Trecho do livro "A colaboração – o pacto entre Hollywood e o nazismo", de Ben Urwand (editora Leya) Em meados de marco ̧ de 1933, comecaram ̧ a circular boatos de que todos os judeus que trabalhavam com cinema na Alemanha estavam prestes a perder o emprego. Como era de esperar, em 29 de marco ̧ a Ufa despediu varios ́ de seus melhores roteiristas, diretores, atores e pessoal tecnico ́ especializado. Na semana seguinte, um pequeno grupo dentro do Partido Nazista – a Associacao ̧ ̃ dos Vendedores – enviou uma carta as̀ companhias americanas de cinema na Alemanha insistindo que todos os empregados judeus fossem dispensados. A carta causou um consideravel ́ panico, ̂ porque as companhias americanas empregavam nao ̃ só uma grande quantidade de judeus, mas tambem ́ um grande numero ́ de nazistas, e estes comecaram ̧ a aterrorizar os judeus. Nessa situacao ̧ ̃ caotica, ́ os diretores das companhias decidiram dar uma licenca ̧ temporaria ́ a todos os judeus para sua “preservacao ̧ ̃ mental”. Em seguida, organizacoes ̧ ̃ trabalhistas nazistas comecaram ̧ a se formar dentro das companhias individuais, e um porta‐voz da organizacao ̧ ̃ na Paramount anunciou que os empregados judeus nao ̃ poderiam voltar. Canty decidiu reunir‐se com seus contatos do Ministerio ́ da Propaganda para tratar da situacao. ̧ ̃ Explicou o que estava acontecendo e eles lhe disseram para manter os empregados judeus fora do local de trabalho enquanto eles avaliavam a posicao ̧ ̃ da Associacao ̧ ̃ dos Vendedores. Canty quis seguir essa orientacao, ̧ ̃ mas os executivos americanos nao ̃ e, em 20 de abril, os empregados judeus voltaram ao trabalho. A retomada das atividades durou exatamente um dia. O chefe da Associacao ̧ ̃ dos Vendedores ordenou aos exibidores que nao ̃ comprassem filmes de vendedores judeus e o Ministerio ́ da Propaganda “ficou irritado” com os executivos desobedientes. Por volta dessa epoca, ́ Max Friedland – executivo local da Universal Pictures e sobrinho predileto de Carl Laemmle – foi tirado da cama em Laupheim e levado à prisao. ̃ Ficou lá por cinco horas sem saber qual era a acusacao. ̧ ̃ O executivo da Warner Brothers, Phil Kauffman, teve seu carro roubado e levou uma surra de alguns capangas. O executivo da Columbia Pictures seria o proximo ́ da lista, entao ̃ Canty arrumou‐lhe documentos de identidade e aconselhou‐o a sair da Alemanha. O executivo da MGM, Frits Strengholt, tambem ́ estava se aprontando para ir embora, mas Canty disse as̀ autoridades que ele era gentio e ele teve permissao ̃ para ficar. Apos ́ essa demonstracao ̧ ̃ de forca, ̧ os executivos americanos que restaram demitiram seus vendedores judeus, enquanto Canty retomava suas discussoes ̃ com os varios ́ departamentos do governo alemao. ̃ Quando o problema comecou, ̧ Canty havia previsto o resultado num relatorio ́ ao Departamento de Comercio. ́ “Suponho que alguns reajustes terao ̃ que ser feitos no pessoal de nossas companhias com o passar do tempo, já que elas estao ̃ indelevelmente marcadas como companhias judias”, ele havia escrito. “Mas nao ̃ quero dizer com isso que estejamos obrigados a nos livrar de todos os empregados judeus. Quase sinto que iremos acabar demitindo os dispensaveis ́ e mantendo os indispensaveis, ́ se nao ̃ houver nada especificamente contra esses ultimos; ́ mas nessa fase nossos executivos de companhias precisarao ̃ ter a cabeca ̧ fria para poder lidar com as inumeras ́ pequenas dificuldades.” A previsao ̃ de Canty revelou‐se absolutamente correta. Ele apresentou listas dos vendedores judeus mais desejaveis ́ ao Ministerio ́ do Exterior e conseguiu obter isencoes ̧ ̃ para eles. Os demais tiveram que ir embora. No inicio ́ de maio, os estudios ́ de Hollywood anunciaram sua decisao. ̃ “As unidades de cinema americanas cedem aos nazistas na questao ̃ racial.” Como relatou o Variety, “a atitude americana a respeito do assunto é que as companhias americanas nao ̃ podem se dar ao luxo de perder o mercado alemao ̃ no presente momento, sejam quais forem os inconvenientes das mudancas ̧ de pessoal”. É claro que a concessao ̃ afetou ambas as partes envolvidas. Ao mes‐ mo tempo em que os estudios ́ foram obrigados a despedir varios ́ de seus vendedores judeus, os nazistas concordaram em oferecer protecao ̧ ̃ aos vendedores que restaram. Canty foi “alertado claramente de que se hou‐ vesse alguma resistencia ̂ da parte dos exibidores em relacao ̧ ̃ as̀ ordens do corpo nazista, [ele] deveria simplesmente trazer os casos individuais à atencao ̧ ̃ do Ministerio, ́ onde seriam tomadas as medidas policiais para fazer cumprir as ordens”. Durante os treŝ anos