MUNDO ÁRABE L P Baçan Todos os direitos reservados Proibidas a reprodução e a divulgação sem a expressa autorização do autor. Copyright © 2014 L P Baçan 2014 2 ÍNDICE Hábitos, Costumes e Tradições Árabes Maomé e a Unificação O Islamismo A Cozinha Árabe A Escrita Provérbios Vestuário Árabe A Tradição Oral A Arte Árabe A Música e a Literatura O Humor Árabe Curiosidades Lendas Árabes 3 HÁBITOS, COSTUMES E TRADIÇÕES ÁRABES Chama-se genericamente de Oriente Médio a duas grandes regiões: a Ásia Ocidental e a Península Arábica, cujos principais pontos em comum são a língua, a religião e as tradições islâmicas. Esses países, em sua maioria, têm sua economia baseada na exportação de petróleo. A leste do Mediterrâneo, há uma região com um formato semelhante ao de uma lua crescente, conhecida desde a antiguidade como o Crescente Fértil. Nessa região, milênios antes de Cristo, o homem passou pela mais importante evolução da história da humanidade. Os babilônios erigiram um grande império agrícola na Mesopotâmia. Os fenícios estabeleceram importantes rotas de navegação e comércio, cobrindo quase todo o Mar Mediterrâneo. A região rapidamente se desenvolveu, realizando extraordinários progressos técnicos e científicos, avançando também nas artes, na religião e no direito. Tempos depois, as expansões grega e romana deram início a profundas transformações nas civilizações daquela região, que iniciariam sua própria expansão, estendendo-se até a Península Ibérica, onde permaneceram por alguns séculos. A partir do século XII, as civilizações da área entraram em dramático declínio, resultado das invasões de mongóis e otomanos e de severos danos ambientais decorrentes da destruição das florestas e dos canais que drenavam os pântanos e evitavam as cheias dos rios. A área 4 de deserto aumentou substancialmente, enquanto diminuíam as áreas de cultivo e de pastagem, situação que se agravava com o proporcional aumento na aridez do clima. 5 MAOMÉ E A UNIFICAÇÃO Nos primeiros séculos da era cristã, a região da Arábia era percorrida por caravanas de mercadores e por expedições militares, responsáveis pela disseminação de influências gregas, persas e indianas. Os árabes do sul cultuavam deuses personificados por planetas, enquanto que, ao norte, a crença vigente relacionava uma série de espíritos, os djinns, representados por árvores e pedras. Um ponto em comum unia essas duas crenças. Todas as divindades estavam subordinadas a um deus supremo, chamado Alá, formando uma hierarquia divina. A justiça era a mais primitiva possível, prevalecendo a lei de Talião, que valorizava a vingança. O centro das atividades comerciais e religiosas da região era Meca, cidade importante pelos seus depósitos de água que abasteciam as caravanas e por se situar numa estratégica encruzilhada que levava ao Iêmen, Egito, Síria e Mesopotâmia. A partir do século V, Meca se transformou num centro de peregrinações, com a construção da Caaba ou Caba, Ka’ba, a Casa de Deus, que abrigava as divindades de todas as seitas, onde cada um podia cultuar sua crença. Esse local era considerado sagrado e inviolável. Até o século VI, não havia, na Arábia, unidade religiosa, política e comercial. Tudo isso mudaria, no entanto, com o surgimento de Maomé. Sobre ele, há poucos dados biográficos. As informações a seu respeito baseiam-se nos hadith, uma 6 coleção de orientações e narrações deixadas por ele, formando as máximas da tradição muçulmana. Sabe-se que, aos vinte anos, foi escolhido como homem de confiança de uma viúva chamada Kadidja, com quem se casaria cinco anos depois. Maomé passou a se dedicar a uma série de retiros, onde recebeu importantes revelações de natureza espiritual, que começou a revelar a partir de 613. Apesar de pregar durante dez anos, não converteu os cidadãos de Meca, sendo com frequência ironizado, injuriado e quase morto. Em 620, conseguiu converter seis peregrinos, que passaram a ajudá-lo, convertendo outras pessoas. Em 24 de setembro de 622, vítima de perseguições e ameaças, fugiu para Yatrib, dia que passou a ser chamado Hégira, ou emigração. Essa data assumiu tal importância para os islâmicos que o tempo passou a ser calculado a partir daí. Em Yatrib, iniciou-se uma fase decisiva para sua religião. Maomé conseguiu unir diversos grupos e tribos que aderiram a ele, submetendo-se a sua autoridade. Em 630, regressou a Meca com um exército de dez mil homens. Após definir sua vitória, foi até a Caaba e deu sete voltas ao seu redor, tocando a pedra com seu bastão. Ordenou que fossem derrubados todos os ídolos, apagados os afrescos dos profetas bíblicos, deixando apenas as imagens de Abraão, de Jesus e da Virgem Maria. Em 10 de março de 632, já doente, fez uma peregrinação de adeus a Meca, ocasião em que definiu todos os ritos a serem seguidos e proferiu seu último sermão, no monte Arafat. Antes 7 de sua morte, declarou Meca território sagrado, pediu união aos árabes e estabeleceu alguns direitos e deveres quanto ao casamento e ao comércio. Enquanto estava vivo, Maomé também extinguiu a lei de Talião, definiu o ano com doze meses lunares e proibiu a usura. Morreu em 8 de junho de 632 aquele que lançou as bases de uma religião que unificaria o mundo árabe e daria novos rumos àquela civilização. Seu filho adotivo, Thalit, transcreveu seus escritos em um livro chamado Kitab Allah, Livro de Alá, que se tornaria mais conhecido como Corão, Al Corão ou simplesmente Alcorão. A obra só foi finalizada vinte anos depois de iniciada, compreendendo cento e quatorze souras ou capítulos. Exemplos das Pregações do Profeta Muitos dos ensinamentos de Maomé são apresentados em máximas e parábolas simples, de fácil entendimento, mas de sentido profundo, próprios para a meditação e a reflexão, como estas, por exemplo. Disse o Profeta: — Deus não tem nenhuma clemência com quem não tem nenhuma clemência pelos outros. — Ninguém verdadeiramente tem fé até que deseje para seu irmão o mesmo que deseja para si próprio. — Quem come com abundância enquanto seu vizinho passa fome não é um crente. 8 — O homem de negócios verdadeiro e fiel é associado com os profetas, os santos e os mártires. — Poderoso não é aquele que derruba o outro; realmente poderoso é aquele que se controla em momento de ira. — Deus não julga de acordo com seus corpos e aparência, mas Ele esquadrinha seus corações e observa suas ações. Narrou o Profeta: — Um homem muito sedento caminhou ao longo de uma estrada. Alcançando um poço, desceu, bebeu água e saiu. Então viu um cachorro com sua língua pendurando, tentando lamber lama para aplacar sua sede. O homem viu que o cachorro estava sentindo a mesma sede que ele tinha sentido. Assim, ele se abaixou novamente no poço, encheu seu sapato com água e deu para o cachorro beber. Deus perdoou seus pecados por esse ato. Perguntaram então ao Profeta: — Ó mensageiro de Deus, nós somos recompensados pela generosidade para com os animais? Ele respondeu: — Há uma recompensa pela generosidade para com todos os seres vivos. 9 O ISLAMISMO Não se pode falar em hábitos, costumes e tradições árabes sem passar pelo Islamismo que, muito mais que uma religião, é um código de conduta e procedimentos que move a vida de todos os seus adeptos. Para se entender um árabe muçulmano, é preciso conhecer, compreender e respeitar essa religião. O Islamismo não é uma religião nova, mas é a mesma verdade que Deus revelou através de todos os Seus profetas a todas as pessoas. Para um quinto da população do mundo, Islã, ou Islamismo, é uma religião e um modo completo de vida. Muçulmanos seguem uma religião de paz, clemência e perdão e a maioria não tem nada que ver com os radicalismos que são associados a sua fé. Um bilhão de pessoas de várias raças, nacionalidades e culturas, das Filipinas à Nigéria, estão unidas pela fé islâmica comum. Aproximadamente dezoito por cento delas vivem no mundo árabe. A maior comunidade muçulmana do mundo está na Indonésia. Partes significativas da Ásia e a maioria da África são muçulmanas, enquanto minorias significantes serão achadas nos países da antiga União Soviética, China, Américas do Norte e do Sul e Europa. Os muçulmanos acreditam em um Deus Sem Igual, Incomparável, nos Anjos criados por Ele, nos profetas por quem as revelações dele foram trazidas ao gênero humano, no Dia de Julgamento, no livre arbítrio, na autoridade total de Deus sobre o 10 destino humano e em uma vida após de morte. Acreditam ainda em uma cadeia de profetas que começou com Adão e inclui Noé, Abraão, Ismael, Isaac, Jacó, José, Jó, Moisés, Aarão, Davi, Salomão, Elias, Jonas, João Batista e Jesus. Mas a mensagem final de Deus para o homem, uma confirmação da mensagem eterna e um soma de tudo aquilo que foi dito antes, foi revelada ao Profeta Maomé pelo Arcanjo Gabriel. A despeito do que se possa imaginar, os muçulmanos respeitam e veneram Jesus e esperam Sua Segunda Vinda. Eles o consideram um dos maiores Mensageiros de Deus para o gênero humano. Um muçulmano nunca se refere simplesmente a ele como Jesus, mas sempre acrescenta a frase “nele esteja a paz”. A Família A família é a base da sociedade islâmica. São muito estimadas a paz e a segurança oferecidas por uma unidade familiar estável e vista como essencial para o crescimento espiritual de seus membros. Uma ordem social harmoniosa é criada pela existência das famílias. As crianças são consideradas tesouros e raramente deixam a casa antes do casamento. A Mulher O Islã vê a mulher solteira ou casada como um indivíduo no seu próprio direito, podendo possuir e dispor de suas propriedades e de seu salário. Um dote de matrimônio é determinado pelo noivo para o uso pessoal da noiva que, ao se 11 casar, mantém o nome próprio de família em lugar de usar o do marido dela. As Roupas Espera-se que homens e mulheres se vistam de modo modesto e digno. As tradições dos vestidos femininos encontrados em alguns países muçulmanos são frequentemente a expressão de costumes locais e não uma regra geral. O Casamento A religião do Islã foi revelada para todas as sociedades e em todos os tempos e, assim, acomoda amplas diferenças e exigências sociais. Certas circunstâncias podem ocorrer, garantindo a um homem o direito de ter outra esposa, sempre de acordo com o Alcorão, com a condição de que o marido seja escrupulosamente leal e honrado. O matrimônio muçulmano não é um sacramento, mas um acordo simples e legal no qual qualquer sócio é livre para incluir condições. Costumes matrimoniais variam de país a país. Como resultado, o divórcio não é comum, embora não seja proibido como último recurso. De acordo com Islã, nenhuma menina muçulmana pode ser forçada a se casar contra a sua vontade. Seus pais simplesmente sugerirão homens jovens que imaginam serem bons partidos. Os Velhos No mundo islâmico não há asilos para pessoas velhas. O esforço de cuidar dos pais nesse tempo difícil de suas vidas é 12 considerado uma honra e uma bênção como uma oportunidade para um grande crescimento espiritual. Deus exige que não só se reze pelos pais, mas que se aja com compaixão ilimitada. A Morte Como os judeus e os cristãos, os muçulmanos acreditam que a vida presente é só uma preparação para o próximo reino da existência. Artigos básicos de fé incluem: o Dia de Julgamento, Ressurreição, Céu e Inferno. Quando um muçulmano morre, é lavado, normalmente por um membro da família, embrulhado em um pano branco limpo e enterrado com uma oração simples, preferencialmente no mesmo dia. O Profeta ensinou que três coisas podem ajudar uma pessoa, mesmo depois da morte: a caridade que teve, o conhecimento que ensinou e orações em seu benefício feitas por uma criança justa. A Guerra Assim como o Cristianismo, o Islã permite lutar em autodefesa, em defesa da religião ou em defesa dos que foram expulsos violentamente de suas casas. Impõe regras rígidas de combate, que incluem proibições contra ferir civis e destruir colheitas, árvores e gado. Na visão dos muçulmanos, a injustiça triunfaria sobre o mundo se os homens bons não estivessem preparados para arriscar suas vidas por uma causa justa. O Alcorão diz: Lute na causa de Deus contra esses que lutam contra você, mas não transgrida limites. Deus não ama os transgressores. Se eles buscam a paz, então busque também a 13 paz. E confia em Deus porque Ele é o Único que tudo ouve e tudo sabe. Dessa forma, guerra é o último recurso e está sujeita às condições rigorosas colocadas pela lei sagrada. O termo Jihad, literalmente significa esforço e os muçulmanos acreditam que há dois tipos de Jihad. Uma é a guerra contra os agressores. A outra Jihad é a luta interna que todo o mundo empreende contra o egoísmo para atingir a paz interior. A Comida O código que os muçulmanos observam proíbe o consumo de carne de porco e de qualquer tipo de bebida tóxica. O Profeta ensinou que o corpo tem direitos. O consumo de comida saudável e a manutenção de um estilo de vida saudável são vistos como obrigações religiosas. O Profeta disse: Peça a Deus firmeza de fé e bem-estar, pois depois da fé nenhum presente é melhor do que a saúde. Os Pilares da Fé Islã é uma palavra semítica, formada pelas consoantes s l m, significando submissão a Deus. Quem se coloca sob essa condição é chamado de muçulmano, pessoa que se coloca sob a proteção de Deus. O Islamismo tem peculiaridades que a diferem das religiões mais conhecidas no Ocidente. Não possui uma hierarquia religiosa e dispensa a presença de um guia espiritual, pois todos os ensinamentos estão claramente expressos no Alcorão. Desses ensinamentos, os pilares da fé são obrigações que todo muçulmano deve observar: 14 1 – O Pilar da Fé, que reconhece que só há um Deus e Maomé é Seu Profeta. 2 – Pilar da Oração – antes do sol nascer, ao meio-dia, antes e depois do pôr do sol e à primeira vigília da noite. 3 – Pilar da Caridade, que envolve a esmola e a hospitalidade. 4 – Pilar do Jejum durante o Ramadã (mês sagrado). 5 – Pilar da Peregrinação a Meca, na Arábia Saudita, para visitar a Caaba. O Ramadã O Mês Sagrado do Ramadã é recebido com grande fervor religioso no mundo islâmico. Tradições religiosas e sociais durante o Ramadã permaneceram inalteradas, unindo os muçulmanos de hoje com seus antepassados. As datas do Ramadã, o nono mês da Hégira, variam conforme o calendário lunar, iniciando aproximadamente onze dias mais cedo cada ano. A primeira aparição da lua crescente anuncia o começo do jejum. Quando o Profeta Maomé deixou Meca indo para Medina, jejuou durante três dias. Subsequentemente, uma revelação divina estabeleceu a obrigação de jejuar certo número de dias e isso determinou o mês do Ramadã. O jejum exige total abstinência de comida, bebida e tabaco. Todo muçulmano tem que jejuar do amanhecer ao crepúsculo. Exceções são feitas a certas pessoas como os doentes, viajantes em longas jornadas e mulheres grávidas ou que estejam amamentando. Essas, porém, jejuarão o número de dias perdido em outra data no futuro. O 15 ancião e crianças abaixo da idade da puberdade estão isentas, embora muitas famílias encorajem suas crianças, a partir dos sete ou oito anos, a jejuar durante algumas horas a cada dia para treiná-las na disciplina. Ramadã não só é um mês de abstinência física, mas também tem a virtude social de criar laços novos de compreensão entre as classes de pessoas. O jejum praticado pelo rico é semelhante ao do pobre, mas recorda aos mais afortunados o sofrimento da fome que o pobre padece. O Islã prega a igualdade. O pobre e o rico, os homens e as mulheres, todos são iguais como devotos aos olhos de Deus. Deus escolheu o mês do Ramadã para dar a oportunidade aos muçulmanos de buscar o perdão pelos seus pecados. O profeta Maomé disse que quem jejua durante o mês do Ramadã com fé sincera e esperando apenas a recompensa do Deus Altíssimo terá seus pecados perdoados. O décimo dia do Ramadã comemora a morte da primeira esposa do profeta Maomé. O décimo sétimo dia marca a vitória decisiva dos muçulmanos sobre os incrédulos em Badr. O décimo nono é o dia da conquista de Meca pelo profeta Maomé. Em um dos últimos dez dias do Ramadã, em um dia incerto, ocorre a Lailat Al-Qadr, a Noite de Poder. Nesse período, as orações sinceras dos muçulmanos serão certamente respondidas. Lailat Al-Qadr é uma noite santificada, quando os anjos descem e a paz reina até o amanhecer. De acordo com tradição, o profeta Maomé passava os últimos dez dias do mês na mesquita de 16 Medina. O Alcorão, a revelação final de Deus, foi feito na Lailat-Al-Qader. Durante o Ramadã, além das orações obrigatórias, os muçulmanos são encorajados a fazer orações voluntárias, recitar e entender o Alcorão inteiro, fazer caridade e, se capaz, seguir o exemplo do profeta Maomé, retirando-se na mesquita para contemplação espiritual durante os últimos dez dias do mês. A cada noite, acontecem serviços de oração especiais em cada mesquita, nas quais uma trigésima parte do Alcorão é lida e a leitura do livro todo se completa no trigésimo dia. As pessoas ficam acordadas toda a noite em orações. As mulheres vão à mesquita para orações noturnas. Há leituras religiosas após a Ashr, a oração da tarde. Ao pôr do sol, o profeta Maomé quebrava o jejum com tâmaras e água. O jejum pode ser quebrado com comidas que não sejam proibidas pela lei islâmica. Um lanche simples de tâmaras com iogurte e sopa normalmente é consumido. Seguindo isso, a oração do pôr do sol, a Maghrab, é executada antes do jantar, uma refeição completa, composta de sopa, seguida de um prato principal, como o Tashiriba, contendo pão, galinha e vegetais, acompanhado de líquidos como água, o laban ou uma bebida feita com damascos. Meca Cidade na Arábia Saudita com mais de 600.000 habitantes, localizada a cerca de 80 km da costa do Mar Vermelho, foi construída ao redor de uma fonte natural. É a mais sagrada 17 cidade do Islamismo, reverenciada como o primeiro lugar construído na Terra, onde Abraão e seu filho Ismael construíram a Ka'ba, o centro do Islã, uma construção retangular feita de tijolos. Ao redor de Ka'ba está a grande mesquita, al-Haram. Ao redor dela, entre as montanhas, espalham-se as casas. Meca era um ponto central das rotas de caravanas que percorriam toda a península arábica no tempo de Maomé, quando já era considerada uma cidade sagrada. Hoje é centro da peregrinação obrigatória e foco central de todos muçulmanos. Muitos de seus moradores são peregrinos que buscam a cidade para estudar o islamismo no lugar considerado como o centro do mundo. Além dos serviços destinados a atender os peregrinos, há pouca atividade econômica na cidade. Todo ano, cerca de dois milhões de peregrinos a visitam e esse número é regulado. Cada país do mundo islâmico só pode mandar um número determinado de fiéis. A estrutura de pedra chamada Ka’ba é um local de culto mandado construir por Deus. Abrão e Ismael a construíram a mais de quatro mil anos atrás. É coberta com o Kiswah, um manto negro com bordados em ouro, trocado anualmente por ocasião da peregrinação da Haj, ou peregrinação obrigatória que todo muçulmano deve fazer a Meca. Voltados na direção dessa construção, muçulmanos de todo o mundo fazem as suas orações diárias. Para saber exatamente qual é essa direção, as mesquitas e quartos de oração possuem o que é chamado de mihrab, que indica a qiblah, ou a direção de Meca. Essa direção é fixada conforme cálculos exatos, mas admite-se que os muçulmanos 18 fixem essa localização aproximadamente. Quando em viagem, por exemplo, podem ser utilizados instrumentos ou formas comuns de orientação. 19 A COZINHA ÁRABE Um árabe oferecerá a seu convidado a melhor comida e todo o conforto de que ele puder dispor, frequentemente tirando de si para oferecer ao visitante. Segundo essa tradição, a mulher árabe se orgulha de sua casa e busca fazer dela o centro da vida familiar e social. Para criar um clima atraente e convidativo, ela deverá ser uma excelente cozinheira. Normalmente aprende a arte culinária com a mãe e adapta as receitas tradicionais para as necessidades da vida moderna e de sua casa. Aprende a simplificar as receitas antigas, de forma a poder preparar a comida que a família gosta e, ao mesmo tempo, ter um tempo livre para se dedicar a outras atividades. A hospitalidade árabe se apoia firmemente na necessidade de que uma mesa farta possa ser servida a qualquer momento. Uma anfitriã tem comida disponível para oferecer a um convidado, não importa em que momento do dia ou da noite ele chegue. Ela encorajará cordialmente seus convidados a que comam da grande variedade de comida que tem preparada para a satisfação deles. Há um provérbio árabe que diz que se mede a consideração de um convidado para com o anfitrião pela quantia de comida que ele come. Em alguns países do mundo árabe, como no Líbano, o café é essencial. É o símbolo tradicional de boas vindas. Seu preço faz dele um luxo e, assim, servi-lo é um sinal de respeito para com uma visita. O café árabe ou turco não pode ser reaquecido porque deve ser recém-preparado para ser 20 bom. Assim, um convidado fica lisonjeado porque sabe que aquela xícara de café que lhe está sendo servida foi preparada única e especialmente para ele. Cardápios são planejados cuidadosamente pelas anfitriãs. Muitas comidas têm um significado especial no padrão cultural árabe. Esses pratos são reservados para ocasiões específicas. Por exemplo, doces especiais são preparados para celebrar o nascimento de um bebê ou marcar o surgimento do primeiro dente de uma criança. Bolos especiais chamados ma'moul só são assados na Páscoa ou no Natal. O mais famoso prato árabe conhecido, a mistura de carne moída chamada kibbeh, ou quibe, da qual existem dezenas de variações, só é servido em encontros felizes ou festivos e nunca depois de um enterro, quando uma família está de luto, ou ainda em uma despedida qualquer. A ocasião também determina a quantia de açúcar adicionada ao café árabe. Geralmente, quanto mais doce for café, mais alegre é a ocasião. O carne de cordeiro e carneiro são as preferidas das pessoas no Oriente Médio, uma vez que são abundantes e mais barata que a carne de boi. Muitos tipos de peixe estão disponíveis a quem mora no litoral. Leites de vaca e de cabra são normalmente convertidos em laban, o iogurte, ou em queijo de nata, o labneh. Os cereais principais são o arroz e o trigo moído, chamado burghul. São consumidas batatas em quantidade. A culinária árabe depende em grande parte de óleo. A comida é frita nele ou regada ao ser servida. O uso de gordura na arte culinária identifica frequentemente o país onde a receita teve 21 origem. O árabe gosta de usar o próprio óleo de oliva fresco ou uma manteiga clarificada chamada samneh. Os turcos usam óleo de oliva, óleo vegetal ou untam com manteiga, enquanto na Arábia Saudita a gordura preferida é a ghee, obtida do leite de cabra ou de ovelha. Azeitonas, nozes, passas, ervilhas, sementes de abóbora torradas sempre estão disponíveis como aperitivos. Picles feito de nabo, beterraba, cebola, couve-flor verde e pepino junto com verduras frescas são muito apreciados. Pão é muito importante na dieta, havendo, no Oriente Médio, uma enorme variedade de receitas. Os árabes gostam de untar o pão com óleo de oliva ou com queijo branco suave, ou imergi-lo nos purês oleosos deliciosos que eles fazem de ervilhas, berinjela grelhada ou salsa temperada com óleo picante de gergelim. Em todas as receitas, condimentos e ingredientes são absolutamente naturais. Algumas receitas a seguir darão uma dimensão da riqueza dessa culinária e, com certeza, vão incentivar os apreciadores da boa comida a investir num livro específico de receitas ou num curso sobre o assunto. O Al akl 'ala kadd el mahabeh (a comida iguala o afeto). Sopa de Carne SHOURABAT MOZAAT Ingredientes: 2 1/2 xícaras de sopa de carne em cubos 4 xícaras de arroz ou talharim 1 pedaço de canela 22 1 xícara de salsa bem picadinha 1 1/2 colher de chá de sal 1/4 colher de chá de pimenta Ossos Água Modo de Preparar: A dona de casa árabe passava a maior parte do dia cuidando da panela para fazer esta sopa nutritiva para sua família. Hoje, a mesma sopa pode ser cozida em uma hora de fogão, usando uma panela de pressão. Seu sabor inusitado vem da canela acrescentada ao caldo. Com pão árabe torrado, é uma comida saudável. Coloque a carne e os ossos numa panela de pressão com água suficiente para cobrir os ingredientes. Deixe ferver, retirando a nata que se formar. Separe 2 1/2 xícaras do caldo, acrescente a canela e cozinhe sob pressão por 30 minutos. Reduza a pressão e retire a carne e os ossos. Adicione arroz ou talharim e o caldo reservado na panela e cozinhe sob pressão por oito minutos. Deixe sair a pressão e abra a panela. Prove o tempero e faça as correções necessárias. Retorne a carne à sopa e deixe ferver. Sirva em tigelas de sopa guarnecidas com salsa cortada. Para variar, acrescente cenouras pequenas, um tomate cortado pela metade, abobrinhas e aipo no caldo, antes adicionar o arroz ou o macarrão. Sopa de Lentilha 23 SHOURABAT ADAS Ingredientes: 3 xícaras de chá de lentilhas 1/2 xícara de arroz (opcional) 1/2 xícara de samneh (caldo de carne) 1 xícara de cebola cortada 1 1/2 colher de chá de sal Água Modo de Preparar: Esta é uma receita antiga, das aldeias nas montanhas, surgida da necessidade, quando a dieta de inverno consistiu principalmente nesses alimentos que haviam sido colhidos e secados no verão e armazenados em jarros de louça ou sacos de tecido para serem comidos no inverno. Deixe a lentilha de molho por uma noite em água fria. Coloque numa panela de pressão com água até uns 5 centímetros acima do ingrediente. Cozinhe sob pressão durante 15 minutos. Passe a sopa por uma peneira ou por um moedor. Adicione água, se preciso, para obter a consistência desejada. Frite a cebola até dourar e acrescente à sopa. Cozinhe em fogo brando por 10 minutos. Adicione sal e sirva espesso e quente com quadradinhos de pão torrado. Sopa de Almôndega SHOURABAT EL QEEMA Ingredientes: 2 1/2 xícaras de carne magra moída 24 2 kg de carne para sopa em cubos Ossos 1/2 xícara de samneh (caldo de carne) 1 1/2 colher de chá de sal 1/4 colher de chá de pimenta 1/4 colher de chá de canela 1/4 xícara salsa picadinha 1/2 xícara de suco de tomate ou 1 colher de sopa de massa de tomate em meia xícara de água 5 xícaras de água fria Modo de Preparar: Moa a carne várias vezes. Misture bem com sal e pimenta. Amolde em bolas pequenas e doure em óleo quente. Leve a sopa ao fogo na panela de pressão, sem tampar. Desnate, à medida que for espumando, depois cozinhe sob pressão durante 20 minutos. Acrescente as bolas de carne, arroz e suco de tomate. Cozinhe sob pressão durante 10 minutos. Remova os ossos. Adicione salsa e canela antes de servir. Sopa de Iogurte YAYLA CHORBASHI Ingredientes: 1/2 xícara de cevada 2 cebolas grandes cortadas 1/2 litro de iogurte ou laban 25 3 xícaras de caldo de galinha 2 colheres de sopa de manteiga 2 xícaras de salsa picada 1 xícara de hortelã picada 1 colher de chá de sal Pimenta branca Modo de Preparar: Ponha a cevada de molho por uma noite. Escorra bem e leve a ferver em fogo brando com o caldo de galinha. Enquanto isso, frite a cebola na manteiga até ficar transparente. Misture com a cevada e o caldo. Adicione hortelã, salsa, sal e pimenta a gosto. Cozinhe em fogo brando durante uma hora. Cinco minutos antes de servir, acrescente o iogurte bem batido. Sirva em tigelas aquecidas. Peixe Frito SAMAK MAQLI Ingredientes: As águas do Mar Mediterrâneo que banham alguns países árabes produzem suculentos peixes. Destes, o preferido é o conhecido como Sultão Ibrahim, que eles normalmente fritam e servem quente com um molho. O tempero do peixe inclui maionese, taratour bi tahheni, um molho de gergelim, ou uma mistura de nozes bem esmagadas com suco de limão, alho e sal. Pedaços de limão sempre acompanham o peixe, não importa se outro molho é servido. 