Luiz Carlos Santos Simon Os Cronistas e as Mulheres na Segunda Metade do Século XX 61 OS CRONISTAS E AS MULHERES NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX Dr. Luiz Carlos Santos Simon (UEL) RESUMO: A mulher, presença constante na crônica brasileira da segunda metade do século XX, é quase sempre vista por olhos masculinos, pois autoras como Rachel de Queiroz e Clarice Lispector desfrutam de destaque, mas não da mesma projeção que os cronistas homens. O intento deste artigo é apreciar retratos de mulheres esboçados em crônicas de Rubem Braga, Antônio Maria e Luis Fernando Verissimo. A representação feminina é examinada a fim de verificar como a perspectiva oscila da preservação do domínio masculino ao reconhecimento de direitos e peculiaridades da mulher, investigando o extravasamento lírico, que se aproxima ora do controle ora de um discurso libertário. PALAVRAS-CHAVE: Crônica; Antônio Maria; Rubem Braga; Luis Fernando Verissimo. Na crônica brasileira produzida ao longo do século XX, a mulher ocupou espaços bastante significativos. Quanto à autoria, nomes como Clarice Lispector, Rachel de Queiroz, Cecília Meireles e Eneida obtiveram grande destaque num período em que ainda foram precedidas por outras cronistas relevantes como Carmen Dolores e Júlia Lopes de Almeida. Em tempos de resgate dos escritos de mulheres e de valorização de textos literários nãocanônicos, esta produção feminina na crônica merece uma atenção detalhada que vem sendo gradativamente incorporada aos estudos da área. De qualquer modo, por maiores que sejam, em quantidade e em qualidade, os avanços da crítica feminista quanto à reavaliação de autoras brasileiras, quando se menciona a crônica do século XX no Brasil, os escritores mais citados são: Rubem Braga acima de qualquer outro; Lima Barreto e João do Rio, como representantes do início do século; Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino, integrantes de uma geração mineira que conquistou o país, enriquecendo e popularizando a crônica; e, a partir das duas últimas décadas do século até os dias atuais, Luis Fernando Verissimo, que faz o país inteiro rir com inteligência, desfrutando ainda de êxito comercial incomparável. Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários Volume 7 (2006) – 61-69. ISSN 1678-2054 http://www.uel.br/cch/pos/letras/terraroxa Luiz Carlos Santos Simon Os Cronistas e as Mulheres na Segunda Metade do Século XX 62 A relação é curta, mas pretende ser fiel ao panorama dos estudos brasileiros sobre crônica. Se quiséssemos esticar a lista para completar dez nomes, talvez pudéssemos incluir Clarice Lispector ou Rachel de Queiroz ou Eneida, para fazer constar uma mulher, mas não seria apropriado chamar de discriminação se antes destas autoras fossem feitas referências a Nelson Rodrigues, Carlos Heitor Cony, Otto Lara Resende, Mário de Andrade, Antônio Maria, Orestes Barbosa, Stanislaw Ponte Preta, sem falar em autores mais recentes como Affonso Romano de Sant’Anna, João Ubaldo Ribeiro e Moacyr Scliar. Este quadro leva a no mínimo duas constatações: os estudos feministas têm ainda muito trabalho pela frente até proporcionar mais visibilidade para a produção das cronistas; além disso, o gênero crônica é intensamente praticado por homens, prática que se caracteriza também pela quantidade e qualidade. Cabe, portanto, um retorno à questão inicial. O papel da mulher na crônica brasileira do século XX é significativo não só pela autoria que divide espaço com um grande número de cronistas homens com projeção mas também pela representação feminina que emerge como uma das maiores constantes nesta modalidade de texto literário. De fato, desde Lima Barreto é bastante comum observarmos reflexões sobre o comportamento de mulheres em crônicas que se pautam pelo comentário e adoções de personagens femininas em textos cujos autores preferem a narrativa. Torna-se, assim, relevante mapear estas referências à