reproduzindo-a constantemente38.
Fairclough, entretanto, explica que, mesmo em princípio, e embora, as práticas
discursivas de qualquer tipo, incluindo aí as científicas e as teóricas, possam afetar as relações
de poder, e, ainda que, estas estejam localizadas no espectro da linguagem/ideologia, mesmo
assim, afirma o autor, existe uma oposição de categoria entre ideologia e ciência ou teoria,
uma vez que os discursos, em sociedades caracterizadas por relações de dominação com base
na classe, no gênero social, no grupo cultural, e assim por diante e, mesmo levando-se em
conta à conotação de falsa e verdadeira, isto, por si só, não restringe a capacidade dos
indivíduos de posicionarem-se de forma diferente à carga ideológica a que são submetidos ou,
venham a praticar, pois para Fairclough, os seres humanos são capazes de transcender tais
sociedades à medida que são capazes de transcender a ideologia.
[...], os sujeitos são posicionados ideologicamente, mas são também capazes
de agir criativamente no sentido de realizar suas próprias conexões entre as
diversas práticas e ideologias a que são expostos e de reestruturar as práticas
e as estruturas posicionadoras. O equilíbrio entre sujeito ‘efeito’ ideológico e
o sujeito agente ativo é uma variável que depende das condições sociais, tal
como a estabilidade relativa das relações de dominação39.
Por isso, Fairclough argumenta que, além dos discursos ideológicos serem abertos, estes
ainda, caracterizam-se por não transportarem a mesma carga ideológica, pois, mesmo sendo
os tipos de discurso abertos em princípio e, sem dúvida de certo modo o são concretamente ao
investimento ideológico, em nossa sociedade não significa que todos os tipos de discurso são
investidos ideologicamente no mesmo grau.
37
TOMAZI, Nelson Dácio. Sociologia da Educação, p. 154-155.
Ibid, p. 154-155.
39
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social, p. 121, aspas do autor.
38
195
Se o debate sobre ideologia e o discurso tem sido fortemente influenciado
por essas posições, também tem sido prejudicado pelas limitações
amplamente reconhecidas da teoria de Althusser. Particularmente, o trabalho
de Althusser contém uma contradição não-resolvida entre uma visão de
dominação que é imposição unilateral e reprodução de uma ideologia
dominante, em que a ideologia figura como um cimento social universal, e
sua insistência nos aparelhos como local e marco delimitador de uma
constante luta de classe cujo resultado está sempre em equilíbrio. Com
efeito, é a visão anterior que é predominante, havendo marginalização da
luta, da contradição e da transformação. [....]. Enquanto a interpelação dos
sujeitos é uma elaboração althusseriana, há em Gramsci uma concepção de
sujeitos estruturados por diversas ideologias implícitas em sua prática que
lhes atribui um caráter ‘estranhamente composto’ e uma visão de ‘senso
comum’ tanto como repositório dos diversos efeitos de lutas ideológicas
passadas, como alvo constante para a reestruturação nas lutas atuais. No
senso comum, as ideologias se tornam naturalizadas ou automatizadas. Além
disso, Gramsci concebia ‘o campo das ideologias em termos correntes ou
formações conflitantes, sobrepostas ou cruzadas’, a que se referiu como ‘um
complexo ideológico’. Isso sugere um foco sobre os processos por meio dos
quais os complexos ideológicos são estruturados e reestruturados, articulados
e rearticulados40.
É por isso, então, que as chamadas, ao agregarem as mais variadas cargas ideológicas,
podem ser classificadas, também, como constituídas por “um discurso de gerenciamento de
pessoal, ele próprio incorporando a aplicação de um discurso tecnológico ao seres humanos
(classificando as pessoas em termos de seu ‘desempenho’), o que amplia o conceito de
habilidade de seu uso mais tradicional de capacidade”41, a um determinado contexto social
impondo um determinado valor, ao mesmo tempo que, condiciona a um significado
específico, nas mais variadas atribuições que se queira dar, sem que esse discurso permaneça
engessado.
Isso leva a entender que as chamadas, por se constituírem como elos, permitem
engendrar ao discurso televisivo, uma continuidade sem rupturas, já que é na técnica de
manutenção desse discurso que ocorre o momento ideológico da TV Globo. Essa técnica que,
é concebida como visão de modernidade, tem “a interconexão da televisão, informática e
telecomunicação, como instrumento global de uma modificação radical das situações de
trabalho, do funcionamento das organizações e do sistema de poder numa sociedade mais
40
41
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social, p. 117-123, aspas do autor.