26 Limpe e faça cortes nas laterais. Deixe a cabeça, mas remova os olhos. Salgue por dentro e por fora, depois coloque o peixe salgado no refrigerador durante algumas horas. Deixe retornar à temperatura ambiente antes de cozinhar. Passe o peixe na farinha, depois frite em óleo de oliva até dourar, agitando suavemente a panela durante o cozimento para prevenir que grude no fundo. Vire-o uma vez. A quantidade de óleo deve ser suficiente para cobrir até a metade do peixe. Frite pedaços de pão árabe no mesmo óleo e use-os para guarnecer o peixe, juntamente com rabanetes e cebola verdes. Esse peixe é servido frequentemente com pedaços de legumes fritos como abóbora, berinjela ou couve-flor. Peixes Cozido Molho de Gergelim SAMAK TAJIN ou SAMAK BI TAHEENI Ingredientes: 1 peixe de aproximadamente 1 quilo 1 1/2 xícara taheeni (óleo de gergelim) 1 1/2 xícaras de cebola picada 1 xícara de óleo de oliva 3/4 xícara de suco de limão 1 1/4 colher de chá de sal Água Modo de Preparar: Limpe e salgue o peixe. Leve ao refrigerador por algumas horas. Deixe voltar à temperatura ambiente, unte com óleo de oliva e asse em forno moderado até a carne se separar, quando 27 mexida com um garfo. Enquanto isso, frite a cebola em óleo de oliva até dourar. Bata suco de limão e água lentamente com taheeni e prove, adicionando mais suco de limão se necessário. O molho de taheeni ficará bem cremoso. Misture cebola no molho, cubra com isso o peixe assado e volte ao forno. Asse por aproximadamente 20 minutos em forno moderado. Parte do molho será absorvida pelo peixe e a cebola ficará bem cozida. Sirva frio. Arroz para Peixe RIZ BI SAMAK Ingredientes: 2 xícaras de arroz cru 3/4 xícara de óleo 1 xícara de cebola fatiada 1/4 xícara de nozes 1/4 colher de chá de açafrão 1 colher de chá de sal Água Modo de Preparar: Deixe o arroz de molho em água quente durante 30 minutos. Escorra. Aqueça óleo de oliva ou o óleo que restou de uma fritura. Frite nozes no óleo até ficarem ligeiramente douradas. Retire as nozes. Adicione o arroz ao óleo, junto com sal e misture. Acrescente 2 1/2 xícaras de água e o açafrão. Cozinhe em fogo baixo, tampado, até que seque e o arroz esteja macio. 28 Coloque o arroz numa travessa. Cubra com as cebolas fritas e as nozes e sirva como o acompanhamento para o peixe. O arroz pode ser guarnecido com pedaços de peixe frito e pode ser servido com uma salada de repolho, alface ou rabanetes. Quibe libanês KIBBEH Ingredientes: 2 1/2 xícaras de cubos de carne de cordeiro 2 xícaras de burghul (trigo próprio para quibe) 2 cebolas médias 2 colheres de chá de sal (ou a gosto) 1/2 colher de chá de pimenta Água gelada Modo de Preparar: O quibe é virtualmente o prato nacional de Líbano e chamálo de um bolo de carne é uma heresia. Sua preparação tradicional é emocionante. Requer um pilão de pedra e um malho pesado chamados jorn e modaqqa. A carne é batida com movimentos rítmicos até ficar lisa e pastosa. Toda a vizinhança conhece o barulho quando de faz quibe. Selecione um lombo de cordeiro bem tenro e corte a carne em cubos. Adicione uma colher de chá de sal e bata a carne em um pilão. Remova a carne quando estiver pastoso. Bata a cebola com uma colher de chá de sal e pimenta até reduzir a uma massa. Misture a carne com a cebola e bata até ficar bem liso. 29 Lave bem o trigo em água corrente, mas faça isso depressa senão não ficará macio. Aperte para remover água. Amasse o trigo e a carne com as mãos. Bata no pilão. Verifique o tempero. Mergulhe o malho do pilão ocasionalmente em água gelada para manter a carne úmida e lisa. Para ser corretamente preparado, o quibe deve ser batido por pelo menos uma hora. Então estará pronto para ser comido como está, frito ou assado. O tempo de preparação pode ser encurtado consideravelmente moendo-se a carne várias vezes com lâmina fina em um moedor de carne. Moa a cebola duas vezes. Depois moa uma vez a carne misturada com a cebola. Misture com o trigo lavado. Amasse bem e tempere com sal e pimenta. Moa essa mistura três vezes, acrescentando a cada vez uma colher de sopa de água gelada para manter liso. Cordeiro grelhado LAHM MASHWI Ingredientes: 1/2 kg de smaiskeh (filé de cordeiro) 1 colher de chá de sal 1/2 colher de chá de pimenta 12 cebolas pequenas (opcional) Modo de Preparar: Estrangeiros chamam este prato de shish kebab. Tem melhor sabor quando feito com cordeiro brm jovem. Cozinheiros libaneses grelham a carne em um espeto na brasa, usando braseiros próprios chamados manqals. Os sucos que gotejam 30 durante o grelhar são recolhidos em um pedaço de pão árabe. Quando a carne está pronta, é posta no pão com o suco recolhido. Na Turquia, a carne é marinada em óleo de oliva antes de ser grelhada. Corte a carne em cubos de cinco centímetros. Tempere com sal e pimenta e deixe de lado durante uma hora. Coloque no espeto seis pedaços de carne por pessoa, alternando carne magra com carne gorda e cebola. Grelhe sobre uma chama bem quente ou em cima de brasas até ficar bem dourado. Se grelhar no forno, coloque um pouco óleo de oliva em cima da carne para que seque. Acompanhamentos excelentes para esta carne são laban e os molhos a gosto. Passarinhos ASSAFEER Ingredientes: Restaurantes nas cidades montanhosas do Líbano se especializaram neste prato, feito com cotovias. Elas são servidas frequentemente com pão árabe e araq, uma bebida feita de ervas doce. Prepare os pássaros, tirando as penas, depois corte bicos e os pés. Limpe o interior. Esfregue sal e pimenta do lado de fora. Alinhe vários pássaros num espeto e grelhe na brasa. Sirva quente. 31 Os pássaros podem também serem fritos na manteiga. Limpe-os, esfregue com sal, pimenta e suco de limão e frite em óleo quente. Folhas de Vinha Recheadas (Charutos) MAHSHI WARAK AREESH Ingredientes: 1/2 kg de folhas de vinha tenras e frescas 2 xícaras de carne de cordeiro picada ou moída Ossos 1 1/2 xícaras de arroz 2 cravos-da-índia inteiros 8 cravos-da-índia esmagados com sal 1/2 xícara de suco de limão 1 1/2 colher de chá de sal 1/2 colher de chá de pimenta 1/2 colher de chá de canela 2 xícaras de água fria 2 tomates médios fatiados 1 tomate médio picado (opcional) 1 colher de chá de hortelã seca Modo de Preparar: Canela e hortelã fazem desta versão de uma popular comida mediterrânea um prato de especial sabor. Amacie e branqueie as folhas de vinha imergindo por alguns instantes em água fervente salgada. Separe. Lave o arroz e misture bem com carne, tomate cortado, sal, pimenta, canela e uma xícara e meia de água fria. 32 Recheie uma folha de cada vez da seguinte maneira. Coloque uma colher de recheio no centro de cada uma. Dobre o fundo da folha para cima sobre o recheio, então dobre cada lado para o meio. Role nas mãos para formar um cilindro firme de aproximadamente 15 centímetros, um pouco mais espesso que um charuto. Coloque os ossos em uma panela de pressão e cubra com tomates fatiados e os cravos inteiros. Disponha os charutos lado a lado, em camadas sobre os tomates. Tempere com sal e suco de limão. Acrescente água e cozinhe sob pressão por 12 minutos. Retire a pressão, abra e a panela e deixe cozinhar destampada, em fogo brando, para reduzir o molho. Misture uma xícara e meia do molho com o cravo esmagado e a hortelã. Junte de volta à panela e cozinhe em fogo baixo por mais alguns minutos para aumentar o sabor. Remova os mahshi, ou charutos, cuidadosamente da panela. Dedos molhados em água fria o um pegador apropriado facilitam a tarefa de organizar os rolos numa travessa. Sirva quente com molho. Utensílios de Cozinha Os utensílios utilizados na cozinha árabe têm suas peculiaridades, mas nada que não tenha seu assemelhado na cozinha ocidental. A panela de pressão se tornou um item comum praticamente a todas as culinárias. Outros elementos, como o instrumento para fazer doses individuais de café, tem sua utilidade e são insubstituíveis, pois além da qualidade do 33 resultado final, há todo um ritual de caráter cultural envolvido no preparo do alimento. 34 A ESCRITA Com estas noções não se pretende ensinar ninguém a ler o árabe, mas dar uma ideia de como funciona essa língua que, a princípio, nos parece tão incompreensível. À medida que se avança no estudo dela, as dificuldades diminuem consideravelmente. O árabe é a língua de uma grande parte do nosso planeta e a língua espiritual do Islamismo. Diferentemente do português e de outras línguas conhecidas, o árabe é escrito da direita para a esquerda. Cada letra pode ser escrita de quatro formas, o que não difere da nossa forma de escrever, uma vez que a letra, quando inicia uma palavra difere ligeiramente de quando é escrita no meio da palavra, no final da palavra ou escrita isoladamente. Nas figuras apresentadas, pode-se ver que não é tão difícil assim reconhecer as quatro formas de cada letra. É preciso se lembrar sempre de que esse alfabeto é escrito da direita para a esquerda. No início isso pode confundir um pouco, até se habituar. As letras isoladas e as letras finais são muito parecidas. A forma inicial e a do meio diferem apenas do acréscimo feito na segunda para sua ligação com a letra anterior. As vogais não são representadas por letras isoladas, mas por marcas, mais ou menos parecidas com os nossos acentos. Um bom início de um estudo mais aprofundado dessa língua pode ser encontrado em sites básicos de pesquisa, como a Wikipédia 35 (http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADngua_%C3%A1rabe) e outros. Dicionário Árabe-Português Números 1 - wahed 2 – thinien/ ethnien 3 - thalatha 4 - arbaa 5 - khamsa 6 - sitta 7 - sabaa 8 - thamanya 9 - tisaa 10 - ashra 11 - hedashar 12 - ehtnashan 13 - thalatash 14 - arbatash 15 - khamestash 16 - settash 17 - sabatash 18 - thamantash 19 - tesatash 20 - eshreen 21 - wahed eshreen 22 - ethnien whe eshreen 36 30 - thalatheen 40 - arbaein 50 - khamseen 60 - sitteen 70 - sabein 80 - thamanein 90 - tesein 100 - meya Palavras e Expressões Mais Comuns a vontade de Deus - inshaalha abaixo - tahat aberto - eftah açúcar - sokkar agora - al Ann água - mayia ajude-me - saadni ajude-o - saedo ajude-os - saedhome ali - hennak amanhã - boukra amarelo - asfar amigo - sadiq antes - gabel apanhe isto - erfah haza foak aqui - hema armazém - makhzau 37 até logo - maasalaama avião - tayarah azul - asrag banheiro - hamam bem feito (cozinha) - mistawiiy jiddan bem feito (trabalho) - kowayes boa-noite - masaa al kair bom - kowaies bom dia - sabah al khair branco - abyad café - kahwa cama - sarier caminhar - emshi carne - lahma carregar - ehmel ou sheif carregue isto - hamal haza carro - sayara casa - biet cedo - badri chá - shaay chá gelado - shaay barid chega - bass ou kefaya cheio - maliin colher - maalaka começar - excer comer - yacol comida - akal 38 como - keif ou ezai como se chama isto em árabe? - maza tosumi haza bel arabi? como vai você - keif halac ou ezaiyak conferir - efhas corra (numa emergência) - egry besoraa cuidado! - shoef de (vindo) - min de nada - maa leesh de onde você veio? - min fain inta deixar - yasaar depois - baedien desculpe-me - ismahlee deste modo - kidha devagar - shway shway dinheiro - feluus direita - yamien do lado de fora - barra domingo - yowm il-ahad dormir - noum e - wa economizar - waffer ela - heeya ele - howa eles - homma eles, elas - home elevador - aceussor 39 em meu quarto - fil ghurfa emergência - tawarek empurrar - zok entendeu? - maf hoom escritório - mactab esperando ordens - mestani awamer espere ou pare - estanna espere um minuto - estana shoeya estouro - yeseal eu - ana eu estou bem - ana mabsoot, ana kowayes eu estou contente com seu trabalho - ana mabsout beshughlak eu não entendo - ana ma fehempt eu não falo árabe - ana la tet kalam al arabiah eu não quero - ana ma abgha eu não tenho - ana ma endi eu quero - ana abgha eu tenho - ana endi eu tenho fome - ana gowaan eu trabalho em - ana bash taghel fi eu vou - ana raieh ela eu, me - ana faca - sikkiyn fácil - sahel fale devagar - takallam besch wesch fogo - narr 40 frio - bard fundo - tahat galinha - dajaaj garfo - showka gerente - mudier gorjeta - bakchies graças a Deus - alhandullellah grande - kabier homem, homens - reejal hotel - fon doq idiota - gha ' bi íntimo - sacer isto - haza lá - honak lama - tina lapis, caneta - kalam legumes - khudra leite - haliyb lentamente - shwai shwai limpe com água - nadef bil mayia litro - litr lixo - zibala longe - tawiel maior - akbar mais duro - akoa mais rápido - besoraa marreta - shakoosg kabir 41 mecânico - mekanic menino - walad ou sabi menor - aasar metade - nos metro - mitr meu nome é - ana ismee mostre-me - war keni motociclista - rakeb motocykl motorista - sawag mudança - badel muito bom - kowaies kateer muitos, muitos - ketier na casa - fiel beit nada - wala hayoh não - la não desse modo - moush kedah não importa - maalish não jogue fora - la termi não, eu não tenho - iaa ma audich negro - aswad nenhum - ia nenhum, nada, ninguém - mafee nós - nihna novo - jadiid noz - samola o que é isto? - eh dah? o que você está fazendo? - shoe betiimal ou hetiimal eh? 42 o que você quer? - ayez eh? o que? - aish obrigado - shukran oi, olá - marhaba salam alekom ok - taieb olá - marhaba óleo - zeit onde você vai? - wein rayeh, rayeh feen? onde? — feen? pá - shibel papel - waraq para (um lugar) - ala para cima - foak parafuso - borshe mosmar pare - wagef passeio - ercab peixe - samak pequeno - osayer pequeno - shoeya perder-se - fok ou hel pimenta - filfil ponha - hot por favor - men fadlak por favor, tome um café - Etfadal echrab kahwa por quê?- ly ish pressa - besorao puxar - eshab 43 qual é seu nome? - shoe ismack ou ismack eh qual é seu número? - kamm raqamak quando você terminará? - mata sawfa tukhalis quando? - mata ou emta quanto - can quanto custa isto? - can tganeb haza ou bekam? quarta-feira - youm il-arbaa que - hazah que droga - yaha quem? - meen quente - sochen quinta-feira - yown il-khamiys rua - sharee ruim - mosh kowayes sábado - yown is-sabt saco - kies sal - malh sal - melh segunda-feira - yowm el itnen segurança - amaan segurar - emsiek sexta-feira - gomao de el de yom siga em frente - ala tool sim - aewa, naam sim, eu entendo - na am fahamt sopa - shurba substâncias químicas - kimaweyat 44 tábua - khashab talvez - yem ken tenha cuidado - entabeh terça-feira - yowm ith-thalaatha terminado - khalast trabalhar - shughul trabalho - shoghol traga-me - jiegeblye tu (homem) - Inta tu (mulher) - Intee tudo - kollo vá - roah valentão - couhe khechen vamos - yala vazio - faregh velho - atiik ou kadeem veneno - sem venha aqui - taa'la hena venha comigo - taa'la maei verde - akhdar vermelho - ahmar vire à direita - lif yameen vire à esquerda - lif yassar você - inta você é bem-vindo - ahlan wa sahlan você entende? - inta fahamt? você tem? — indek? 45 você terminou? - hul khalast? voltar – lef 46 PROVÉRBIOS Provérbio é uma “máxima ou sentença de caráter prático e popular, comum a um grupo social, expressa em forma sucinta e geralmente rica em imagens”, conforme define o Dicionário Aurélio. Sendo uma forma popular, traduz de forma sábia os costumes e a própria cultura de um povo. Sua riqueza é medida pelos ensinamentos que transmite, reflexo da própria sabedoria popular. Nada mais interessante para conhecer o espírito árabe que conhecer alguns de seus provérbios. Os Provérbios Egípcios a seguir, traduzidos pelo sentido e comentados, são um bom exemplo dessa tradição. Elle fat kadimoh tah Tradução: Perdida é a pessoa que se esquece de seu passado. Significado: Lembre-se sempre do que você era antes de se vangloriar sobre o que você se tornou. Uso: Criticar quem se esquece de suas raízes. El ghazzala el shatra teghzel be regl humar Tradução: A solteirona hábil gira com a perna de um burro Significado: Um trabalhador hábil pode fazer um bom trabalho até mesmo com ferramentas inadequadas. 47 Uso: Criticar trabalhadores incompetentes que culpam as ferramentas pelo trabalho pobre que fazem. Ya bani fi gher melkak, ya merabi fi gher weldak Tradução: Quem constrói em propriedade alheia está criando filhos dos outros. Significado: Faça suas ações onde devem ser feitas. Uso: Criticando esses que fazem as coisas corretas às pessoas erradas. Gat elhazina tefrah ma lketlahash matrah Tradução: Quando a mulher triste começar a ficar contente, ela não acha um lugar para ela. Significado: Pessoas tristes sempre estarão tristes. Uso: Queixando-se sobre a tristeza. In keber ebnak khaweeh Tradução: Quando seu filho crescer, trate-o como um irmão. Significado: Não continue tratando seus filhos como crianças. Uso: Quando alguém trata o filho maduro como uma criança. Yedi elhalak leli bela wedan Tradução: O brincos são dados a quem não tem orelhas. 48 Significado: Algumas pessoas adquirem coisas para as quais não estão preparadas. Uso: Quando alguém adquire algo que não pode usar. Ma shatamak ela man balaghak Tradução: Quem insulta é o mesmo que conta sobre o insulto. Significado: Não escute às pessoas que lhe falam sobre outros que o insultaram. Uso: Quando alguém conta a outro como ele foi insultado. Tammakhada al gamala wa walada fa'aran Tradução: O camelo foi trabalhar só para parir um rato. Significado: Olhares se enganam. Uso: Expressar decepção quando algo grande é esperado, mas nunca se materializa. No'ollohom tor, ye'oolo ihlibooh Tradução: Nós lhes falamos que era um touro, eles disseram para ordenhá-lo. Significando: Estão tentando adquirir mais do que podem. Uso: Criticar quem teima em buscar o que não está disponível. Labbes el khonfesa teb'a sett el nesa Tradução: Vista uma barata e a ele se tornará uma Senhora. Significado: Maquiagem pode tornar o feio bonito. 49 Uso: Não se engane com as aparências. Ya me'amen el regaal ya me'amen el mayya fel ghorbal Tradução: Homens confiantes estão confiando na água em uma peneira. Significado: Um provérbio feminista que faz a analogia de homens confiantes com água mantida em uma peneira. Uso: Para esposas traídas ou enganadas pelos maridos. El rosasah elli matsebshi tedwesh Tradução: A bala que não fere faz ruído. Significado: Acusações injustas magoam. Uso: Fazer um comentário sobre danos causados por um escândalo, por exemplo. Goha 'awla belaHm toroh Tradução: Goha (um personagem cômico árabe) tem direito à carne de seu touro. Significado: Cuide do que é seu. Uso: Enfatizar as responsabilidades de alguém. Ya dakhel bein el-basala we 'eshret-ha may noubak 'ella sannet-ha Tradução: Quando você se mete entre a cebola e sua casca, tudo que consegue é ficar mal cheiroso. Significado: Preste atenção a seu próprio negócio. Uso: Aconselhar alguém a não se envolver em briga alheia. 50 Gat el-hazina tefrah ma le'tlahash matrah Tradução: Uma mulher triste não tem nenhuma chance de ser feliz, mesmo que tente. Significado: Algumas pessoas estão condenadas à infelicidade. Uso: Quando as expectativas não se realizam. Seketna luh dakhal be humaru Tradução: Nós deixamos e ele trouxe o burro junto. Significado: Cuidado ou se aproveitarão de você. Uso: Quando alguém não respeita seus limites. Tabbakh el-sim dawa'uh Tradução: O cozinheiro prova sua comida mesmo que seja veneno. Significado: Cada um é responsável por suas ações. Uso: Fazer um comentário sobre alguém que sofre por seus próprios erros. El-salaf talaf we el-rad khosara Tradução: Emprestar é ruim, devolver é uma perda. Significado: Quando se empresta, apossa-se. Uso: Conselho dado para desencorajar empréstimos. Men kharag men daruh et'al me'daruh 51 Tradução: Quem deixa sua casa, perde seu prestígio. Significado: O prestígio da pessoa está entre as pessoas que a conhecem. Uso: Fazer um comentário sobre pessoas desprezadas por alguém que não as conhece. Yeddi el-hala' lelli bela wedan we el-fustu' lelli bela sinan Tradução: Dar brincos a quem não tem orelhas e pistache a quem não tem dentes. Significado: Algumas pessoas adquirem o que não podem usar. Uso: Fazer um comentário sobre alguém adquirindo algo que não pode usar. El-kezb ma loosh reglein Tradução: Mentira não têm pernas. Significado: As mentiras são descobertas. O mesmo que "a mentira tem pernas curtas", pois não pode ir longe. Uso: Fazer um comentário sobre o destino de um mentiroso. Ya me'amna lel-regal ya me'amna lel-mayiah fi elghurbal Tradução: Os homens confiantes são como confiar que um coador pode reter água. Significado: Não se deve confiar nos homens. Uso: Conselho para mulheres cujos maridos as enganam. 52 Ussi reish teirek la yeloof be gheirek Tradução: Corte as penas de seu pássaro para que ele não o deixe por um outro dono. Significado: Mantenha o olho em seu cônjuge! Uso: Conselho para homens (e mulheres) serem zelosos com seus cônjuges. Khudoohum bel-sot la yeghlebookum Tradução: Eleve sua voz senão os argumentos dos outros o vencerão! Significado: Quando as ideias falham, palavras (e voz alta) são muito úteis. Uso: Em português: "quem não chora, não mama. El-markeb elli feeha rayysein teghra Tradução: Um barco com dois capitães afundará. Significado: Você não pode ter dois líderes em um só grupo. Uso: O mesmo que "muitos cozinheiros estragam a sopa". Elli beitoh min 'ezaz, ma yehadefsh el-nass bel toob Tradução: Se mora em uma casa de vidro, não lance pedras. Significado: O que você faz aos outros será feito a você. Uso: Todo o mundo é vulnerável. Em português, "quem tem telhado de vidro não joga pedras na casa do vizinho". 