mulher. É preciso lembrar que a crônica possui um vínculo muito estreito com o tempo presente em decorrência do veículo que a publica. Além disso, o foco dos textos recai sobre o cotidiano, o que transforma o material em interessante painel para o debate acerca das questões femininas dentro e fora do âmbito literário. Para delimitar com mais eficiência o período focalizado, faço a opção por um recorte que privilegia a segunda metade do século XX, através de leituras dos textos de Antônio Maria, Rubem Braga e Luis Fernando Verissimo. Pode-se antecipar que estas décadas são mais expressivas tanto no que se refere à consolidação das crônicas - no jornal, no livro e no conjunto das produções literárias - quanto no que diz respeito às modificações das relações de gêneros. Avaliar a importância da mulher no repertório dos três cronistas selecionados não é tarefa das mais difíceis. Rubem Braga tem dois títulos de livros que já indicam uma atenção especial ao sexo feminino: O verão e as mulheres, título que a partir da quarta edição substituiu A cidade e a roça, publicado inicialmente em 1957; e A traição das elegantes, de 1967. Antônio Maria teve em 2002 algumas de suas crônicas, escritas na década de 1960, republicadas por Joaquim Ferreira dos Santos sob o título de Benditas sejam as moças que dá nome também a um dos textos do autor. As crônicas escolhidas para as Comédias da vida privada, uma das antologias mais representativas de Luis Fernando Verissimo, publicada em 1994, são divididas em temáticas, sendo a mais longa “Eles &/ ou Elas”. Destaca-se ainda nos três autores uma infinidade de crônicas dedicadas à mulher em situações que oscilam do lírico ao narrativo, da recordação nostálgica ao olhar atento sobre o presente, da mulher intensamente amada à desconhecida rapidamente vislumbrada, de cenas vividas a histórias que podem acontecer a qualquer momento com qualquer um. É fundamental, portanto, examinar, dentro desta variedade de procedimentos, a possibilidade de traçar um perfil feminino que contribua para o debate sobre a mulher na literatura a partir da análise de um texto tão consolidado e popularizado no Brasil como é a crônica. Um dos muitos aspectos que suscitam interesse na produção de Antônio Maria é a referência a situações presentes no noticiário da época, marcadas pela infidelidade, traições Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários Volume 7 (2006) – 61-69. ISSN 1678-2054 http://www.uel.br/cch/pos/letras/terraroxa Luiz Carlos Santos Simon Os Cronistas e as Mulheres na Segunda Metade do Século XX 63 e adultério, sempre pontuadas por muito humor. Cabe desde já um brevíssimo confronto com a obra de Nelson Rodrigues, que, através de seus contos e peças de teatro, esteve também mergulhado em tais questões, atribuindo-lhes quase sempre um tom trágico. De fato, se nos deslocarmos para as décadas de 50 e 60, período em que ambos os escritores produziram seus textos, não será tão inesperado associar estes eventos com desfechos fatais, como revelações tensas e escandalosas, maridos desesperados assassinando esposas infiéis, ou até cometendo suicídios, diante do ultraje de se perceberem publicamente traídos. Não se trata aqui de considerar o humor um recurso ausente em Nelson Rodrigues, mas a dimensão trágica de sua obra é um traço muito significativo para ser obscurecido por eventuais intervenções cômicas. No caso de Antônio Maria, contudo, as ocorrências de infidelidade muito semelhantes àquelas da obra rodrigueana são conduzidas para outra seara. O marido é traído, o adultério é descoberto, mas a vingança trágica nem sempre é consumada; e mesmo quando os tiros são disparados, não chegam a abalar a marca humorística predominante da crônica. Em “A fidelidade e o queijo”, texto publicado em 1960, localizamos algumas marcas desta representação feminina carregada de humor. O eu do cronista relata o encontro com um conhecido que fica desconfiado após chegar