34 COOPERATIVAS DE TRABALHO: UM CASO DE FRAUDE ATRAVÉS DA LEI* Márcio Túlio Viana** “Não me chame boiadeiro Não sou boiadeiro não Sou só tocador de boiada Boiadeiro é meu patrão” (cantiga popular mineira) 1 . INTRODUÇÃO Quem lançou as bases do cooperativismo foi Robert Owen, um gênio que aos nove anos já tinha lido os clássicos e filosofava. Mas a primeira cooperativa que realmente funcionou foi a de Rochdale, Inglaterra, em 1844. Vinte e oito tecelões abriram uma pequena mercearia, num beco escuro da cidade, e o negócio se expandiu por todo o país.1 A novidade era a de que - pela primeira vez - aqueles tecelões trabalhavam para si próprios. A cooperativa era uma coisa deles. Entre nós, rege as cooperativas a Lei nº 5.764, de 16/12/71. Mas o trabalho em cooperativas, como sabemos, se submete também ao novo parágrafo do art. 442 da CLT introduzido pela Lei nº 8.949/94. 2 . O QUE DIZ A LEI O que diz a lei? Em sua redação original, o art. 442 da CLT prescrevia apenas: “Contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso , correspondente à relação de emprego” Mas veio a Lei nº 8 949/94, que lhe acrescentou um parágrafo: “Qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela.” Pergunta-se: teremos aqui, realmente, uma exceção à regra geral? Como entender o novo texto? De início, é preciso observar que a primeira parte do preceito (até a palavra “associados”) já constava da Lei nº 5 764/71. Caminhando um passo adiante, não custa lembrar que nem todo trabalho por conta alheia traduz relação de emprego. Sequer a subordinação é elemento decisivo. Trata-se de condição necessária, mas não suficiente. Em outras palavras: pode haver trabalho subordinado fora da CLT. As hipóteses se multiplicam. Assim é, por exemplo, com o trabalho gratuito, que o filho presta para o pai, ou a mulher para o marido, sem objetivo de ganho. Ou, inversamente, o trabalho forçado, como no caso de prestação de serviços à comunidade, espécie de pena restritiva de direitos (art.43, I, do Cód. Penal). A meio caminho, temos o contrato de estágio (Lei nº6494/77). O do menor-assistido (Dec.-lei nº 2318/87). E ainda o do médico-residente (Lei nº 6932/81). E a explicação é simples. Embora seja ainda a pedra-de -toque da relação de emprego, a subordinação não é o seu único pressuposto. É preciso haver salário, entendido não como um valor efetivamente pago ao empregado, mas considerado por este, ao celebrar o contrato. É preciso ainda inexistir eventualidade. E também pessoalidade, traduzida não só no sentido de ser o empregado, sempre, pessoa física, mas aquela pessoa, e não outra. Ora: nas hipóteses acima citadas, e em outras mais, falta pelo menos um daqueles pressupostos. Ou então, como no caso do menor-assistido, outra é a causa do contrato. Mas se, ao contrário, todos os pressupostos estão presentes; se há um contrato, expresso ou tácito; e se a causa desse contrato é a prestação de um trabalho, em troca de um salário, não há como fugir da aplicação da CLT. É que a Constituição Federal obriga a isonomia. E essa regra vale não só para o aplicador, mas também para o legislador ordinário. Não se trata, naturalmente, de mero enunciado formal. As cartas políticas sempre contêm preceitos, todos eficazes. Mesmo os preâmbulos têm força normativa. Com mais razão, os princípios, ainda que não escritos. O que varia é apenas o grau ou a intensidade dessa força. De resto, a mesma Constituição prescreve os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, distinguindo apenas o caso dos domésticos. Até os avulsos, como se sabe, hoje se igualam aos empregados comuns. Assim, quando a lei exclui da CLT os cooperados, refere-se apenas àqueles que realmente são cooperados, mantendo entre si relação societária. Em outras palavras: pessoas que não se vinculam ao tomador de serviços, nem à própria cooperativa, pelos laços da pessoalidade, da subordinação, da não-eventualidade e do salário. Assim, ao usar a expressão: “qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa”, a lei não está afirmando: “qualquer que seja o modo pelo qual o trabalho é executado”. O que a lei quer dizer é exatamente o que está nela escrito, ou seja, que não importa o ramo da cooperativa. Mas é preciso que se trate realmente de cooperativa, não só no plano 35 formal, mas especialmente no mundo real. Ou seja: que o