53 Haza al-shebl men zaka al-asad Tradução: Este bebê deste leão. Significado: Crianças herdam a estatura de seus pais. Uso: Palavras de elogio para uma criança promissora. Ekhtob le bentak wa matekhtobsh le ebnak Tradução: Não procure casamento para seu filho tanto quanto para sua filha. Significado: Não é vergonhoso para os pais falar de suas filhas e oferecê-las como noivas para pessoas fidedignas. Uso: Quando pais encontram um bom partido para suas filhas. El bab elli yigi menno el reeh, seddo westareeh Tradução: Bloqueie a porta onde sopra o vento e relaxe. Significado: Não fuja da luta, enfrente seus problemas ou previna-se, como em "um homem prevenido vale por dois". Uso: Conselho para prevenir problemas quando alguém está vacilando para resolver suas dificuldades. Egri garey elwehoosh, gher rezkak lan tehoosh Tradução: Corra como besta, você só conseguirá a sua parte. Significado: Você adquire o que é seu. Aplicabilidade: Quando alguém está trabalhando demais. Elganaze hara we elmaiet kalb 54 Tradução: O enterro é de luxo, mas o defunto é um cachorro. Significado: Pessoas podem receber atenção sem merecer. Uso: Criticar quando uma coisa muito espalhafatosa é feita para homenagear quem não merece. Delle ragel wala delle heta Tradução: A sombra de um homem é melhor que a de uma parede. Significado: É melhor ter um homem que viver só. Uso: Quando uma mulher está a ponto de se casar com um homem não muito bom. 55 VESTUÁRIO ÁRABE Maddas Maddas são as sandálias tradicionais, usadas nos países árabes. Sua confecção foi elevada ao nível de uma verdadeira arte. Os materiais para essa arte são os couros de cabra e de camelo. Alguns couros são usados em sua coloração natural, outros são pré-tingido por artesãos especiais que usam hoje tinturas artificiais, embora em tempos remotos fossem utilizadas tinturas naturais. Esses artesãos tingem o couro e o deixam pronto para o sapateiro. A sola é de pele de camelo. O topo é de pele de cabra. A sola é cortada na forma desejada e no tamanho preciso e, então, são cosidas três camadas, uma sobre a outra. Um pico afiado é usado como ferramenta para perfurar as sandálias e linha de plástico branca é usada para coser a sola. Um pé de metal padrão é usado para cortar a sola, classificando-a conforme o tamanho. O pedaço cru de couro é colocado no padrão de metal e cortado. Outra folha de metal é usada como padrão para o topo. Cores diferentes de linhas grossas e largas são usadas para coser e topo à sola. Técnica de Manufatura e Ferramentas Conforme a tradição, primeiro o sapateiro faz a sola das sandálias, depois de todos os artigos de couro terem sido tratados 56 com uma grossa banha de camelo para protegê-los contra o desgaste do clima árabe. As ferramentas usadas pelo sapateiro precisam ser pesadas e fortes para trabalhar eficazmente e com precisão com o couro. Uma agulha de metal grande é enfiada com várias cores de linha de plástico para costurar a sola em 3 camadas. Coser isso é um exercício em si mesmo para o sapateiro, pois exige força nos braços e nas mãos para perfurar o couro com o pico. Para coser, tem que puxar inúmeras vezes a linha restante pela da sola da sandália. Algumas das solas de sandália exigem cinco, sete ou até nove costuras para unir as camadas. Quanto mais pontos, de melhor qualidade é considerada a sandália. No topo que se ajusta sobre o pé o couro de cabra, mais suave, é usado. Para uni-lo à sola, é costurado com várias cores de linhas e pontos. A parte de topo da sandália pode ser vermelha, amarele, verde e marrom ou qualquer outro número de uma variedade de combinações de cor. A fabricação das sandálias levará um dia ou mais e é uma arte que data de antes dos tempos islâmicos. O trabalho é passado pela família como outras artes. Ghutrah Ghutrah, a tradicional cobertura de cabeça usada pelos homens do mundo árabe, vem em uma variedade de cores e padrões, embora nenhum denote alguma afiliação cultural ou geográfica. Os mais amplamente usados são o branco, o branco e vermelho quadriculado e o branco e negro quadriculado. O 57 Ghutrah também pode ser comprado em branco com linhas coloridas espessas e finas adornando os lados. Cores populares para ornamento são o preto, o marrom ou o verde. Os dois tipos mais populares de ghutrahs são o vermelho e branco quadriculado e o branco claro. A touca branca é chamada ghutrah simplesmente. O vermelho e branco quadriculado é chamado shumagh. Ambos vêm com ou sem borlas de algodão brancas pequenas. Essas toucas permanecem no lugar graças a um boné que se encaixa na cabeça, feito de algodão branco, o taqiyya. É usados debaixo do ghutrah, junto com um rolo duplo de corda negra amarrado em cima, chamado de Iggal. É normalmente grosso o bastante para manter apertado e impedir que o conjunto deslize da cabeça. Usado por sua praticidade, o ghutrah protege a pessoa tanto do frio quanto do calor. Com suas dobras longas de tecido, pode ser puxado pela face para proteger quem o usa das tempestades de areia, ventos fortes e sol ardente. O Ghutrah tem sido usado principalmente como uma proteção contra o calor, a areia e o sol. É feito de algodão e, assim, mantém a cabeça e o corpo frio no clima quente do deserto. A popularidade do ghutrah se deve ao fato de que, antigamente, os homens frequentemente tinham cabelo longo e essa cobertura impedia que os cabelos interferissem na visão, enquanto cavalgavam um cavalo ou um camelo. Tradicionalmente, o ghutrah era cosido à mão. Embora alguns ainda sejam feitos dessa forma, a máquina de costura substituiu agora em grande parte o bordado tradicional. O 58 material para o ghutrah é produzido domesticamente ou importado. As origens exatas dessa peça do vestuário árabe estão perdidas no tempo. O que se sabe é que sempre foi amplamente usado pelos habitantes da península árabe. A Roupa Masculina Enquanto muitos árabes vestem roupas de estilo ocidental, frequentemente se vê homens que usam a bata branca longa e prática, conhecida como thobe. Originalmente projetado para refletir o sol quente do deserto e deixar o ar circular por dentro, o thobe também se conforma ao princípio da simplicidade pregado pelo Islã. Sobre o thobe, é usado um manto exterior chamado bisht ou mishlah. Normalmente é feito de lã clara ou pelo de camelo tingido de preto, creme ou marrom, e guarnecido com linhas de ouro. Este traje representa a roupa oficial dos árabes da península. Roupas Femininas Os vestidos das mulheres também são soltos e vaporosos. Dependendo da região, enfeites e estilos variam. Frequentemente os vestidos exibem motivos regionais ou tribais e são decorados com moedas, cequins, linha metálica ou bordados. Em deferência à convenção religiosa, a maioria das mulheres muçulmanas usam uma cobertura na cabeça quando em público. Uma echarpe preta transparente chamada shayla cobre os cabelos e o pescoço. O manto exterior preto é o abaya. Um acessório favorito de mulheres árabes de todas as idades são as 59 joias. Historicamente, as mulheres nômades das tribos de deserto levavam toda a sua riqueza material na forma de pulseiras, brinco, anéis e colares. Este amor por sinos minúsculos, moedas penduradas, contas coloridas e pedras semipreciosas continua até hoje. É por isso que os mercados de ouro do mundo árabe são os melhores e os mais ocupados de qualquer outro lugar no mundo. 60 A TRADIÇÃO ORAL Os contos de fadas para adultos, cujo exemplo maior está compilado nas 1001 Noites, são um dos aspectos mais ricos e criativos das tradições árabes. Num tempo quando não havia livros nem diversão, pessoas se reuniam para ouvir contadores de histórias desfiarem suas narrativas em contos cheios de encantamento, peripécias, perigos e ensinamentos. O caráter mais marcante dessas histórias é que seus enredos intrincados intercalavam aventuras dentro de aventuras, culminando com um desfecho onde a virtude, a honestidade, a honra e a fé tinham, finalmente, seu reconhecimento. As histórias a seguir são pequenos exemplos dessas grandiosas narrativas árabes. Uma parte deste livro é reservada a histórias ainda mais significativas. Uma Linda História Uma mulher viu três homens desconhecidos com longas barbas brancas sentados diante de sua casa. Disse ela: — Não os conheço, mas devem estar famintos. Por favor, entrem, vou lhes servir o que comer! — Onde está o homem da casa? — perguntou um deles. — Ele não está no momento — respondeu a mulher. 61 — Então não podemos entrar — disseram eles, permanecendo no lugar onde estavam. À noite, quando o marido chegou, a mulher lhe contou o que acontecera e ele ouviu atentamente. — Pois vá lá e diga a eles que estou em casa e que eu os convido a entrar e cear comigo. A mulher foi fazer o que o marido lhe ordenara. — Não podemos entrar juntos — disseram eles no entanto. — Por que não? Meu marido está em casa e é ele quem lhes faz o convite. Seria um insulto recusar. Por que fazem isso? Um dos velhos, porém, tratou de lhe explicar: — O nome dele é Fartura — falou, apontando um de seus amigos. — O nome do outro é Sucesso — continuou. — E o meu nome é Amor. Agora vá e discuta com o seu marido para decidirem qual de nós ele quer que entre em sua casa. A mulher entrou e contou ao marido a conversa que tivera com os desconhecidos. Ele ficou maravilhado e falou: — Que bom! Vamos convidar Fartura. Deixe-o vir e encher nossa casa de fartura! A esposa, porém, discordou daquela decisão. — Marido, por que não convidamos o Sucesso? Antes que ele respondesse, a cunhada dela, que os ouvia a um canto da sala, apressou-se em dar a sua opinião: — Não é melhor convidar Amor? A casa ficará cheia de amor. 62 — Este é um bom conselho — ponderou o marido. — Boa mulher, vá lá fora e convide Amor para ser nosso hóspede e se sentar à mesa conosco. A mulher saiu imediatamente e disse: — Amor, por favor, entre e seja nosso convidado! Amor se levantou e seguiu a mulher em direção á casa. Os outros dois, no entanto, levantaram-se e seguiram-no, para surpresa da mulher que virou e lhes perguntou: — Apenas convidei o Amor. Por que vocês estão entrando juntos com ele? Os velhos homens responderam a uma só voz: — Se você convidar Fartura ou Sucesso, os outros dois esperarão aqui fora, mas se você convidar Amor, onde ele for os outros dois irão com eles, pois onde há amor, há também fartura e sucesso! Uma Flor Especial Era uma vez, no reino da Pérsia, um poderoso califa que queria se casar. Para poder fazer a melhor escolha, resolveu promover uma disputa entre as moças mais lindas da corte ou qualquer outra que se achasse capaz de participar e marcou uma data para reuni-las. Uma velha e bondosa senhora, serva do palácio desde sua infância, ouvindo os comentários sobre os preparativos para o desafio, sentiu uma profunda tristeza, pois sua jovem filha nutria um profundo e sincero amor pelo califa. Quando chegou em casa 63 e contou à jovem sobre a disputa, surpreendeu-se ao ouvir que a jovem pretendia ir ao desafio. Incrédula, indagou à moça: — Minha filha, o que você vai fazer lá? Virão as mais belas e ricas donzelas do reino. Tire agora mesmo essa ideia insensata da cabeça. Sei que deve estar sofrendo muito por perder o califa, mas não transforme seu sofrimento em loucura. A filha lhe respondeu: — Não, minha boa mãe, não estou sofrendo e muito menos enlouqueci. Estou ciente de que jamais poderei ser a escolhida do califa, mas eu seria uma tola se perdesse minha única oportunidade de estar ao lado dele, nem que seja por apenas alguns instantes. Apenas isso já me fará feliz, pois sei que meu destino é outro. No dia da disputa, a jovem foi ao palácio cheia de humildade. Lá encontrou, de fato, as mais belas donzelas do reino, com as mais belas roupas, com as mais ricas joias e com as mais determinadas intenções. Então, finalmente, o califa anunciou o desafio: — Darei a cada uma de vocês uma semente. Aquela que dentro de seis meses trouxer para mim a mais bela flor, será escolhida minha esposa e reinará comigo sobre a Pérsia. O desafio do califa respeitava as profundas tradições daquele povo, que sempre valorizava a habilidade de cultivar coisas, fossem tradições, costumes, amizades, relacionamentos, plantas ou animais. Além disso, o sábio desafio igualava todas as donzelas, independente de sua origem, natureza ou educação. 64 O tempo passou rapidamente e a inocente jovem, não tendo muita habilidade na arte da jardinagem, cuidava com muita paciência e ternura da semente que plantara. Ela sabia que se a beleza das flores tivesse a mesma intensidade de seu amor, ela não precisaria se preocupar com o resultado. Passaram-se três meses e nada surgiu. A jovem tentara de tudo, usando todos os métodos que conhecia ou que lhe foram ensinados, mas nada havia nascido. Dia a dia ela percebia que se tornava cada vez mais distante o seu sonho e cada vez mais profundo e sincero o seu amor. Ela não desistiu, no entanto. Procurou o jardineiro do palácio real e pediu que lhe desse um pouco do seu conhecimento. Depois implorou aos mais afamados botânicos do reino que lhe ensinassem todos os segredos capazes de fazer a semente germinar. De tudo ela fez, mas a semente em seu vaso não germinava. — Desista, minha filha! — aconselhou-a sua mãe. — Jogue fora esse vaso e tire de sua cabeça essa ideia ridícula. — Não posso fazer isso, minha boa mãe. Neste vaso está o meu destino e tenho de me esforçar ao máximo para que ele seja belo e feliz como sempre sonhei para mim. Apesar de tudo que fez, a semente não brotou. Finalmente, os seis meses haviam se passado e nenhuma planta surgira da semente que ela cultivara. Consciente de seu esforço e de sua dedicação, comunicou a sua mãe que, apesar do resultado não ter sido satisfatório, retornaria ao palácio na data e hora combinadas. Afinal, não pretendia nada além de poder ficar mais alguns momentos na companhia do califa a quem amava. 65 Na hora marcada, estava lá com seu vaso vazio, enquanto as outras pretendentes exibiam as mais belas flores, uma mais linda do que a outra, nas mais variadas formas e cores. Ela estava decepcionada consigo mesma, mas maravilhada com aquela visão, pois jamais vira tantas belezas juntas. O momento decisivo chegou. O califa se aproximou e observou cada uma das pretendentes com muito cuidado e atenção. Após passar por todas elas, uma a uma, parou diante da jovem: — Onde está sua flor? — indagou ele. — Não brotou, poderoso califa, apesar de todos os meus cuidados e de todo o amor que dediquei a ela. O califa pensou por alguns instantes, depois anunciou o resultado, escolhendo a filha de sua serva como sua futura esposa. As pessoas ali presentes tiveram as mais inusitadas reações, pois ninguém entendeu porque ele a havia escolhido, já que fora a única que nada cultivara em seu vaso. Ele pediu silêncio e explicou com toda a calma de sua sabedoria: — Esta foi a única que cultivou a semente que a tornou digna de se tornar a esposa do califa. Ela foi a única que me trouxe a flor mais bela de todas, a flor da honestidade, pois todas as sementes que lhes entreguei eram estéreis. E ele reinou com sabedoria e felicidade, pois encontrara seu maior tesouro, a Flor da Honestidade. 66 Lenda Árabe da Amizade Conta uma antiga lenda árabe que dois amigos viajavam pelo deserto e, em um determinado ponto da viagem, discutiram. Deixando-se levar pela ira, um deles esbofeteou o outro que, ofendido, sem nada dizer, escreveu na areia: Hoje, meu melhor amigo me bateu no rosto! Seguiram a viagem e chegaram, finalmente, a um oásis onde resolveram se refrescar. O que levara a bofetada, inadvertidamente nadou até um local mais profundo e, de repente, começou a se afogar, mas foi salvo rapidamente pelo amigo. Ao se recuperar, pegou sua adaga e entalhou numa pedra: Hoje, meu melhor amigo salvou a minha vida! Intrigado, o amigo lhe indagou: — Por que quando eu lhe bati, você escreveu o feito na areia e agora entalhou na pedra que lhe salvei? Sorrindo, o outro amigo explicou: — Quando um grande amigo nos ofende, escrevemos isso na areia onde o vento do esquecimento e do perdão se encarregará de apagar. Quando, porém, um amigo nos faz algo grandioso, devemos gravar isso na pedra do coração, onde vento nenhum do mundo poderá apagar. 67 A ARTE ÁRABE Os Arabescos Em 622, Maomé se exilou em Medina, Madinat al-Nabi, ou cidade do profeta. De lá, graças à atuação de seus sucessores, os califas, o Islamismo se expandiu rapidamente pela península, alcançando a Palestina, a Síria, a Pérsia, a Índia, a Ásia Menor, o Norte da África e a Espanha. A origem nômade dos muçulmanos não impediu que, após algum tempo, fossem estabelecidas e assentadas definitivamente as bases de uma estética própria desses povos. Como isso envolveu certo número de países, traços estilísticos dos povos conquistados foram absorvidos e adaptados, transformando-os em sinais de identidade. As cúpulas bizantinas são aplicadas nas mesquitas e a tapeçaria persa incorpora o colorido dos mosaicos. O islamismo aboliu a arte figurativa, dando ênfase aos motivos geométricos e abstratos, surgindo os arabescos, combinando ornamentação com caligrafia. As letras gravadas numa parede recordam, a quem as contempla, que aquela é uma obra feita para louvar Deus. Tapetes Os tapetes e os tecidos têm um importante papel na cultura e na religião islâmicas. Com eles os nômades decoravam o interior das tendas e, à medida que se tornavam sedentários, 68 seda, brocados e tapetes foram usados na decoração de seus palácios e castelos. No aspecto religioso, os tapetes são de fundamental importância no aspecto funcional, pois o islamismo exige do crente, quando reza, que não fique em contato com a terra. Os tapetes fabricados antes do século XVI, chamados de arcaicos, eram verdadeiras obras de arte do artesanato, possuindo tramas com 80.000 nós por metro quadrado. Ganharam fama especial os tapetes da Pérsia por sua trama composta de nada menos que 40.000 nós por decímetro quadrado. Os artesãos mais importantes foram os das cidades de Shiraz, Tabriz e Isfahan, no Oriente, e Palermo, no Ocidente. Os motivos clássicos utilizados são os florais, caça, animais, plantas e geométricos. Pintura A pintura islâmica expressou-se através de afrescos, com raras obras em bom estado conservadas até hoje, e miniaturas. Os afrescos eram usados para decoração de paredes, com cenas de caça ou do cotidiano, semelhantes no estilo à pintura dos gregos, com influências das artes indiana, chinesa e bizantina. As miniaturas foram usadas para exemplificar textos científicos e ilustrar obras literárias. Arquitetura As mesquitas islâmicas foram construídas, em sua maioria, em um período compreendido entre os séculos VI e VIII. Todas elas seguem um modelo quadrangular básico, inspirado no 69 modelo da casa do Profeta, em Medina. Essa casa tinha um pátio no lado sul e duas galerias cobertas de palha, sustentadas por troncos de palmeira. Na área coberta, eram feitas as orações. As fontes do pátio eram usadas para abluções. A casa servia para reuniões de oração, discussões políticas, hospital e refúgio para os necessitados, funções estas que foram transferidas depois para as mesquitas e edifícios públicos. A arquitetura das mesquitas não se limitou à simplicidade e à rusticidade da construção da casa de Maomé, mantendo-se, porém, a preocupação com a preservação de formas geométricas, como o quadrado e o cubo. A cúpula de pendentes, que tornou possível cobrir um quadrado com um círculo, foi amplamente utilizada na edificação das casas de oração. As residências dos emires eram normalmente palácios quadrangulares, cercados por sólidas muralhas, semelhantes a fortalezas, ligados à mesquita por pátios e jardins. Nesses palácios, o aposento mais importante era a sala do trono, ou diwan. Outra construção característica do Islã foi o minarete, uma torre alta, de formato cilíndrico ou octogonal, no exterior da mesquita. Dali o almuadem ou muezim faz chegar aos fiéis o convite para as orações. A arquitetura do mundo árabe se destacou também na construção de mausoléus destinados aos santos e aos mártires. 70 Joias A ourivesaria árabe é marcada pela criação de peças de elevado valor artístico e estético. Joias femininas se caracterizam pela delicadeza e pelos pingentes, bem a gosto da mulher árabe. Adagas e espadas são elaboradas com a aplicação de pedras preciosas, tornando-as verdadeiras obras de arte. Em tudo, percebe-se um toque quase sagrado, característica de um povo que, em tudo o que faz, vê e louva a obra divina. A história da ourivesaria árabe começou quando artesãos começaram a usar seus recursos naturais e elevaram a atividade ao nível de uma verdadeira arte. As criações mais comuns são brincos, colares, pulseiras, pingentes, braceletes e anéis. Muitas culturas influenciaram isso, como consequência natural da expansão islâmica. A religião influenciou a inclusão de arabescos. Caixinhas de amuletos, contendo papel fino com versos do Alcorão para proteger seu portador, eram muito comuns. Devido à existência dos Cinco Pilares da Fé, braceletes ou anéis são usados em número de cinco. São comuns brincos com cinco contas. Uma joia singular consiste em um grosso bracelete, preso a cinco anéis, um em cada dedo. A cor das pedras tem um significado específico. Verde, azul e vermelho são usados para proteção. Pela mesma razão, turquesa, ágata, coral e contas de vidro coloridas são materiais populares. Às joias também são atribuídos poderes mágicos especiais. A turquesa, por exemplo, afasta o mau-olhado. Sininhos presentes em vários tipos de peça são usados para afastar 71 espíritos maliciosos. Crianças usam joias, mas, para os homens, o uso de joias de ouro não é tolerado pela religião. Para as mulheres, as joias são adornos e símbolo de sua posição social. Normalmente ela é presenteada quando noiva e, mais tarde, quando se torna mãe. Mesmo as mulheres mais pobres usam algum tipo de joia. Isso é possível pelo costume do dote, que torna as joias recebidas pela noiva como sua propriedade pessoal. Há casos de mulheres que iniciaram seu próprio negócio ou ajudaram a família em dificuldade vendendo suas joias. 72 A MÚSICA E A LITERATURA Literatura A literatura, segundo o professor Dr. Helmi Nasr, particularmente a poesia, foi cultivada no mundo árabe por muito tempo, antes que os primeiros registros literários fossem feitos, no século V. A eloquência era uma grande virtude e os contadores de história e os declamadores de poemas faziam a alegria e a diversão dos antigos habitantes da península. São desse período oral provérbios e peças para reflexão, como as poesias de Zuhayr Ibn Abi Sulma ou de Imru Al-Qays. Desse autor há um poema celebrando o cavalo árabe. Inicia-se com a descrição das sensações de se cavalgar um corcel com a força do vento. O cenário pintado pelo poeta é esplêndido. É madrugada e os pássaros ainda dormem em seus ninhos. As feras, à vista do animal galopando, fogem estarrecidas. Ao descrever o tropel do animal, assim se expressa o poeta: Mikarrin, mifarrin, muqbilin, mudbirin, ma'an! (Avança, retrocede, arranca e recua num mesmo ato!). Da época clássica, há um livro, Al-Albab, O Presente dos Espíritos, de Abu Hamid Al-Garnati, narrando suas viagens no século XII, percorrendo o mundo todo, atravessando os mares e se encontrando com monstros. Esse viajante visita as pirâmides e, inclusive, tira as bandagens de uma múmia. Especialmente 73 interessantes são as descrições de monumentos que hoje já desapareceram, como o farol de Alexandria. A Música O oud é um antigo instrumento de cordas que foi refinado e aperfeiçoado pelos árabes, empregado na execução de obras primas musicais. Desenhos desse instrumento foram encontrados em cavernas e paredes do Egito Antigo e da Mesopotâmia. Os instrumentos antigos eram entalhados numa sólida peça de madeira semelhante aos instrumentos japoneses e chineses, todos inspirados no barbat persa, modelo original de todos os demais instrumentos. Durante o período mouro, na Espanha, o corpo do oud ganhou sua aparência definitiva. Confortavelmente apoiada nos braços do instrumentista, é leve como uma pena e suave ao toque. O oud não tem trastes como os instrumentos de cordas conhecidos, o que permite ao instrumentista improvisar e expressar seu talento de modo único. No passado, o músico se sentava numa manta de lã ou num tapete com as pernas cruzadas. Hoje em dia, os músicos se sentam numa cadeira confortável, apoiando o pé direito numa banqueta, segurando o oud como um violão. Seu som tem uma tonalidade suave, lembrando a espineta ou o bandolim. Paciência e dom são necessários para fazer o instrumento tanto quanto para tocá-lo. Mesmo sendo tão antigo, nunca perdeu sua popularidade no Oriente Médio e ainda hoje há 74 muitos músicos se dedicando a ele, que representa a música árabe. 