em casa um dia e flagrar a esposa conversando com o vizinho, conversa acompanhada de café e queijo. A crônica é constituída quase inteiramente de um diálogo entre os dois homens em que o vizinho externa seus receios, mas é persuadido por seu interlocutor a acreditar na “inocência” da esposa. O homem em dúvida chega a contar as pontas de cigarro no cinzeiro e, a despeito de um número exagerado ¾ vinte e duas pontas no total ¾, nada parece “incriminador” para o cronista. Até que o queijo faz as coisas mudarem de figura. O aperitivo teria sido levado pelo vizinho e não oferecido pela esposa, o que caracterizaria a existência de intenções prévias ou de uma intimidade não tão recente, enfraquecendo a hipótese de casualidade, sugerindo ainda a condescendência da esposa ou até um excesso de circunstâncias comprometedoras. Uma das primeiras situações que atrai a atenção nesta crônica no que se refere à condição da mulher está na sua exposição a um veredicto masculino. O marido desconfiado sai à procura de um outro homem com quem vai compartilhar suas suspeitas e de quem espera um determinado juízo. A autoridade, portanto, passa longe da mulher; sua palavra é ignorada, seus eventuais desmentidos não são levados em consideração. Valem somente a desconfiança do marido e o parecer de um outro homem, quase estranho à vida do casal. (Sem falar no vizinho, possivelmente à espreita, pronto para dar o bote.) A crônica, no entanto, não se resume a um julgamento da mulher. O cronista, mesmo diante da peculiaridade do queijo, não se dispõe a condenar a esposa nem a lhe atribuir o rótulo de adúltera. Sua posição é a de alguém que deixa de pensar que aquele encontro era necessariamente casual; afinal, ele reconhecia que o conjunto das circunstâncias formava algum fundamento para as preocupações do marido. Isto não é a mesma coisa do que acusar a esposa nem confirmar a traição, menos ainda corresponde a se solidarizar com uma eventual atitude violenta ou vingativa do marido. Esta ausência de solidariedade, aliás, é muito nítida no final da crônica com a insólita relevância conferida ao queijo, mas aparece com destaque desde seu início: “A gente não imagina que haja ainda quem seja capaz de contar certas coisas e de pedir determinados conselhos. A experiência do viver tranca o homem, cada vez mais, em si mesmo, aconselhando-o a sarar, sozinho, todas as escoriações da alma.” (MARIA, Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários Volume 7 (2006) – 61-69. ISSN 1678-2054 http://www.uel.br/cch/pos/letras/terraroxa Luiz Carlos Santos Simon Os Cronistas e as Mulheres na Segunda Metade do Século XX 64 2002, 21) O cronista vê, então, a atitude daquele homem como um gesto surpreendente, que não está em sintonia com o momento vivido. Se a possibilidade da traição existia e lhe trazia angústia, este sentimento deveria ficar guardado com o marido, segundo o cronista. A partir do momento em que o suposto marido traído abria mão de sua intimidade, aquela “confidência de antiqüíssimo modelo” tornava-se assim objeto de ridicularização, alvo do humor e da ironia do autor. De acordo com esta leitura, a mulher ganha um álibi. Seu comportamento deixa de estar no centro das atenções. Já não interessa mais se o queijo era dela ou do vizinho, se ela convidou o vizinho a entrar ou se ele foi bater à porta dela com o queijo na mão. O que se sobressai é a indiscreta preocupação do marido, matéria viva para pôr em circulação a veia humorística do autor, atenta às configurações de papéis masculinos e femininos em seu tempo. Outras crônicas como “Você, hein?...” e “Honra” contribuem ainda para a revelação do olhar do cronista no que se refere à representação feminina. Na primeira, relata-se o episódio do marido que pretendia reclamar com a esposa sobre um botão de camisa que não fora costurado. A reclamação feita através da frase-título da crônica é seguida de uma surpreendente confissão da mulher que