Ibid, p. 239, aspas do autor.
196
democrática”. O complemento desse discurso é proporcionado, pelo viés político, que lhe
garante o repouso da neutralidade potencial como instrumento de reorganização das relações
sociais42.
O paradoxo é que essas duas ideologias, inicialmente distintas, não podem
funcionar uma sem a outra. A ideologia tecnicista impõe uma representação
das relações sociais, isto é, ela extrapola, a partir de um certo número de
serviços oferecidos, uma reorganização das relações sociais, ou seja, das
relações de poder. O mecanismo é idêntico, mas inverso, na ideologia
política: partimos de um projeto social que não faz senão ‘utilizar’ as
possibilidades de um estoque de técnicas, mesmo que percebamos logo que a
colocação em uso desse projeto depende das possibilidades técnicas! As
duas ideologias são espelhadas, com perspectivas muitas vezes opostas,
geralmente otimistas e abertas no discurso técnico, mais desconfiadas e
críticas no discurso político, pois este teme o impacto inesperado das
técnicas de comunicação sobre as relações sociais. O tema da ‘política da
ciência e da tecnologia’ deve, sem dúvida, muito do seu sucesso atual à
crença na capacidade de capitanear o desenvolvimento científico e técnico,
colocando assim um fim a uma perigosa participação. As virtudes
proclamadas de uma ‘política da ciência e da técnica’ fazem parte do credo
de todos os governos, tanto de direita quanto de esquerda, no Leste assim
como no Ocidente, tendo como legitimação a idéia dupla - e ecumênica - de
reduzir os riscos tecnológicos e industriais simbolizados pelo poder nuclear e
orientar os impactos sociais e culturais simbolizados pelas técnicas de
comunicação43.
Wolton, entretanto, ressalta que a visão ideológica da comunicação, principalmente
sobre as empresas de mídia, acaba por manter, ao que concerne à televisão, uma dicotomia, se
não falsa, ao menos pessimista, tanto na sua vertente técnica, como política. Na polaridade
técnica, diz Wolton, essa ideologia da comunicação vê na interconexão da televisão com as
telecomunicações a fonte de um poder totaliário. Já na vertente política, afirma o autor, a
técnica busca o triunfo da alienação do homem unidimensional e, de uma racionalidade,
colocada ao serviço da lógica consumista e passiva44.
De acordo com Wolton, essa ideologia da comunicação está limitada em dois sentidos,
em um, tem a comunicação como uma questão funcional e, necessária ao andamento da
sociedade de massa, no outro, a comunicação normativa é valorizada como uma das
42
WOLTON Dominique. Elogio do Grande Público: uma teoria crítica da televisão, p. 81.
Ibid, p. 87-88, aspas do autor.
44
Ibid, p. 81.
43
197
aspirações essenciais de uma sociedade centrada na liberdade, na igualdade e na troca entre
cidadãos45.
Essa revolução da informação teve, até o presente, a vantagem de ser
pacífica, constituindo uma ‘nova fronteira’ favorável a uma reestruturação
industrial e a uma reorientação dos investimentos públicos e privados em
direção a um novo mundo de aventura. Mas, provavelmente, o que seduz
tanto quanto os possíveis lucros, é a idéia de que tudo isso vem
acompanhado de um modelo de sociedade ‘com a chave na mão’ em que
todos os problemas, extremamente complicados relativos ao funcionamento
de uma sociedade, reduzem-se aos conflitos envolvidos na produção a
apropriação da informação. Essa ideologia técnica, entendida como
fundamento da construção de uma sociedade por analogia e extrapolação dos
componentes científicos e técnicos do momento, é ainda mais forte do que
ontem, e isso por duas razões. A primeira é que as técnicas de comunicação
veiculam muito mais mensagens relativas à organização da sociedade do que
há um século, quando o espaço social era mais fechado. A segunda é que as
tecnologias de ponta hoje - informática, telecomunicação, audiovisual estão diretamente sintonizadas com a realidade funcional da sociedade
individualista de massa. Em todo caso, mais do que o estavam na época das
máquinas a motor com a sociedade que vivia a evolução industrial.