75 O HUMOR ÁRABE O humor árabe é caracterizado pela valorização da criatividade e da astúcia, aspectos presentes também nos contos e lendas árabes. Personagens que povoam esses contos e lendas também estão presentes nas anedotas, como o escritor Abu Nuwas, que se relacionava com o famoso califa Harun AlRashid. Emenda Pior Que o Soneto Conta-se que, certo dia, o califa passeava pelos jardins com o escritor e pediu que este lhe desse uma explicação mais compreensível de um antigo provérbio árabe: "a desculpa foi pior que a falta". O escritor não se fez de rogado. Sorrindo maliciosamente, se aproximou do califa e aplicou-lhe um dolorido beliscão no braço. Indignado, o califa o repreendeu: — Que modos são esses, ó insensato. Acaso te permiti tal liberdade. Abu Nuwas respondeu em seguida, dando ao califa a explicação que ele queria: — Perdão, Sua Alteza, pensei que fosse a rainha! 76 O Joãozinho Árabe Um garoto foi mandado para a escola para aprender a ler, mas se recusava a fazer isso. Não havia como fazê-lo pronunciar ou escrever a primeira letra do alfabeto árabe, o alif. O professor tentou de todas as formas e usou de todas as ameaças ao seu alcance, mas não houve como fazer o garoto cumprir a tarefa. Desolado, procurou o pai do menino, contando o que estava acontecendo. — Meu bom filho, por que essa teimosia? O alif é apenas uma letra, não vai te fazer nenhum mal. Por que esse temor? — indagou o pai com brandura e paciência. O garoto respondeu imediatamente: — Meu querido pai, eu não tenho medo do alif, mas tenho muito medo do que vem depois dele. Conversa de Amigos — Há quanto tempo não nos vemos — diz um amigo ao outro. — E não podia ser de outra forma. Você não vai à mesquita nem eu vou ao cabaré! Chistes — Calma, meu amigo! Não é porque eu disse enterre-me que você vai correndo pegar a pá. — Sim, eu disse que a casa é sua, mas não precisa trancar a porta e levar a chave. 77 — Meu amigo, meus olhos, luz da minha vida, mas... longe de minha bolsa! O corvo quis imitar o passo da perdiz e perdeu o seu. Pode Cuspir a Pedrinha Mansur era um praguejador e vivia dizendo palavrões. Servia como sacristão de um bispo que, para corrigir o péssimo hábito de seu ajudante, teve uma brilhante ideia: — Mansur, mantenha esta pedrinha em sua boca. Enquanto ela estiver aí, você se lembrará de não dizer palavrões. Numa tarde de muito calor, Mansur e o bispo caminhavam por uma estrada, a pé, quando notaram uma mulher no alto de um morro, acenando e gritando insistentemente. Pensando que se tratasse de uma extrema unção, subiram penosamente a encosta. Quando chegaram lá, extenuados e suados, o bispo, apreensivo, indagou à mulher: — O que houve, minha boa senhora, para tanta urgência? — Minha galinha estava chocando e hoje nasceu a ninhada. Gostaria que o bispo abençoasse os pintinhos. Respirando fundo, o bispo enxugou a testa e se voltou para o ajudante, igualmente aborrecido. — Está bem, Mansur, pode cuspir a pedrinha! O Mundo é dos Espertos Jiha caminhava com os amigos pela estrada que, ao avistarem uma árvore alta, propuseram-lhe um desafio 78 — Jiha, se você é tão ágil, mostre-nos, escalando essa árvore. Jiha descalçou as sandálias e as guardou no bolso. — Vou levar as sandálias comigo. Vai que eu encontre um atalho lá em cima e precise caminhar até a estrada. Para a Esperteza, Esperteza e Meia Chegara o momento da oração na mesquita e os crentes esperavam pela chegada do imam. Como ele se demorassem, sugeriram que alguém tomasse o seu lugar e o escolhido foi Jiha. Pego de surpresa, tentou de todas as formas fugir ao encargo, mas não houve como. Finalmente, ele subiu ao minbar. — Irmãos, que posso eu vos ensinar hoje? — Não sabemos, somos burros — responderam os fiéis. — Eu me recuso a pregar para animais! Ide embora, instruívos e da próxima vez sabereis o que pedir ao imam. Dizendo isso, desceu do minbar e foi embora. Os fiéis ali presentes não se conformaram com isso e combinaram. — Na próxima vez que isso acontecer, quando ele perguntar, alguns responderão negativamente, enquanto outros responderão que sabem sobre que assunto ele falará. Numa outra oportunidade, o imam novamente faltou e obrigaram Jiha a subir ao minbar. — Sabeis o que vos vou ensinar hoje? — indagou ele. — Sim! — disseram alguns. — Não! — gritaram outros. Jiha lhes devolveu imediatamente: 79 — Então os que sabem instruam os que não sabem e todos ficarão sabendo. O Falso Profeta Um homem, que dizia ser profeta, foi levado à presença do califa, que lhe perguntou: — Que prodígios és capaz de fazer? — Qualquer coisa que o Califa desejar. — Tens aqui um cadeado, profeta. Abre-o! O profeta devolveu de imediato: — Poderoso senhor, sou só um profeta, não um chaveiro! Profeta Preso O califa mandou vir a sua presença um homem que dizia ser um profeta e saber tudo sobre todas as coisas. — Conheço o espírito humano. Agora mesmo, o Califa julga que sou um mentiroso e impostor — disse o espertalhão. — Acertaste, mas não adivinhaste que, por isso, vais para o cárcere. Depois de alguns dias numa cela, o falso profeta foi levado de novo à presença do mesmo califa. — E então, profeta, tiveste alguma revelação importante? — Não! — E por que não, se és profeta e tiveste tempo? — Anjos não visitam prisioneiros. Divertido com a tirada, o califa o pôs em liberdade, desde que ele prometesse deixar de enganar os incautos. Algum tempo 80 depois, no entanto, foi levado de novo à presença do califa, pois havia queixas de que continuava enganando os ingênuos. — Ordeno que produzas, aqui e agora, um melão! — Dá-me três dias e o farei — pediu o mentiroso. — Não, faze isso agora mesmo! — Isso não é justo, poderoso califa. Deus demorou seis dias para criar o céu e a terra. A natureza leva três meses para fazer um melão e tu não podes esperar três dias! Comigo não! Um profeta chamado Abrão foi levado à corte para ser interrogado pelo califa. — Como vai nos convencer de que és um verdadeiro profeta? Abraão enfrentava as chamas e não se queimava. Moisés transformou seu cajado em serpente e com ele fez brotar água no deserto. Jesus ressuscitou mortos e tu, o que sabes fazer? — Realizo o milagre da ressurreição. Vou decapitar Ibn Abu Dawd e ressuscitá-lo no momento seguinte. Ao ouvir aquilo, Ibn Abu Dawd protestou: — Não precisa, não precisa. Eu acredito firmemente que ele é um autêntico profeta. 81 CURIOSIDADES O sistema escolar da Arábia Saudita é parecido com o dos Estados Unidos, com o ano acadêmico indo de setembro a junho. Crianças começam aos seis anos e estudam doze anos até se graduarem do colégio. A partir daí, tem opção de ir para uma universidade. O currículo enfatiza os estudos islâmicos, junto com matérias acadêmicas, esportes e artes. A educação, bem como o atendimento médico, é grátis até a universidade. O árabe é a línguas oficial e é falado por todos os sauditas. O inglês é ensinado nas escolas públicas e a maioria dos habitantes do país fala essa língua, principalmente os homens de negócios. Algumas escolas particulares oferecem uma segunda língua estrangeira, normalmente o francês. Para encorajar a prática saudável de atividades físicas desde a juventude, a Arábia Saudita estabeleceu uma enorme rede de instalações culturais e esportivas. Mesmo nas menores cidades, há instalações, salões de reuniões e clubes para todas as atividades intelectuais e atléticas. Há também uma rede de parques nacionais e de instalações para esportes aquáticos. O futebol é o esporte mais popular do país e somente aos homens é permitido jogar ou assistir a jogos. Muitas cidades têm campos de futebol e há uma liga específica. A equipe nacional tem feito muitos progressos, participando das copas de 1994, 1998 e nas Olimpíadas de 1996. 82 A chuva é rara e irregular na região, ocorrendo de outubro a abril, mas geralmente restrita a poucos chuvisqueiros em janeiro e fevereiro. Em algumas áreas, notadamente no deserto, pode não chover por anos seguidos. Para manter seus suprimentos de água, foi estabelecida uma rede de barragens para conter chuvas sazonais, juntamente com aquíferos e usinas de dessalinização que suprem as necessidades urbanas, industriais e agrícolas. Estrangeiros devem se vestir de forma modesta e conservadora em público. Mulheres devem usar vestidos longos, folgados, de mangas compridas e colarinho alto, tomando o cuidado de cobrir seus cabelos. Homens podem usar terno ou camisas de mangas compridas com calças compridas. As mulheres não são autorizadas a dirigir. Muitas áreas tem um serviço regular de ônibus com linhas regulares para escolas e lojas. Contratos de emprego para estrangeiros normalmente incluem o custo de um motorista. Lanches são muito populares na Arábia Saudita como em qualquer outra parte. Além das cadeias nacionais, que comercializam comidas tradicionais, há franquias da maioria das marcas mundiais, incluindo as famosas McDonald's e Pizza Hut. Uma rede de farmácias atende a população e, para se comprar remédios, não há necessidade de receitas. O sistema de governo é baseado no Islamismo, que é considerada uma religião pacífica. Ocorrências de crimes são raras e as estatísticas mostram uma média elogiável de menos de 83 cem homicídios numa população de mais de dezesseis milhões de habitantes. Paralelamente à riqueza, à fartura e à organização da Arábia Saudita, há países do mundo árabe marcados pela miséria, pela fome e pelas guerras internas, onde as condições culturais em nada lembram seus vizinhos. 84 LENDAS ÁRABES As histórias de Fadas sempre foram contadas pelas mães a seus filhos e depois a seus netos. Ninguém sabe quão velhas elas são ou quem as contou primeiro. Os netos de Noé podem tê-las ouvido na Arca durante o Dilúvio. Heitor pode tê-las ouvido na Cidade de Tróia e é quase certo que Homero as conheceu. Algumas delas podem ter surgido no Egito, no tempo de Moisés. Pessoas em países diferentes contam-nas de forma diferente, mas são sempre as mesmas histórias. As mudanças só são percebidas em matéria de usos e costumes, como o tipo de roupa usada, títulos e locais. Há sempre muitos reis e rainhas nos contos de fadas, simplesmente porque, no passado, havia muitos reis e países. Um cavaleiro, porém, poderia ser um escudeiro ou um rei, dependendo de onde a história era contada. Essas histórias antigas, nunca esquecidas e sempre recontadas, após serem exaustivamente transmitidas oralmente, foram finalmente escritas em tempos diferentes e em lugares diferentes e em todos os tipos de línguas, formando o conteúdo do Grande Livro dos Contos de Fadas. As Lendas Árabes, em sua maioria, são contos de fadas do Oriente, compreendendo Ásia, Arábia e Pérsia, escritas no seu próprio modo de narrar, não para crianças, mas para adultos. Não havia romances então, nem qualquer livro impresso, mas havia pessoas cuja profissão era divertir os homens e mulheres 85 contando contos. Eles recontavam essas histórias, destacando personagens pelos seus valores muçulmanos. Os acontecimentos ocorriam frequentemente no reino do grande Califa Haroun al Raschid, que viveu em Bagdá do ano de 786 ao de 808. O vizir que acompanhava o Califa também era uma pessoa real da grande família dos Barmecidas. Ele foi condenado à morte pelo Califa de um modo muito cruel e ninguém nunca soube o motivo. As histórias devem ter sido contadas por um longo tempo depois que o Califa morreu, quando ninguém mais sabia o que realmente tinha acontecido exatamente. Escritores, finalmente, escreveram os contos, fixando-os em sua forma definitiva, isto é, narrados a um cruel Sultão pela sua esposa. Pessoas na França e Inglaterra não souberam quase nada sobre As Noites Árabes nos reinados da Rainha Anne e do Rei George I, até que fossem traduzidos em francês por Monsieur Galland. Adultos eram então muito apaixonados por contos de fadas, que julgavam essas histórias árabes as melhores que tinham lido. Eles se deliciavam com os Ghouls, que viviam entre as tumbas, com Gênios, com Princesas que faziam feitiços mágicos e com Peris, as fadas árabes. Simbad viveu aventuras que talvez tenham sido inspiradas pela Odisseia, de Homero, da mesma forma que histórias narradas na Bíblia podem ter sido contadas e recontadas, assumindo a forma de um conto de fada, depois de muito tempo. Ou, até mesmo a Bíblia, compilou alguns desses contos. Há estreitas ligações, por exemplo, entre a 86 história narrada no livro de Ester e a história de Sherazade, em Mil e Uma Noites. Nada impediu, também, que ao longo do tempo essas histórias destinadas aos adultos sofressem mudanças e acabassem se tornando histórias para crianças. Após o surgimento do livro impresso e da proliferação de uma nova literatura, retratando valores locais e resgatando aspectos do passado dos povos, o interesse gradativamente se voltou para esses novos títulos. As Lendas Árabes, no entanto, jamais perderam seu encanto e até hoje fascinam, pela criatividade e pela imaginação, leitores de todas as partes do mundo. O motivo de tanta popularidade é fácil de ser percebido? Basta começar a ler AS LENDAS ÁRABES! O COMERCIANTE E O GÊNIO Havia um comerciante que possuiu grande riqueza, tanto em terras e mercadorias como também em dinheiro. Ele era obrigado, de tempos em tempos, a viajar para cuidar de seus negócios. Numa dessas vezes, ele montou seu cavalo, levando com ele uma sacola pequena na qual ele tinha posto alguns biscoitos e tâmaras, porque teria que atravessar o deserto, onde nenhuma comida poderia ser encontrada. Ele chegou ao seu destino sem qualquer infortúnio e, tendo terminado seus negócios, partiu em retorno. No quarto dia da jornada, o calor do sol era muito grande e ele decidiu descansar debaixo de algumas 87 árvores. Ele achou, ao pé de uma enorme nogueira, uma fonte de água clara e corrente. Ele desmontou, amarrou seu cavalo a um galho da árvore e se sentou junto à fonte, depois de ter tirado da sacola algumas tâmaras e alguns biscoitos. Quando terminou de comer, lavou a face e as mãos na fonte. De repente, ele viu um gênio enorme, pálido de fúria, vindo para ele, com uma cimitarra nas mãos. — Levante-se! — ordenou o gênio com uma voz terrível. — Deixe-me mata-lo como você matou meu filho! Ao dizer estas palavras, ele deu um grito horroroso. O comerciante, totalmente petrificado diante da face horrorosa do monstro e com as palavras contra ele, respondeu tremulamente: — Ai, meu bom senhor, o que posso eu ter feito a você para merecer esta morte horrorosa? — Eu o matarei! — repetiu o gênio. — Da mesma forma como você matou meu filho. — Mas — disse o comerciante — como possa eu ter matado seu filho se não o conheço e nunca o vi até agora? — Quando você chegou aqui, você não se sentou no solo? — perguntou o gênio. — E você não apanhou algumas tâmaras de sua sacola e, ao comê-las, não lançou os caroços fora? — Sim, eu certamente fiz isso — confirmou o comerciante. — Então, eu lhe falo você matou meu filho. Enquanto atirava os caroços fora, meu filho passou a sua frente e um deles o acertou no olho, matando-o. Assim, eu também matarei você. — Ah, senhor, me perdoa! — implorou o comerciante. — Não terei clemência com você — respondeu o gênio. 88 — Mas eu matei seu filho sem querer, assim eu imploro que me poupe a vida. — Não! Eu o matarei como matou meu filho! Dizendo isso, ele amarrou os braços do comerciante, lançando-o ao solo. Ergueu a cimitarra para lhe decepar a cabeça. O comerciante protestou mais uma vez sua inocência e lamentou as crianças de sua esposa, tentando evitar seu trágico destino. O gênio, com a cimitarra erguida acima da cabeça, esperou até que ele tivesse terminado, nem um pouco sensibilizado com suas súplicas. Quando o mercador percebeu que o gênio estava determinado a lhe cortar a cabeça, ele disse: — Só mais um pedido, eu peço. Conceda-me um adiamento, apenas um pouco de tempo para eu ir para casa dizer adeus a minha esposa e filhos e fazer meu testamento. Quando eu fizer isto, eu voltarei aqui e você me matará. — Se eu lhe conceder o adiamento que me pede, temo que você não volte mais aqui. — Eu lhe dou minha palavra de honra — respondeu o comerciante. — Eu voltarei sem falta. — Quanto tempo você quer? — perguntou o gênio. — Eu lhe peço a graça de um ano — respondeu o comerciante. — Eu lhe prometo que, daqui a doze meses, eu o estarei esperando debaixo desta árvore para lhe entregar minha vida. O gênio, então, o deixou perto da fonte e desapareceu. O comerciante, tendo se recuperado do susto, montou seu cavalo e retomou seu caminho. Quando chegou em casa, a esposa e as 89 crianças o receberam com a maior das alegrias. Mas em vez de abraçá-los, ele começou a se lamentar amargamente. Eles adivinharam logo que algo terrível havia acontecido. — Fale, conte-nos o que aconteceu! — pediu a esposa dele. — Ai! — respondeu-lhe. — Eu só tenho um ano para viver. Então ele lhes contou o que tinha acontecido entre ele e o gênio, e como ele tinha dado sua palavra de voltar ao término de um ano para ser morto. Quando eles ouviram esta notícia terrível, entraram em desespero e lamentaram muito. No dia seguinte, ao retomar seus negócios, a primeira coisa que o comerciante começou a fazer foi pagar suas dívidas. Deu presentes para os amigos e grandes esmolas para os pobres. Ele determinou a liberdade de seus escravos e cuidou para nada faltasse à esposa e aos filhos. O ano passou logo, obrigando-o a partir. Quando ele tentou dizer adeus, quase foi vencido pelo sofrimento e, com dificuldade, tomou a direção de seu destino final. Quando lá chegou, ele desmontou e se sentou junto à fonte, onde esperou a chegada do gênio terrível. Estava ali, esperando, quando um homem velho, que conduzia uma corça, veio até ele. Saudaramse e, então, o velho indagou: — Deixe-me perguntar, irmão, o que o trouxe a este lugar do deserto onde há tantos gênios maus? Vendo estas belas árvores, qualquer um imagina que o local é habitado, mas, na verdade, é um lugar perigoso para se parar por muito tempo. O comerciante falou para o velho por que era obrigado a estar ali. O outro o ouviu com surpresa. 90 — Mas esse é um acontecimento maravilhoso! Eu gostaria de ser testemunha de seu encontro com o gênio — falou o velho, sentando-se ao lado do comerciante. Enquanto eles conversavam, outro velho chegou seguido por dois cachorros negros. Ele os saudou e perguntou o que eles estavam fazendo naquele lugar. O velho que estava conduzindo a corça lhe contou a aventura do comerciante com o gênio. O segundo velho, que jamais ouvira uma história semelhante, também decidiu ficar para ver o que iria acontecer. Sentou-se junto aos outros e estavam conversando, quando um terceiro velho chegou, trazendo em seus braços um pote amarelo. Ele perguntou por que o comerciante que estava com eles parecia tão triste. Eles lhe contaram a história e ele também decidiu ficar para ver o que aconteceria entre o gênio e o comerciante. Estavam esperando, quando viram uma fumaça espessa como uma nuvem de poeira. Aquilo foi se aproximando cada vez mais e então tudo desapareceu repentinamente. Eles viram o gênio que, sem falar com eles, se aproximou do comerciante com espada na mão. Segurando-o pelo braço, disse: — Levante-se e me deixe matá-lo como você matou meu filho. O comerciante e os três velhos começaram a lamentar e gemer. Então o velho que conduzia a corça se lançou aos pés do monstro e suplicou: — Príncipe dos Gênios, eu imploro que detenha sua fúria e me escute. Eu vou lhe contar minha história e a da corça que 91 tenho comigo. Se você achá-la maravilhosa, eu peço que anule um terço do castigo do comerciante que está a ponto de matar! O gênio considerou algum tempo e então disse: — Muito bem, eu concordo com isso. — Eu vou começar minha história agora — disse o velho. — Por favor, ouça-me com atenção! — pediu ele e iniciou. A História do Velho e da Corça Esta corça que você vê comigo é minha esposa. Nós não tínhamos nenhum filho nosso, então adotei o filho de meu escravo favorito e determinei fazê-lo meu herdeiro. Minha esposa, porém, sentia uma grande antipatia pela mãe e pela criança, fato que me escondeu até que fosse tarde demais. Quando meu filho adotivo tinha aproximadamente dez anos, fui obrigado a sair em viagem. Antes de ir, confiei a minha esposa a criança e a mãe dela, implorando que cuidasse delas durante minha ausência, que durou um ano inteiro. Durante esse tempo, ela se dedicou ao estudo das artes mágicas para levar a cabo seus planos maléficos. Quando adquiriu conhecimento e poderes suficientes, levou meu filho e a mãe para um lugar distante, transformando-os num bezerro e numa vaca. Depois pediu a meu mordomo que cuidasse dos dois como se fossem animais que ela havia comprado. Por fim, tratou de dar fim no meu escravo, pai da criança transformada em bezerro. Quando voltei, perguntei por meu escravo e pela criança. 92 — Seu escravo está morto — disse ela. — Quando a seu filho, eu não o vejo há dois meses e não sei onde ele está. Eu lamentei ao ouvir falar da morte de meu escravo, mas como meu filho havia apenas desaparecido, eu pensei que logo haveria de encontrá-lo. Porém, oito meses se passaram sem nenhuma novidade. Então chegou a época das festas de Bairam. Para celebrar, ordenei que meu mordomo trouxesse uma vaca gorda para sacrificar. Ele assim fez. A vaca que ele trouxe era minha escrava, a mãe de meu filho. Quando eu estava a ponto de matá-la, ela começou a mugir baixinho como se suplicasse por sua vida. Eu vi, então, que os olhos dela estavam cheios de lágrimas. Tomado de piedade, ordenei ao mordomo levá-la e trazer outra. Minha esposa, que estava presente, ridicularizou minha compaixão, dizendo maliciosamente: — O que está fazendo você? Mate esta vaca. É a melhor que nós temos para sacrificar. Tentei agradá-la, mas novamente o animal mugiu e suas lágrimas me desarmaram. — Leve-a embora! — ordenei ao mordomo. — Mate-a você, eu não posso fazer isso. O mordomo, cumprindo minhas ordens, a matou. Ao esfolála, porém, descobriu que ela não tinha nada além de ossos, embora aparentasse ter muita gordura. Fiquei consternado. — Fique com ela! — disse ao mordomo. — E se tiver um bezerro gordo, traga-o no lugar dela! Em pouco tempo ele trouxe um bezerro gordo que, embora eu não o reconhecesse, era meu filho. Tentou arduamente partir 93 sua corda e vir até mim. Lançou-se a meus pés com sua cabeça no solo como se desejasse despertar minha piedade, implorandome para não lhe tirar a vida. Eu fiquei ainda mais surpreso com essa ação do que fiquei com as lágrimas da vaca. — Vá! — ordenei ao mordomo. — Leve de volta este bezerro com bastante cuidado e traga imediatamente outro em seu lugar. Assim que minha esposa me ouviu falar isso, indagou: — O que está fazendo você, marido? Não sacrifique nenhum outro bezerro senão este! — Esposa! — eu respondi. — Não sacrificarei este bezerro! Rebati todos os argumentos dela e permaneci firme. Matei outro bezerro e libertei o primeiro. No dia seguinte, o mordomo me procurou e pediu para falar em particular. — Eu vim lhe contar uma notícia que eu o penso que irá gostar de ouvir. Eu tenho uma filha que conhece magia. Ontem, quando libertei o bezerro que você recusou sacrificar, eu contei a ela e ela sorriu. Imediatamente depois começou a chorar. Eu lhe perguntei por que ela estava fazendo aquilo. — Pai! — ela respondeu. — Este bezerro é o filho de mestre. Eu sorri de alegria ao vê-lo ainda vivo, mas lamentei ao lembrar que a mãe dele foi sacrificada. Essas transformações foram forjadas pela esposa de nosso mestre, que odiava o filho adotivo. Ao ouvir essas palavras do mordomo, mal podem imaginar minha surpresa. Pedi ao mordomo que trouxesse a filha dele e fui para o estábulo ver meu filho, que respondeu a seu modo a todo 94 o meu carinho. Quando a filha do mordomo apareceu, eu lhe perguntei se ela poderia fazer meu filho voltar a sua forma natural. — Sim, eu posso, — ela respondeu — sob duas condições. A primeira é que ele me seja dado como marido. A segunda é que o mestre me deixe castigar a mulher que o transformou em bezerro. — Com a primeira condição — respondi — eu concordo de todo meu coração e ainda lhes darei um generoso dote. Quanto à segunda condição, também concordo, mas eu só lhe imploro que poupe a vida dela. — Assim será! — disse ela. — Será tratada como tratou o filho. Então ela apanhou uma vasilha de água e pronunciou sobre ela algumas palavras incompreensíveis. Depois, lançou essa água sobre o bezerro, que tomou imediatamente a forma de um homem jovem e belo. — Meu filho, meu querido filho! — exclamei — beijando-o cheio de alegria. Esta linda jovem o salvou do terrível encanto. Estou certo de que, não apenas por gratidão