seguintes, vendedores judeus distribuiram ́ filmes americanos na Alemanha. Apenas em 1o de janeiro de 1936 os nazistas aprovaram uma nova lei proibindo todos os judeus de trabalharem no negocio ́ de distribuicao ̧ ̃ de filmes. A razao ̃ dessa concessao ̃ de 1933 era simples. Teria havido um grande declinio ́ na producao ̧ ̃ alemã de cinema se os nazistas tivessem demitido todos os judeus da Ufa, e os filmes americanos eram extremamente necessarios ́ para compensar a diferenca ̧ nos cinemas. Os estudios ́ de Hollywood tinham um significativo poder de barganha nessa situacao ̧ ̃ e uma de suas exigencias ̂ foi manter metade de seu pessoal judeu. Eles tambem ́ conseguiram obter condicoes ̧ ̃ bem melhores para a venda de seus filmes na Alemanha: a primeira cota sob o regime nazista continha menos restricoes ̧ ̃ do que o usual e foi mantida por treŝ anos em vez de um. Os estudios ́ venderam um total de 65 filmes na Alemanha em 1933, um aumento em relacao ̧ ̃ aos 54 de 1932. “Em suma”, relatou Canty, “tinhamos ́ pouco motivo de queixa”. Ainda assim, o expurgo de vendedores das companhias americanas que operavam na Alemanha introduziu um novo elemento no relacionamento entre os dois grupos. Os nazistas, em total coerencia ̂ com suas politicas ́ antissemitas, insistiam que todos os que trabalham com cultura na Alemanha fossem de descendencia ̂ ariana. Isso teria passado totalmente despercebido na historia ́ do Terceiro Reich se nao ̃ fosse um unico ́ fato: os fundadores dos estudios ́ de Hollywood, que estavam fazendo negocios ́ com os nazistas, eram em sua maioria judeus. Como numerosos comentaristas apontaram, os homens que criaram o sistema de estudios ́ em Los Angeles eram imigrantes judeus descendentes do Leste europeu. Entre eles estavam William Fox, fundador da Fox; Louis B. Mayer, diretor da MGM; Adolph Zukor, diretor da Paramount; Harry Cohn, diretor da Columbia Pictures; Carl Laemmle, diretor da Universal Pictures; e Jack e Harry Warner, que dirigiram a Warner Brothers. “De 85 nomes envolvidos em producao”, ̧ ̃ segundo observou um estudo da decada ́ de 1930, “53 eram judeus”. Por que esses poderosos executivos (com excecao ̧ ̃ de William Fox, que perdeu o controle da Fox em 1930) escolheram fazer negocios ́ com o regime mais antissemita da historia? ́ A escusa de ignorancia ̂ pode ser descartada de cara. Um dos mitos mais persistentes a respeito da as‐ censao ̃ e queda do Terceiro Reich é que o mundo exterior nao ̃ tinha co‐ nhecimento da extensao ̃ da brutalidade nazista. Na verdade, os eventos na Alemanha sempre foram relatados nos jornais americanos, embora nao ̃ necessariamente na primeira pagina. ́ Os executivos de Hollywood sabiam exatamente o que estava acontecendo na Alemanha, nao ̃ só porque haviam sido obrigados a demitir seus vendedores judeus, mas tambem ́ porque a perseguicao ̧ ̃ aos judeus era de conhecimento geral na epoca. ́ As acoes ̧ ̃ dos executivos de Hollywood parecem especialmente problematicas ́ quando comparadas aos primeiros esforcos ̧ da maior organizacao ̧ ̃ judaica dos Estados Unidos, o Congresso Judaico Americano. Em 27 de marco ̧ de 1933, exatamente quando as companhias americanas estavam cooperando com os nazistas na questao ̃ dos vendedores, essa organizacao ̧ ̃ promoveu uma manifestacao ̧ ̃ no Madison Square Garden para protestar contra o tratamento dos judeus na Alemanha. O presidente honorario ́ do Congresso Judaico Americano, o rabino Stephen S. Wise, anunciou o motivo da manifestacao ̧ ̃ em termos inequivocos: ́ “Já passou a hora de se ter precaucao ̧ ̃ e prudencia... ̂ O que está acontecendo na Alemanha hoje pode acontecer amanhã em qualquer outro pais ́ da Terra a nao ̃ ser que seja desafiado e repreendido. Nao ̃ sao ̃ os judeus alemaes ̃ que estao ̃ sendo atacados. Sao ̃ os judeus. Devemos protestar. Mesmo que isso nao ̃ adiante, pelo menos teremos protestado”. Essas foram palavras corajosas, e o proximo ́ movimento do Congresso Judaico Americano foi convocar um boicote aos produtos alemaes. ̃ A ideia era controvertida na epoca: ́ dois outros importantes grupos ju‐ daicos – o Comitê Judaico Americano e a B’nai B’rith – recusaram‐se terminantemente a apoiar o boicote. E na decada ́ de 1930, eram esses dois grupos que desfrutavam dos lacos ̧ mais estreitos com os estudios ́ americanos. Logo apos ́ a manifestacao ̧ ̃ no Madison Square Garden, os estudios ́ ignoraram a ideia do boicote. Depois, com a ajuda da Liga Antidifamacao ̧ ̃ e da B’nai B’rith, os estudios ́ formularam uma ultima ́ politica ́ que afetou nao ̃ só suas relacoes ̧ ̃ com os nazistas, mas com a cultura americana em geral.