Poderíamos mesmo dizer que nunca houve antes um tal isomorfismo entre as
estruturas de funcionamento de uma sociedade, os instrumentos científicos e
técnicos do momento e os discursos organizadores. É sem dúvida, essa
adequação que explica o formidável sucesso econômico e sobretudo cultural
das tecnologias de informação46.
Logo, a questão ideológica que envolve a TV Globo deve ser entendida, como sendo
aquela que a coloca como instrumento de modificação no funcionamento das organizações e
do sistema da sociedade e que, fornece a ela uma parcialidade na reorganização das relações
sociais, portanto, as chamadas podem e devem ser analisadas pelo prisma da constituição
dialética, já que, mesmo assim, não se coloca em “risco o princípio constitutivo”, pois “a
perspectiva dialética considera a prática e o evento contraditórios e em luta, com uma relação
complexa e variável com as estruturas, as quais manifestam apenas uma fixidez temporária,
parcial e contraditória”47.
Isso tudo, leva a entender que o posicionamento ideológico na alocução, ou seja, nas
chamadas, esteja
45
WOLTON Dominique. Elogio do Grande Público: uma teoria crítica da televisão, p. 90.
Ibid, p. 92-93, aspas do autor.
47
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social, p. 92-94.
46
198
tanto nas estruturas (isto é, ordens de discurso) que constituem o resultado de
eventos passados como nas condições para os eventos atuais e nos próprios
eventos quando reproduzem e transformam as estruturas condicionadoras. É
uma orientação acumulada e naturalizada que é construída nas normas e nas
convenções, como também um trabalho atual de naturalização e
desnaturalização de tais orientações nos eventos discursivos48.
É justamente este posicionamento ideológico da TV Globo que a caracteriza como uma
empresa hegemônica de poder, já que ela vai atuar, justamente, sobre os desequilíbrios
resultantes das mais diferentes visões de mundo, já que
[...] as estruturas são reproduzidas ou transformadas, dependendo do estado
das relações, do equilíbrio de poder, entre os que estão em luta num domínio
sustentado particular de prática, tal como a escola ou o lugar de trabalho. Um
foco muito grande nas estruturas é equivalente a tomar uma perspectiva
unilateral a respeito dessas lutas - a perspectiva do poder daqueles cujo
problema é a preservação da ordem social e o sustento da dominação. A
concepção gramsciana de poder em termos de hegemonia é superior à
concepção de poder de Foucault, porque evita tais desequilíbrios. Nessa
abordagem, a hegemonia é concebida como um equilíbrio instável
construído sobre alianças e a geração de consenso das classes ou grupos
subordinados, cujas instabilidades são os constantes focos de lutas. A
negligência de Foucault com a prática e com os mecanismos detalhados da
mudança segue a par com uma negligência da luta, exceto os modos de
resistência sobre os quais se sabe que não tem fundamentalmente a
capacidade de transformar as estruturas49.
A análise das chamadas, portanto, leva a considerar o grau de importância que a
linguagem adquire na luta de classes, pois ela “contribui para a constituição de todas as
dimensões da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e restringem: suas
próprias normas e convenções e também as relações, as identidades e as instituições que lhe
são subjacentes”50.
[...], as análises da prática real e do texto real são um corretivo importante ao
exagero de Foucault sobre os efeitos constitutivos do discurso. Por exemplo,
os estudos do discurso da mídia, que focalizam a forma de interpretação e de
organização de textos articulares, sugerem um quadro altamente complexo,
em que os textos podem ser interpretados de várias posições mais ou menos
aquiescentes ou opositivas, tornando altamente problemática qualquer visão
esquemática do efeito do discurso - por exemplo, sobre a constituição dos
sujeitos sociais. Esse tipo de exemplo também indica que o processo de
constituição dos sujeitos sempre tem lugar dentro de formas particulares de
interação entre os sujeitos pré-constituídos, onde as formas de interação
48
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social, p. 119.
Ibid, p. 85.
50
MAGALHÃES, Izabel. Prefácio à edição brasileira. In: FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança
Social, p. 11.
49
199
influenciam o processo constitutivo. Isso também sugere que os sujeitos
sociais constituídos não são meramente posicionados de modo passivo, mas
capazes de agir como agentes e, entre outras coisas, de negociar seu
relacionamento com os tipos variados de discurso a que eles recorrem51.