mas também por amor, você concorda em se casar com ela. Ele consentiu cheio de alegria, mas antes que eles estivessem casados, a jovem transformou minha esposa em uma corça e é ela quem vê você aqui, ao meu lado. Eu desejei que ela tivesse esta forma, ao invés de uma de um animal mais estranho, de forma que ninguém a olhasse com repugnância. Deixei meu filho cuidando de meus negócios e vivo viajando. Como não 95 queria confiar minha esposa aos cuidados de ninguém, eu a levo comigo aonde for. E então, o que achou de minha história? — Realmente, é uma história maravilhosa e surpreendente — afirmou o gênio. — Por causa disso, eu concedo a você um terço do castigo desse comerciante. Quando o primeiro velho terminou de agradecer, o segundo, que estava conduzindo os dois cachorros pretos, disse ao gênio: — Eu gostaria de lhe contar o que aconteceu a mim e estou certo de que achará minha história até mesmo mais surpreendente que essa que acabou de ouvir. Mas quando eu terminar, também vai me garantir a terceira parte do castigo do comerciante. — Sim — respondeu o gênio. — Contanto que sua história seja mais surpreendente que a história da corça. Com este acordo feito, o segundo velho começou a narrar sua história. A História do Segundo Velho e dos Cachorros Pretos Grande Príncipe dos Gênios, você tem que saber que nós somos três irmãos, estes dois cachorros pretos e eu. Nosso pai morreu e deixou mil cequins para cada um de nós. Com essa quantia, resolvemos ter a mesma profissão e nos tornamos comerciantes. Pouco tempo depois que abrimos nossas lojas, meu irmão primogênito, um destes dois cachorros, resolveu visitar países estrangeiros para vender mercadorias. Com essa 96 intenção, ele vendeu tudo que tinha e comprou novas mercadorias para a viagem que estava a ponto de fazer. Ele partiu e se passou um ano inteiro. Ao término deste tempo, um mendigo veio a minha loja. — Bom-dia! — eu disse. — Bom-dia! — respondeu ele. — É possível que você não me reconheça? Então eu o olhei bem de perto e vi que era meu irmão. Eu o fiz entrar em minha casa e lhe perguntei o que ocorrera com o empreendimento dele. — Não me questione! — ele me respondeu — Veja, você vê tudo o que sobrou do que eu tinha. Sinto dificuldade em contar os infortúnios que me aconteceram nesse ano e que me deixaram assim. Eu fechei minha loja e lhe dei toda a minha atenção. Leveio ao banho, dando-lhe uma de minhas batas mais bonitas. Eu fiz minhas contas e descobri que tinha dobrado meu capital. Entreguei a metade ao meu irmão, dizendo: — Agora, irmão, você pode esquecer suas perdas. Ele aceitou com alegria e vivemos juntos como vivíamos antes. Algum tempo depois, meu segundo irmão também desejou fazer a viagem de negócios dele. Meu irmão primogênito e eu fizemos tudo que pudemos para dissuadi-lo, mas foi inútil. Ele se juntou a uma caravana e partiu, para retornar ao término de um ano no mesmo estado que nosso irmão mais velho. Tomei conta dele e como eu tinha mil cequins para repartir eu os dei a ele e ele reabriu sua loja. Um dia, meus dois irmãos 97 vieram até mim para propor que nós viajássemos para vender mercadorias. No princípio eu recusei. — Vocês viajaram e o que ganharam com isso? — indaguei. Eles não desistiram e vieram repetidamente a mim e, depois de insistirem durante cinco anos, eu acabei cedendo. Finalmente, quando eles tinham feito os preparativos deles e começaram a comprar as mercadorias que iríamos vender, perceberam que haviam gastado todo o dinheiro que eu lhes havia dado. Eu não os repreendi e dividi minha fortuna, no total de seis mil cequins, da seguinte forma. Dei mil a cada um deles, guardei mil para mim e enterrei os outros três mil em um canto de minha casa. Nós compramos mercadoria, carregamos um navio com elas e partimos com um vento favorável. Depois de navegar dois meses, chegamos a um porto onde desembarcamos e fizemos excelentes negócios. Então nós compramos mercadorias do país e nos preparamos para velejar mais uma vez. Eu estava no barco, parado na praia calma, quando uma linda mas pobremente vestida mulher subiu a rampa e veio até mim, beijou minha mão e me implorou que me casasse com ela e a levasse a bordo. No princípio eu recusei, mas ela implorou tanto, prometendo ser uma boa esposa, que eu, afinal, consenti. Eu comprei alguns vestidos bonitos e, depois de termos nos casado, embarcamos e fixamos a vela. Durante a viagem, descobri tantas qualidades boas em minha esposa que comecei a amá-la cada vez. Mas meus irmãos começaram a ter ciúmes de minha prosperidade e resolveram conspirar contra minha vida. 98 Uma noite, quando nós estávamos dormindo, eles nos jogaram no mar. Porém minha esposa era uma fada e não me deixou afogar, transportando-me para uma ilha. Quando o dia amanheceu, ela disse a mim: — Quando eu o vi naquela praia, fiquei encantada com você e desejei testar sua natureza para ver se era boa, por isso me apresentei na forma em que me viu. Agora eu o recompensei, salvando sua vida. Mas estou muito brava com seus irmãos e não descansarei até levar as vidas deles. Eu agradeci à fada tudo que ela tinha feito para mim, mas supliquei para não matar meus irmãos. Tanto fiz que consegui aplacar sua ira. Num momento, então, ela me transportou da ilha onde estávamos para o telhado de minha casa, desaparecendo em seguida. Eu desci, abri as portas e desenterrei os três mil cequins que tinha enterrado. Eu fui para o lugar onde minha loja estava localizada e abri-a, recebendo as boas-vindas de meus companheiros comerciantes pelo meu retorno. Quando fui para casa, ao fim do dia, vi dois cachorros pretos que vieram humildemente ao meu encontro como me conhecessem. Fiquei surpreso, mas a fada reapareceu e disse: — Não fique surpreso com esses cachorros. Eles são seus dois irmãos, condenados a permanecer durante dez anos nessa forma. E entes que eu pudesse falar alguma coisa, ela desapareceu. Os dez anos já quase se passaram e eu estou viajando a procura dela. Quando passava por aqui, vi esse comerciante e o velho com a corça e fiquei com eles. 99 — Realmente! — disse o gênio — Sua história é maravilhosa e por isso eu lhe concederei um terço do castigo do comerciante. Então o terceiro velho fez para o gênio o mesmo pedido que os outros dois haviam feito e o gênio lhe prometeu o último terço do castigo do comerciante se a história dele ultrapassasse as outras. Assim ele contou a história dele ao gênio. A História do Terceiro Velho e do Pescador Senhor, havia um pescador tão velho e tão pobre que mal podia sustentar sua esposa e três filhos. Saia pescar muito cedo diariamente e havia estabelecido uma regra para si: jamais lançar sua rede mais do que quatro vezes. Ele partiu certa manhã, ainda à luz da lua, e foi para a beira do mar. Ele se despiu e lançou a rede. Quando a estava puxando para o banco de areia, sentiu um grande peso. Imaginando ter pegado um grande peixe, ficou muito contente. Mas, no momento seguinte, viu em sua rede, ao invés de um grande peixe, a carcaça de um asno. Ele ficou muito desapontado. Aborrecido com tal pescaria, ele consertou a rede que a carcaça do asno havia arrebentado em vários pontos. Em seguida, atirou a rede ao mar pela segunda vez. Ao puxar, ele novamente sentiu um grande peso de forma que pensou que ela estivesse cheia de peixes. Mas só achou uma enorme cesta cheia de lixo. Ele ficou ainda mais aborrecido. 100 — Ó, sorte! — ele clamou — Não faça troça comigo, um pobre pescador que não pode sustentar sua família! Dizendo isso, ele jogou fora o lixo e lavou a rede, limpando-a de toda sujeita. Novamente ele a lançou ao mar, pela terceira vez agora. Dessa vez, só pegou pedras, conchas e lama. Estava à beira do desespero. Então lançou a rede pela quarta vez. Quando pensou que nada pescara, ele a puxou com muita dificuldade. Não havia peixes, mas ele achou um pote amarelo que, pelo seu peso, parecia conter alguma coisa. Notou que estava fechado e lacrado com um selo. Ficou encantado. — Eu o venderei ao fundidor e com o dinheiro que conseguir comprarei uma medida de trigo. Ele examinou o jarro por todos os lados depois o chacoalhou para ouvir algum ruído, mas nada ouviu. Analisando o selo na tampa, ele pensou que, mesmo assim, poderia haver alguma coisa lá dentro. Usando sua faca, com um pouco de dificuldade ele conseguiu soltar a tampa. Virou o pote de cabeça para baixo, mas nada saiu dali. Levantou o objeto à altura dos olhos e estava olhando seu interior, tentando ver alguma coisa, quando saiu dali uma fumaça espessa, fazendo-o recuar alguns passos. Essa fumaça se levantou até as nuvens e estendeu-se por cima do mar e da orla, formando um nevoeiro que muito surpreendeu o pescador. Quando toda a fumaça estava fora do pote, ela se concentrou numa massa enorme, na qual apareceu um gênio duas vezes maior que um gigante. Quando viu aquele monstro terrível olhando para ele, o pescador ficou tão aterrorizado que não conseguiu dar um passo para fugir. 101 — Grande rei dos gênios! — exclamou o monstro — Jamais voltarei a desobedecê-lo! Estas palavras levaram coragem ao pescador. — O que você está dizendo, grande gênio? Conte-me sua história e como acabou encerrado nesse vaso. O gênio olhou o pescador com arrogância. — Dirija-se a mim com cortesia antes que eu o mate! — Ai! Por que você deveria me matar? — indagou o pescador — Eu o libertei, já se esqueceu? — Não! — respondeu o gênio — Isso não me impedirá de matar você. Mas vou lhe conceder um favor: escolha como quer morrer! — Mas o que fiz eu a você? — insistiu o pescador. — Eu não o posso tratar de qualquer outro modo — disse o gênio — Se quiser saber o motivo, escute a minha história. Eu me rebelei contra o rei dos gênios. Para me castigar, ele me encerrou neste vaso de cobre, lacrando-o com um selo de chumbo, que é o único encanto capaz de me deter e me impedir de sair. Em seguida, ele jogou o vaso no mar. Durante o meu cativeiro, jurei que se qualquer um me libertasse antes de cem anos, eu o faria rico até mesmo depois da morte. Aquele século passou e ninguém me livrou. No segundo século, prometi que daria todos os tesouros do mundo para meu libertador, mas ele nunca veio. No terceiro século, eu prometi fazer de meu salvador um rei, sempre estar perto dele e lhe conceder diariamente três desejos. Mas aquele século também se passou e eu permaneci na mesma prisão. Finalmente, fiquei furioso por ter permanecido 102 cativo por tão longo e prometi que se alguém me soltasse, eu o mataria imediatamente e só lhe permitiria escolher de que maneira deveria morrer. Como vê, você me libertou, agora escolha de que forma deseja ser morto por mim. O pescador estava muito infeliz. — É isso que um homem azarado como eu ganha por ter salvado você. Eu lhe imploro que poupe minha vida. — Já lhe disse! — tornou o gênio — Sejamos breves. Escolha, você está desperdiçando meu tempo! O pescador teve uma ideia repentina. — Considerando que eu tenho que morrer, — falou ele — antes que eu escolha a maneira de minha morte, eu suplico por sua honra que me diga se estava realmente dentro do vaso! — Sim, eu estava — respondeu o gênio. — Eu realmente não posso acreditar nisso — afirmou o pescador — Aquele vaso pequeno mal pode conter um de seus pés, quanto mais o corpo inteiro. Eu não posso acreditar nisso, a menos que eu veja. — Pois vou lhe mostrar como! — falou o gênio com desprezo. Então ele começou a se transformar em fumaça que, como antes, esparramou-se por cima do mar e da orla, depois foi se juntando e começando a entrar lentamente no vaso até que nada restasse do lado de fora. Lá dentro, indagou: — Bem, pescador descrente, aqui estou eu dentro do vaso. Acredita em mim agora? 103 O pescador, em vez de responder, apanhou a tampa de chumbo e fechou depressa o vaso. — Agora, ó gênio do mal — exclamou o pescador — Peça perdão a mim e escolha de que morte morrerá! Mas não, será melhor eu lançá-lo ao mar e construir uma casa na praia para avisar a todos os pescadores que aqui vêm para lançar suas redes, prevenindo-os de pescar um gênio tão mau como você, que jura matar o homem que o libertar. A estas palavras, o gênio fez tudo que pôde para sair, mas não podia por causa do encanto da tampa. — Se me ajudar, eu o farei o homem mais sábio do mundo todo, capaz de desafiar gênios, seduzir fadas e conquistar reinos. — Se eu confiar em você, nada me garantirá que serei tratado com justiça. Além disso, se minha astúcia superou a de um gênio, estou certo de que poderei vencer pela astúcia qualquer outro que aparecer no meu caminho — disse o velho. — Poderá ter tudo que jamais teve em sua miserável vida! — continuou o gênio. — Vou fazer melhor! Vou correr o mundo, levando você para ensinar as pessoas a enfrentarem a maldade — finalizou o velho, encarando agora o gênio que queria tirar a vida do pobre e desesperado comerciante. — Devo confessar que sua história é a mais surpreendente e maravilhosa de todas as outras — afirmou o gênio, realmente surpreso, olhando de rabo de olho para o pote que o velho tinha nas mãos. — Por isso eu lhe dou a terceira parte do castigo do comerciante. Ele deve agradecer a todos os três pelo empenho 104 demonstrado em salvá-lo. Se não fossem vocês, ele já teria partido desta vida. Dizendo assim, ele desapareceu para grande alegria do comerciante e de seus companheiros. Ele não soube como agradecer seus amigos e fez tudo que estava a seu alcance para demonstrar sua gratidão. Convidou a todos para irem morar na casa dele, mas os viajantes agradeceram e cada um tomou seu rumo. O comerciante voltou para sua esposa e para seus filhos, passando o resto de sua vida feliz com eles. 105 A HISTÓRIA DO REI LEPROSO E O MÉDICO DE DOUBAN No país de Zouman, na Pérsia, viveu um rei leproso e todos seus doutores tinham tentado inutilmente curá-lo, quando um médico muito inteligente apareceu na corte. Esse médico era instruído em todos os idiomas e tinha um conhecimento muito grande sobre ervas, poções e medicamentos. Assim que soube da enfermidade do rei, vestiu sua melhor roupa e se apresentou diante do monarca. — Senhor! — disse ele — Eu sei que nenhum médico pôde curar sua majestade, mas se seguir minhas instruções, eu vou curar sua doença sem usar qualquer medicamento ou aplicação externa. O rei escutou atentamente essa proposta. — Se você é inteligente o bastante para fazer isto, eu prometo para sempre fazê-lo um homem rico e também seus descendentes. O médico foi para a casa dele e fez um bastão de polo, escavando seu punho e pondo nele a droga que desejou usar. Depois ele fez uma bola e com essas coisas foi ver o rei no dia seguinte. Ele lhe falou que desejava que o rei jogasse polo. O rei concordou e montou seu cavalo, indo para o lugar onde se praticava esse esporte. O médico se aproximou com o taco que havia feito. — Leve este, senhor, e golpeie a bola até que sinta sua mão e todo o seu corpo arderem. Quando o remédio que está no 106 punho do taco esquentar pelo calor de sua mão, ele vai penetrar ao longo de seu corpo. Quando isso acontecer, volte para seu palácio, tome um banho e vá dormir. Quando despertar amanhã, estará curado. O rei levou o taco e esporeou o cavalo atrás da bola. Ele a golpeou e ela foi rebatida pelo cortesão que estava com ele. O jogo continuou por um longo tempo. Quando o rei se sentiu muito quente, deixou de jogar e voltou para o palácio, entrou no banho e fez o que o médico tinha dito. No dia seguinte, quando ele acordou, percebeu com grande surpresa que estava totalmente curado. Ao entrar na sala de audiências, grande foi a alegria de todos os seus súditos por aquela cura maravilhosa. O médico de Douban entrou pelo corredor e foi se curvar para o rei, que o viu e o chamou, fazendo-o se sentar ao lado dele, demonstrando toda a sua honra e sua gratidão. Naquela noite, o rei deu ao médico uma bata oficial longa e rica e o presenteou com dois mil cequins. No dia seguinte, ele continuou o cobrir o médico de toda sorte de favores. Acontece que o rei tinha um grão-vizir avarento e invejoso, um homem muito ruim mesmo. Enciumado pelas graças concedidas, ele tramou a ruína do médico. Para isso, pediu uma audiência particular com o rei, alegando que tinha uma importante revelação a fazer. — O que é — perguntou o rei. — Senhor, — respondeu o grão-vizir — é muito perigoso para um monarca confiar em um homem cuja fidelidade ainda 107 não foi provada. Quem pode garantir que esse médico não é um traidor que veio aqui para assassinar sua majestade? — Estou seguro disso — afirmou o rei. — Esse homem é o mais virtuoso e o mais fiel de todos os homens. Se ele desejasse levar minha vida, por que me curou? Eu sei o que está havendo. Você tem ciúme dele. Não pense que possa me indispor contra ele. Eu me lembro bem do que um vizir disse ao Rei Simbad, seu senhor, para impedir que o príncipe fosse levado à morte. O que o rei disse excitou o curiosidade do vizir, que pediu: — Majestade, eu imploro, seja condescendente e me conte o que o vizir disse ao Rei Simbad! — Esse vizir — falou o rei — disse a Simbad que jamais acreditasse em tudo que lhe fosse dito, contando-lhe em seguida esta história. A História do Marido e do Papagaio Um homem bom teve uma esposa bonita a quem ele amou apaixonadamente e da qual jamais se afastava. Um dia, quando foi obrigado a fazer uma viagem de negócios muito importante, afastando-se da esposa, foi a um lugar onde vendiam todos os tipos de pássaros e comprou um papagaio. Esse papagaio não só falava muito bem, mas tinha a facilidade de contar tudo aquilo que presenciava. Ele o trouxe para sua casa em uma gaiola e pediu para a esposa que o pusesse no quarto dela, cuidado dele enquanto o marido estivesse fora. 108 O homem viajou, realizou seus negócios com sucesso e, ao retornar, perguntou ao papagaio o que tinha acontecido durante a ausência dele e o papagaio lhe falou algumas coisas que o fizeram ralhar com a esposa. Ela pensou que um dos escravos devia ter contado sobre ela, mas eles lhe garantiram que fora o papagaio, por isso ela resolveu se vingar dele pessoalmente. Quando o marido partiu para uma viagem de um dia, ela ordenou a um escravo para girar um moinho sob a gaiola. Outro deveria lançar água sobre a gaiola e um terceiro fazer refletir a luz de uma candeia, da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, direto nos olhos do papagaio. Isso durou toda a noite. No dia seguinte, quando o marido voltou, perguntou o que o papagaio tinha visto. O pássaro respondeu: — Meu bom senhor, raios, trovões e chuva perturbaram-me tanto a noite toda me, que eu não nada vi nem ouvi. O marido, que sabia que nem tinha chovido nem tinha trovejado na noite anterior, ficou convencido de que o papagaio não estava falando a verdade, tirou-o da gaiola e o lançou tão asperamente no solo que o matou. Não obstante, ele ficou depois arrependido, porque jamais soube se o papagaio tinha falado a verdade ou não. Quando o rei terminou a história do papagaio, ele disse ao vizir: — E assim, vizir, eu não escutarei você e cuidarei bem do médico no caso de me arrepender, como o fez o marido que matou o papagaio. Mas o vizir insistiu: 109 — Majestade, a morte do papagaio nada significou. Quando está em jogo a vida de um rei, no entanto, é melhor sacrificar um inocente que salvar um culpado. Não pode ser uma coisa incerta, no entanto. O médico deseja assassinar sua majestade. Meu zelo exige que eu comprove isso. Se eu estiver errado, mereço ser castigado como um vizir foi castigado uma vez. — Que fez o vizir para merecer o castigo? — quis saber o rei. — Eu contarei, se sua majestade me der a honra de escutar. A História do Vizir que Foi Castigado Havia um rei que teve um filho que gostava muito de caçar. Ele lhe permitia frequentemente se dedicar a esse passatempo, mas tinha ordenado a seu grão-vizir que sempre acompanhasse o príncipe e que nunca o perdesse de vista. Um dia, os cães acossaram um veado e o príncipe, pensando que o vizir estava atrás dele, deu início à perseguição. Cavalgou velozmente e, depois de algum tempo, percebeu que estava só. Ele parou e, tendo perdido de vista a caça, voltou para se reunir com o vizir, que não tinha tido o devido cuidado de segui-lo. O príncipe se viu perdido. Estava tentando encontrar o caminho, quando viu ao lado da estrada uma linda senhora, que chorava amargamente. Ele puxou as rédeas do cavalo e lhe perguntou quem era ela, que estava fazendo naquele lugar e se ela precisava de ajuda. 110 — Eu sou a filha de um rei da Índia — respondeu ela — e rumava para meu país, mas parei para descansar e adormeci. Meu cavalo fugiu e não sei qual é seu paradeiro. O príncipe jovem teve piedade dela e se ofereceu para levála na sua garupa, o que ela aceitou. Quando passavam por umas ruínas, ela desmontou e entrou. O príncipe também desmontou e a seguiu. Para sua grande surpresa, ouviu alguém dizer: — Regozijem-se, minhas crianças, eu estou lhes trazendo um jovem belo e gordo para vocês. Ao que as outras vozes responderam: — Onde ele está, mama? Será que nós podemos comê-lo imediatamente, já que temos tanta fome? O príncipe percebeu o perigo iminente. Descobriu, então, que a mulher que se dizia filha de um rei da Índia era, na verdade, uma ogra que habitava locais ermos e desolados, atraindo e devorando os viajantes perdidos. Aterrorizado, esporeou o cavalo. A suposta princesa apareceu naquele momento e, vendo que havia perdido a presa, gritou-lhe: — Não tenha medo! O que você quer agora? — Estou perdido — respondeu ele. — Preciso achar a estrada. — Siga sempre em frente e a encontrará — disse ela. O príncipe, mal podendo acreditar em seus ouvidos, galopou tão rápido quanto foi possível. Encontrando o caminho, ele voltou ao palácio de seu pai são e salvo, narrando-lhe o perigo que havia corrido por causa do descuido do grão-vizir. O rei ficou muito bravo e o estrangulou imediatamente. 111 — Senhor, — insistiu o vizir — se não tomar cuidado com o médico de Douban, poderá vir a se arrepender de ter confiado nele. Quem pode garantir que o mesmo remédio que o curou possa vir a matá-lo futuramente? O rei era naturalmente muito fraco e não percebeu as verdadeiras e más intenções de seu vizir, nem era firme o bastante para manter sua decisão inicial. — Bem, vizir, — disse ele — você tem razão. Talvez ele tenha vindo me tomar a vida. Ele pode fazer isso pelo simples cheiro de uma de suas drogas. Verei o que pode ser feito. — A melhor maneira, Senhor, de pôr sua vida em segurança é mandar cortar imediatamente a cabeça dele — disse o vizir. — Acho que é mesmo a melhor maneira — concordou o rei, que ordenou a um de seus ministros que fosse buscar o médico, que o atendeu prontamente. — Eu o chamei para me livrar de você — sentenciou o rei. O médico ficou terrivelmente surpreso com aquilo. — Que crime cometi, majestade? — Eu sei que você é um espião e pretende me matar. Mas eu serei mais rápido e o matarei primeiro. Golpeie! — ordenou ele a um executor que ali estava. — Liberte-me desse assassino! A essa ordem cruel, o médico se lançou nos joelhos dele. — Poupe a minha vida — suplicou e o rei o empurrou, afastando-o de seus joelhos. — Pelo menos me deixe colocar meus negócios em ordem e deixar meus livros para pessoas que farão bom uso deles. Há um que eu gostaria de presentear a sua 112 majestade. É muito precioso e deve ser mantido cuidadosamente em seu tesouro, pois contém coisas maravilhosas. Quando eu morrer, se sua majestade virar a sexta folha e ler a terceira linha da página à esquerda, minha cabeça responderá todas as perguntas que fizer. O rei, ansioso para ver tal maravilha, adiou a execução para o próximo dia e o mandou sob forte escolta para casa. Ali o médico colocou seus negócios em ordem e, no dia seguinte, havia uma grande multidão reunida para ver sua morte e o que aconteceria depois. O médico entrou e foi até os pés do trono com um livro grande numa das mãos e uma bacia na outra. Disse o médico, então: — Senhor, pegue este livro. Quando minha cabeça for cortada, coloque-a na bacia. Abra o livro e minha cabeça responderá suas perguntas. Mas imploro sua clemência, porque sou inocente. — Suas súplicas são inúteis. Se só posso ouvir sua cabeça falar quando estiver morto, então você deve morrer! Dizendo isso, ele tomou o livro das mãos do médico e ordenou ao carrasco que cumprisse com seu dever. A cabeça foi cortada tão habilmente que caiu direto na bacia. Imediatamente o sangue deixou de fluir. Então, para grande surpresa do rei, os olhos se abriram e a cabeça ordenou ao rei que abrisse o livro. Ele assim o fez e achando que a primeira folha estivesse grudada à segunda, ele pôs o dedo na boca para umedecê-lo e virar a página facilmente. Ele repetiu o gesto até alcançar a sexta página. 