A Origem Do Conhecimento Mas se perguntamos de onde vem esse apetite de Universo, de integridade do mundo, que é raiz da filosofia, Aristóteles nos deixa na estacada. Para ele a questão é bastante simples, e começa sua Metafísica dizendo: “Os homens sentem por natureza o afã de conhecer”. Conhecer é não contentar-se com as coisas conforme elas se nos apresentam, mas buscar por trás delas seu “ser”. Estranha condição a deste “ser” das coisas! Não se faz patente nelas mas, ao contrário pulsa oculto sempre por baixo delas, “além” delas. A Aristóteles lhe parece “natural” que nos perguntemos pelo “além”, quando o natural seria que, consistindo primàriamente nossa vida em achar-nos rodeados de coisas, nos contentássemos com estas. De seu “ser” não temos, como é bem de ver, a menor notícia. São-nos dadas puramente as coisas, não seu ser. Nem sequer há nelas indício positivo de que tenham um ser por trás. Evidentemente, o “além” das coisas não está de modo algum dentro delas. Diz-se que o homem sente nativamente curiosidade. E isto é o que pensa Aristóteles quando à pergunta “Por que o homem se esforça em conhecer” responde, como um médico de Molière: “Por que lhe é natural”. “Sinal – prossegue – de que lhe é natural este afã seu prurido por perceber”, sobretudo por olhar. Aqui Aristóteles se lembra de Platão, que situava os homens de ciência e os filósofos na espécie dos philotheamones, dos “amigos do olhar”, dos que vão a espetáculos. Mas olhar é o contrário que conhecer: olhar é percorrer com os olhos o que está aí, e conhecer é buscar o que não está aí: o ser das coisas. É precisamente um não contentar-se com o que se pode ver, ou melhor, um negar o que se vê como insuficiente e um postular o invisível, o “além” essencial. Aristóteles, com esta indicação e com outras muitas que abundam em seus livros, nos revela qual é sua idéia da origem do conhecimento. De acordo com ele, consistiria este, simplesmente, no uso ou exercício de uma faculdade que o homem tem, como olhar seria tão apenas usar da visão. Temos sentidos, temos memória que conserva os dados daqueles, temos experiência em que essa memória se seleciona e decanta. Todos eles são mecanismos natos do organismo humano, que o homem, queira ou não, exercita. Mas nada disso é conhecimento. Nem mesmo se acrescentar-mos as outras “faculdades” mais estritamente chamadas intelectuais, como abstrair, comparar, colegir, etc... A inteligência, ou conjunto de todos esses podres, é também um mecanismo com que o homem se encontra dotado e que evidentemente serve, mais ou menos, para conhecer. Mas o próprio conhecer não é uma faculdade, dote ou mecanismo; é, pelo contrário, uma tarefa que o homem se impõe. E uma tarefa que talvez é impossível. A tal ponto não é um instinto o conhecimento ! Ao conhecer usamos de nossas faculdades, mas não por um simples afã de exercitá-las, senão para atender a uma necessidade ou anseio que sentimos, cuja necessidade não tem por si mesma nada que ver com elas e para a qual talvez estas nossas faculdades intelectuais não são adequadas ou, pelo menos, suficientes. Registre-se, pois, que conhecer não é, apenas exercitar as faculdades intelectuais, pois não está dito que o homem consiga conhecer; a única coisa que é um fato é que se esforça penosamente em conhecer, que se pergunta pelo transmundo do ser e se extenua em chegar a ele. Sempre se desvirtuou a verdadeira questão sobre a origem do conhecimento suplantando-a com a investigação de seus mecanismos. Não basta ter um mecanismo para usá-lo. Nossas casas estão cheias de aparelhos fora de uso que não manejamos porque já não nos interessa o que eles proporcionam. João é um homem com enorme talento para a matemática, mas como só lhe interessa a literatura, não se ocupa de fazer matemática. Aliás, como indiquei, não é nem mesmo certo que os dotes intelectuais do homem lhe permitam conhecer. Se por “natureza” do homem entendemos, como Aristóteles, o conjunto de seus mecanismos corpóreos e mentais e seu funcionamento, teremos de reconhecer que o conhecimento não lhe é “natural”. Ao contrário, quando usa de todos esses mecanismos se encontra com eu não consegue plenamente isso que ele propõe sob o vocábulo “conhecer”. Seu propósito, seu afã cognoscitivo transcende seus dotes, seus meios para conseguilo. Lança mão de quantos utensílios possui, sem jamais conseguir plena satisfação com nenhum deles nem com seu conjunto. A realidade é, pois, que o homem sente um estranho afã por conhecer e que lhe faltam seus dotes, o que Aristóteles chama sua “natureza”. Isto obriga, sem remissão nem escapatória, a reconhecer que a verdadeira natureza do homem é mais ampla e que consiste em ter dotes, mas também em ter falhas. O homem se compõe do que tem “e do que lhe falta”. Se usa de seus dotes intelectuais em longo e desesperado esforço, não é simplesmente porque as tem, mas, ao contrário, porque se encontra necessitado de alguma coisa que lhe falta e a fim de conseguí-la mobiliza, está claro, os meios que possui. O erro substancial de todas as teorias do conhecimento foi não perceber a inicial incongruência que existe entre a necessidade que o homem tem de conhecer e as “faculdades” com que conta para isso. Apenas Platão entreviu que a raiz do conhecer, diríamos, sua própria substância, está precisamente na insuficiência dos dotes humanos, que está no fato terrível de que o homem “não sabe”. Nem o Deus nem o animal têm esta condição. Deus sabe tudo e por isso não conhece. O animal não sabe nada e por isso também não conhece. Mas o homem é a insuficiência vivente, o homem necessita saber, perceber desesperadamente que ignora. É isto o que convém analisar. Por que ao homem lhe dói sua ignorância, como podia doer-lhe um membro que nunca houvera tido?