contrato se execute na linha horizontal, como acontece em toda sociedade, e não na linha vertical, como no contrato de trabalho. Em outras palavras, é preciso que haja obra em comum (cooperari) e não trabalho sob a dependência do outro (sub ordinare) . E nem poderia ser de outro modo: um dos princípios fundamentais do contrato de trabalho, como se sabe, é o da primazia da realidade, que privilegia a substância sobre a forma, o conteúdo sobre o rótulo. A propósito, é importante observar que todos os princípios que informam o Direito do Trabalho (e não só o da isonomia) têm hoje hierarquia constitucional, na medida em que a Carta de 1988 absorveu um número inédito de direitos trabalhistas, celetizando-se. Por outro lado, também é bom notar que - pela própria natureza das cooperativas - quase sempre estarão presentes os pressupostos da onerosidade, da pessoalidade, da continuidade. Por isso, a pedra-de-toque, mais do que nunca, será a subordinação. Sem ela, aplica-se o parágrafo; com ela, o caput do artigo. Dir-se-à que, a se entender assim, a nova disposição será inútil. Nada terá trazido de novo ao mundo jurídico. De fato, a rigor, a norma seria dispensável. Mas não chega a ser inútil, pois reforça a regra de que não há contrato de trabalho quando falta um de seus pressupostos; e, por outro lado, deixa mais clara a conclusão de que o ônus da prova contrária será do autor, que se diz empregado2 . Para os que querem fraudar direitos trabalhistas, porém, sua utilidade é enorme - já que possibilita leituras equivocadas. Sobre isso falaremos a seguir. Mas antes é preciso notar que a lei das cooperativas não previa e continua não prevendo a hipótese de terceirização. Ao contrário. Diz que os cooperados são os beneficiários de seus próprios serviços 3. Assim, o novo parágrafo do art. 442 da CLT destoa da lei específica.4 3 . O QUE DIZEM OS FATOS O que dizem os fatos? A partir do instante em que surgiu a nova regra, as cooperativas passaram a se reproduzir como ratos, especialmente onde a mão-de-obra é desqualificada e ignorante. Muitas atuam como braços invisíveis das tomadora de serviços. Quem as cria são profissionais liberais, comerciantes ou fazendeiros, pessoas que nada têm a ver com os supostos cooperados, e que se utilizam de testas-de-ferro para explorar o trabalho alheio. É o que acontece, por exemplo, nas fazendas paulistas que se dedicam ao cultivo de laranjas. Muitas se recusam a contratar formalmente empregados: só admitem “cooperados”, que em geral não sabem sequer o nome da “cooperativa” e se referem a ela não como algo deles, mas como sua empregadora, intuindo a realidade por detrás da farsa 5 . Outro exemplo, comum em Minas, são as cooperativas de trabalhadores que atuam em serviços de limpeza. Muitas delas são criadas por pessoas estranhas à categoria, como oficiais militares reformados. Os “cooperados” mal sabem assinar o nome. Simplesmente subscrevem os documentos que lhes são entregues, pois esse o preço do emprego. O pior é que esses traficantes de mão-de-obra passam aos “cooperados” a idéia de que não têm direitos trabalhistas, enquanto lhes sonegam a informação de que podem votar e ser votados. E assim se perpetuam no poder. No fundo, o caso das cooperativas é mais do que uma fraude à lei: é fraude através da lei, contra o direito. Se o pretexto é o desemprego, a razão é o lucro e o resultado o subemprego. Cabe a nós, operadores do direito, denunciarmos a farsa. (*) Adaptação de trabalho publicado no “Repertório IOB de Jurisprudência, maio de 1966, 2 (10): 159-157, São Paulo, com alterações e acréscimos. (**) Juiz do TRT - 3ª Região. Professor da Faculdade de Direito da UFMG. 1 Silva Jacinto L. da “Sociedade Cooperativas: aspectos e problemas de suas relações com o Estado “(tese), UFMG, B. Horizonte, 1986, pp. 3 segs. 2 Quanto a esse último aspecto, observamos que, provada a relação de trabalho, presume-se, regra geral, a relação de emprego - ou seja, a existência de subordinação. 3 Nesse sentido, v. interessante artigo de Iara A. Cordeiro Pacheco, em: ST-Doutrina, jul.96,pp.10-11,S.Paulo. 4 A propósito, é curioso notar que os “considerandos” da norma tratam da cooperativa como uma espécie de remédio para a crise empresarial, desvirtuando o seu papel. 5 Informações prestadas por fiscais do trabalho em B. Horizonte e em Patos de Minas.