113 — Médico, a folha está em branco! — exclamou, então. — Vire mais algumas páginas! — respondeu a cabeça. O rei continuou virando as folhas, sempre pondo o dedo na boca a cada movimento. Com isso, o veneno que havia em cada folha começou a fazer efeito. A visão escureceu e ele caiu aos pés do próprio trono. Quando a cabeça do médico percebeu que o veneno tinha agido e que o rei só tinha mais alguns minutos de vida, gritou: — Tirano! Veja como são castigadas a crueldade e a injustiça. — Por favor, médico, salve a minha vida e lhe darei tudo o que quiser, até metade de meu reino! — suplicou o rei, sentindo a vida esvair-se de seu corpo rapidamente. — Já tive a minha vingança! — Não foi culpa minha — afirmou o rei pusilânime. — Foi o grão-vizir quem me convenceu a matá-lo. — Ele mente! O rei mente! — protestou o grão-vizir. — Um rei jamais mente, principalmente no seu leito de morte. Cortem a cabeça do grão-vizir pela sua perfídia! — ordenou o rei e sua ordem foi cumprida imediatamente. — Já tive a minha vingança — disse a cabeça, fechando os olhos para sempre. — Não morra! Por favor, eu suplico! Não morra! — ficou repetindo o rei, até silenciar-se para sempre. 114 A HISTÓRIA DO JOVEM REI DAS ILHAS NEGRAS Ao redor da fogueira, na tenda do sultão que estava de passagem por aquelas terras fazendo justiça, todos prestavam atenção à história que o jovem contava. Ele escondia o corpo num manto longo. Seu rosto estava parcialmente coberto por um turbante cujas abas pendiam sobre uma de suas faces. O fogo, no entanto, provocava naquela parte de seu rosto estranhos reflexos como chamas se refletindo no mármore polido. Saibam vocês que meu pai era Mahmoud, o rei das Ilhas Negras, assim chamadas por causa de quatro pequenas montanhas que um dia foram ilhas. A capital era no lugar onde agora há o grande lago e o deserto. Minha história lhes contará como essas mudanças ocorreram. Meu pai morreu quando tinha sessenta e seis anos e eu o sucedi. Casei-me com minha prima, a quem amei ternamente e acreditei que me amava também. Mas uma tarde, quando eu estava meio adormecido e sendo abanado por duas de suas escravas, ouvi uma dizer à outra: — Que pena que nossa ama já não gosta de nosso senhor! Eu acredito que ela gostaria de matá-lo se pudesse, porque ela é uma feiticeira. Logo acabei concordando com elas. Quando seu escravo favorito ficou gravemente ferido num acidente, ela implorou que a deixasse construir um palácio no jardim, onde o chorou e o lamentou durante dois anos, cuidado e conservando seu corpo. Eu lhe implorei, então, que deixasse de lamentá-lo, pois ele não podia falar nem se mover e somente era mantido conservado 115 daquela forma graças aos encantamentos que ela usava. Ela se virou contra mim furiosa e proferiu algumas palavras mágicas e eu me tornei imediatamente como vocês me veem agora, meio homem e meio mármore. Essa feiticeira má transformou a capital, uma populosa e florescente cidade, no lago e no deserto que há agora. E não há um só dia que ela não venha a minha procura e me bata com um chicote feito de couro de camelo. Quando o rei jovem terminou sua triste história triste, o Sultão demonstrou ter ficado sensibilizado com seu destino. — Conte-me — ordenou ele — onde está essa mulher má? — Onde ela vive agora que eu não sei, — respondeu o infeliz príncipe infeliz, — mas ela vai diariamente, ao amanhecer, ver se o escravo fala com ela, depois de me bater. — Rei desgraçado! — exclamou o Sultão. — Serei sua vingança! Consultou o jovem rei qual seria o melhor modo para agir, traçando um plano para o dia seguinte. O sultão foi descansar, prometendo-lhe que tudo se resolveria favoravelmente. Quando o dia começou a nascer, o sultão entrou no palácio do jardim onde o escravo jazia. Sacou a espada e destruiu a pouca vida que permanecia nele, depois lançou o corpo num poço. Ele se deitou, então, na cama onde estava o escravo e esperou pela feiticeira. Ela primeiro procurou o jovem rei, em quem aplicou cem chibatadas. Em seguida, foi para o quarto onde pensava que o escravo ferido estivesse, mas o Sultão ocupava seu lugar. Ela chegou até perto do leito e disse: 116 — Está melhor neste dia, meu querido escravo? Fale pelo menos uma palavra para mim. — Como eu posso estar melhor, — respondeu-lhe o Sultão, imitando a língua do escravo — quando eu nunca posso dormir por causa dos gritos e gemidos de seu marido? — Que alegria ouvi-lo falar! — exclamou a rainha. — Quer que eu devolva a ele a forma normal? Peça o que quiser e lhe concederei. — Por favor! — disse o Sultão. — Livre-o de sua maldição e lhe dê liberdade para que eu não ouça mais os gritos dele. A rainha saiu imediatamente, levando uma xícara de água. Disse algumas palavras que fizeram o conteúdo ferver como se estivesse no fogo. Então ela lançou isso em cima do príncipe, que imediatamente recuperou sua forma totalmente humana. Ele ficou feliz com isso, mas a feiticeira lhe disse: — Suma daqui imediatamente e não volte nunca mais. Se não fizer isso agora mesmo, eu o matarei! O jovem rei fingiu que fugia em desabalada carreira, mas foi se esconder para ver o fim do plano do Sultão. A feiticeira voltou ao Palácio das Lágrimas e disse: — Eu fiz o que você desejou! — O que você fez — disse o Sultão — não é o bastante para me curar. Vá agora mesmo e liberte todas as pessoas que enfeitiçou até agora. Vá e lhes devolva a forma humana. A feiticeira saiu apressadamente e disse algumas palavras na direção do lago. Os peixes se transformaram em homens, mulheres e crianças. Tudo voltou ao normal. As ruas estavam 117 cheias novamente e as casas e lojas fervilhavam como se nada tivesse acontecido. Assim que terminou de desfazer seus encantamentos, a rainha regressou ao palácio. — Você está bem melhor agora? — indagou. — Venha para bem perto de mim — disse o Sultão. — Mais próximo ainda. Ela obedeceu. Então ele pulou sobre ela e com um assobio, sua espada cortou-a a meio, matando-a. Então ele procurou e encontrou o príncipe. — Regozije-se! — disse ele. — Sua cruel inimiga está morta. O príncipe não sabia o que fazer para agradecer o sultão. — Vá governar seu país com justiça e igualdade. Para que sua felicidade e a minha sejam completas, mandarei Suleima, minha sobrinha favorita, vir de Bagdá para se casar com você e o fazer feliz para sempre. Ela será o símbolo da nossa aliança. De agora em diante, você é um protegido meu e nenhum mal lhe acontecerá ou a seu reino. Algum tempo depois, a graciosa princesa, sobrinha do sultão, chegou às Ilhas Negras, onde se casou com o jovem rei numa festa que durou noventa dias. Foram felizes para sempre! 118 A HISTÓRIA DO BURRO, DO BOI E DO COMERCIANTE Havia, no tempo do grande Califa Haroun al Raschid, que viveu em Bagdá, um comerciante, senhor de muitas posses, casado e pai de muitos filhos. Alá, o Altíssimo, lhe deu o dom de entender a língua dos animais. Esse comerciante morava numa região fértil à margem de um rio e tinha um burro e um boi. Certo dia, o boi chegou ao lugar que era ocupado pelo burro e o encontrou varrido e regado de água. No cocho havia cevada bem joeirada e palha desfiada. O burro estava deitado em repouso como se fosse uma figura importante. Indignado, o boi se lembrou de que, quando seu senhor montava o burro, era apenas para uma curta viagem, quando havia urgência, pois o burro voltava logo ao seu repouso. Protestou, então, sem perceber que o comerciante o ouvia. — Comes do bom e do melhor e que isso te seja saudável, proveitoso e de fácil digestão! Eu estou fatigado e tu, repousado. Tu comes a cevada bem joeirada, a palha desfiada e és bem cuidado em seu estábulo. Se às vezes, por alguns momentos, teu senhor te monta, bem depressa te traz de volta! Quanto a mim, sirvo apenas para a labuta e para o trabalho pesado do moinho! Então o burro disse em resposta: — Ó pai do vigor e da paciência, em vez de te lamentares, faze o que vou te dizer. Digo-te isso por amizade, simplesmente pelo gosto de Alá. Quando saíres para o campo e meterem o jugo no teu pescoço, atira-te por terra e não te levantes, mesmo que te 119 batam. Quando te levantares, deita-te depressa pela segunda vez. Se te fizerem voltar ao estábulo e te apresentarem favas, não as coma. Finge-te de doente e esforça-te por não comer nem beber por uns três dias. Dessa maneira, repousarás da fadiga e do trabalho e te trarão da melhor palha e da melhor cevada para tua alimentação. O comerciante, escondido, ouviu aquelas palavras. Quando o tratador foi para junto do boi para lhe dar forragem, viu que o animal comia muito pouco. No dia seguinte, pela manhã, quando foi buscá-lo para o trabalho, encontrou-o doente. Foi depressa e comunicou o fato ao seu senhor, que lhe disse em resposta: — Leva o burro e faze com que ele trabalhe no lugar do boi durante o dia todo! O tratador assim o fez e levou o burro no lugar do boi, fazendo-o trabalhar durante o dia inteiro. No fim do dia, quando o burro voltou para o estábulo, o boi lhe agradeceu a benevolência que permitiu que ele, o boi, repousasse de sua fadiga durante aquele dia. Arrependido, o burro não respondeu. Na manhã seguinte, um semeador foi buscar o burro e o fez trabalhar o dia inteiro. O burro voltou com o pescoço esfolado e vencido pela fadiga. O boi, vendo-o naquele estado, agradeceu efusivamente, glorificando o amigo com louvores. Disse o burro, então: — Antes eu estava muito tranquilo. A minha esperteza me condenou. Mas é preciso que eu lhe diga que ouvi nosso amo dizer que se o boi não se levantar de seu lugar, será dado ao magarefe para que o mate e faça de sua pele um couro para a 120 mesa. Eu ouvi e tive muito medo por ti. Aviso-te, portanto, para tua salvação. Ao ouvir as palavras do burro, o boi agradeceu-lhe e disse: — Amanhã mesmo irei livremente com o tratador cuidar de minhas ocupações. Na mesma hora começou a comer toda a forragem. Nenhum dos dois percebeu, no entanto, que o comerciante, escondido, ouvia cada uma das palavras deles. Quando o dia amanheceu, o comerciante saiu com a esposa para onde ficavam os bois e as vacas e ali sentaram. Veio o tratador, tomou o boi e saiu. Como não estava acostumado com a comida que havia ingerido durante aquele tempo de inatividade, inesperadamente e à vista de seu amo, o boi começou a agitar a cauda e a soltar ventos ruidosamente, girando como doido de um lado para outro. O comerciante foi tomado de tal ataque de risos que caiu de seu assento. Sua esposa quis saber: — De que te ris tanto? Ele respondeu: — De uma coisa que vi e ouvi, mas que não posso divulgar sem morrer. Ela insistiu: — Eu exijo que me contes a razão de teu riso, mesmo se devesses morrer por isso. Ele replicou: — Não posso divulgar isso, porque tenho medo da morte. Ela lhe disse: — Mas então estás rindo de mim! 121 Concluindo isso, não cessou de discutir com ele e de atormentá-lo teimosamente com palavras. Tanto fez que, por fim, ele se sentiu obrigado a lhe contar. Fez vir seus filhos a sua presença e mandou chamar o cádi e testemunhas, pois queria fazer seu testamento antes de revelar o mortal segredo à esposa, a quem ele amava e com quem tinha vivido um tempo considerável de sua vida. Ao saberem da exigência da mulher, amigos e parentes disseram: — Por Alá! Deixa de lado essa história pelo temor que morra teu marido, o pai dos teus filhos! Mas ela lhes disse: — Não lhe darei paz enquanto não me tiver dito seu segredo, mesmo que deva morrer! Então cessaram de falar com ela. E o mercador se levantou de junto deles e se dirigiu para o lado do estábulo, no jardim, a fim de fazer suas abluções e voltar para contar o segredo e morrer. Ocorre que ele tinha um galo valente, capaz de satisfazer cinquenta galinhas. Tinha também um cão muito valente. Ele ouviu, naquele momento, o cão que chamava o galo e insultavao, dizendo: — Não tens vergonha de te mostrares alegre quando nosso senhor vai morrer? E o galo disse ao cão: — Como é isso? O cão contou toda a história e o galo disse: — Por Alá! Nosso senhor é bem pobre de inteligência. Eu, que tenho cinquenta esposas, sei me desembaraçar delas, 122 agradando uma e ralhando com outra! Ele tem uma só e não sabe nem o bom meio nem a maneira de tratar com ela! Ora, é bem simples! Não tem senão que cortar em intenção dela algumas boas varas de amoreira, entrar bruscamente em seu reservado e bater-lhe até que ela morra ou se arrependa e nunca mais ela tornará a importuná-lo com qualquer pergunta que seja! Ao ouvir aquelas palavras, o comerciante sentiu a luz voltar a sua razão e ele resolveu espancar a esposa. Assim, ele entrou no quarto reservado de sua esposa, depois de ter cortado em sua intenção as varas de amoreira e de tê-las escondido. Disse-lhe, chamando-a: — Vem até o quarto reservado para que eu te diga o segredo e ninguém me possa ver morrer depois! Ela entrou com o marido e ele fechou a porta do quarto reservado sobre ambos e caiu-lhe em cima a golpes dobrados até vê-la desmaiar. Exclamou ela em altos brados, então: — Eu me arrependo! Eu me arrependo! — e se pôs a beijar as mãos e os pés do marido, demonstrando que estava verdadeiramente arrependida. Depois, saiu com ele e toda a assistência se regozijou. O casal viveu no estado mais feliz e afortunado até a morte. O burro jamais tentou ser mais esperto que seu amo e o boi jamais lamentou sua sorte novamente. Como gratidão, o comerciante dobrou a quantidade de galinhas aos cuidados de seu galo. Às vezes, quando o comerciante sozinho a um canto começava a rir, lembrando daquilo que não podia contar, sua 123 esposa imediatamente se lembrava da surra de varas de amoreira e espantava toda a curiosidade de seu coração. 124 O FALCÃO DO REI DE FURS Contam que o rei de Furs era grande amigo de divertimentos, de passeios e de todo tipo de caça. Possuía um falcão treinado por ele próprio que não o abandonava nenhum momento. Mesmo durante a noite, o rei o trazia preso ao seu punho. Quando ia à caça, levava consigo. No pescoço dessa ave, tinha mandado pendurar uma vasilha de ouro onde lhe dava de beber. Um dia, em seu palácio, o rei viu subitamente chegar o encarregado dos bosques e florestas. Disse-lhe esse encarregado: — Ó rei, estamos de novo na época das caçadas! — Isso me deixa muito feliz! — exultou o rei e começou a fazer os preparativos para a partida. No dia seguinte, com o falcão em seu punho, partiram, rumando para um vale, onde estenderam as redes de caça. Repentinamente, uma gazela ficou presa na rede. Então o rei alertou: — Matarei aquele que deixá-la escapar! Começaram a puxar a rede em torno da gazela, que se acercou do rei, ergueu-se sobre as patas traseiras, encolhendo junto do peito as patas dianteiras. Nisso o rei bateu as mãos uma contra outra, espantando a gazela, que saltou e fugiu, passandolhe por cima da cabeça e desaparecendo no meio das árvores. O rei se voltou para os guardas e viu que eles piscavam os olhos uns para os outros, referindo-se a ele, o rei. Percebendo isso, perguntou ao grão-vizir: 125 — Que têm os soldados? O grão-vizir respondeu: — Eles dizem que tu juraste matar quem quer que deixasse escapar a gazela! Falou o rei, em seguida: — Pela minha cabeça, precisamos perseguir aquela gazela e trazê-la de volta! Começou a galopar, seguindo a pista do animal. Libertou o falcão, incitando-o a perseguir a presa. O falcão rapidamente a localizou e, num voo rasante e certeiro, atirou-se sobre a gazela, enterrando-lhe o bico aguçado nos olhos, cegando-a. O rei apanhou seu bastão e bateu no animal, fazendo-o rolar. Desceu resolutamente, degolou-a, esfolou-a e prendeu a caça a sua sela. Fazia calor e o local era árido e sem água. O rei teve sede e cavalo também. Olhando ao redor, o monarca viu uma árvore de onde escorria um líquido parecido com manteiga. O rei tinha a mão coberta com uma luva de pele, onde pousava o falcão. Apanhou a vasilha do pescoço da ave, encheu-a com aquele líquido e colocou-a diante do falcão. Inesperadamente, o animal, com um golpe de uma de suas garras, entornou-a. O rei apanhou a taça pela segunda vez, encheu-a, imaginando que a ave também tinha sede, mas o falcão, pela segunda vez, entornou-a. O rei ficou enraivecido com o falcão e deu-lhe o líquido pela terceira vez. O falcão novamente o entornou e o rei disse: — Que Alá te enterre, ave infernal! Dizendo isso, feriu o falcão com sua espada, cortando-lhe as asas. O falcão ergueu a cabeça e sinalizou para o rei: 126 — Olha o que há sobre a árvore! — queria ele dizer. O rei levantou a cabeça e viu uma serpente monstruosa na árvore. O que escorria era seu veneno. O rei, arrependido de ter cortado as asas do falcão, levantou-se, tornou a montar a cavalo e partiu levando a gazela. Mandou o cozinheiro preparar a gazela, depois se sentou em seu trono, tendo o falcão no punho. Percebeu, então, que a luva que vestia estava empapada de sangue. Imaginou que fosse da corça, mas, ao observar o falcão, percebeu as penas coladas à pele pelo sangue que escorria dos ferimentos. — Meu amigo, você não pode morrer! — lamentou o rei, apertando a ave junto ao peito. O falcão, às portas da morte, apontou a taça que trazia ao pescoço e fez sinais para que o rei a enchesse de vinho. Aflito, o rei assim o fez, aproximando-a do bico da ave. Novamente o falcão fez sinais, dando a entender ao rei que desejava que este tomasse o primeiro gole. O rei o atendeu, bebendo um gole do vinho, depois voltou a oferecer o vinho ao falcão, que soltou um longo soluço e morreu. Vendo aquilo, o rei soltou gritos de luto e aflição por ter matado o falcão que o salvara da morte. Sentiu um aperto no coração, mas estava por demais concentrado em seu sofrimento para perceber que o resto do veneno da serpente, que ficara na taça, o estava matando. 127 A HISTÓRIA DA SULTANA E SUAS IRMÃS CIUMENTAS Era uma vez, no reino da Pérsia, um sultão chamado Kosrouschah, que desde a sua juventude vestia um disfarce e saía à procura de aventuras por todas as partes da cidade, acompanhado por um de seus oficiais também disfarçado. Logo após o sepultamento de seu pai e o encerramento das cerimônias fúnebres, o jovem sultão despiu suas roupas de estado e chamou seu grão-vizir para se preparar. Ambos vestiram roupas simples e saíram como cidadãos comuns a caminhar pelas ruas menos conhecidas da capital. Passando por uma delas, o sultão ouviu vozes de mulheres em discussão. Espiando por uma fresta da porta, ele viu três irmãs sentadas em um sofá, em um grande corredor, conversando de maneira muito decidida e séria. Prestando atenção, percebeu que cada uma delas explicava com que tipo de homem desejava se casar. — Eu não preciso de nada melhor — disse a primogênita — que ter o padeiro do sultão como marido. Pensem como seria bom poder comer tudo que puder daquele pão delicioso que é assado apenas para Sua Alteza. Quero ver se desejam mais do que eu! — Eu desejo — respondeu a segunda irmã. — Eu me contentaria com o cozinheiro-chefe do sultão. Com que guisados delicados eu me deliciaria! E como sei que todos comem bem 128 naquele palácio, seu desejo é uma ninharia. Veja você, minha querida irmã, que meu gosto é tão bom ou melhor que o seu. Era agora a vez da irmã mais jovem, sem dúvida a mais bonita das três e, além disso, tinha mais juízo que as outras duas. — Quanto a mim, — disse ela — gosto de voos altos e, se tenho que desejar alguém para marido, por que não desejar o próprio sultão para mim? O sultão se divertiu tanto com aquela conversa que decidiu satisfazer os desejos delas. Virando-se para o grão-vizir, mandou-o tomar nota do endereço e, no dia seguinte, pela manhã, levar as jovens à presença dele. O grão-vizir cumpriu a missão. No dia seguinte, mal o dia amanheceu, foi até a casa delas e ordenou que elas o seguissem até o palácio, mal lhes dando tempo de mudar de roupas. Ali elas foram apresentadas uma por uma e, quando se curvaram diante do sultão, ele abruptamente lhes perguntou: — Contem-me o que vocês desejaram ontem à noite, quando conversavam. Não tenha medo e me respondam com sinceridade! Essas palavras tão inesperadas encheram de confusão as irmãs, que abaixaram os olhos. O rubor nas faces da mais jovem causou uma forte impressão no coração do sultão. As três permaneceram em silêncio e ele insistiu: — Não fiquem amedrontadas. Minha intenção não é outra senão a de agradá-las. Eu sei o desejo que cada uma de vocês formulou ontem à noite — acrescentou ele, voltando-se para a mais jovem. — Você, que me desejou para marido, terá seu 129 desejo satisfeito hoje mesmo. Quanto a vocês — disse ele, dirigindo-se às outras, — vão se casar com meu padeiro e com meu cozinheiro-chefe. Quando o Sultão terminou de falar, as irmãs se lançaram a seus pés. A mais jovem falou com voz hesitante. — Senhor, já que ouviu minhas tolas palavras, acredite, eu imploro, foi apenas uma brincadeira! Não sou merecedora da honra que me propõe. Só lhe peço que perdoe a minha ousadia! As outras irmãs também tentaram se desculpar, mas o Sultão não lhes deu ouvido. — Não, não! — disse ele. — Minha decisão já foi tomada. Vou satisfazer seus desejos. O Ciúme das Irmãs e o Tormento da Sultana Assim, os três casamentos foram celebrados naquele mesmo dia, mas com diferença de magnificência. O da mais jovem com o sultão foi marcado por toda a pompa habitual no matrimônio de um Xá da Pérsia, enquanto as núpcias do padeiro e do cozinheiro-chefe foram de acordo com as posições e condições deles. Isto, embora fosse bastante natural, considerando as posições de um e outro, desagradou enormemente às irmãs mais velhas que, tomadas pelo ciúme, acabaram causando muitas dificuldades e sofrimentos a várias outras pessoas. Na primeira vez em que tiveram a oportunidade de conversar, depois de 130 algum tempo, numa casa de banhos públicos, não conseguiram disfarçar seus sentimentos. — Você pode entender o que o Sultão viu naquela gatinha insossa? — indagou a esposa do padeiro para a outra. — O que a tornou tão fascinante aos olhos dele? — Ele deve ser cego — devolveu a esposa do cozinheiro. — Só porque ela era um pouco mais jovem do que nós? O que importa isso? Você seria uma Sultana muito melhor que ela. — Oh, não falo por mim — comentou a mais velha. — Se o sultão tivesse escolhido você, tudo bem para mim. O que lamento é que ele escolheu justamente aquela criaturinha miserável para se apaixonar. Mas eu vou me vingar de alguma maneira dela, por isso suplico que me ajude nisso. Conte-me qualquer coisa que souber que possa perturbá-la ou mortificá-la. — Conte comigo! — garantiu a outra. Para levarem a cabo seus pérfidos propósitos, as duas irmãos passaram a se encontrar com frequência, discutindo suas ideias e seus planos. Enquanto isso, fingiam continuar tão amigas como sempre foram da sultana. Esta, sem nada desconfiar, sempre as tratou com generosidade. Por um longo tempo, apesar de todos os planos e do ciúme das irmãs, nada aconteceu, pois não viam surgir uma chance apropriada. Finalmente, a expectativa do nascimento de um herdeiro do sultão deu a elas a chance pela qual tinham estado esperando. Eles obtiveram permissão do sultão para transferir seus domicílios para o palácio sob o pretexto de assistir a irmã e jamais saíam do lado dela fosse de dia, fosse de noite. Quando, 131 afinal, o menino nasceu bonito como o sol, elas o puseram num berço e o levaram até um canal que passava próximo do palácio. Então, deixando a criança entregue a seu próprio destino, elas informaram o Sultão que em vez do filho que ele tanto desejava, a Sultana tinha dado à luz um filhote de cachorro. Ao ouvir essa terrível notícia, o sultão foi tomado de tanta ira e pesar que somente com muita dificuldade o grão-vizir conseguiu salvar a vida da sultana. Enquanto isso, o berço continuou flutuando pacificamente ao longo do canal, nos arredores dos jardins reais, até que, de repente, foi visto pelo intendente, um dos cargos oficiais mais altos e respeitados de todo o reino. — Vá! — ordenou ele ao jardineiro que estava trabalhando ali perto. — Apanhe aquele berço e o traga para mim! O jardineiro fez como lhe havia sido ordenado e logo colocou o berço nas mãos do intendente. O funcionário do reino ficou muito surpreso ao ver que o berço que ele supunha estar vazio continha um bebê que, embora recém-nascido, já dava mostras de grande beleza. Não tendo nenhum filho, embora já estivesse casado há alguns anos, ocorreu-lhe imediatamente ficar com a criança como se fosse seu próprio filho. Pedindo silêncio ao jardineiro, ele imediatamente levou o berço e a criança para casa. — Esposa! — exclamou ele, entrando no quarto. — O céu nos tem negado filhos, mas aqui está uma criança que foi enviada no lugar deles. Chame uma enfermeira. Eu farei o que é publicamente necessário para reconhecê-lo como meu filho. 