Embora, passe a existir um certo grau de dificuldade em ajustar as chamadas a
multiprogramação, o sistema digital adotado favorece a continuidade do uso das chamadas da
programação, pois ainda mantém partes das propriedades deste mesmo discurso intactas, sem
implicar diretamente sobre os fragmentos provenientes de outras ideologias, tanto quanto as
ordens da estrutura destes discursos, pois, a infra-estrutura que permite engendrar este tipo de
discurso, basicamente, se mantém intacta, já que tanto a dinâmica desta prática como a
relação com ela, ao menos nesta fase de transição (do analógico para o digital) perpetua a
mesma “conjuntura de uma conceituação gramsciana de poder e de luta de poder em termos
de hegemonia”52, portanto, a decisão a opção ao sistema digital de matriz japonesa teve um
fator tanto ideológico político, como econômico, já que a base da regulamentação do setor de
rádio-difusão, manteve os interesses, tanto do Estado, como da TV Globo e suas congêneres.
Com isso, as vantagens históricas da TV Globo permanecem, ou seja, a competitividade
que ela detém sobre os demais concorrentes, como produtora de conteúdo, garante a ela, já
nesta primeira fase de implantação do sistema digital, oferecer aos clientes a
multiprogramação e serviços em todos os canais que detém no mesmo sinal de freqüência.
Isso significa que, embora, o sistema digital de matriz japonesa, beneficie de uma só vez
as principais redes de televisão do país, fato que limita qualquer crítica no sentido de que
tenha ocorrido algum favorecimento por parte do governo à TV Globo, constata-se que, o
sistema digital adotado é o que melhor adapta-se ao modelo de gestão de negócios da holding
Globopar, pois o modo em que é operado o sistema de televisão digital terrestre brasileiro
permite manter os moldes da gestão de negócios do Grupo Globo.
51
52
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social, p. 87-88.
Ibid, p. 130-131.
200
É, portanto, pela análise das chamadas da programação que, ao constituírem-se em
módulos, chega-se a essa constatação. Isso é possível porque elas são mecanismos que vão
além da busca da atenção dos clientes telespectadores e, da constituição desses atores sociais,
mas, pelo fato das chamadas serem elos entre a administração e a prática operacional da
empresa, com vistas à disseminação de textos, facilitam identificar não só como são
engendradas, a partir do âmbito privado da empresa, mas, por serem transitivas, não adquiram
o caráter de unilateralidade, o que favorece a empresa na coalizão de forças entre os interesses
de poder e resistência, tanto como uma empresa hegemônica, como emissora que diferenciase de seus concorrentes no mercado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As chamadas são moduladas e disponibilizadas como micro-discursos, isso possibilita
interpretar a estrutura da TV Globo e da rede que organiza, já que a emissora engendra nelas,
uma flexuosidade simbólica daquilo que administra, sendo assim, elas são a representação da
auto-organização da empresa. Entende-se a partir daí que, no Sistema Brasileiro de Televisão
Digital Terrestre (SBTVD-T), a TV Globo continua a perpetuar o mesmo modelo de gestão de
negócios, pois prossegue refletindo a redundância das partes, como das funções que
desempenha, sem que haja a necessidade de mudanças significativas nas estruturas
hierarquizadas e controladas por padrões flexíveis.
A TV Globo, tende a manter um equilíbrio entre as demandas de generalização e
especialização. A empresa opera, então, em uma convergência entre a disseminação e oferta
de produtos e serviços, tanto para um público de massa, ao manter um papel de
responsabilidade à realidade sociocultural, como passa a explorar situações específicas, no
atendimento de clientes, com base numa aspiração específica do individualismo da sociedade
de massa, ao adaptar ao gosto particular, os significados coletivos, reagrupando-os em nichos
de público-alvo.
O atendimento as tais demandas no Sistema de Televisão Digital Brasileiro só é
possível porque esses canais estão anexados ao mesmo sinal de freqüência da plataforma
operacional, ou seja, eles não estão dispersos. As chamadas são importantes por causa disso,
pois, podem ser manipuladas, com o intuito de reposicionar e reagrupar os clientes
telespectadores, agências de publicidade e anunciantes, nos auditórios conexos da empresa,
em um fluxo de mão dupla. Se a TV analógica era uma viela, onde passavam alguns, agora, a
TV Digital é uma avenida, com cruzamentos e adjacências, por onde transitam, desde
indivíduos reagrupados em grupos ou, a massa de multidões, a coletividade.
