PAULO FREIRE : UMA CONTRIBUÇAO SEMPRE ATUAL Durante muitos anos tive a sorte de partilhar com Paulo sonhos, projetos e convicções. Estou cada vez mais convencida de que o legado dele, juntamente com às contribuições de outras pessoas, educadores e pensadores, que o inspiravam e dele se inspiraram, é fundamental para nutrir o nosso difícil e sempre atual processo de humanização. Para as novas gerações me parece absolutamente necessário retrabalhar o essencial de sua mensagem. Hoje, ademais, essa coincide com muitas das novas formas de perceber a articulação interdisciplinaria entre os varios campos do conhecimento cientifico do ser humano e do mundo e a variedade de formas para o acesso ao conhecimento produzido pela pratica . Junto com outros pensadores e confrontando diferentes práticas educativas e de formação, essa mensagem constitui uma fonte de inspiração para iniciar ou reformular programas de educação e de formação ao largo da vida. Queria, lembrando de Paulo, evocar ao mesmo tempo a contribuição de muitas e muitos companheiros que, através de suas práticas e iniciativas educativas no meio rural1, participaram da obra de Paulo que se iniciou nestes anos de profunda criatividade que marcaram a história do povo brasileiro antes do golpe militar de 1964. Sempre me parece importante situar as contribuições das pessoas no processo de uma historia que é coletiva. Como diz o próprio Paulo Freire falando do Movimento dos Sem Terra (MST), « ..não começou agora nem há dez ou quinze, ou vinte anos. Suas raízes mais remotas se acham na rebeldia dos quilombos e, mais recentemente, na bravura de seus companheiros das Ligas Camponeses que ha quarenta anos foram esmagados pelas mesmas forças retrogradas do imobilismo reacionário, colonial e perverso 2». É também importante cruzar as memórias de muitos para entender melhor como se constrói um pensamento crítico em um contexto histórico nutrido, ao mesmo tempo, pela esperança, pelo sonho e pela permanente reelaboração. Mais uma vez a dialética da vida fez com que Paulo, de cultura tão profundamente nordestina, chegasse a ser uma referência internacional, situação gerada, inicialmente, pela ditadura e pelo exílio. Descobriu o mundo sem jamais deixar de ser pernambucano e, tantas vezes durante o exílio, experimentou uma profunda saudade dos cheiros e gostos da sua terra e da natureza tropical. No livro « A sombra desta mangueira »3 ele comunica essa comunhão profunda com a natureza e as lembranças da sua infância. Insiste neste livro sobre a unidade entre o afetivo, o sentimento, a paixão e a razão no processo de conhecimento e de comunicação humana. No que se refere ao trabalho educativo no campo, ainda recentemente, uma companheira minha que trabalhou num programa educativo no meio rural, no México, lembrou da importância do livro « Extensão ou Comunicação? »4, inspirado na experiência de Paulo no Chile, nos anos 1969-70, o qual continua sendo editado e reeditado no México, por não perder nada de sua atualidade, servindo aindo hoje para pensar e atuar na relação educativa entre agrônomos, tecnicos e camponeses. 1 Ver Dorinha de Oliveira Porto e Iveline Lucena da Costa Lage : « CEPLAR historia de um sonho coletivo » ed., 1995. Conselho Estadual de Educaçao -SEC– Biblioteca Paraibana e : « MEB, uma historia de muitos » Cadernos de Educaçao Popular, n°10. NOVA, Editora VOZES, 1986. 2 Paulo Freire : « Pedagogia da indignaçao ». Sao Paulo : UNESP, 2000. p.60 3 Paulo Freire : « A sombra desta mangueira » ed.Olho d’Agua, 2000. (tercera ediçao) 4 Paulo Freire : « Extensao ou Comunicaçao ». 10°ediçao. Paz e Terra, 1992 (1ª ediçao no Chile, em 1969) Talvez o melhor testemunho que eu possa dar do significado da sua obra para os dias atuais seja narrar a iniciativa que tomamos, três mulheres aqui na França5, pouco depois da sua morte. Queríamos lhe prestar uma homenagem, trazendo suas contribuições para junta-las a nossas reflexões sobre educação formal e informal, na medida em que considerávamos imprescindíveis seus postulados para assumir de forma integral nossas responsabilidades como cidadãos, tanto local como internacionalmente. Em 15 de julho de 1997, elaboramos a seguinte carta de convite dirigida à várias pessoas na França: “ Caros