132 A esposa aceitou o bebê com alegria, imaginando que o intendente sabia que o bebê viera de algum lugar do palácio, mas não era obrigação dele investigar esse tipo de coisa. No ano seguinte, outro príncipe nasceu e teve o mesmo destino. Felizmente também para esse bebê, o intendente estava caminhando nos jardins, ao longo do canal, viu-o, salvou-o e levou-o para casa como o primeiro. O sultão, naturalmente, ficou ainda mais furioso por acontecer com o segundo filho o mesmo que ocorrera com o primeiro. Quando o fato se repetiu pela terceira vez, no entanto, ele não conseguiu se controlar, para alegria das irmãs ciumentas. O sultão ordenou que a esposa fosse imediatamente executada. Só que a infeliz sultana era muito amada por todos no reino e, mesmo correndo o risco de compartilhar o mesmo destino dela, o grão-vizir e os principais cortesãos se lançaram aos pés do sultão, implorando que não infligisse o cruel castigo, já que, afinal de contas, não era culpa dela. — Deixa-a viver — pediu o grão-vizir. — Aplica-lhe uma pena mais branda, banindo-a de tua presença pelo resto dos dias dela. A ira se abrandou e o sultão recuperou a calma. — Sim, deixem-na viver então — ordenou ele. — Mas eu concedo a vida a ela com a condição de que ela, ao fazer suas preces diárias na mesquita, reze por sua morte. Construa uma caixa na entrada, ao lado da porta, com uma janela permanentemente aberta. Ali ela se sentará com suas roupas mais grosseiras e todo muçulmano que entrar na mesquita cuspirá no 133 rosto dela ao passar. Qualquer um que se recusar a fazer isso terá o mesmo castigo dela. Você, vizir, cuidará para que minhas ordens sejam cumpridas. O grão-vizir sabia que era inútil dizer mais e concordou. Cheias de triunfo, as irmãs assistiram à construção da caixa, depois ouviram com prazer a zombaria das pessoas, dirigidas à impotente sultana no interior da caixa. Mas a pobre senhora agiu com tanta paciência, dignidade e mansidão, que ganhou a simpatia de todo mundo. A Princesa Parizade Enquanto isso, o terceiro bebê, uma princesa, da mesma forma que seus irmãos teve também a sorte de ser encontrada pelo intendente no canal ao lado do jardins, adotando-a. Os três foram criados com todo cuidado e toda ternura. Enquanto as crianças cresciam, a beleza delas e o ar de distinção mais e mais se evidenciavam, revelando que se tratavam de pessoas de berço nobre. O primeiro deles foi chamado pelo pai adotivo de Bahman. O segundo, de Perviz, nomes de dois reis antigos da Pérsia, enquanto a princesa foi chamada de Parizade. O intendente teve o cuidado de apresentá-los sempre como seus próprios filhos, cuidando pessoalmente de sua educação. Mais tarde, designou um tutor para ensinar à jovem princesa ler e escrever. A jovenzinha, determinada a não ficar para trás, mostrou que estava tão ansiosa para aprender com os irmãos dela 134 que o intendente consentiu que ela os acompanhasse. Logo ela sabia tanto quanto eles. Desde aquele tempo, todos seus estudos foram feitos em comum. Eles tiveram os melhores mestres em belas artes, geografia, poesia, história e ciência. Mesmo essa matéria, em que poucos eram instruídos, parecia a eles tão fácil que seus professores ficaram surpresos com o progresso feito. A princesa demonstrou paixão pela música e aprendeu a tocar todos os tipos de instrumentos. Também aprendeu a montar tão bem como seus irmãos. Sabia usar o arco e a seta e atirar um dardo ou lança com a mesma habilidade como eles e, às vezes, até melhor. Para incentivar essas habilidades, o intendente resolveu que seus filhos adotivos não mais deveriam ser limitados pelas estreitas fronteiras do jardim do palácio, onde sempre tinham vivido. Assim, comprou para uma esplêndida casa na zona rural, não muito distante da capital, cercada por um imenso parque. Esse parque ele encheu de animais selvagem de vários tipos, de forma que os príncipes e a princesa podiam caçar como gostavam de fazer. Quando tudo estava pronto, o intendente se lançou aos pés do sultão e, depois de se referir à idade dele e aos longos serviços prestados, implorou permissão de Sua Alteza para renunciar a seu posto. O sultão agradeceu com palavras corteses, indagando que tipo de recompensa o criado desejava por ter servido tão fielmente por tanto tempo. Agradecendo, o intendente declarou que nada mais desejava que continuar 135 merecendo a consideração do sultão. Prostrando-se mais uma vez, ele se retirou. Cinco ou seis meses se passaram nos prazeres do campo, quando a morte atacou o intendente tão de repente que ele não teve nenhum tempo de revelar o segredo do nascimento às crianças adotadas por ele. Como sua esposa já havia morrido havia muito tempo, parecia que os príncipes e a princesa jamais saberiam que tinham uma origem muito mais alta do que imaginavam. O pesar pela morte do pai foi tão grande que eles preferiram continuar morando na nova casa, sem nenhum desejo de trocá-la pela corte e suas intrigas. A Velha Peregrina e as Três Maravilhas Um dia, quando os príncipes saíram para caçar como sempre faziam, a irmã ficou a sós em seus aposentos. Enquanto eles estavam fora, uma velha devota muçulmana surgiu à porta e pediu licença para entrar, pois era a hora da oração. A princesa imediatamente deu ordens para que a velha senhora fosse levada ao oratório privado. Quando ela terminasse as orações, seriam mostrados a casa e o jardim, depois ela seria conduzida diante da princesa. Embora a velha senhora fosse muito piedosa, não ficou de todo indiferente à magnificência a seu redor. Depois de visitar e admirar tudo que lhe foi mostrado, foi conduzida pelos criados até a princesa, em um quarto que ultrapassava em esplendor todo o resto. 136 — Minha boa mulher! — disse a princesa, apontando um sofá. — Venha e se sente a meu lado. Estou encantada com a oportunidade de estar por alguns momentos com pessoa tão santa. A velha senhora tentou contestar o elogio que a princesa havia acabado de fazer, mas esta se recusou a ouvi-la, insistindo que sua convidada deveria ficar confortável. Como julgou que ela estiva cansada, ordenou que lhe servissem refresco e comida. Enquanto a velha estava comendo, a princesa lhe fez diversas perguntas sobre o modo dela de vida, os exercícios piedosos que ela praticava. Finalmente, perguntou o que ela havia achado da casa que acabara de visitar. — Senhora! — respondeu a peregrina. — Seria preciso ser muito rude para encontrar qualquer falta. É tudo muito bonito, confortável e bem ordenado. É impossível imaginar qualquer coisa mais adorável que o jardim. Mas, já que você me perguntou, eu tenho que confessar que faltam três coisas para torná-la perfeita. — E quais podem ser elas? — suplicou a princesa. — Digame agora, para que eu as compre imediatamente. — As três coisas, senhora, — respondeu a velha — são as seguintes: a primeira é o Pássaro Falante, cuja voz puxa o canto de todos os outros pássaros, unindo-os num único coro. A segunda coisa é a Árvore Cantora, onde cada folha é uma canção que nunca se cala. Finalmente, a última é a Água Dourada, da qual só é necessário verter uma única gota em uma bacia para ela se transformar numa fonte que jamais secará nem transbordará. 137 - Oh, como possa eu lhe agradecer? — perguntou a princesa. — Você me revelou a existência de tesouros inimagináveis. Por favor, eu imploro a sua bondade para que me diga onde posso achar essas maravilhosas! — Senhora, — respondeu a peregrina — eu seria indelicada para com a gentil hospitalidade com que me receberam se me recusasse a responder sua pergunta. As três coisas de que lhe falei podem ser encontradas em um único lugar, na fronteira deste país com a Índia. Só precisa mandar um mensageiro seu seguir a estrada que passa por diante de sua casa durante vinte dias e, ao término desse tempo, ele deve perguntar à primeira pessoa que encontrar pelo Pássaro Falante, pela Árvore Cantora e pela Água Dourada. Ela se levantou, então, disse adeus para a princesa e saiu. A velha partiu tão abruptamente que a princesa não percebeu, até que ela realmente tivesse sumido de seus olhos. Como a noite caíra, não havia como procurá-la. A jovem princesa estava pensando em como seria maravilhoso possuir aquelas três preciosidades, quando os príncipes, seus irmãos, voltaram da caça. — Qual o problema, irmã? — indagou o Príncipe Bahman. — Por que está assim? Está doente? Aconteceu alguma coisa? A Princesa Parizade não respondeu diretamente, mas o brilho de seu olhar demonstrava que nada de mal havia ocorrido. — Mas deve ter acontecido algo — insistiu o Príncipe. — Você não pode ter mudado tanto durante nossa curta ausência. Nada esconda de nós, eu lhe peço, minha irmã, a menos que 138 deseje que a confiança que sempre tivemos um no outro acabe agora mesmo. — Quando eu disse que não era nada, — explicou a princesa, comovida com o interesse do irmão — eu quis dizer que não era nada que nos afetasse, embora admita ser certamente muito importante para mim. Como eu, você sempre pensou que esta casa, que nosso pai construiu com tanto cuidado e tanta preocupação, fosse perfeita para nós, mas só hoje eu soube que há três coisas que faltam para completá-la. Essas coisas são o Pássaro Falante, a Árvore Cantora e a Água Dourada. Depois de explicar as peculiares qualidades de cada uma das coisas, continuou a princesa: — Foi uma muçulmana devota que me contou tudo isso, bem como me indicou o local onde podem ser achadas. Talvez você pense que a casa é bonita o bastante como está e que nós podemos passar muito bem sem essas três coisas, mas nisso eu não concordarei com você. Eu nunca serei feliz, enquanto não as possuir. Assim, ajude-me, por favor, a escolher o mensageiro certo para mandar nessa empreitada! — Minha querida irmã! — exclamou o Príncipe Bahman — O que disse é muito importante para você e, assim, passa também a ser importante para nós, seus irmãos. Como seu irmão mais velho, eu reivindico o direito de fazer a primeira tentativa, se me disser que direção tomar e quais os passos que me levarão a meu destino. O Príncipe Perviz objetou imediatamente, dizendo que, por ser o cabeça da família, seu irmão não deveria se expor ao 139 perigo, mas o Príncipe Bahman não lhe deu ouvidos e se apressou em fazer os preparativos necessários para iniciar sua viagem. Na manhã seguinte, Bahman se levantou muito cedo e, após se despedir do irmão e da irmã, montou. No momento em que estava prestes a tocar seu cavalo com o chicote, um grito da princesa o impediu. — Oh, talvez no fim de tudo você nunca possa voltar. Acidentes podem acontecer numa viagem. Desista, por favor, eu imploro. Prefiro perder mil vezes o Pássaro Falante, a Árvore Cantora e a Água Dourada que deixar você ir de encontro ao perigo. — Minha querida irmã, — respondeu o príncipe — acidentes só acontecem com pessoas azaradas e eu espero não ser uma delas. Mas, como tudo é incerto, eu lhe prometo ter muito cuidado. Fique com esta faca — pediu ele, prendendo a bainha no cinto dela. — De vez em quando, tire-a e examine-a. Enquanto ela se mantiver luminosa e limpa como está agora, você saberá que eu estou vivo. Se a lâmina estiver manchada com sangue, será o sinal de que eu estou morto e você lamentará para mim. Dizendo assim, Príncipe Bahman disse-lhes adeus mais uma vez e galopou estrada a fora, montado em seu cavalo e levando todas as suas armas. O Velho Dervixe 140 Por vinte dias ele seguiu em frente sem se desviar para a direita nem para a esquerda, até se encontrar na fronteira da Pérsia com a Índia. Sentou-se sob uma árvore à beira do caminho e esperou, até ver um homem velho e horroroso com um bigode branco longo e uma barba que quase lhe chegava aos pés. Suas unhas não eram cortadas havia muito tempo e estavam enormes. Na cabeça usava um chapéu gigantesco, que lhe servia também de guarda-chuva. O Príncipe Bahman que, de acordo com as indicações da velha senhora, tinha estado desde o amanhecer esperando, reconheceu imediatamente o velho como sendo um dervixe, um religioso muçulmano. Assim que ele desmontou do cavalo, o jovem príncipe se curvou diante do homem santo, saudando-o: — Meu pai, possam seus dias ser longos na terra e possam todos os seus desejos ser realizados! O dervixe fez o que pôde para responder, mas o bigode dele era tão espesso que as palavras eram ininteligíveis. O príncipe percebeu o problema, apanhou um par de tesouras na bolsa de sua sela e pediu permissão para cortar alguns fios do bigode, pois ele tinha uma questão de grande importância para perguntar ao dervixe. O sinal de aprovação do dervixe indicou que aquilo o agradava. Quando tinham sido podados alguns bons centímetros da barba e do bigode, o príncipe notou que o homem santo não parecia assim tão velho. O dervixe sorriu aos elogios dele e lhe agradeceu o que ele tinha acabado de fazer. 141 — Deixe-me mostrar minha gratidão por tornar mais confortável a minha vida dizendo o que posso fazer por você — falou o dervixe. — Bom dervixe, — respondeu o Príncipe Bahman — venho de muito longe e procuro o Pássaro Falante, a Árvore Cantora e a Água Dourada. Eu sei que eles serão achados em algum lugar por estas partes, mas ignoro a exata localização. Diga-me, eu lhe peço, se você pode, para que eu não me perca em buscas inúteis. Enquanto falava, o príncipe observou uma mudança no semblante do dervixe, que esperou por algum tempo antes de responder. — Meu senhor, — disse ele afinal — eu sei qual é a estrada que me pede, mas sua generosidade e a amizade que recebi de você me fazem negar a mostrar-lhe qual é. — Mas por quê? — quis saber o príncipe — Que perigo pode haver lá? — Talvez mesmo o maior de todos os perigos — respondeu o dervixe. — Outros homens tão valentes quanto você trilharam esta estrada, após me fazerem a mesma pergunta. Eu fiz de tudo para demovê-los de seus propósitos, mas foi inútil. Nenhum deles escutou minhas palavras e nenhum deles voltou. Fique alerta e não siga em frente. — Eu sinceramente agradeço seu interesse por mim, — continuou o príncipe Bahman — mas não posso aceitar o conselho que me deu. Diga-me, porém, que perigos pode haver 142 nessa aventura que a coragem e uma boa espada não possam enfrentar? — Imagine se seus inimigos fossem invisíveis, como seria então? — argumentou o dervixe. — Nada me deterá — afirmou corajosamente o príncipe. — O tempo está passando, eu lhe peço que me mostre para onde devo ir. Quando o dervixe percebeu que o príncipe estava decidido a seguir em frente, tirou uma bola de uma bolsa que trazia a tiracolo e ofereceu-a ao príncipe. — Se deve ser assim, — disse ele, com um suspiro — leve isto e, quando montar seu cavalo, atire a bola a sua frente. Ela rolará até alcançar o pé de uma montanha e parará. Quando isso acontecer, você também vai parar. Lance a rédea no pescoço de seu cavalo sem qualquer medo de que ele fuja e desmonte. Em cada lado você verá vastos montes de enormes pedras negras e ouvirá uma multidão de vozes gritando insultos, mas não lhes preste atenção. E acima de tudo, previna-se de jamais se virar para trás. Se fizer isso, você se tornará uma pedra negra imediatamente como todo o resto. Na verdade, essas pedras são homens como você, que foram em busca da mesma resposta e falharam como eu temo que você também falhe. Se você consegue evitar esta armadilha e alcançar o topo da montanha, você achará o Pássaro Falante em uma gaiola esplêndida. Então poderá perguntar a ele onde você deve procurar a Árvore Cantora e a Água Dourada. Isso é tudo eu tenho para lhe dizer. Você sabe o que tem de fazer e o que evitar, mas se você é sábio 143 vai pensar melhor sobre isso e retornar imediatamente para o lugar de onde veio. O príncipe sorridente balançou a cabeça, agradeceu e montou seu cavalo, lançando a bola a sua frente. A bola rolou ao longo da estrada tão depressa que o Príncipe Bahman teve muita dificuldade para acompanhá-la, mas não desistiu um só instante, até que o pé da montanha foi alcançado. Ela parou subitamente. O príncipe desmontou e atirou a rédea no pescoço do cavalo. Parou por instantes para olhar em volta e ver a massa de pedras pretas nos dois lados da montanha. Em seguida começou a escalar resolutamente. Mal havia dado quatro passos, quando ouviu o som de vozes ao redor dele, embora nenhuma outra criatura fosse avistada nos arredores. — Quem é o imbecil? — gritou alguém. — Pare imediatamente! — Vamos matá-lo! — gritaram outras vozes. — Socorro! Ajuda! Ladrões! Assassinos! Ajude! — ouviu ele claramente alguém dizendo. — Deixa ele! — zombou uma voz. — É um jovem tão bonito, tenho certeza de que a gaiola e o pássaro estão reservados a ele. No início, o príncipe não deu nenhuma atenção a todo aquele clamor, mas as vozes continuaram gritando tanto e o insultando, como se seu silêncio mais e mais as irritasse. Novas vozes surgiam e o clamor aumentava cada vez mais furioso e ameaçador. Agora já não vinham dos lados, mas surgiam a sua frente e atrás dele. Depois de algum tempo, ele ficou 144 desnorteado, seus joelhos começaram a tremer e, achando que iria cair, esqueceu o conselho do dervixe. Ele se voltou para enfrentar a queda da montanha e, no mesmo momento, se transformou numa pedra negra. O Rosário de Cem Pérolas Como era de se esperar, o Príncipe Perviz e sua irmã ficaram todo esse tempo na maior ansiedade, consultando a faca mágica, não uma vez, mas muitas vezes por dia. Nesse período, a lâmina permaneceu brilhante e imaculada, mas na hora fatal em que o Príncipe Bahman e seu cavalo foram transformados em pedras negras, grandes gotas de sangue surgiram na superfície. — Ah, meu irmão amado! — gritou de horror a princesa, atirando longe a faca. — Eu nunca mais o verei novamente e fui eu quem o matou. Tola fui eu em ouvir a voz sedutora daquela mulher. Provavelmente ela não falava a verdade. O que são o Pássaro Falante, a Árvore Cantora e a Água Dourada em comparação com você? Mas, desgraçadamente, eu ainda almejo aquelas riquezas! O pesar do Príncipe Perviz pela perda do irmão não era menor que o da Princesa Parizade, mas ele não perdeu tempo em lamentações inúteis. — Minha irmã, por que a velha iria enganar você sobre aqueles tesouros? O que teria ela a ganhar com isso? Não, não, nosso irmão deve ter conhecido a morte por algum acidente ou por falta de precaução. Amanhã mesmo partirei na mesma busca. 145 Terrificada com o pensamento de que ela poderia perder seu último irmão, a princesa pediu para que ele desistisse de seu intento, mas ele permaneceu firme em sua decisão. Antes de partir, porém, ele deu a ela um rosário de orações de cem pérolas, dizendo: — Quando eu estiver ausente, conte-as diariamente. Se você sentir que as contas estão fixas de forma que uma não deslize depois da outra, você saberá que tive o mesmo destino de nosso irmão. Mas vamos esperar melhor sorte, minha querida irmã. Então ele partiu e no vigésimo dia de sua jornada, ele se encontrou com o dervixe no mesmo local que o Príncipe Bahman o tinha conhecido e começou a questionar sobre o lugar onde o Pássaro Falante, a Árvore Cantora e a Água Dourada seriam achadas. Como no caso de seu irmão, o dervixe tentou dissuadilo de seu projeto e até mesmo lhe falou que só faziam algumas semanas desde que um jovem muito parecido com ele tinha passado por ali, mas jamais voltara. — Santo dervixe, — respondeu o príncipe — era meu irmão mais velho que agora está morto, mas não sei como ele morreu. — Ele foi transformado em uma pedra preta — respondeu o dervixe — como todos os outros antes dele. Você fatalmente será mais um, se não seguir fielmente minhas instruções. Então ele instruiu o príncipe como ele deveria se cuidar e não olhar para trás de forma alguma quando surgissem as vozes. Depois lhe deu uma bola de sua bolsa e se despediu dele. 146 Quando o Príncipe Perviz alcançou o pé da montanha, saltou do cavalo e parou por um momento para recordar as instruções que o dervixe tinha dado. Então começou a escalar corajosamente, mas mal havia dado cinco ou seis passos, foi surpreendido pela voz de um homem perto da orelha dele, que exclamou: — Pare, precipitado, e me deixe castigar sua audácia! Esta afronta o fez esquecer completamente o conselho do dervixe. Ele puxou a espada e se virou para se vingar, mas antes que tivesse percebido que não havia ninguém lá, ele e seu cavalo foram transformados em duas pedras pretas. Não passava uma manhã, desde que o Príncipe Perviz tinha partido, sem que a Princesa Parizade manuseasse as contas. À noite, ela dormia com ele ao redor do pescoço de forma que assim que despertasse podia verificar se o seu irmão estava em segurança. Estava em pleno ato de mover as contas pelos dedos, no exato momento em que o príncipe tombou vítima de sua própria impaciência. O coração da jovem bateu doloridamente quando a pérola seguinte ficou imóvel em seu lugar. Ela soube, então, que seu último irmão estava morto. Após meditar por todo o dia, lamentando a morte de mais um irmão, a princesa tomou uma decisão e, na manhã seguinte, disfarçada como homem, partiu para sua busca. Como tinha sido criada acostumada a montar desde sua infância, pôde viajar diariamente como seus irmãos tinham feito. Como eles, no vigésimo dia chegou ao lugar, encontrando o dervixe sentando sob a árvore. 147 — Bom dervixe, — disse ela educadamente — você me permite descansar com você para alguns momentos. E talvez seja tão amável que me fale se alguma vez ouviu falar de um Pássaro Falante, de uma Árvore Cantora e de uma Água Dourada. Saberia, por acaso, onde poderiam ser encontrados? — Senhora, — respondeu o dervixe — sua voz a traiu, apesar das roupas de homem. Ficarei orgulhoso se puder lhe servir de alguma forma. Mas posso perguntar o propósito de sua pergunta? — Bom dervixe, — respondeu a princesa — eu ouvi a descrição dessas maravilhas e não descansarei até possuí-las. — Senhora, com certeza foi uma descrição das mais bonitas, mas você parece ignorar todas as dificuldades senão já teria desistido. Desista, por favor, eu lhe peço, e retorne para sua casa. Não me peça que a ajude a rumar para a morte certa. — Pai santo, — respondeu a princesa — eu venho de muito longe e cairia em desespero se retrocedesse sem ter atingido meu objetivo. Você falou de dificuldades. Conte-me quais são para que eu saiba se posso superá-las ou se estão além de minhas forças. Assim o dervixe repetiu suas orientações, enfatizando firmemente sobre o clamor das vozes, os horrores das pedras negras em que se transformaram os homens e as dificuldades de escalar a montanha. Mostrou como ter sucesso se nunca olhasse para trás até que apanhasse a gaiola. — Até onde eu posso ver, — disse a princesa — a primeira coisa é não prestar atenção ao tumulto das vozes que me 148 perseguirão até alcançar a gaiola e nunca olhar para trás. Sobre isto, penso ter bastante autocontrole para olhar diretamente a minha frente, mas, como é possível que eu possa ficar assustada pelas vozes como os homens antes de mim o foram, eu tamparei minhas orelhas com algodão, de forma que, mesmo que eles façam o maior dos alaridos, eu nada ouça. — Senhora! — exclamou o dervixe. — De todos os que me perguntaram como chegar ao alto da montanha, você é a primeira que se previne, pensando numa forma de escapar do perigo! É possível que você possa ter sucesso, mas, mesmo assim, tenha em mente sempre que o risco é grande. — Meu bom dervixe, — acrescentou a princesa — eu sinto que terei sucesso e só me resta perguntar o modo como chegar lá. Então o dervixe viu que era inútil dizer qualquer outra coisa e lhe deu a bola que ela arremessou a sua frente. A primeira coisa que a princesa fez em chegar ao pé da montanha foi tapar os ouvidos com algodão. Assim que decidiu qual a melhor maneira de escalar a montanha, começou sua ascensão. Apesar do algodão, um pouco do eco das vozes chegava até seus ouvidos, mas não era suficientemente alto para incomodá-la. Elas cresceram mais e mais, insultando-a o mais alto que podiam, mas princesa ria e continuava sua escalada, dizendo que jamais deixaria que algumas palavras ásperas se pusessem entre ela e sua meta. 149 O Pássaro Falante Finalmente, ela percebeu a gaiola e o pássaro, cuja voz se uniu às vozes que ficavam para trás, ordenando: — Retorne, retorne! Não ouse se aproximar de mim. À vista do pássaro, a princesa acelerou seus passos e, sem se importar com o clamor que se tornara ensurdecedor, ela caminhou diretamente até a gaiola e, segurando-a, disse: — Agora, meu pássaro, eu o tenho e tomarei o maior cuidado para que não me escape. Assim que ela falou, retirou o algodão das orelhas, porque já não mais precisava disso. — Valente senhora, — falou o pássaro — não me culpe por ter me juntado às vozes que gritavam, mas fiz isso para preservar minha liberdade. Embora limitado em uma gaiola, estava contente com meu destino, mas se devo me tornam um escravo, não poderia desejar como ama alguém mais nobre e constante. De agora em diante, eu a servirei doce e fielmente. Algum dia você me porá a prova, porque eu sei quem é você melhor do que si mesma. Enquanto isso, conte-me o que posso fazer por você e eu a obedecerei. — Pássaro! — respondeu a princesa, cheia de uma alegria que lhe parecia estranha quando pensava que o pássaro tinha custado as vidas de seus dois irmãos. — Pássaro, deixe-me primeiro lhe agradecer por sua boa vontade, depois me deixe perguntar onde encontrar a Água Dourada. 