202
Essa transitividade de mão-dupla só ocorre pelo fato de que a essência do sistema digital
adotado no Brasil ser caracterizada pela semi-fragmentação, já que estes canais estão
reagrupados no mesmo sinal, portanto, o canal principal, a TV Globo, tornou-se o eixo
principal dos demais canais anexos a ela, mantendo, assim, nesse eixo principal, uma grade de
programação, enquanto, nos demais canais, desenvolve-se uma matriz focada na
multiprogramação. É aí que, o controle sobre as demandas, tanto da audiência, como da
publicidade ocorre, já que as chamadas facilitam o cambiar desse fluxo.
Com o sistema digital, a holding Globopar passa a desenvolver uma estratégia de
marketing que amplia os investimentos publicitários em outras mídias, não só do mesmo
grupo, mas de outras empresas do mercado, além disso, os filhotes das chamadas, o
merchandising, ganham relevância durante a programação de todos os canais administrados
pela Globopar no sistema digital. O merchandising torna-se essencial nesse caso, já que este
tipo de publicidade, calcado no modelo informação, é o mais adequado para canais de
programação fragmentada, porém, deve-se atentar para o risco dá própria campanha
publicitária, desenvolvida nos canais do sistema digital, tornarem-se evasivas, spams,
causando ruído e incômodo para os clientes telespectadores. Isso, ao invés de atrair a atenção,
pode afetar a filiação desses. É justamente na fase de implementação do sistema digital que a
Globopar pode encontrar o equilíbrio entre as necessidades de manter a atenção dos clientes e
a de expor seus produtos e serviços.
Assim, mesmo que as práticas de produção, o suporte tecnológico e os slogans mudem,
para a TV Globo e, agora para sua controladora, a holding Globopar, todo dia é o mesmo dia,
já que o sentido das chamadas nunca muda, pois o fim sempre é o de buscar captar e manter a
expectativa da atenção dos clientes telespectadores, com isso, ela espera que esses atendam o
chamado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AD NEWS. Notícias. Disponivel em: <http://www.adnews.com.br>. Acesso em: 09. set.
2005.
ADORNO, Theodor W. (et al). Teoria da cultura de massa. 5. ed. São Paulo: Paz e Terra,
2000.
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1989.
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado: nota sobre aparelhos ideológicos de
Estado. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo:
Contexto, 2005.
ARANHA, Maria Lúcia de A. História da Educação. 2.ed. São Paulo: Moderna, 1996.
ARNAUD, André-Jean (et al.). Dicionário enciclopédico de teoria e de sociologia do
direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE JORNAIS. Jornal ANJ. Disponível em :
<http://www.anj.org.br/jornalanj/?q=node/697>. Acesso em: 04.set.2006.
A TRIBUNA DIGITAL. Conteúdo. Disponível em:
<http://atribunadigital.globo.com/bn_conteudo.asp?cod=259711&opr=>. Acesso em: 12 ago.
2006.
AUTRAN, Paulo. In: LEME, Álvaro. CALSAVARA, Kátia. O rei dos palcos. Veja São
Paulo, São Paulo, Ano 39, n. 32, 16 ago. 2006.
BARROS, Diana Luz P. de. Teoria semiótica do texto. 4 ed. São Paulo: Ática, 2002.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. v.1. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade: tratado de
sociologia do conhecimento. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.
BUCCI, Eugênio (Org.). Tv aos 50 anos. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.
CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura, v.1. 3 ed. São
Paulo: Paz e Terra, 1999.
CASTRO, Daniel. Outro Canal: TV chegou ao “fundo do poço”, diz Globo. Ilustrada. Folha
on Line. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u43018.shtml >.
Acesso em: 27 jul. 2005.
204
DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema
brasileiro. 5. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1990.
ECO, Umberto. Baudolino. 2.ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.
EVOLUÇÃO DIGITAL: TVs e laptops widescreen ganham espaço no mercado. Folha de S.
Paulo, São Paulo, 20 Set. 2006. Folha Informática.
Folha on line. Notícias. Disponível em:
<http://www.amirt.com.br/novo/noticiario.asp?Codigo=317&Tipo=4>.
2005.
_____. Dinheiro. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u105799.shtml>.
2006.