havia passeado com outro homem de automóvel e julgara que o marido havia descoberto o incidente, assim justificando a repreensão. O malentendido leva o marido a espancar a esposa e querer abandoná-la. Na segunda crônica, uma mulher leva tiros do marido depois que este viaja do Ceará para o Rio de Janeiro a fim de investigar se ela já lhe havia traído e obtém a resposta que um dos supostos filhos do casal era de outro homem. Em ambas as crônicas, Antônio Maria desvia-se de desdobramentos trágicos sem se esquivar de um repúdio ao caráter vingativo dos maridos enganados. A opção do autor, como sempre relacionada ao humor, é a de dar a maridos imprudentes e descontrolados conselhos informais e irreverentes, tais como: não dirigir à esposa comentários como “Você, hein?”, porque eles podem suscitar confissões inconvenientes; não confessar infidelidades ao cônjuge (conselho destinado a homens e mulheres); e não lavar a honra com sangue. O que todas estas recomendações sugerem, guardadas as proporções do humor que as reveste, é uma espécie de complacência com os diversos comportamentos na vida conjugal. É curioso notar que esta reivindicação de uma postura compreensiva se dirige sobretudo ao homem, o lado da relação mais habituado a esperar perdão para os próprios deslizes e mais predisposto a renegá-lo quando a mulher lhe contraria as expectativas. “Viúva na praia”, de Rubem Braga, traz o eu do cronista e sua contemplação diante de uma jovem e bela viúva acompanhada pelo filho na praia. A crônica faz rápidas alusões ao marido morto em três situações diferentes: quando ele era vivo e saudável; quando estava definhando; e quando, depois de morto, estaria, de algum modo, julgando os atos da viúva e os olhares do eu do cronista. O que se sobressai, contudo, não é o marido, mas o foco, com lentes grossas de fascínio, dirigido à viúva naquele cenário harmonioso, a praia. Essa ênfase da crônica já adianta uma inclinação desse texto de Braga que o diferencia de outros de sua autoria: o predomínio do presente. O cronista não se propõe a resgatar o passado ¾ como era a viúva, como era o marido ¾, porque isso não é relevante; nem pretende fazer projeções do futuro, com uma possível aproximação da mulher. Valoriza-se o instante, é a consciência do transitório, de que fala Portella (1958: 115) como um desafio imposto à crônica, em contraste com o ideal de transcendência, que devem perseguir todos os textos literários. E o que se quer em “Viúva na praia”: registrar o momento, declarando-o como efêmero, ou fixá-lo como uma cena especial a ser relembrada? E o eu do cronista prefere Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários Volume 7 (2006) – 61-69. ISSN 1678-2054 http://www.uel.br/cch/pos/letras/terraroxa Luiz Carlos Santos Simon Os Cronistas e as Mulheres na Segunda Metade do Século XX 65 apenas ver a mulher ou também quer tocar, aprofundando e prolongando o estimulante contato? Arrigucci Jr. (1987: 35-6) faz uma interpretação esclarecedora desses gestos de Braga: “Os olhos do cronista, treinados no jornal para o flagrante cotidiano, afeitos à experiência do choque inesperado em qualquer esquina, estão preparados, em meio à vida fragmentária, aleatória e fugaz dos tempos modernos, para a caça de instantâneos.” Ao ressaltar o presente, privilegiando a cena ali flagrada, o cronista demonstra consciência da brevidade, mas elege a transitoriedade daquela visão como o traço mais significativo a ser registrado. É a tradição de trabalhar com os olhos e, assim, fazer com que eles construam uma memória vigorosa. Este recurso se sobrepõe ao toque, por isso em nenhum momento da crônica há entre homem e mulher qualquer ato que ultrapasse o olhar. Como se organiza, então, essa estratégia do olhar ao longo do texto? Primeiro, é preciso destacar que os verbos “ver” e “olhar” aparecem em oito dos dez parágrafos da crônica, o que já indica a importância do ato. Inicialmente, quando ainda