150 O pássaro descreveu o lugar, que não era distante. A princesa foi até lá e encheu um pequeno frasco prateado que tinha trazido para esse propósito. Ela retornou à gaiola e indagou: — Pássaro, ainda há outra coisa: onde poderei encontrar a Árvore Cantora? — Atrás de você, naquele bosque — respondeu o pássaro e a princesa caminhou naquela direção, procurando pelo som mais doce que já havia escutado, até encontrá-la. Só que a árvore era alta e forte e ela ficou desesperada, pensando em como levá-la consigo. — Você não precisa arrancá-la — disse o pássaro, quando ela retornou. — Tire apenas um galho e o plante em seu jardim. Ele criará raízes e crescerá até se tornar uma árvore magnífica. Quando a Princesa Parizade teve em suas mãos as três maravilhas prometidas pela velha senhora, disse ao pássaro: — Tudo isso não é o bastante. Por causa de vocês, meus irmãos se transformaram em pedras negras. Eu não posso distingui-los das outras pedras, mas você deve saber e pode me indicar. Eu imploro, diga-me onde eles estão, pois desejo leválos comigo. Por alguma razão que a princesa não soube, suas palavras pareceram desagradar o pássaro e ele não respondeu. A princesa esperou alguns momentos, depois retornou em tom severo. — Você se esqueceu de que disse que seria meu escravo para fazer minha vontade e também que sua vida está em meu poder? 151 — Não, eu não esqueci, — respondeu o pássaro — mas o que me pede é muito difícil. Porém, eu farei o melhor que puder. Se você olhar ao redor, verá um jarro aqui perto. Leve-o e, quanto descer a montanha, esparrame um pouco da água nele contida por sobre as pedras negras e logo achará seus irmãos. A Princesa Parizade levou o jarro junto com a gaiola, o ramo e o frasco, descendo a montanha. Foi parando em toda pedra negra e borrifando-a com a água do jarro. As pedras que ela ia molhando imediatamente se transformavam em um homem. Quando ela teve seus irmãos diante de si finalmente, foi tomada pela emoção. — O que houve com vocês? — soluçou ela. — Nós estávamos adormecidos — responderam eles. — Com certeza, mas sem mim o sono de vocês duraria até o dia do julgamento final. Já se esqueceram de que vieram aqui à procura do Pássaro Falante, da Árvore Cantora e da Água Dourada e encontraram as pedras negras ao longo da escalada? Olhem em volta e vejam se alguma delas ficou. Esses cavalheiros e também vocês e todos os seus cavalos foram transformados em pedras e eu os salvei, borrifando-os com a água deste jarro. Como eu não poderia voltar para casa sem você, embora eu tivesse conquistado os prêmios nos quais eu tinha fixado meu coração, eu forcei o Pássaro Falante a me contar como quebrar o feitiço. Ao ouvir essas palavras, os dois príncipes compreenderam que deviam suas vidas à irmã. Os cavaleiros que estavam ali também sentiam isso e declararam-se escravos dela, prontos para 152 realizar qualquer desejo seu. A princesa agradeceu a cortesia e explicou que desejava apenas a companhia de seus irmãos e que todos os outros estavam livres para voltar para suas casas. Terminando de dizer isso, a princesa montou seu cavalo. Recusando a oferta do Príncipe Bahman de levar a gaiola com o Pássaro Falante, ela lhe confiou o ramo da Árvore Cantora, enquanto o Príncipe Perviz ficou encarregado de levar o frasco que continha a Água Dourada. Então eles partiram, seguidos pelos cavaleiros que imploraram permissão para escoltá-los. Era intenção deles parar e contar suas aventuras ao dervixe, mas descobriram que ele estava morto, talvez pela idade avançada, talvez pelo fato de ter encerrado sua tarefa. Isso eles jamais saberiam. Seguiram seu caminho e o número deles foi diminuindo cada vez mais, pois os cavaleiros partiam quando se aproximavam de suas próprias casas. Finalmente, restaram apenas os irmãos, que chegaram aos portões da casa. A princesa levou a gaiola imediatamente para o jardim e tão logo o pássaro começou a cantar, rouxinóis, cotovias, tordos e todos os tipos de pássaros entrosaram suas vozes à dele em um coro maravilhoso. O galho da árvore foi plantado em um canto perto da casa e em poucos dias tinha crescido e se transformado numa enorme árvore. A Água Dourada foi vertida numa grande bacia de mármore especialmente preparada para isso. A água aumentou, borbulhou e então se atirou para cima alguns metros, formando uma linda fonte. A fama dessas maravilhas logo se esparramou e de todas as partes vinham pessoas para vê-las e admirá-las. 153 O Encontro com o Sultão Depois de alguns dias, o Príncipe Bahman e o Príncipe Perviz voltaram ao seu modo normal de vida, passando a maior parte do tempo caçando. Um dia, aconteceu que o Sultão de Pérsia também estava caçando na mesma região. Não desejando interferir com o esporte dele, os jovens, ao ouvir o ruído dos caçadores se aproximando, trataram de se retirar, mas acabaram tomando o mesmo caminho da comitiva do sultão. Repentinamente, eles se viram frente a frente com o monarca. Vendo quem era o cavaleiro que vinha à frente, os dois irmãos saltaram dos cavalos e se prostraram diante de seu rei. O sultão ficou curioso ao ver as faces deles e ordenou que se levantassem. Os príncipes se levantavam respeitosamente, mas totalmente à vontade. O sultão os olhou para alguns momentos sem nada dizer, depois lhes perguntou quem eram eles e onde viviam. — Senhor, — respondeu o Príncipe Bahman — nós somos os filhos do intendente anterior dos jardins de Sua Alteza e moramos em uma casa que ele construiu antes de sua morte, esperando até que ocasionalmente pudesse voltar a servir Sua Alteza. — Parecem apaixonados pelas caça — observou o sultão. — Senhor, — disse o Príncipe Bahman — é nosso exercício habitual e uma atividade que não deveria ser negligenciada por nenhum homem que espera seguir os costumes antigos do reino e manejar armas. 154 O Sultão ficou encantado com essa observação e disse imediatamente: — Nesse caso, terei grande prazer em acompanhá-los. Venham, escolham que tipo de bestas gostariam de caçar. Os príncipes montaram seus cavalos e seguiram o sultão. Não tinham ido muito distante, quando viram vários animais selvagens aparecer. Imediatamente o Príncipe Bahman começou a perseguir um leão e Príncipe Perviz, um urso. Ambos usaram suas lanças com tal habilidade que, com arremessos certeiros a uma distância considerável, eles derrubaram o leão e o urso. Então o Príncipe Perviz procurou um leão e o Príncipe Bahman um urso e, em alguns minutos, perseguiram-nos e os mataram da mesma forma. Quando estavam se preparando para uma terceira arremetida, o sultão interferiu e enviou um dos funcionários dele para chamá-los. Disse-lhes sorrindo: — Se eu os deixar continuar, logo não restará nenhuma fera para ser caçada. Sua coragem e seus modos ganharam meu coração. Assim como eu, vocês não têm de se arriscar e avançar para o perigo. Estou convencido de que algum dia ou outro eu acharei utilidade para isso. Ele os convidou calorosamente a permanecer na sua comitiva, mas eles agradeceram a honra e imploraram suas desculpas, aceitando ser hóspede deles. O Sultão, que não estava acostumado a ter seus convites rejeitados, pediu que eles explicassem o motivo da recusa. O Príncipe Bahman explicou que eles não desejam deixar a irmã sozinha e que estavam 155 habituados a nada fazer, sem que todos os três fossem consultados. — Perguntem a ela, então, — disse o sultão — e amanhã, quando eu voltar a caçar aqui, venham me dar sua resposta. Os dois príncipes voltaram para casa, mas a aventura causou tão pálida impressão em seus espíritos que eles se esqueceram completamente de comentar o assunto com a irmã. No dia seguinte, quando foram caçar, encontraram o sultão no mesmo lugar e ele lhes indagou qual havia sido a opinião da irmã deles. Os jovens olharam um para o outro e ruborizaram. Finalmente, depois de um silêncio constrangedor, o Príncipe Bahman disse: — Majestade, nós temos que suplicar a clemência de Sua Alteza. Nem meu irmão nem eu nos lembramos de comentar o assunto com ela. — Então seguramente vocês não se esquecerão de fazer isso hoje e de me trazerem a resposta amanhã — falou o sultão. Porém, quando a mesma coisa aconteceu uma segunda vez, eles temerem que o sultão pudesse se enfurecer com o descuido deles. Mas ele relevou isso e, tirando três pequenas bolas de ouro de sua bolsa, entregou-as ao Príncipe Bahman, dizendo: — Coloque-as dentro de sua camisa e você não esquecerá pela terceira vez. Quando remover seu cinto, as bolas cairão e seu ruído o fará lembrar-se de meu pedido. Tudo aconteceu como o Sultão tinha previsto e os dois irmãos foram até o quarto da irmã, no momento em que ela se 156 preparava para dormir. Eles contaram tudo que havia acontecido. A Princesa Parizade ficou muito preocupada com as notícias: — Seu encontro com o Sultão foi uma honraria muito grande para vocês — disse ela — e irá, ouso dizer, ser muito proveitosa para vocês, mesmo me colocando numa posição incômoda. Importo-me muito com vocês, mas sei que resistiram aos pedidos do sultão por minha causa. Eu lhes sou muito grata por isso, mas os reis não gostam de ter seus pedidos recusados e, com o tempo, poderia ter rancor de vocês e isso me faria muito infeliz. Consultem o Pássaro Falante, que é sábio e enxerga longe, e vamos ver o que ele nos diz. Assim, o pássaro foi chamado e o caso apresentado a ele. — Os príncipes não devem, em hipótese alguma, recusar a proposta do Sultão — aconselhou ele — e até mesmo devem convidá-lo para vir até esta casa. — Mas, pássaro, — objetou a princesa — você sabe como afetuosamente nós nos amamos. Tudo isso não acabará deteriorando a nossa amizade? — Não! — respondeu o pássaro. — Vai torná-los mais íntimos. — Então o sultão terá que me ver — disse a princesa. O pássaro respondeu que era necessário que ele a visse e a conhecesse e que tudo se tornaria melhor ainda. Assim, na manhã seguinte, quando o Sultão inquiriu se eles tinham falado com a irmã e que resposta ela lhes tinha dado, o Príncipe Bahman respondeu que eles estavam prontos para acatar o 157 convite de Sua Alteza e que a irmã os havia reprovado pela hesitação deles. O Sultão recebeu as explicações com grande generosidade e lhes falou que ele estava seguro de que os jovens lhe seriam fiéis e prometeu mantê-los a seu lado pelo resto de seus dias, para aflição do grão-vizir e do resto da corte. Quando o séquito entrou pelos portões da capital, os olhos das pessoas que se aglomeraram nas ruas estavam fixos nos dois jovens, estranhos para todos. — Oh, quem dera que o sultão tivesse tido filhos assim! — murmuraram. — Eles parecem tão distintos e têm a mesma idade que os filhos dele teriam. O Sultão ordenou que aposentos esplêndidos fossem preparados para os dois irmãos, depois insistiu para que eles se sentassem à mesa com ele. Durante o jantar, ele conduziu a conversa sobre vários assuntos científicos e também para a história, da qual era particularmente aficionado. Mas, qualquer que fosse o tópico que discutissem, percebeu que os jovens falavam apropriadamente e que todos se calavam para ouvi-los. “Se eles fossem meus próprios filhos”, pensou ele, “não poderiam ser mais ou melhor educados!” Em voz alta, elogiou o aprendizado deles e sua prova de conhecimento. Ao término da noite, os príncipes se prostraram mais uma vez diante do trono e pediram licença para voltar para casa. Depois, encorajados pelas palavras corteses de despedida articuladas pelo sultão, o Príncipe Bahman ousou dizer: 158 — Senhor, podemos ousar ter a liberdade de perguntar se Sua Alteza nos daria e a nossa irmã a honra de descansar em nossa casa na próxima vez em que for caçar naquela região? — Com o máximo prazer! — respondeu o Sultão. — E como estou impaciente para conhecer sua sábia irmã, podem me esperar para depois de amanhã. Pepinos Com Pérolas A princesa estava muito ansiosa e sabia que tinha de receber o sultão de modo apropriado. Como não tinha nenhuma experiência nos costumes da corte, recorreu ao Pássaro Falante e implorou que ele a aconselhasse sobre que pratos deveriam ser servidos. — Minha querida ama, — respondeu o pássaro — seus cozinheiros são muito bons e você pode deixar tudo por conta deles, exceto ter o cuidado de mandar preparar uma receita de pepinos recheados com molho de pérolas, servida com o primeiro prato. — Pepinos recheados com pérolas! — exclamou a princesa. — Por que, pássaro? Quem já ouviu falar de tal prato? O sultão espera um jantar onde ele possa comer e não um onde ele só possa admirar a comida. Além disso, se eu fosse usar todas as pérolas que possuo, elas não seriam o bastante. — Ama, faça o que lhe digo e tudo sairá bem. Quanto às pérolas, amanhã ao amanhecer, vá até o jardim e cave ao pé da primeira árvore à direita. Ali achará tantas quantas você precisar. 159 A princesa teve fé no pássaro que sempre provara estar certo em seus conselhos. Na manhã seguinte, seguida por um jardineiro, ela seguiu as instruções do pássaro e mandou o empregado cavar ao pé da árvore indicada. Após cavar algum tempo, ele retirou dali uma caixa dourada, cuja tampa estava presa por alguns fechos. Estes estavam tão estragados que facilmente se abriram. A caixa estava cheia de pérolas não muito grandes, mas de bom formato e perfeitas na cor. Deixando o jardineiro enchendo o buraco que havia feito sob a árvore, a princesa levou a caixa para casa. Os dois príncipes a tinham visto sair e estavam ansiosos para saber o que a fizera se levantar tão cedo. Cheios de curiosidade, eles se levantaram, vestiram-se e foram ao encontro da irmã que retornava com a caixa. — O que você andou fazendo? — perguntaram eles. — Os criados estão comentando que o jardineiro encontrou um tesouro. — Pelo contrário, — respondeu a princesa — fui eu que achei um — acrescentou, abrindo a caixa e lhes mostrando as pérolas. Então, ela lhes contou que havia consultado o pássaro a respeito dos costumes da corte e em como ele a aconselhara e ainda a ajudara a encontrar as pérolas. Os três juntos tentaram adivinhar o significado daquela sugestão tão singular, mas foram afinal forçados a admitir que a explicação estava além deles, mas que deveriam obedecer cegamente. Então, a primeira coisa que a princesa fez em seguida foi mandar cozinheiro-chefe preparar a refeição para o sultão. Quando ela terminou, acrescentou a seguinte ordem: 160 — Além dos pratos que eu mencionei, há um que você tem que preparar expressamente para o sultão e no qual pessoa nenhuma poderá tocar, além de você. Consiste em um pepino recheado e o recheio será feito com estas pérolas. O cozinheiro-chefe, que nunca em sua vida e com toda a sua experiência ouvira falar de tal prato, recuou assombrado. — Você pensa que eu estou louca? — indagou a princesa, ao perceber o que se passava na mente dele. — Sei muito bem o que estou fazendo. Vá e dê o melhor de si. Leve as pérolas com você. Naquela mesma manhã, os príncipes foram para a floresta e logo se juntaram ao sultão. A caçada começou e continuou até o meio-dia, quando o calor ficou tão forte que foram obrigados a parar. Então, como haviam combinado, eles rumaram para a casa dos irmãos. Enquanto o Príncipe Bahman permanecia ao lado do sultão, o Príncipe Perviz se adiantou para avisar sua irmã. No momento em que Sua Alteza entrou no pátio, a princesa se atirou aos pés dele, mas ele se curvou e a ergueu, contemplando-a por algum tempo, cativado pela graça e pela beleza dela e também por aquele indefinível ar de realeza que parecia emanar do corpo daquela menina do campo. “Eles são tão dignos, tanto um como outro, e tão unidos”, pensou ele, “que não fico surpreso pelo fato de os dois darem tanta importância às opiniões dela. Eu tenho que saber mais sobre eles.” Passado o constrangimento inicial, a princesa se recuperou e tratou de fazer seu discurso de boas vindas. 161 — Esta é só uma casa do campo, simples, senhor, — disse ela — adequada a pessoas que, como nós, apreciam a vida calma e a quietude. Não se compara com as grandes mansões da capital, muito menos, é claro, com o menor dos palácios do sultão. — Eu não posso concordar totalmente com você, — respondeu ele — pois o pouco que vi já me causou grande admiração. Reservarei meu julgamento para depois que você me mostrar toda a casa. A princesa conduziu o sultão ao quarto de hóspede e, após examinar tudo cuidadosamente, ele disse: — Você chama esta uma casa rural simples? Se toda casa rural fosse assim, as cidades seriam logo abandonadas. Eu entendo agora porque seus irmãos evitam deixá-la. Mas vamos agora conhecer o jardim. Estou certo que deve ser ainda mais bonito que os aposentos desta casa maravilhosa. Uma porta se abriu diretamente para o jardim e a primeira coisa que os olhos do sultão viram foi a Água Dourada. — Que água de cor tão adorável! — exclamou ele. — Onde é a fonte e como você a faz subir tão alto? Jamais vi qualquer coisa como isto em todo a minha vida — acrescentou, examinando de perto. Quando satisfez sua curiosidade, a princesa o levou até a Árvore Cantora. Próximo dela, o sultão foi surpreendido pelo som de estranhas vozes, mas não podia ver nada. — Onde estão os músicos escondidos? — ele quis saber, dirigindo-se à princesa. — Estão no ar, debaixo da terra? 162 Seguramente os donos de vozes tão encantadoras não precisam se esconder! — Senhor, — informou ela — as vozes vêm da árvore que vê a sua frente. Se caminhar um pouco mais até ela, verá que as vozes ficam mais claras. O Sultão fez como ela lhe falou e, absorto e deliciado, ficou algum tempo em silêncio, ouvindo. — Diga-me, senhora, — disse ele, afinal — como uma árvore tão maravilhosa veio parar em jardim? Deve ter vindo de muito longe, pois estudioso como sou a respeito de todo tipo de curiosidade, eu já teria ouvido falar dela. Diga-me, como a chama? — O único nome que ela tem, senhor, é a Árvore Cantora. Não é uma planta nativa de nosso país. Sua história está misturada com as da Água Dourada e do Pássaro Falante, que não viu ainda. Se Sua Alteza assim o desejar, eu lhe contarei a história inteira, quando se recuperar de sua fadiga. — Realmente, senhora, — devolveu ele — você me mostrou tantas maravilhas que é impossível sentir qualquer fadiga. Deixe-me ir olhar mais uma vez a Água Dourada, depois quero conhecer o Pássaro Falante. O sultão não conseguia se afastar da Água Dourada, que o instigava cada vez mais. — Você diz que esta água não vem de qualquer fonte nem é trazida através de tubos? Tudo que eu sei que nem ela nem a Árvore Cantora são deste país. 163 — É como diz, senhor — respondeu a princesa. — Se examinar a bacia, verá que é feita em uma peça única, sem ligação com tubos. Ficará ainda mais surpreso ao saber que eu apenas esvaziei um pequeno frasco na bacia e o conteúdo dela aumentou na quantidade que vê agora. — Bem, eu voltarei a examinar isso outro dia. Leve-me agora ao Pássaro Falante — pediu ele. Ao se aproximar da casa, o Sultão notou uma quantidade enorme de pássaros cujas vozes enchiam o ar. Quis saber logo por que eram tão numerosos ali do que em qualquer outra parte do jardim. — Senhor, vê aquela gaiola numa das janelas do salão? Ali está o Pássaro Falante cuja voz pode ouvir acima de todas as outras, mesmo acima da voz do rouxinol. Os pássaros se aglomeram neste lugar para somar suas vozes à dele, num coro único e maravilhoso. O Sultão caminhou até a janela, mas o pássaro não lhe deu atenção e continuou sua canção como antes. — Meu escravo, — disse a princesa — este é o Sultão. Faça-lhe um belo discurso. O pássaro parou de cantar imediatamente e todos os outros pássaros também pararam. — Seja bem vindo, ó sultão! — disse o Pássaro Falante. — Eu lhe desejo vida longa e toda prosperidade. — Eu agradeço você, bom pássaro — respondeu o sultão, sentando-se para comer a uma mesa que fora arrumada perto 164 daquela janela. — Eu estou encantado em conhecê-lo, Rei dos Pássaros. O Sultão, notando que seu prato favorito de pepino fora servido diante dele, preparou-se para comê-lo, mas ficou pasmo ao descobrir que estava recheado de pérolas. — Uma novidade, realmente! — exclamou ele. — Mas eu não entendo a razão disto. Uma pessoa não pode comer pérolas! — Senhor — disse o pássaro, antes que os príncipes ou a princesa pudessem falar. — Seguramente não pode ficar surpreendido assim diante de um pepino recheado de pérolas, quando acreditou sem nenhuma dificuldade que a Sultana tinha, em vez de crianças, dado à luz um cachorro, um gato e um tronco de madeira. — Eu acreditei, — respondeu o Sultão — porque as mulheres que a atenderam assim me falaram. — Essas mulheres eram as irmãs da Sultana, consumidas pelo ciúme, pela honra concedida à irmã mais nova. Para se vingar, inventaram essa farsa. Interrogue-as duramente e elas confessarão o crime. Estes são seus filhos, salvos da morte pelo intendente de seus jardins e criados por ele como se fossem seus próprios filhos. Como um relâmpago, a verdade veio à mente do Sultão. — Pássaro, — gritou o sultão, arrependido — meu coração me fala que o que você diz é verdade. Meus filhos, — acrescentou ele — abracem-me e abracem-se, não só como irmãos e irmã, mas como tendo em vocês o sangue real da Pérsia que não poderia fluir em veias mais nobres. 165 Quando os primeiros momentos de emoção terminaram, o sultão, tendo terminado sua refeição, virou-se para seus filhos e disse: — Hoje vocês me receberam como seu pai. Amanhã eu vou trazer a sultana. Estejam prontos para receber sua verdadeira mãe. O Sultão montou seu cavalo e galopou rapidamente para a capital. Sem demora alguma, enviou seu grão-vizir, ordenandolhe que interrogasse as irmãs da sultana. Isso foi feito naquele mesmo dia. As duas pérfidas irmãs foram confrontadas e interrogadas e, quando a culpa ficou provada, foram executadas. O sultão não esperou para ver se suas ordens eram cumpridas. Saiu imediatamente e caminhou até a grande mesquita, libertando pessoalmente a sultana da prisão estreita onde ela tinha passado tantos anos. — Senhora! — soluçou ele, chorando e abraçando-a com lágrimas de arrependimento nos olhos. — Eu vim pedir seu perdão pela injustiça que cometi e consertar meu erro na medida do possível. Eu já comecei por punir as responsáveis por esse crime abominável e espero que você me perdoe, quando eu a apresentar a nossos filhos. Eles são as criaturas mais encantadoras do mundo inteiro. Venha e terá de volta sua posição e toda a honra que lhe é devida. Essa promessa foi dita na presença de uma enorme multidão que tinha se juntado, unindo pessoas de todas as partes da cidade, tão logo a notícia do que estava acontecendo fora passada de boca a boca. No dia seguinte bem cedo, o sultão e a 166 sultana vestidos com suas roupas reais e seguidos por toda a corte partiram para a casa de campo onde moravam seus filhos. Ali, o sultão os apresentou à sultana, um por um, e durante algum tempo nada mais fizeram que se abraçar, chorar e murmurar palavras de ternura. Depois eles comeram uma refeição magnífica que havia sido preparada para eles e, em seguida, foram se refrescar no jardim, onde o sultão mostrou a sua esposa a Água Dourada e a Árvore Cantora. Com o Pássaro Falante, ela havia travado relações durante o almoço. À noite, eles montaram e viajaram juntos para a capital, cada príncipe de um lado do pai e a princesa ao lado de sua mãe. Muito antes que alcançassem os portões, as ruas estavam forradas de pessoas à espera deles. O ar se encheu de gritos de boas vindas que se misturavam às canções do Pássaro Falante, sentado em sua gaiola, no colo da princesa, seguido por todos os outros pássaros do jardim. Dessa maneira, eles voltaram para o palácio do pai deles. Mais tarde a princesa descobriria que o Pássaro Falante era, na verdade, um príncipe que havia sido encantado por uma terrível madrasta. Mas essa é outra história... 167