amigos, Em 2 de maio de 1997 perdemos Paulo Freire. De modo espontaneo, encontramo-nos Henryane, Claire e Marie Renee, para discutir sobre as seguintes questoes : - de que maneira o pensamento e as idéias deste pedagogo brasileiro cruzou nossas trajetórias pessoais e profissionais ? - com que tecemos o que ele dizia e de que maneira isso repercutiu en nossa própria história ou na história de nosso movimento ou de nossa rede? 6 Esse encontro nos deu vontade de tecer mais amplamente, construir junto à outros : realizar um evento? Não seria suficiente! Consideramos que melhor seria propiciar uma série de encontros para retecer relações e estabelecer uma caminhada conjunta. Iniciar com energia uma reflexão mais ampla, na qual Paulo Freire não seria nem guia, nem “guru”, mas teria um papel de fermento, de fecundador, de catalisador em meio aos outros. Temos a convicção que nunca como hoje foi tão necessário produzir uma reflexão conjunta, construir conjuntamente, diante do desafio da exclusão e da opressão deste final de século. Jamais precisamos tanto refletir acerca da Educação como ferramenta da liberdade e da paz… Queremos realizar essa proposta no marco de um trabalho em pareceria entre nossas redes, a fim de verificarmos o que mais nos anima em nossa luta quotidiana... Dois são os aspectos sobre os quais gostaríamos de articular nosso trabalho: - porque nos interessa evocar Paulo Freire, não só a partir do que ele foi, mas a partir do que ele desencadeou, pesquisou, ajudou a criar ou conjugar com outros pensamentos ?…; - frente à uma memória que tende a dissipar-se, tentar « recuperá-la » a partir de uma história mais rica, justamente porque tecida com outras histórias. Esta é nossa proposta…cordialmente, Henryane, Claire, Marie Renee » A partir de uma primeira reunião em 9 de setembro de 1997, formou-se um grupo de umas dez pessoas que se reuniam regularmente em Paris, trocando experiências e reflexões, enriquecendo, assim, o trabalho de cada um e, coletivamente, produzindo elementos que iriam servir para uma variedade de produções. Vemos a necessidade de contribuçoes que ajudem a reformular aspectos fundamentais dos programas educativos, formais e informais, na propria França. Essa experiência nos permite visualizar a importância da construção do saber através da troca coletiva e comprovar a profunda riqueza dessa vivência enquanto exercício de cidadania, vindo a confirmar os princípios centrais da pedagogia de Paulo Freire. 5 Respectivamente Claire Heber Suffrin, fundadora do Movimento das Redes Reciprocas de Saberes (MRERS), Marie Renee Bourget Daitch, co-fundadora do Movimento de Desenvolvimento Social (MDSL) e, eu do Centro de Estudo do Desenvolvimento da America Latina (CEDAL) 6 esses movimentos e redes franceses e internacionais representados no grupo que se formou depois desta carta tem a ver com a educaçao de adultos basada nas praticas de troca de experienças, seja nos bairros urbanos, seja no meio rural. Para terminar queria acrescentar que en face dos profundos e cada vez mais rápidos processos de urbanização e de transformações sociais, a relação com a Terra, a questão da alimentação e do meio ambiente continuam cada vez mais importantes. Um novo desafio se impõe para as gerações atuais e futuras, os movimentos e organizaçoes sociais : pensar em como rearticular a vida urbana e rural, em um projeto de sociedade que englobe todas as dimensões do ser humano visando uma melhor qualidade de vida. Como pensar o mundo a partir de uma memória histórica revisitada, enfatizando o papel dos movimentos sociais transformadores, e sonhar um futuro viável para todos que desde ja se constroi ? Aqui o papel da educação, na perspectiva evocada por Paulo Freire, é fundamental e, em muitos aspectos, articula-se com o aporte de Edgar Morin sobre os sete saberes necessários a educação do futuro7 Faz-se necessário superar a atual « cultura de competição » para criar uma « cultura de cooperação » entre os seres humanos, uma cultura que valorize a interaçao entre a pessoa e o coletivo, entre as capacidades e os saberes diversos e complementares. Henryane de Chaponay Cedal 7 Edgar Morin « Os Sete Saberes necessarios a Educaçao do Futuro » Cortez Editora e ediçoes UNESCO Brasil 2000