se focaliza o período em que o marido estava vivo, o olhar destinado à mulher é muito tímido: “Eu passava de longe; sabia quem era, que era casada, que talvez me conhecesse de vista; eu não a olhava de frente.” (BRAGA 1998a: 104) Esse pudor, causado pelo estado civil da mulher e pela compleição física do marido, dá lugar, após a viuvez, a um olhar que vasculha: cabelos, olhos, nariz, boca, queixo, braços, coxas, ombro, curvas, pernas, joelho, tudo é detalhadamente descrito. Não é preciso, portanto, tocar com as mãos; os olhos já haviam feito o serviço. A voracidade desse olhar e a mudança de atitude no eu do cronista depois que seu alvo fica livre, supostamente desatrelado da posse masculina, podem nos conduzir aos seguintes questionamentos: com a viuvez, a mulher teria perdido seu dono, tornando-se uma espécie de propriedade pública? seria este o fundamento do novo olhar dirigido àquela mulher? o eu do cronista é somente um espectador ou transforma-se no tutor da viúva, à revelia desta? A crônica chega a expor uma pergunta que denota moralismo, como se o cronista dispusesse de algum arbítrio sobre as atitudes da viúva: “Deve uma viúva vir à praia?” (BRAGA 1998a: 105). Após a pergunta, ainda são feitas observações sobre a decência da mulher e conjecturas sobre o que pensaria o marido acerca da presença da esposa na praia, como se o poder deste se prolongasse para além-túmulo. É inegável que o novo olhar, a pergunta e as conjecturas denunciam uma postura machista que não prevê liberdade para a mulher nem o fim da condição submissa. Mesmo após a morte do marido, outros homens sobrevivem para perscrutá-la e para resguardar costumes moralistas. O desdobramento dessa crônica, porém, não parece apontar esta direção como a melhor leitura. Inicialmente, é preciso citar que o marido morto acaba como objeto de ridicularização do cronista. Seu poder supostamente irrestrito sobre os passos da esposa é, assim, enterrado com ele. A pergunta sobre a conveniência da presença da viúva na praia fica sem resposta, ou melhor, ainda se insinua que o luto naquela situação seria uma convenção tola, sugerindo a idéia de liberdade e autonomia da mulher para fazer o que bem quisesse. O cronista tem ainda habilidade para desviar-se dos estereótipos que cercam a figura da viúva: ela não é descrita nem como libertina, a imagem da viúva alegre, nem como uma mulher fechada com o siso do luto. Com este procedimento, Braga recusa-se a descrever a viúva com traços identificados pela crítica feminista como “atividades estereotipadamente femininas” (FLAX 1992: 241) ou “feminilidade metafísico-discursiva” (DE LAURETIS 1994: 207), ou seja, é refutado, na caracterização da viúva, um conjunto Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários Volume 7 (2006) – 61-69. ISSN 1678-2054 http://www.uel.br/cch/pos/letras/terraroxa Luiz Carlos Santos Simon Os Cronistas e as Mulheres na Segunda Metade do Século XX 66 de traços convencionais e previsíveis que constituiriam um clichê de representação feminina. O maiô da viúva é preto, mas é o mesmo desde antes da morte do marido. O maiô é preto, mas não esconde o brilho da viúva ao sol, a vida que pulsa nela. Vida que pulsa também no eu do cronista e os torna tão superiores ao marido morto. A conclusão da crônica é um autêntico hino à vida que merece ser reproduzido: Vivo! Vivo como esse menino que ri, jogando água no corpo da mãe que vai buscá-lo. Vivo como essa mulher que pisa a espuma e agora traz ao colo o garoto já bem crescido. (...) Não, a viúva não está de luto, a viúva está brilhando de sol, está vestida de água e de luz. Respira fundo o vento do mar, tão diferente daquele ar triste do quarto fechado do doente (...) Ah, não quero pensar nisso. Respiro também profundamente o ar limpo e livre. Ondas espoucam ao sol. O sol brilha nos cabelos e na curva do ombro da viúva. Ela está sentada, quieta, séria, uma perna estendida, outra em ângulo. O sol