Acesso em: 27 jul.
Acesso em: 08 mar.
_____. Brasil. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2503200628.htm>.
Acesso em: 01. ago. 2006.
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Universidade de Brasília,
2001.
FILHO, Ciro M. (org.). A linguagem da sedução: a conquista das consciências pela fantasia.
São Paulo: Com-Arte, 1985.
_____. O enterro de Althusser. FiloCom. São Paulo. Out. 2005. Disponível em:
<http://www.eca.usp.br/nucleos/filocom/althusser2.html>. Acesso em: 24. out. 2005.
FISCMANN, Janice B. Como agem os grupos operativos? In: ZIMERMAN, David. E.;
OSÓRIO, Luis C. (et al). Como trabalhamos com grupos. Porto Alegre: Artes médicas,
1997.
FLEURY, Afonso; FLEURY, Maria Teresa L. Estratégias empresariais e formação de
competências: um quebra-cabeça caleidoscópio da indústria brasileira. 3. ed. São Paulo:
Atlas, 2004.
FLEURY, Maria Teresa L. (et al). Cultura e poder nas organizações. São Paulo: Atlas,
1996.
FORACCHI, Marialice M.; MARTINS, José de S.. Sociologia e Sociedade, leituras de
introdução à sociologia. São Paulo: Livros Técnicos e Científicos, 1977.
FREDDO, Antonio Carlos M. A Ideologia em Ato: a filiação imaginária do sujeito. Santos:
Leopoldianum, 2004.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Prefácio. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e
política: ensaios sobre literatura e história da cultura. v. 1. São Paulo: ed. Brasiliense, 1985.
GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna: aprenda a escrever, aprendendo a
pensar. 15 ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1992.
205
GRUPO DE MÍDIA SÃO PAULO. Mídia dados. Disponível em:
<http://www.gm.org.br/midia_dados/2004/televisão.htm >. Acesso em: 20 mai. 2005.
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa: racionalidade de la acción y
racionalización social. Barcelona: Taurus: 1992.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. 2. ed. Record: Rio de Janeiro, 2001.
HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança
cultural. São Paulo: Loyola, 1987.
HILL, Christopher. In: BLISSET, Luther. Guerrilha Psíquica. São Paulo: Corand do Brasil,
2001.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das letras,
1997.
INSTITUTE GLOBESCAN. News. Disponível em:
<http://www.globescan.com/news_archives/bbcreut.html>. Acesso em: 14 mai. 2006.
JOHSON, Richard. O que é, afinal, Estudos Culturais. Belo Horizonte: Autentica, 1999.
KOCH, Ingedore Grunfeld V.; TRAVAGLIA, Luiz C. Texto e coerência. 2. ed. São Paulo:
Cortez, 1993.
LAPASSADE, Georges. Grupos, Organizações e Instituições. 2. ed. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1983.
LOLBATO, Elvira. Implementação da TV digital no país começa pela região metropolitana
de SP. Dinheiro. Folha On Line. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult9lu109020.shtml>. Acesso em: 30 jun. 2006.
LOPES, Alice Ribeiro C.; MACEDO, Elizabeth. O pensamento curricular no Brasil. In:
LOPES, Alice Ribeiro C.; MACEDO, Elizabeth (Orgs.). Currículo: debates contemporâneos.
São Paulo: Cortez, 2002.
MAGALHÃES, Izabel. Prefácio à edição brasileira. In: FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e
mudança social. Brasília: Universidade de Brasília, 2001.
MARTHE, Marcelo. A nova era da televisão. Revista Veja, São Paulo, Ano 39, n. 36, 13 set.
2006.
MENA, Fernanda. Campanha quer desligar TVs do planeta. Folha de S. Paulo, São Paulo,
25 abr. 2005.
MÍDIA DADOS. Grupo de Mídia São Paulo. São Paulo: Porto Palavra Editores Associados,
2005.
MORGAN, Gareth. Imagens da organização: edição executiva. 2. ed. São Paulo: Atlas,
2002.
206
MORIN, Edgar. Cultura de Massas no século XX: neurose. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1997.
O’ DRISCOLL, Gerard. The Essential guide to digital set-top boxes and interactive TV.
Upper Saddle River: Prentice Hall PTR, 2000.
OLIVEN, Ruben G. Violência e cultura no Brasil. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1983.