brilha também em seu joelho. O sol ama a viúva. Eu vejo a viúva. (BRAGA 1998a: 106) A praia aparece aqui como cenário fundamental em plena harmonia com a beleza da mulher admirada. Trata-se de um espaço que contribui com cores vivas e energia positiva para a cena memorável. Um espaço de vida, cuja fugacidade é contida não com a conversa nem com o toque físico, mas com o olhar e seu registro escrito que fixam, eternizam aquele instante e aquela imagem. A crônica “Flagrante de praia”, de Luis Fernando Verissimo, apesar de contar com semelhanças importantes em relação ao texto de Braga ¾ a ambientação na praia e o confronto entre homem e mulher ¾, apresenta uma diferença fundamental em sua perspectiva: Verissimo não expõe o eu do cronista, promovendo um diálogo entre os personagens que ocupa quase toda a narrativa; além disso, o narrador está na terceira pessoa, procurando manter uma neutralidade. Depois de algumas poucas frases em que esse narrador concentra o foco na mulher, é esta que toma a iniciativa, aproximando-se do homem e conduzindo uma conversa. Conversa, aliás, não é o termo mais apropriado para o contato entre eles, pois todas as frases dirigidas pela mulher ao homem são perguntas. O que se presencia, portanto, é um interrogatório que desperta, no centro da crônica, antes do desfecho surpreendente, a suspeita de que havia intenções secretas, nele ou nela, de iniciar algum envolvimento amoroso. A retração do narrador no texto, que cedo deixa a cena para que ela seja conduzida pela inquisição da mulher, nos remete a alguns pontos do debate sobre crônica. Primeiramente, é interessante contrapor o procedimento de Verissimo ao que Massaud Moisés (1985: 116) aponta como uma característica do gênero: “Na crônica, o foco narrativo situa-se na primeira pessoa do singular (...). A impessoalidade é não só desconhecida como rejeitada pelos cronistas...” Se em relação ao texto de Braga a avaliação é adequada, o mesmo não se pode dizer sobre “Flagrante de praia” porque a estratégia do cronista gaúcho exemplifica aquilo que foi exposto no início desse artigo: a diversidade dos textos que recebem o nome de crônica. Mais uma vez destaca-se a fluidez do gênero, seu trânsito entre outros gêneros literários. A crônica de Verissimo está muito mais próxima do conto do que de um exercício lírico como os praticados por Braga. O próprio cronista, aliás, admitiu em entrevista concedidda a Rádio Universidade de Londrina, em 2002, que sua produção difere muito do estilo do autor capixaba e que este não tem hoje tantos sucessores. Não se trata, no entanto, de deixar de considerar os textos de Verissimo como crônicas, mas de reconhecer Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários Volume 7 (2006) – 61-69. ISSN 1678-2054 http://www.uel.br/cch/pos/letras/terraroxa Luiz Carlos Santos Simon Os Cronistas e as Mulheres na Segunda Metade do Século XX 67 transformações do gênero em questão e valorizar, sobretudo, a ênfase no cotidiano, uma marca que permanece. Assim, quais serão as particularidades da cena narrada em “Flagrante de praia”? Afinal, havia ou não intenções ocultas naquela cena? A retirada do narrador e a adoção da impessoalidade seriam, então, recursos em descompasso com um amor iminente? É preciso antes confirmar a existência dessa expectativa. Ambos estão sozinhos na praia. A mulher subitamente passa a examinar o homem, preocupada inclusive em descobrir se ele era casado. Entre as perguntas, algumas causam até estranhamento: “Você não estava imaginando que o destino deve ter nos colocado aqui, lado a lado na mesma praia, com alguma intenção? Você nem sonhou em me dirigir a palavra? Em me convidar para um programa? Em começar um caso?” (VERISSIMO 1995: 103). A solidão, sentimento experimentado tanto pelos personagens no texto quanto pelas pessoas na vida contemporânea, é a chave e o motor dessa expectativa. A “intimidade doméstica” e os “encontros confiáveis” de que fala García Canclini (1997: 286) ao se deter sobre a vida urbana, são, de fato, recursos procurados por homens e mulheres contemporâneos em busca de “formas seletivas de sociabilidade”. Isto funciona, contudo, como um ideal que não está à disposição dos solitários, de um modo geral. Estes ainda precisam construir seu mundo doméstico para somente então habitar nele. Desta forma, é possível até imaginar, num primeiro momento, que as perguntas feitas pela mulher fossem uma espécie de checagem das expectativas do homem, para que, juntos, eles pudessem experimentar uma sociabilidade confiável. Aos poucos, porém, a intimidade revela-se como algo indesejável. Diante da hesitação do homem após uma de suas perguntas, a mulher já não esconde sua contrariedade: “Lá vem confidência, pensou ela.” A reação da mulher, marcada pela impaciência e pelo enfado, se soma à resposta do homem que não mais exibe qualquer perspectiva de desejo: “Olhe, a última coisa que eu quero no momento é um envolvimento emocional, entende? Não me leve a mal. Você é uma garota muito atraente, mas eu simplesmente não estou a fim.” (VERISSIMO 1995: 104). Na última frase da crônica, enfim, é anunciado o que motivou todo o interrogatório: a mulher sozinha apenas precisava que alguém lhe passasse óleo nas costas. Antes do pedido ao homem, porém, seria necessário descaracterizar o favor como atalho para uma intimidade indesejável. A atitude da mulher e a reclusão do homem estão sintonizadas com um processo que Jean Baudrillard (1991: 22) vê como regeneração do imaginário: “As pessoas já não se olham, mas existem institutos para isso. Já não se tocam, mas existe a contactoterapia. (...) Por toda a parte se reciclam as faculdades perdidas, ou o corpo perdido, ou a sociabilidade perdida...” Para impedir que a intimidade vencesse a fugacidade, para que um favor banal não fosse mal interpretado, tornou-se necessária uma série de perguntas, pois, apesar da banalidade, o pedido já era suficiente para ferir a sensibilidade acostumada com a ausência de toque físico e com as diversas perdas que se acumulam numa sociabilidade cada vez mais marcada pelo afastamento e pela indiferença. Outras crônicas de Verissimo também tematizam essa perplexidade para lidar com as coisas íntimas. É o caso de “Sala de espera” (VERISSIMO 1995: 58-60) em que novamente homem e mulher desconhecidos, aguardando em silêncio o chamado do dentista, constroem, na imaginação de cada um, diálogos em que fantasiam um envolvimento amoroso. O tempo, porém, passa, nenhum deles dirige a palavra ao outro, um é chamado para dentro do consultório e nada mais acontece. O contraste entre as crônicas de Antônio Maria, Rubem Braga e Luis Fernando Verissimo permite constatações interessantes: os textos narram encontros e desencontros entre homens e mulheres. Os encontros, contudo, não têm grandes conseqüências no que se refere ao envolvimento dos personagens. Nenhuma história de amor nasce daquelas cenas, nem sequer Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários Volume 7 (2006) – 61-69. ISSN 1678-2054 http://www.uel.br/cch/pos/letras/terraroxa Luiz Carlos Santos Simon Os Cronistas e as Mulheres na Segunda Metade do Século XX 68 uma paixão ou aventura sexual. Nas crônicas de Antônio Maria, as atitudes das mulheres, mesmo quando o adultério é insinuado ou confirmado, são assimiladas pelo cronista como práticas comuns às quais o homem deve adaptar-se sem arroubos violentos e trágicos. Se há alguma indignação do cronista, esta se dirige justamente às manifestações retrógradas dos homens, desajustadas diante das configurações contemporâneas. Na crônica de Braga, o olhar é o único instrumento de contato e mesmo assim unilateral, pois a viúva não corresponde às investidas mudas do eu do cronista, que, por sua vez, não evidencia um desejo incontrolável nem o ímpeto de tocá-la, mas se contenta apenas com a visão. O contato físico, inexistente em “Viúva na