PINTO, Virgílio N. Comunicação e cultura brasileira. 2.ed. São Paulo: Ática, 1989.
PORTER, Michael E. Competição = On competition: estratégias competitivas essenciais. 4.
ed. Rio de Janeiro: Campus, 1999.
_____. Vantagem competitiva: criando e sustentando um desempenho superior. 17. ed. Rio
de Janeiro: Campus, 1989.
RAMOS, José Mário O. Televisão, publicidade e cultura de massa. Petrópolis: Vozes,
1995.
RAMOS, Murilo C. A força de um aparelho privado de hegemonia. In: BRITTOS, Valério C.;
BOLAÑO, César R. (Orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia. São Paulo: Paulus,
2005.
REDE GLOBO. Lista de Preços: abril a setembro/2005. Rio de Janeiro. 2005.
ROCCO, Maria Thereza F. A Linguagem autoritária. São Paulo: Brasiliense, 1999.
SABINO, Mario. FHC explica FHC e o Brasil. Revista Veja, São Paulo, Ano 39, n. 11, 22
mar. 2006.
SANTOS, Reinaldo. Vade-Mécum da Comunicação. 6 ed. Rio de Janeiro: Trabalhistas
S.A., 1988.
SANTOS, Suzy dos; CAPPARELLI, Sérgio. Coronelismo, radiodifusão e voto: a nova face
de um velho conceito. In: BRITTOS, Valério C.; BOLAÑO, César R. (Orgs.). Rede Globo:
40 anos de poder e hegemonia. São Paulo: Paulus, 2005.
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo
capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999.
SILVA, Carlos Eduardo L. da. Muito além do jardim botânico. São Paulo: Summus, 1985.
SILVA, Tomaz T. da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo.
Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
SIMOES, Cassiano Ferreira. MATTOS, Fernando. Elementos histórico-regulatórios da
televisão brasileira. In: BRITTOS, Valério C. BOLAÑO, César R. (Orgs.). Rede Globo: 40
anos de poder e hegemonia. São Paulo: Paulus, 2005.
207
SIZE, Pierre. Dicionário da Globalização: a economia de “A” A “Z”. Florianópolis: Obra
Jurídica, 1997.
SOMATEMÁTICA. Proporcionalidade. Disponível em: <http://www.somatematica.com.br>.
Acesso em: 29 out. 2005.
SOUZA, Maria Izabel P. de; FLEURI, Reinaldo M. Entre limites e limiares de culturas:
educação na perspectiva intercultural. In: FLEURI, Reinaldo M. (Org.). Educação
intercultural: mediações necessárias. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
SZTOMPKA, Piotr. A sociologia da mudança social. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1998.
TOMAZI, Nelson D. Sociologia da Educação. São Paulo: Atual, 1997.
TV GLOBO. Comercial. Disponível em: <http://www.redeglobo3.globo.com/institucional>.
Acesso em: 23 mai. 2005.
_____. Institucional. Disponível em: <http://www.redeglobo3.globo.com/institucional>.
Acesso em: 23 mai. 2005.
TV TRIBUNA. Comercial. Disponível em:
<http://tvtribuna.globo.com/datafiles/capa/comercial/atlas_de_cobertura/atlas_de_cobertura.ht
m >. Acesso em: 21 jul. 2005.
VALLE, Marcos; VALLE, Paulo S.; MOTTA, Nelson. Um novo tempo. Hoje é um novo dia.
1 partitura. Violão. Disponível em: <http://www.vagalume.uol.com.br/cpaste.php>. Acesso
em: 20 mai. 2005.
WADSWORTH, Barry J. Inteligência e afetividade da criança na teoria de Piaget:
fundamentos do construtivismo. São Paulo: Pioneira, 1997.
WEBER, Max. Max Weber, textos selecionados. São Paulo: Nova Cultural, 1997.
_____. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Lisboa: Presença, 1996.
WOLTON, Dominique. Elogio do Grande público, uma teoria crítica da televisão. São
Paulo: Ática, 1996.
YIN, Robert K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 3. ed. Porto Alegre: Bookman,
2005.
ZIMMERMANNO, Patrícia. Lula assina decreto com padrão japonês para TV digital.
Dinheiro. Folha On Line. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u108993.shtml>. Acesso em: 29 jun.
2006.
Download

Ricardo Augusto Pereira Cotta