praia”, é também o motivo do questionário da mulher de “Flagrante de praia”, crônica que acaba antes que o contato ocorra. Para que esse toque se concretize, é essencial haver preliminares não para sugerir ares eróticos, mas para extinguir qualquer sombra de erotismo. Nesse sentido, as duas crônicas, sem grandes diferenças, confirmam hipóteses que correlacionam o gênero e as situações narradas ¾ encontros e relações entre homens e mulheres ¾ com as idéias de fluidez e fugacidade. As diferenças, no entanto, existem e não deixam que estas idéias se confundam com a frivolidade. Sobre “Viúva na praia” já se disse que a opção feita pelo cronista leva em consideração o lirismo e a consciência de transitoriedade. Ao registrar o impacto da cena sem supervalorizar passado e futuro, Braga caminha para a transcendência, fixando imagens relevantes. A estratégia do cronista é a da resistência: ver as imagens, gravá-las e oferecer ao leitor a oportunidade de diferenciá-las de tudo que é frívolo ou supérfluo. Processo muito semelhante a este desenvolvido em “Viúva na praia” pode ser localizado em outra crônica do autor: “Às duas horas da tarde de domingo” (BRAGA 1998b: 93-6). Neste texto, Braga concentra-se especificamente no instante em que houve o envolvimento físico e afetivo, sem se deter em antecedentes e conseqüências: somente importavam aquele dia, aquela tarde, aquela hora, que, de tão significativos, preencheram toda a crônica e atingiram a eternidade. Nos dois textos, a arma utilizada é o lirismo que auxilia no modo de perceber e valorizar as coisas que têm mérito. Os recursos de Verissimo não incluem esta ênfase no lirismo. Por entender que já não cabe hoje escrever crônicas líricas nos moldes de Braga, conforme afirmou na entrevista citada há pouco, o cronista concentra sua produção no humor. Contudo, não se deve avaliar o humor como uma arma quase antagônica ao lirismo. O leitor se surpreende, ri e se diverte com “Flagrante de praia”, mas a graça não impede reflexões sobre o absurdo ou o desejo de manter distância que entorpece as relações de intimidade na vida contemporânea. É este perfil vivo de homens e mulheres que as crônicas de Maria, Braga e Verissimo oferecem. São esboços de identidades que se colam na lembrança do leitor do presente e servirão como memória para o leitor do futuro; estes esboços podem levar o leitor a refletir, por exemplo, sobre as perspectivas de relacionamentos entre homens e mulheres mais baseados na igualdade, no respeito e no reconhecimento de particularidades; podem viabilizar também a possibilidade de apreciarmos retratos que não sejam construídos a partir de preconceitos que reforçam imagens convencionais e conservadoras da mulher. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ARRIGUCCI JR., Davi. 1987. Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Companhia das Letras. Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários Volume 7 (2006) – 61-69. ISSN 1678-2054 http://www.uel.br/cch/pos/letras/terraroxa Luiz Carlos Santos Simon Os Cronistas e as Mulheres na Segunda Metade do Século XX 69 BAUDRILLARD, Jean. 1991. Simulacros e simulação. Trad. Maria J. C. Pereira. Lisboa: Relógio d’Água. 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This depiction of woman is examined in order to check how the perspective oscillates from maintenance of male domination to recognition of women’s rights and singularities, analyzing the lyrical overflow, which keeps close to control and to a liberation discourse. KEYWORDS: chronicle – Rubem Braga – Antônio Maria – Luis Fernando Verissimo Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários Volume 7 (2006) – 61-69. ISSN 1678-2054 http://www.uel.br/cch/pos/letras/terraroxa This document was created with Win2PDF available at http://www.win2pdf.com. The unregistered version of Win2PDF is for evaluation or non-commercial use only. This page will not be added after purchasing Win2PDF.